O documento analisa o filme "Boca de ouro" e o texto "A crítica do acontecimento ou o fato em questão". Discutem como as diferentes versões da história contada por uma testemunha revelam a subjetividade da informação jornalística. Também explora como os acontecimentos são construídos culturalmente e como a imprensa não é neutra.
Ensaio sobre o filme “Boca de ouro” e texto “A crítica do acontecimento
1. Ensaio sobre o filme “Boca de ouro” e texto “A crítica do acontecimento
ou o fato em questão” – Barbara Blanco Pozatto, UEL, 2014
"Poucos dramaturgos revelam, como Nelson Rodrigues, um imaginário tão coeso e
original, e com um espectro tão amplo de preocupações psicológicas, existenciais,
sociais e estilísticas." (Sábato Magaldi, crítico de teatro)
Apresentação e análise dos objetos
Boca de ouro trata-se de um filme brasileiro de 1963, do gênero drama,
ou melhor, uma tragédia carioca, dirigido por Nelson Pereira dos Santos, com
roteiro baseado em peça teatral de Nelson Rodrigues. É interessante ressaltar
que o escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues tem formação em jornalismo, e
em algumas de suas peças, como O beijo no asfalto, faz questão de trazer à
tona esse personagem exercendo a profissão.
É o que acontece na peça e, consequentemente, no filme Boca de ouro,
em que o repórter com o apelido de Caveirinha tenta relatar a história de vida
de um bicheiro assassinado, cujo apelido é o nome do filme. Sobre o bicheiro
(Jece Valadão), aparece “realmente” apenas no começo, no dentista, o que dá
um caráter onipotente ao personagem. Depois desse momento, é apenas parte
do discurso de outros. Tem-se a afirmação que ele arrancou todos os dentes
para trocar por uma dentadura de ouro, e que estava preparando um caixão
com o mesmo metal para sua morte. Entretanto, em seu enterro, vê-se um
caixão comum, e barato demais em relação às suas ladainhas em vida.
Para publicar nos jornais a história, o repórter busca o depoimento de
uma de suas amantes, dona Guigui (interpretada por Odete Lara). Então, ela
expõe três versões sobre o bicheiro, que só recebem interferências e são
alteradas pois D. Guigui descobre detalhes que não gosta sobre a morte do
Boca,como é chamado, e fica em estados psicológicos diferentes, o que altera
seu discurso.
Por ser abandonada e permanecer ressentida, na primeira versão dona
Guigui mostra um Boca de ouro execrável, que assassinou Leleco (Daniel
Filho), marido de Celeste (Maria Lúcia Monteiro), outra amante de Boca.
Depois de saber sobre a morte do bicheiro, muda a versão criando um Boca
apaixonante e omite que ele matou Leleco, afirmando que a morte foi causada
por Celeste. Ao contar suas versões, D. Guigui discute com o marido, que não
suporta a ideia de ter sua mulher como ex-mulher do Boca. E, a fim de
preservar o casamento, retrata o protagonista, em sua última versão, como
assassino de Leleco, com a cumplicidade da amante, e como um assassino de
mulheres que, inclusive, matou Celeste.
Conforme o filme acontece e as versões vão sendo apresentadas,
muitos detalhes precisam ser levados em consideração, como o fato de Dona
Guigui, na casa do bicheiro, aparecer sempre ao pé da escada, nunca no andar
2. de cima, e vestir, nas três versões, a mesma roupa. O que se explica pelo fato
de ser a narradora, abstendo-se, portanto, de sua mudança de personalidade e
alteração emocional.
Nelson vai mais longe no processo de sondagem: dependendo
sobretudo do estado emocional do contemplador, a personagens
adquire para ele fisionomias diversas, freqüentemente contraditórias.
A dimensão psicológica se enriquece, assim, até o infinito.
Engrossando as fileiras de importante vertente da ficção
contemporânea, Nelson traz à tona o sutil jogo de intersubjetividades.
