Peça de teatro para dois atores, original de Constantino Mendes Alves. O tema central é a memória da vida de um casal ao longo dos anos. Este texto está protegido pelo direito de autor.
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Memória
(aos meus irmãos, Pedro Mila Goreti)
de Constantino Mendes Alves
Cena I
Um homem e mulher cobertos de adereços de praia
Homem – papa. Tratretirito fla
Mulher - dedidada fla fla
Homem – fla, glofloglo, jijo!
Mulher - gogloglogo flalalilo
Põem-se, imitam homnídeos, repetem o diálogo, lutam pelos adereços. Fazem
composições de diversos personagens com os adereços, por exemplo fazem O homem
do Martini e ele de barbie, lutam, trocam de adereços, poses para fotografias, pode
haver flashes de holofotes, etc (figuras estereotipadas do consumo capitalista) Por fim
encontram-se olhos nos olhos e beijam-se demoradamente.
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Cena II
Som, música?
Ele segura uma gaiola de pássaro aberta, a sua única acção é passear a gaiola e vê-la
atentamente por todos os ângulos.
Ela segura em pássaros fantoches marionetas (4 ou 5) (ou várias canas com pássaros
nas pontas baloiçando as asas.
Homem – Já pus a água a ferver, daqui a pouco bebemos um café.
Mulher - Sabes que gosto de ti?
Homem ignora-a.
Mulher - Sabes, não sabes?
Homem – Em voz mais alta: A caixa do correio está solta, preciso de tempo, preciso de
tomar ar.
Mulher - Sabes não sabes?
Homem – Os teus pássaros estão fora do lugar.
Mulher - Tu sabes e não me dizes.
pausa
Homem – Tudo volta ao mesmo lugar.
Mulher - Depois de dar a volta ao mundo.
Homem – Sabes que gosto de ti?
Mulher - (ignora-o )
Homem – Sabes, não sabes?
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Mulher - A tua gaiola está fora do lugar.
Homem – Tu sabes e não me dizes.
Mulher - Tudo volta ao mesmo lugar.
Homem – Depois de dar a volta ao mundo.
Mulher - O que sabes de voar?
Homem – Não sei, penso que sabes tu.
Mulher - Poderemos trocar.
Homem – Claro, mas preciso de tempo.
Mulher - Isso não vale, o tempo não é nosso.
Mulher - Vou hoje ficar numa montanha distante.
Homem – E eu ficarei aqui fazendo tic tac.
Mulher - Isso não vale, eu estou a voar, não vês? Não tenho tempo.
Homem – O tempo não é nosso.
Mulher - Claro. Vou dormir descansada. (Pendura as marionetas. Deita-se no chão)
Homem – Tudo está no seu lugar.
Mulher - A lua está suspensa na noite.
Homem – Sim.
Mulher - O Oceano está calmo, há uma cor de prata na água.
Homem – Claro, o dia não pode sempre durar.
Mulher - (ri-se), Oiço-te como num murmúrio do mar.
Homem – E eu vejo-te como um brilho no espelho, quase uma luz.
Mulher - Podes guardar-me essa luz?
Homem – Sim, mas tenho a gaiola quase cheia, para o ano construo outra.
Mulher - Sim, constrói outra.
Homem – Estive a pensar…
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Mulher - Eu sei!
Homem – Quando voltares…
Mulher - Eu sei!
Homem – Estou um bocado sozinho.
Mulher - Já não falta muito, voltarei.
Homem – Há um parafuso que não quer entrar.
Mulher - Sim, tenta outra vez.
Homem – Não posso passar a vida a tentar, tenho de arranjar outra maneira…
Mulher - Claro, tu sabes, não sabes?
Homem – A tinta da parede parece estalar.
Mulher - Estarei aí contigo não tarda nada.
Homem – Não te preocupes comigo, estarei toda a tarde no bar.
Mulher - Tenho imensas fotografias…
Homem – As imagens não são as pessoas.
Mulher - Não, não são, são desenhos, coisas que deixamos por aí.
Homem – E isso é importante?
Mulher - Claro que é, esses desenhos são sinais que deixamos por aí.
Homem – É importante deixá-los por aí?
Mulher - Sim, (olha para ele) não sei, mas é tão giro!
Homem pousa a gaiola.
Mulher coloca as marionetas(pássaros) na gaiola.
Homem – Qualquer palavra pode-nos matar.
Mulher - Sim, pouco mais que a voz.
Homem – Disseste?
Mulher – (ri-se) Sete de anos de azar. (tapa a boca com a mão)
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Homem – Recomeçaremos!
Mulher – Quero ouvir o teu coração.
Homem – Está bem.
Mulher – Encosta o ouvido ao peito dele.
Homem – Bate, não bate?
