O professor J. anuncia a chegada de um livro estranho escrito por Carl Jung sobre os gnósticos. Ele e um jovem estudante se encontram com um padre húngaro que traz o livro. Uma conversa discreta sobre assuntos religiosos e ocultos se segue.
2. Outras obras de interesse:
A GNOSE DE PRINCETON
RaymondRuyer
OS EVANGELHOS GNÓSTICOS
ElainePageIs
OS MANUSCRITOS DO MAR MORTO
E.M. Laperrousaz
OS ESSÊNIOS
Christian D. Ginsburg
APSICOLOGIA DE JUNG E O BUDISMO
TIBETANO
RadmiIaMoacanin
C.G. JUNG: Entrevistas e Encontros
W. McGuire
O DESENVOLVIMENTO ADULTO DE
C.G. JUNG
John-RaphaeIStaude
ENSAIOS SOBRE A PSICOLOGIA DE
C.G. JUNG
AnielaJaffé
O MITO DO SIGNIFICADO NA OBRA DE
C.G. JUNG
Aniela Jaffé
INTRODUÇÃO À PSICOLOGIA JUNGUIANA
Hall & Nordby
JUNG E O TARÔ —Uma Jornada Arquetípica
SallieNichols
JUNG, SINCRONICIDADE E DESTINO
HUMANO
IraProgoff
AS IDÉIAS DE JUNG*
Anthony Storr
* Co-edição com a EDUSP
DICIONÁRIO DE RELIGIÕES
John R. Hinnells
Coleção Estudos de Psicologia Junguiana
por Analistas Junguianos
ADIVINHAÇÃO E SINCRONICIDADE
Marie-Louise von Franz
ALQUIMIA
Marie-Louise von Franz
O ARQUÉTIPO CRISTÃO
Edward F. Edinger
A CRIAÇÃO DA CONSCIÊNCIA
EdwardF. Edinger
O ENCONTRO ANALÍTICO
MarioJacobi
A EXPERIÊNCIA JUNGUIANA
JamesA. Hall
ENSAIOS DE SOBREVIVÊNCIA - Anatomia
de uma Crise da Meia-Idade
Daryl Sharp
TOCAR —Terapia do Corpo e Psicologia
Profunda
Deldon Anne MeNeely
JUNG E A INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS
JamesA. Hall
NARCISISMO E TRANSFORMAÇÃO DO
CARÁTER
Nathan S. Salant
O SIGNIFICADO PSICOLÓGICO DOS
MOTIVOS DE REDENÇÃO NOS CONTOS
DE FADAS
Marie-Louise von Franz
Peça catálogo gratuito à
EDITORA CULTRIX
Rua Dr. Mário Vicente, 374 - Fone: 272-1399
04270 - São Paulo, SP
5. STEPHAN A. HOELLER
A GNOSE DE JUNG
os Sete Sermões aos Mortos
Tradução
SANDRA GALEOTTI
SONIA MIDORI YAMAMOTO
EDITORA CULTRIX
Sâo Paulo
6. Título do original:
The Gnostic Jung and the Seven Sermons to the Dead
Ediçio _________ Ano
~ 2- 3- 4- 5- 6-7 8-9 ’ . 91- 92- 93- 94-95
Direitos de tradução para a língua portuguesa
adquiridos com exclusividade pela
EDITORA CULTRIX LTDA.
Rua Dr. Mário Vicente, 374 - 04270 - São Paulo, SP - Fone: 272-1399
que se reserva a propriedade literária desta tradução.
Impresso nas oficinas gráficas da Editora Pensamento.
7. Carl Gustav Jung com o seu anel Gnóstico.
{Foto de Cartier-BresSOn)
8.
9. Para Kristofer, um verdadeiro filho de Hermes,
que trouxe a mediação da Conjunção para muitos,
inclusive para.o autor.
10.