(MAGALDI, Sábato).
Além disso, as roupas dos outros personagens se alteram nas estórias
de Guigui, denotando épocas e até circunstâncias distintas. Pequenas
situações como a forma que Boca chega a casa dele mudam, podendo ele
quase atropelar alguém na rua, parar o carro para a pessoa passar ou chegar
de táxi.
No final da peça a dúvida fica com a plateia. Dona Guigui mentiu por
causa das circunstâncias? Qual a verdadeira versão? Pelas questões sem
resposta que suscita nos espectadores, Boca de Ouro pode ser caracterizada
como uma obra aberta.
No texto A crítica do acontecimento ou o fato em questão, de Maurice
Mouillaud, está o seguinte excerto explanador: “No momento mesmo do
acontecimento, não existe nada, nada para ser ‘visto’. As testemunhas estão
sideradas1. A explosão é uma explosão do sentido pulverizado em um pó de
detalhes” (MOUILLAUD, p. 49).
A partir do trecho e do texto como um todo, podemos inferir a
etnometodologia, a qual considera que a realidade social que construímos está
presente no cotidiano e na vivência de cada indivíduo. Sendo assim, em todos
os momentos podemos compreender as construções sociais que permeiam
nossa conversa, nossos gestos, nossa comunicação, entre outros fatores,
abandonando, por vezes, a perspectiva da verdade.
Podemos inferir a partir da análise do texto que a informação não é um
espelho do acontecimento, ou seja, “Dizer que o acontecimento é uma unidade
cultural e que já está codificado no interior do espaço da informação, não priva
de sentido a distinção entre o acontecimento e a informação” (MOUILLAUD, p.
56).
Segundo discussões baseadas no texto, conclui-se que, assim como
afirma o ditado, o jornalista escreve o que ouve, e não o que houve de fato.
Opera-se, portanto, a disjunção entre informação e acontecimento, sendo estes
1 Sinônimo de perturbado, estarrecido.
3. antônimos. O acontecimento é o que a informação esconde, torna-se um
conjunto de limites pouco precisos.
Os acontecimentos podem ser visto enquanto “começos”. Desse
modo, o acontecimento não se restringe ao momento de sua
ocorrência. Ele continua a ocorrer e a singularizar-se enquanto
produzir efeitos sobre aqueles que afeta. A ideia aqui presente
enfatiza que o acontecimento não só acontece, por si e em si, mas
acontece a alguém. (SILUA, 2012).
Então, faz-se o questionamento: existe texto que não seja ficcional? E é
a por meio dessa questão que avançamos em tantas outras, como o que
relatamos de fato em uma notícia, qual o “enquadramento” dado diante da
multiplicidade de focos existentes; as fontes ouvidas são suficientes? E qual o
estado delas no momento da fala? O que se escreve tem relação direta com o
que aconteceu?
São essas e outras perguntas que cabem aos jornalistas responderem,
ou pelo menos tentarem diminuir a discrepância entre real (acontecimento) e a
informação passada adiante. Conforme Mouillaud (p. 57):
Chamaremos acontecimento a modalidade transparente da
informação; aquilo que, então, aparece como figura é seu objeto: os
acontecimentos aos quais se refere a informação formam o mundo
que se supõe real. Eis porque falamos de um status “realista” do
acontecimento. A informação, mantida discretamente atrás do
acontecimento, permanece nele presente como uma filigrana2.[...]
Acontecimento e informação não são instâncias que, a um dado
momento, seriam autônomas. O acontecimento sempre possui a
forma da informação.
Entende-se, grosso modo, que a informação é relativizada em relação
ao acontecimento. E o jornalista, em seu papel de passar ao público as
notícias, tem que recorrer ao relato de fontes, que podem ou não ser fiéis ao
acontecido. E, de qualquer modo, são subjetivas, logo, suas pessoalidades e
emoções sempre vão interferir no conteúdo publicado.