Mulher – Talvez, se me disseres que me amas.
Mulher – Põe a mão sobre a cabeça dela.
Apaga-se a luz.
Cena III
Ela está no secador do cabeleireiro. Ele está numa cadeira de baloiço
Mulher – És tão engraçado com essa perna esticada.
Homem – Quando estico a perna fico tão bem, faz-me jeito, é tão bom.
Mulher – Às vezes tinha cólicas, sabias não sabias?
Homem – É engraçado que esta perna foi aquela que me magoei na tropa.
Mulher – Eu aguentava, sabias, não sabias?
Homem – É engraçado nunca tinha reparado que esta perna, era a perna da tropa,
entendes o que quero dizer?
Mulher – Estás mouco há uma série de tempo, as minhas cólicas dão-me de manhã.
Homem – A perna da tropa…
Mulher – Será sexo?
Homem – Esta perna… é a perna da tropa.
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Mulher – É tão picante!
Homem – Posso dizer que quando me dói a perna…
Mulher – Eu acho, ter uma indisposição por causa de sexo!!!
Homem – Nesse caso posso dizer que me dói a tropa.
Mulher – Da primeira vez não me deu cólica.
Homem – A tropa a doer…serei um caso psiquiátrico.
Mulher – Mas foi só sexo oral.
Homem – Esta perna , podemos dizer assim é um caso psiquiátrico.
Mulher – O coito também é bom, mas tenho cólicas…
Homem – Há coisas interessantes como uma perna nos pode elucidar sobre o nosso
estado de saúde mental.
Mulher – Não nunca foste chato, sempre foste vigoroso…
Homem – Na verdade o nosso corpo funciona como um sistema fechado.
Mulher – Eu até que gosto, contei às minhas amigas da cólica, eh! Eh!
Homem – Os sistemas fechados podem ser complexos, mas cada elemento reflecte o
outro, compreendes?
Mulher – Que eu era lésbica…
Homem – O organismo humano é um sistema complexo em que cada elemento cumpre
a sua função, mas que ao mesmo tempo reflecte o outro, compreendes-me,
Mulher – Talvez fosse, não sei, na verdade nem eu sei o que isso é.
Homem – Faço poesia, ou será filosofia, ciência, por causa da perna.
Mulher – Mas podemos ir mais longe, a seguir ao sexo oral do que mais gosto…
Homem – A perna que quando a estico…
Mulher – Isso! Do que estou a pensar e claro… linguado!
Homem – Que quando a estico fico eternamente apaixonado por ti.
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Toca uma campainha. Param.
Os dois – Quem é?
Cena IV
Têm nariz de palhaços
Música de circo
Fazem mímica
Falam à palhaço
Homem – Morena, o que fazes aqui?
Mulher – Procuro um beijo teu.
Homem – O que farás com esse beijo, Morena?
Mulher – Roberto, apaixonar-me-ei por ti para sempre!
Homem – Para sempre?
Mulher – Sim forever and ever!
Homem – Não acredito em ti, levarás esse beijo para qualquer outra parte do universo e
não lhe darás mais qualquer importância, mentir-me-ás dizendo que estarás apaixonada
por mim.
Mulher – Sabes que não é verdade Roberto, o meu amor é infinito, verterei lágrimas de
crocodilo sempre que me lembrar de ti.
Homem – Como és falsa Morena, terei de procurar fora da casa um consolo que aqui
não posso encontrar…
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Mulher – Dá-lhe um pontapé. Destroçar-me-ás o meu pobre coração com as tuas
pequenas traições. Não suportarei o meu coração destroçado, tentarei um pequeno
suicídio, farei assim (imita um beliscão no próprio rabo e cairá no chão).
Homem – Os teus achaques, pobre palhaça, és conhecida em todo o mundo pelos teus
achaques patetas, como acreditarei em ti?
Mulher – Terás de percorrer um longo caminho de perdição e solidão, terás uma longa
estória de sexo inconsequente, andarás fugido da nossa relação por um longo período de
tempo, darás a volta ao mundo, perseguirás camelos no pólo norte, inseminarás
orangotangos no Vietnam, Talvez a tua expedição ao deserto da Austrália te trará um
momento de reflexão, extrapolarás o teu próprio subconsciente na caça ao canguru.