11. Sumário
Prefácio .................................................. ........................................ 11
Prólogo............................................................................................. 13
Capítulo I: A Gnose de C. G. Jung
Uma Ciência Nascida do Mistério.............. .......................... 34
Pregando aos Mortos .............................................................. 41
Afinal, Quem São os Gnósticos?........................................... 45
Jung e o Gnosticismo.............................................................. 52
Jung e a Gnose Pansófica....................................................... 59
Jung e o Novo Gnosticismo .............. ................................... 69
Capítulo II: VII Sermones ad Mortuos
(Tradução do Texto Originaldos Sermões) . . .................. 85
Capítulo III: Interpretação dos Sete Sermões
Preâmbulo —O Sábio, a Cidade e os Mortos......................101
O Primeiro Sermão: A Plenitude Vazia............................... 108
O Segundo Sermão: Hélios, a Imagem de Deus . . . . . . . . 121
O Terceiro Sermão, Parte 1: Abraxas, O Arauto Celestial 129
O Terceiro Sermão, Parte 2: O Deus Desconhecido de
Ju n g ................................................................................. .. 139
O Quarto Sermão: A Sarça Ardente e a Árvore da
V ida.........................................................................................156
9
12. O Quinto Sermão: As Duas Comunidades —Cidade-Mãe
e Fortaleza-Pai.......................... ........................................184
O Sexto Sermão: A Serpente e a Pomba.............................207
O Sétimo Sermão: Rumo ao Lar Entre as Estrelas..........238
Epílogo ......................................................................................269
Apêndice: Notas do Tradutor (Dos Sermões para o
Inglês) .............. .......................................................................287
N otas................................................................ ....................... .. 289
Glossário Gnóstico Quintessencial ........................................ 293
Bibliografia Selecionada............................................................295
índice analítico ..........................................................................298
10
13. Prefácio
A essência dos comentários sobre os Sete Sermões aos Mortos
foi apresentada pelo autor numa aula de psicologia da religião
no Institute for the Study of Religion East and West da Univer
sidade da Califórnia, em Los Angeles, durante a primavera de
1977. O Prólogo, “Premonição de um Mundo de Sombras a que
não se pode escapar” foi publicado pela primeira vez em Psy-
chological Perspectives (do C. G. Jung Institute, de Los Angeles),
edição da primavera de 1982.
Os mais sinceros agradecimentos do autor aos seguintes
colaboradores deste livro:
A Academy of Creative Education e seu presidente, dr.
James C. Ingerbretsen, pela doação de fundos que possibilitou
escrevê-lo.
Ao Ourobouros Circle o f Beverly Hills, Califórnia, e seus
generosos anfitriões, sr. e sra. Arthur Malvin.
A Irene Malvin, especialmente por criar e doar seu desenho
de Abraxas para este trabalho.
Ao professor John Algeo, por ler o manuscrito e por enri
quecê-lo com valiosas sugestões.
11
14.
15. Prólogo
PREMONIÇÃO DE UM MUNDO DE SOMBRAS A
QUE NÃO SE PODE ESCAPAR
Era o ano de 1949. Uma profunda camada de neve encobria
o contorno das esplêndidas construções barrocas da velha cidade
de Innsbruck. A venerável capital da terra do Tirol parecia
despovoada pela força implacável do inverno alpino. A larga
avenida que leva o nome da Imperatriz Maria Teresa, matriarca
amada dos estados unidos da Europa oriental há muito extintos,
estava sem os transeuntes vespertinos, que haviam fugido do frio
abrigando-se onde podiam. Abrigos aquecidos era coisa rara.
A falta de material para aquecimento deixava a maioria dos edi
fícios públicos e muitos dos privados sem calor. Mesmo as
históricas salas da famosa Universidade de Innsbruck abrigavam
massas trêmulas de estudantes pesadamente vestidos e amontoa
dos em torno dos professores, cuja erudição era suplantada
apenas pelo desconforto dos alunos. Quitandeiros. desanimados
ofereciam um estoque deficiente de vegetais queimados pelo
frio, enquanto soldados da cavalaria marroquina e da infantaria
senegalesa do exército francês de ocupação vociferavam, amal
diçoando o dia em que seus generais decidiram aquartelá-los
naquela terra de neve e gelo. Felizes de fato eram os homens,
mulheres e crianças que pudessem abrigar-se em um quarto
aquecido num dia como aquele.
Numa pequena rua lateral no centro da cidade, duas figuras
que usavam chapéu, sobretudo e cachecol dirigiam-se rapida
13
16. mente para um desses locais abençoados, sob a forma de uma
sala pública de leitura, mantida pelo Serviço de Informação
dos Estados Unidos da América para o enriquecimento intelec
tual — e por acaso, ou nem tanto, para o bem-estar físico —da
população.