Ainda de acordo com o autor, “Também a informação tenta, depois do
acontecido, restaurar um acontecimento perdido” (p. 82). E por isso se pode
afirmar que há certo limite ilusório da profissão. E resta aos profissionais
demarcar essa afirmação e cercá-la com ética, a fim de expor a não
neutralidade da informação, ou seja, a opinião, com mais respeito ao público.
Objetos e a realidade jornalística
É notável que a fonte jornalística, ou seja, a pessoa que é entrevistada
tem uma noção dos acontecimentos com base em sua perspectiva, que pode,
2 Falácia, detalhe insignificante.
4. inclusive, não ser apenas uma, convicta e com único foco. Faz-se necessário
perpassar esse problema estrutural da informação e trazer à tona a ética.
O compromisso do jornalista é, então, a partir de uma série de
enquadramentos, escolher um parâmetro da realidade que se mostre o mais
conciso e objetivo possível, isso quando não se trata de uma matéria subjetiva
e/ou com traços literários.
Importante ao público que acompanha as notícias é entender,
principalmente por meio do discurso jornalístico e profissional, que a
informação passada é a mais destrinchada e pormenorizada o possível, para
mostrar o acontecimento por ângulos diferenciados e que, em algum ponto,
entrem em convergência e deem sentido ao acontecido.
Torna-se inevitável lembrar que é praticamente impossível não ser
ficcional, dado que quem manipula as falas das fontes é também um ser
subjetivo, que tem existência material e completa e produzirá algo incorporal, o
qual não tem uma existência em si mesmo, sendo subjetivo.
À fonte, assim como mostrado no filme, é reservada a possibilidade de
ter nuances emocionais, o que significa que, psicologicamente, a pessoa pode
se afetar por detalhes que o jornalista não pode prever e, por vezes, saber.
A própria peça, depois transformada em filme, revela um teor de
universalidade, com grandeza poética e, assim sendo, exibe traços da
subjetividade equivalente ao ser humano, suscetível e vulnerável às
circunstâncias. Não são poucas as vezes que encontramos fontes falsas, que
elaboram uma estória sem comprovações, e que as contam sem pestanejar.
Nem são raras as fontes que se arrependem do que disseram, ou como
proferiram as palavras. Dependendo da situação, é essencial que se coloque à
frente do jornalista, duas ou mais fontes e, se possível, que não tenham
relação.
Há, no filme, uma forte crítica à imprensa nas instâncias formadoras da
opinião pública, expondo como e por qual razão são construídos os fatos
supervalorizados socialmente e como é falsa a neutralidade.
REFERÊNCIAS
SANTOS, Nelson P. dos. BARBOSA, Jarbas. Boca de ouro - o filme de todos os
amores e de todos os pecados. [Filme]. Produção de Jarbas Barbosa, direção de
Nelson Pereira dos Santos. Rio de Janeiro, Copacabana filmes, 1963. p&b. 103 min.
Drama.
5. Boca de ouro, de Nelson Rodrigues. Disponível em:
<http://www.passeiweb.com/estudos/livros/boca_de_ouro>. Acesso em: 27 out. 2014.
MOUILLAUD, Maurice. A crítica do acontecimento ou o fato em questão. In:
MOUILLAUD, Maurice et al. O jornal – da forma ao sentido. 3ª ed. Brasília: Editora
UNB, 2012. p. 49-83.
Resumo e análise da obra: Boca de ouro – Nelson Rodrigues. Disponível em:
<http://www.passenaufrgs.com.br/dicas/literatura/boca-de-ouro-nelson-rodrigues-
resumo.pdf> Acesso em: 27 out. 2014.
SILUA, Maria. O acontecimento e a atividade jornalística. Revista Enagrama: Revista
Científica Interdisciplinar da Graduação, Cidade universitária, São Paulo, ano 5, edição
3, março-maio 2012. Disponível em:
http://www.revistas.univerciencia.org/index.php/anagrama/article/viewFile/8132/7496.
Acesso em: 27 out. 2014.