Homem – Sim, e tu estarás lá, aguardando, qual santa Isabel de Aragão, recolhendo no
teu belo seio, este caminhante cansado de tanto desdém e incompreensão. Quando
chegar faremos sexo até de madrugada, até a cotovia anunciar a nova esplêndida manhã,
onde o amor, por ser tão sublime, germinará a nossa prole e assim fará sentido, qualquer
teoria do caos ou a infecção genética do planeta, tu, mãe, mulher, por fim cheguei! (abre
os braços no ar)
Mulher – Estarei limpando panelas, fazendo pequeno croché, abrirei as minhas pernas
de par em par. Mas não te esqueças quando saíste não foi para comprar tabaco, e no
quarto de dormir zurrará um qualquer porco, nascerá de qualquer árvore uma lata de
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sardinhas, Portugal assim ofendido, pedirá de novo que eu seja uma pequena rapariga
alegre moça, que cante janeiras em qualquer lugar, mas aqui só haverá fantasmas, e os
fantasmas ouvir-se-ão até aos incontáveis do infinito. Ó Roberto onde guardaste o meu
beijo?
Homem – Não guardei, por milagre ainda te tenho aqui (tira uma foto dela do bolso)
Mulher - Roberto tenho-te dito que essa pequena foto não é das que mais gosto.
Homem – Estou fazendo graça, esta é uma foto tua de quando estavas zangada comigo.
Mulher – Não é nada simpático da tua parte, também podia recordar-te que eras um
grande alho antes de te ter encontrado.
Homem – Ora pequena palhaça, o que serias tu sem mim, uma pobre palhaça no mundo
sem ter eira nem beira
Mulher – Que desagradável podes ser, quando queres, de qualquer das formas vou
fazer-te um pequeno teste.
Homem – o que trago aqui?
Mulher – Um iceberg em forma de gelado Olá?
(Truque do ramo de flores)
(Abraçam-se, tiram uma placa dizendo Do not disturb. Música, sons.)
Cena V
Cabeleiras brancas de velhos
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Som de rock em roll
Dançam yé-yé
Homem – É gira esta dança.
Mulher – A música concentra-te na música.
Homem – Contei-te não contei?
Mulher – Sim, eu acho sensacional!
Homem – E poderíamos fazer também?
Mulher – Sim moderadamente.
Homem – Já poderíamos ter tentado há mais tempo.
Mulher – Se não fosse a impossibilidade de o fazer.
Homem – Sim, mas podemos sonhar ,que diabo é apenas um sonho.
Mulher – Decerto iria gostar.
Homem – Os sonhos passam a desejos.
Mulher – Os desejos a realidades.
Homem – Já estou a economizar.
Mulher – Mas irá custar dinheiro…
Homem – Não, mas como não há nada de graça…
Mulher – Irei poupar também, é tão feminino!
Homem – Não me parece, poupar é coisa de homem, dá mais à anca, isso
o yé-yé agora dança-se mais gingado.
Mulher – E as mamas, poderei continuar a usar as mamas?
Homem – Sim, é coisa unissexo.
Mulher – Mmmm, poderei contar à Rita?
Homem – Servirá de alguma coisa pedir segredo?
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Mulher – Já reparaste, iremos ser os primeiros na cidade.
Homem – Não diria tanto, há sempre gente mais esperta do que nós.
Mulher – Seja como for adoro a ideia.
Homem – A partir daí tudo será possível…
Mulher – És tão inteligente! És o meu maridão!
Homem – Ainda não viste nada, nem sonhas o que eu tenho preparado para esse dia.
Mulher – Irás ter uma surpresa também.
Homem – Qualquer coisa que me fará feliz.
Mulher – Nada disso! Muito mais, têm- me dito maravilhas daquilo.
Homem – Mais que a felicidade só pode ser qualquer coisa de sexo.
Mulher – Ou poético
Homem – Não é um objeto.
Mulher – Mais que isso.
Homem – Adoro as tuas surpresas.
Mulher – De qualquer forma com o que adquirirmos, podemos estabilizar a nossa
relação.
Homem – Isso seria óptimo nunca mais nos zangaríamos.
Mulher – Nem teríamos ciúmes.
Homem – O mundo moderno é maravilhoso, tudo assético e artificial.
Mulher – Sim nada de pré-história, estaremos na linha da frente.
Homem – Contudo…
Mulher – O quê estás a perder, a gazua?
Homem – Nada disso estou a ver a fazermos sacrifícios.
Mulher – Apertar o cinto.
Homem – Adoro apertar o cinto.
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Mulher – Não te esqueças que teremos de ser criativos
Homem – Sim faremos inveja dos cinzentos.
Mulher – Não é uma questão de cor.
Homem – Pois não, mas teremos um objectivo difícil de alcançar
Mulher – Os miúdos também vão gostar.
Homem – Loucos como estão irão entrar numa verdadeira combustão.
Mulher – Encosta-te a mim.
Homem – Sabes que irei ter uma ereção.
Mulher – Aqui no meio de toda a gente?
Homem – Sim, adoro-te.
Mulher – Saímos?
Homem – Sim, pela esquerda baixa.
Saem abraçados
Cena VI
Vestidos de fatos de macaco
Homem – O trabalho complica a nossa relação.
Mulher – Talvez não compreendas o que se passa entre nós.
Homem – Não sei o Mendes irrita-me com aquelas ordens todas parece um macaco a
falar devias vê-lo logo de manhã, a complicar-se no email e ao telemóvel vociferando
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ordens para todo o lado a Mara, a secretária é um bombo da festa, coitada tenho pena
dela, fazendo tudo em alta velocidade, rebaixando-se a tudo o que ele diz, a mim
também, embora ele nunca tivesse coragem de me olhar olhos nos olhos, tudo por email
da empresa compreendes, quando preciso de discutir uma ideia agarro-me ao Baltazar e
ao Costa às vezes deve-me uns favores e eu aproveito, mas aquilo é difícil e eu tenho
uma solidão do caraças com aquilo tudo em polvorosa ao meu redor, e eu a tentar uma
ideia de jeito para vender um estupor de um retrovisor de automóvel de última geração,
tipo coisa de malucos com leds na periferia, um espelho de 60º de ângulo reconhecível,
como(grita) como se vende um retrovisor?…e depois a lista de compras, sabes acaba
por passar tudo por mim, o Costa inclusive desabafou comigo no outro dia, r«toda a
manhã com conversas dele com a mulher, do pós parto e da difícil idade dos quarenta,
que diabo eu não vou aguentar mais aquilo eu tenho um curso de design que diabo
porque diabo não faço aquilo que sei fazer, tu não sabes, no outro dia fui à
manifestação, fui protestar contra o Sócrates e tal, isto precisa de dar uma volta
qualquer, eu preciso de mudar tu também, devias pensar na tua carreira qualquer dia
estou no desemprego, olha vou pintar se calhar devia ser pintor e pintar qualquer coisa
de arte moderna, contemporânea, argumentar qualquer coisa contra o mundo, sabes
estamos a perder um bocado disto tudo, Portugal não pode só ver a bola, e eu estou
cansado do Mendes e da porcaria do supermercado da esquina, sabes que noutro dia a
rapariguita deitou-me uns , olhos, tu não tens ciúmes pausa devias ter ciúmes, já não
estou a perceber nada disto qq dia tenho quarenta e cinco anos e quando deitar contas à
vida vai ser o caraças, se calhar divorcio-me aos cinquenta e vou pra África cuidar dos
leprosos ou vou pra as Bahamas vender aulas de windsurf, sabes hà quanto tempo não
faço windsurf hà quanto tempo não faço o que gosto, se calhar gostavas q eu me
metesse com a rapariguita do supermercado não gostavas, curtias uma de mulher
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repudiada, um pretexto pra os teus mexericos com as tuas amigas, se calhar as tuas
amigas já te disseram …
Cena VII
H penteia m
Homem – Lembras-te do gato persa?
Mulher – Sentava-se como se estivesse de pé defronte da janela, o que olhava ele para
fora da vidraça, os homens do mercado passavam todos os dias à mesma hora, já o
conheciam, e ele a eles, à tarde a dona Rosa vinha para as limpezas, era o primeiro
sorriso que fazia naquele dia, o gato era família para muitos daquela rua lembras-te
(olha para ele) para nós também, claro. Uma vez encontrei-o na cesta da costura, tinha-
se enrolado todo com um novelo de lã, parecia um maluquinho com os fios da lã
imitando uma cabeleira gigante, o rabo a dar a dar, retribuía do carinho que lhe
dávamos, fazia um Carnaval, um espectáculo para nos divertir, ele sabia que os nossos
dias não eram fáceis. Outra vez estava no cabeleireiro com a Rita e falávamos dos
amigos que conhecíamos, pura brincadeira, mas ela ficou espantada quando inclui o
persa na listagem, surgiu-me naturalmente, não achas que os amigos são aqueles que
nos tocam o coração? Ou a mente, há qualquer coisa de mental na expressão dos gatos,
um autor não me recordo do nome dizia que os gatos nos passam energias metafísicas
ao nosso espírito, o nosso persinha um yogui, um mentor da casa era o que ele foi
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algumas vezes, estou certa disso, nos nossos silêncios não achas quando não havia nada
para partilhar, o gato entrava nas nossas mentes com aquelas ideias de gato, curtir não
achas? Eles curtem os dias, o Criador lembrou-se de tudo, até dos nossos nadas. Quero
ter outro gato, talvez um angorá, os miúdos estão crescidos mas será a nossa
oportunidade de alguma maneira ocuparmos aquele lugarzinho de papá e mamã, o puto
angorá, eu sei é só um animal mas nós também o fomos pois fomos, claro ainda somos
uns animais na cama, mas cuidarmos de um genuíno de quatro patas, faz de nós um
pequena humanidade solidária não é? Sou muito feminina não sou…assim falar de
gatos podia falar de cães mas não era a mesma coisa. Não sei o que gostas em mim, a
minha sensibilidade? Ou sou boa na cama? Claro que fico contente com isso
mas…sabes no outro dia no parque havia um sem abrigo q não tirava os olhos de mim,
pensei que era um tarado, mas deu-me vontade de encará-lo sabes que as mulheres são
capazes de um olhar que vos deixa no precipício, não ele não era tarado, vais ficar com
ciúmes…eu acho que ele me amava, quer dizer isto é um bocado parvoíce, tinha um
sentimento qualquer por mim, e era a mesma coisa ele olhava para mim como tu olhas,
fazes –me sentir qualquer coisa, dei uma moeda ao sem abrigo, dei-lhe qualquer coisa
meu….sabes o que acho eu era o seu gato, ele recebeu a moeda como se recebesse um
amigo, podia ser o meu gato não podia, não me compreendes pois não, somos hipócritas
o sem abrigo é uma pessoa não é?
Não me olhes assim , não és um sem abrigo, sabes que te recebo sempre, entras em
mim, estás sempre em mim.
O homem beija-a, rebolam no chão.
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Dizes sim a tudo, e eu gosto sabes? Sabes não sabes, gosto imenso de ti.
Cena VIII
Vestidos de Adão e Eva.
Mulher – O que nasceu primeiro o ovo ou a galinha?
Homem – Os cientistas dizem que nasceram ao mesmo tempo.
Mulher – Ainda bem, adoro tirar o soutien
Homem – Contudo a galinha…
Mulher – As mulheres adoram a nudez, adoram estar nuas.
Homem – Por outro lado o ovo…
Mulher – Adoramos ser penetradas, mas…
Homem – Mas o ovo também não poderá ser porque, para existir teria que ser criado
pela galinha.
Mulher – Exibirmo-nos, expandirmos a nossa feminilidade.
Homem – Fico então na dúvida…mas lá está a resposta dos cientistas terá que ser tida
em conta, por fim.
Mulher – O nu é uma coisa sagrada, o sexo do diabo, mas o corpo tem uma importância
extraordinária…
Homem – Claro que do ponto de vista religioso, o ovo e a galinha a questão não se põe.
Mulher – A fertilidade, a procriação, a maternidade por vezes cruzam-se na
personalidade da mulher.
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Homem – A religião resolve os enigmas do homem através de conceitos tidos como
certezas, crenças criadas através da espiritualidade.
Mulher – A mulher é essa caixa de pandora, essa complexidade de elementos que estão
justapostos…
Homem – Daí relegar a fundamentação científica para segundo lugar.
Mulher – Qualquer mulher tem que gerir todas estas características, é o cabo dos
trabalhos é o que te digo!
Homem – Não queres comer uma maçã?
Mulher – Que piada é essa? Há imenso tempo que ta dei.
Homem – Sim, mas já a vomitei há imenso tempo também, Caim o nosso filho, o nosso
pequeno assassino, deu-me uma semente, semeei-a no nosso jardim
Mulher – Eu bem me queria parecer que não era a árvore da marijuana…
Homem – Não, era a árvore da consciência, este é o seu fruto.
Mulher – o ba a ba do bem e do mal?
Homem – Sim se a comeres teremos uma vida horrível, mas tremendo sexo!
Mulher – Tremendo sexo é eu abrir as pernas na cama todas as noites sendo violentada
por bestas que habitam o teu escritório
Homem – Sim, mas se plantarmos mais árvores dessas poderemos ir mais longe, na
nossa relação.
Mulher – o que é ir mais longe?
Homem – É zen, corroendo o mal, ficaremos bons
Mulher – Que complicado, não comerei a maçã.
Homem – Quando o nosso filho nasceu…
Mulher – José, dá-me um beijo!
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Cena IX
No supermercado
Ele dentro do carrinho de supermercado, ela empurra.
Andam pelo espaço cénico
Mulher – Primeiro vamos ao pão.
Homem – A primeira prioridade.
Mulher – Claro precisamos de pão. É essencial numa verdadeira alimentação.
Homem – Pão com manteiga, torradas, pão com passas, pão com chouriço ou com
bacon.
Mulher – Isso é muito britânico, bacon não.
Homem – Muito bem ficamos com o pão com chouriço, as torradas e o pão com passas.
Mulher – Pão com passas é muito franciú.
Homem – Muito bem, ficamos com pão com chouriço, torradas e pão pão.
Mulher – Olha ficamos com pão pão, que é mais português e mais em conta com a
carteira.
Homem – Pão em conta com a carteira, muito bem, é agora que vamos às ferramentas?
Mulher – Ainda não, temos de ir ao talho.
Homem – Bifes, carne picada, língua de vaca, carne para cozer, para guisar para assar,
carne picada…
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Mulher – A carne pouco importa, são as nossas almas que temos de salvar, vamos aos
cosméticos.
Homem – Mas eu tenho fome…
Mulher – Não me queres bonita, sadia, social?
Homem – Sim mas a carne…
Mulher – Qual carne, não reparas em mim é o que é, toda a semana, entras em casa, lês
o jornal e adormeces na tv, a carne ora bolas, a carne sou eu e estou ali à mão de
semear.
Homem – Não sabia que te queixavas.
Mulher – E não me queixo, aborreço-me, não reparas que há mais gente em casa é o
que é!
Homem – Isso não é verdade, convidei-te para irmos ver o Benfica.
Mulher – Meter golos? Mete-os lá em casa!
Homem – Humilhas-me à frente desta gente toda em pleno supermercado.
Mulher – Homens em terra, tempestade nas mulheres.
Homem – O que queres dizer com isso?
Mulher – Os homens sedentários dão nisso, barriga grande de cerveja e hipnotização
sexual, passa-me as cotonetes!
Homem – Também foste uma desilusão para mim, não és o que foste, olha as
ferramentas acolá…
Mulher – Ah! Já cá faltava, Faço de homem da casa e ainda tenho de cumprir um
programa de manutenção feminina diária, cabeleireiro, manicure, dieta de água e yoga,
olha qualquer dia fujo com o professor de yoga!
Homem – O professor de yoga, eu vou ser trocado por um professor de yoga?
Mulher – E tens sorte, podia ser o padeiro, há meses que me deita uns olhos…
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Homem – Isto é demais, as massas passa pelas massas.
Mulher – Pois a massa também já não é o que era, já nem dá para um fim de
semanazinho…
Homem – É nos gastos supérfluos…
Mulher – Os gastos supérfluos é que mantêm a casa na vertical, se não fosse a minha
vaidade pessoal, a ambição desmesurada, as minha curiosidades, o que era aquela casa?
Homem – Hem?
Mulher – Era uma barraca!
Homem – Uma barraca?
Mulher – É o que te digo, uma barraca de indigentes.
Homem – Culpas-me de tudo, mas eu só vivo para a casa, os miúdos, para ti…
Mulher- Ai que lindo romance, escolhe as laranjas!
Homem- Escolho as laranjas? Recuso-me. Agora quero saber qual o meu papel na
estrutura familiar, já que sabes tão bem…
Mulher- Estrutura familiar? A estrutura familiar sou eu, mãe, pai e amante, sou eu, tu
estás lá, literalmente pra ver a bola!
Homem – Eu quero ir às ferramentas! Eu quero ir às ferramentas. (faz birra)
Mulher – E hás-de ir, coitado, de ferramentas e parafusos é do que precisas, és pouco
mais que um molusco, sem esqueleto, sem estrutura, como dizes…
Homem – Eu sei, eu sei, não tenho sido o melhor, mas molusco? Disseste molusco?
(ergue-se)
Mulher – Ora viva quem é, O meu homenzão!
Homem – Escuta, agora que acabaste a tua lista de cosméticos, podemos seguir até à
zona das ferramentas?
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Mulher – Claro, não te esqueças de levar as ferramentas para casa. José há uma
prateleira…
(facha a luz)
Cena X
Na cama
Mulher – Quando morrermos ficaremos juntos?
Homem – Quando morrermos não haverá nada.
Mulher – Nada como? Eu amo-te!
Homem – Sim eu também, mas não haverá nada.
Mulher – Não me parece possível.
Homem – Mas é assim mesmo.
Mulher – Como pode ser isso possível, o esforço enorme que fizemos para comprar a
casa…
Homem – Ficará para os filhos, nós não teremos nada.
Mulher – Nem sexo…
Homem – Nem sequer sexo, nada.
Mulher – É humilhante, quanto acreditámos tanto nisto.
Homem – Sim, é uma espécie de injustiça universal.
Mulher – Não me importo de morrer, daqui a uns anos estarei cansada de tanta vida,
mas…
Homem – Sim, mas o quê?
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Mulher – Parece-me que terá de haver uma resposta.
Homem – Sim a resposta é Nada.
Mulher – Sim é como arrumar a cozinha, fica tudo limpinho,
Homem – Sim mas a cozinha pode outra vez ser utilizada, connosco nada.
Mulher – Deus deve ser um homem, tu deves saber qualquer coisa que não dizes à tua
mulherzinha…
Homem – É como te digo, nada vezes nada, para ti e para mim.
Mulher – Malandros, fazem-nos abrir as pernas, carregar gente nove meses e toda uma
vida de preocupação com os filhos, no fim nem uma medalha.
Homem – Não há solução.
Mulher – Talvez ter um orgasmo…
Homem – Um orgasmo, por que carga de água…
Mulher – Num orgasmo nós podemos ver
Homem – O que é que vês, eu sinto, e se sinto caramba. É tão bom
(abraça a mulher)
Mulher – Calma lá, num orgasmo nós vemos coisas
Homem – Eu fecho os olhos.
Mulher – Eu vejo que tudo vai continuar.
Homem – Como vai continuar? Vira-se para o lado
Mulher – Isto nunca acaba, o orgasmo diz de uma maneira maluca que tudo vai
continuar. Há qualquer coisa de programado para nós, podemos continuar a namorar por
exemplo, podemos ver os nossos filhos, podemos descansar, podemos ter mais
orgasmos, é isso teremos orgasmos contínuos é isso o eternamente, teremos uma vida
infinita de amor, para isso precisamos de trabalhar para isso, queres? Olha para ele, ele
dorme.
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Homem - Tentamos amanhã, deixa lá, os orgasmos que já tivemos permitem-nos pelo
menos 10.000 anos de paraíso, fecha a luz, boa noite amor…amo-te mas já estou tão
cansado…
Cena XI
A passearem um carrinho de bebé
Mulher – Quando chegam os filhos fica tudo mais fácil.
Homem – É quando comecei a beber cerveja com os amigos.
Mulher – A maternidade, dizia a Sofia, enche-nos a vida.
Homem – Passamos horas no golfe ou no estádio de futebol.
Mulher – Eles são giros não são?
Homem – Claro, olho para as outras mulheres, tens que confessar há umas mais giras.
Mulher – Não me ouves, pois não?
Homem – Oiço-te a chamar os miúdos quando venho da pesca, a casa cheia, a tv
sempre ligada, um cheiro a frango na cozinha…
Mulher – Os garotos, gostas deles…
Homem – Claro, pô-los no colégio, trazê-los do colégio, beber uma cervejita, aqui e
acolá com a malta da farra, claro que gosto, mas à noite a porca torce o rabo
Mulher – A porca sou eu?
Homem – Não percebes um homem que bebe cerveja, precisa, não percebes já os meus
sintomas, tesão caramba, falo disso, obrigas-me a dizer asneiras
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Mulher – Eu…gosto de ti também, os garotos estão em primeiro lugar, e canso-me às
vezes não tenho vontade do amor.
Homem – O quê? Passa-se algo com ele? (pega no bebé do carrinho) tem a fralda
molhada.
Mulher – Porque olhas pra mim? Vá muda-lhe a fralda
Homem – É que não sei….
Mulher – Quem não sabe aprende, tens que aprender.
Homem – É mais fácil consertar a tomada eléctrica da cozinha.
Mulher – Sim, mas isto também está inscrito no trabalho doméstico, e no código de
paternidade…
Homem – Cara advogada, posso contrapor, mudar a fralda é o elemento constituinte do
estatuto de maternidade, ou como sua extensão, pode verificar nos anexos A 3 2ª parte
(passa-lhe o bebé)
Mulher – obrigado caro colega, informei-me no meu sindicato da mãe autónoma e
eficaz , que, e passo a citar: “qualquer actividade fora do âmbito da maternidade estrita,
como dar à luz e dar a mamada, actividades descritas como extensas ao cuidado
educativo do bebé ou da área dos cuidados primários e higiene pessoal, exemplo: dar
banho u mudar a fralda; devem ser consideradas actividades, cuja responsabilidade deve
ser resgatada a tutoria ambivalente tanto do pai como da mãe, sendo estas incutidas à
responsabilidade paternal sempre que a actividade profissional ou outra justificativa da
necessidade de autonomia da mãe assim o justifique ou em caso de mutuo acordo,
quando ambos os tutores têm restrições temporais que os limitem na responsabilidade
para com o seu filho ou filhos. Como esta semana, já deixei de fazer uma montanha de
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coisas que gostaria de ter feito por restrição profissional, passo-te a tarefa de limpares o
cu ao teu filho! (Passa-lhe o bebé)
Homem – O meu filho? Ilustríssima colega, lembro-lhe, e passo a citar a máxima mais
lendário preconceito do macho universal: “o filho obviamente é da mulher, por que sai
do seu ventre, mas como saberei eu que é o meu filho? Onde está a minha prova dos 9,
onde está o facto que testemunhe ou a coisa que o prove, vá Maria diz-me agora, onde
está essa prova.
Mulher – no meu amor, meu eterno namorado, no meu amor, no nosso amor, nos
obstáculos que ultrapassamos juntos, nesse testemunho de vida que é a nossa vida
palerma, não o reconheces, olha para mim, não sou a mesma Maria por quem te
apaixonaste profundamente.
Homem – Ora Maria, paixonetas, a vida mostra-nos outras coisas, a nossa vida não é a
mesma, quer dizer a nossa relação, desculpa eu sei que ele é meu filho, estava a
exagerar, mas há qualquer coisa de errado nisto, como ficamos assim a discutir uma
coisa destas?
Mulher – Eu sei, estamos noutro patamar, a paixão é outra coisa, mas sentes-me ainda
não sentes?
(O garoto chora)
Os dois – Esquecemo-nos dele!
Mulher – Deixa eu mudo-lhe as fraldas,
Homem – Eu vou ao carro buscar o pó talco.
Mulher – Luís?
Homem – Que é?
Mulher – beija-me!
Beijam-se
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Cena XII
Mulher – Bebé….
Homem – de gatas e cabeleira branca - Já vou!
Homem – Bebé!
Mulher – de gatas - Já vou!
Homem – Chupaste o meu dedo do pé, não foi?
Mulher – Nada, não sei se o dedo era teu, estava aí ao deus dará…
Homem – Nada está ao deus dará, tudo pertence a alguém, tudo tem dono.
Mulher – Tudo tem dono, há coisas que não têm dono, as mamas da mamã…
Homem – São do papá!
Mulher – Ah pois, mas há outras coisas, por exemplo um banco do jardim…
Homem – Isso também tem dono, são dos velhotes, têm lugar marcado, os namorados
também.
Mulher – Ah já me lembro nós tínhamos também, era…
Homem – Mas não era um banco do jardim.
Mulher – Não, não era, era uma soleira da porta, um quarteirão antes da minha casa, era
tão bom.
Homem – E era gratuito, beijocas boas e baratinhas.
Mulheres – Baratinhas, não eram de borla ou pensas que eu me prostituo por dá cá
aquela palha.
Homem – Não, és das carotas!
Mulher – Olha que levas um estalo…
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Homem – Um estalo, que julgas tu que idade tenho eu?
Mulher – Tens idade para levar um estalo.
Homem – Queres brincar ao gato e ao rato?
Mulher – Eu sou o gato e tu és o rato.
Homem – Mandas sempre nas nossas brincadeiras…
Mulher – É para variar.
Homem – Porquê? Sou assim tão machista?
Mulher – Não, sou eu que sou assim uma bebé provocadora.
Homem – Estamos a nascer ou a morrer?
Mulher – Isso que importa? Isto é tão bom (continuam a jogar ao gato e ao rato)
Homem – Olha os miúdos!
Mulher – Já são grandes a esta hora…
Homem – Se calhar já somos avós…
Mulher – Avós cheio de …(morde-o no pescoço)
Homem – (beijam-se) Isto é o fim.
Mulher – O principio Luís, é só o princípio.
Homem – E isto não pára, pois não?
Mulher – Não o jogo nunca pode parar é a regra número um.
Homem – Adoro-te sabias?
Mulher – Conta essas estórias aos teus netos.
Homem – Sim, mas tenho de lhe acrescentar uns dragões e umas serpentes…
Mulher – Luís. Esquece, põe essa mitologia toda a funcionar na minha boca.
Somos uma equipa
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Cena XIII
de costas um para o outro
Homem – Estamos a morrer.
Mulher – E eu não sei nada de ti.
Homem – Estamos a morrer já não sabemos nada de nada.
Mulher – Queria beijar-te mais uma vez.
Homem – Não dá, é impossível estamos em direcções opostas.
Mulher – Morre-se para cada lado?
Pausa
Homem – Os filhos ficam
Mulher – Sim ficam os filhos
Fica o mundo.
Mulher – Sim é bonito.
Homem – O mundo.
Mulher – Todo mundo.
Homem – E depois…
Mulher – E depois…
Homem – Foi um êxito
Mulher – Claro que foi um êxito
Homem – Tirando aqueles dez anos de desemprego
Mulher – Claro, isso foi um buraco
Homem – Um buraco onde também eu pus a cabeça,
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(Dão a mão)
Mulher – E se um…
Homem – For antes do outro?
Mulher – Fica cá muita coisa.
Homem – Claro os filhos.
Mulher – Há um animal que põe os ovos e morre
Homem – Morre
Mulher – Mas ficam as nossas saudades.
Homem – Eu não quero morrer.
Mulher – Não quero ter saudades.
Homem – Não saudades não.
Mulher – Daqui não se vê viv’alma.
Homem – Nada, daqui também não.
Mulher – Nada mesmo?
Homem – Ficamos nós.
Mulher – E isso da alma?
Homem – Nada
Mulher – Ficamos juntos seja de que maneira for.
Homem - Pois, até ao último segundo.
Mulher – Sim, também quero.
Homem – Dá-me um beijo.
Mulher – Não posso estou a morrer.
Pausa
Homem – Eu também, estou quase morto.
Viram-se e beijam-se