Ali, em meio a livros e periódicos impressos em vários idio
mas, todos difundindo os ideais dos quatro mais ricos e gene
rosos poderes de ocupação; exaustos e enregelados refugiados
do inverno tirolês reuniam-se com bastante freqüência. Os
dois personagens a que nos referimos fugiam não apenas do
frio mas também de outras formas mais duradouras de adversi
dade. Tratava-se de refugiados da pátria vizinha, a Hungria,
que vieram residir, ainda que temporariamente, no país irmão,
a pátria imperial austríaca de muitos povos da Europa oriental.
O mais antigo dos compatriotas tinha uma aparência singular
mente impressionante, bem como credenciais também impres
sionantes nos campos do saber, da religião e da vida pública.
O professor J. era padre da Igreja Católica Romana e, até há
pouco, membro da Companhia de Jesus, da qual se afastou
com a aprovação oficial da Igreja, embora mantivesse a condi
ção de sacerdote. Por muitos anos, ele foi conhecido como
eminente luminar do mundo acadêmico em seu país e o mais
jovem professor a obter cátedra numa universidade húngara.
Autor de inúmeros livros eruditos sobre filosofia e reconhecido
especialista em Existencialismo, conhecia pessoalmente
Heidegger, Jaspers e Jean-Paul Sartre. Em 1945, seu nome
figurou entre diversos indicados para o principal arcebispado
da Hungria, que legava a liderança da Igreja do país todo, mas
foi preterido em favor do trágico e heróico prelado, o Cardeal
Mindszenty, cuja prisão escandalizou o mundo inteiro poucos
anos depois. Nessa época, o professor J. vivia em tranqüilo
semi-retiro na Áustria, uma figura austera e misteriosa conhe
cida apenas por alguns compatriotas seus e mantendo contato
pessoal com um número ainda menor deles. Um dos escolhidos
14
17. com quem conversava regularmente era o seu agora compa
nheiro de caminhada invernal, um jovem e precoce estudante
de filosofia, com aspirações ao sacerdócio. Esse rapaz — que
não era outro senão o autor deste estudo — estranhamente
havia chamado a atenção do retraído professor, que parecia
divertir-se com sua grande atração por religião, combinada
com uma linha não convencional de pensamento e exuberân
cia juvenil. “Gosto de você, meu jovem Barão”, disse ele em seu
primeiro encontro; “Numa época anterior, você poderia ter-se
tornado um verdadeiro herege e seria queimado pelos domini
canos! ” Esse promissor comentário inicial desenvolveu-se num
clima de amizade, salientado por encontros quase que diários
na sala de leitura da biblioteca americana e, em raras ocasiões
de momentânea prosperidade, num bar próximo, acompanha
dos de café turco e conhaque francês.
—Talvez tenhamos um presente para você esta tarde —
disse o professor a seu companheiro. — Um livro estranho está
a caminho e certamente irá interessá-lo.
— Um livro estranho? Qual é o seu conteúdo e autoria?
—Fui informado de que se refere a seus velhos amigos, os
hereges gnósticos a quem você nunca cessa de elogiar e, além
disso, escrito por um homem por quem você se interessa, o
temível dr. Jung.
—O psicólogo suíço que vive do outro lado dessas monta
nhas e tem fama de feiticeiro praticante da boa e antiga tra
dição das bruxas e dos alquimistas? - perguntou o jovem, não
sem algum excitamento.
— Ele mesmo. O Hexenmeister (feiticeiro) de Zurique em
pessoa.
Assim, tendo o professor anunciado a intrigante notícia, os
dois enregelados viajantes entraram na sala de leitura e, após
tirar os sobretudos cobertos de neve, instalaram-se bem à von
tade em uma mesa grande, devidamente desocupada na extre
midade mais afastada da sala. A bibliotecária austríaca cumpri
15
18. mentou respeitosamente o Hochwurdiger Herr (Senhor Reve
rendo) como de costume, enquanto depositava diante dele
diversas publicações referentes ao material de leitura habitual
do professor. Os dois companheiros envolveram-se numa nuvem
etérea de silêncio e conforto erudito, deveras avolumada pelo
calor agradável da sala tão generosamente aquecida com fundos
do Plano Marshall. Passou-se uma hora.
Ao abrir da porta e os sussurros de excitação da bibliotecária
anunciaram a chegada do esperado portador das maravilhas
psicológicas e heréticas que — de acordo com o professor J. —
devia juntar-se a eles em seu presente refúgio. Abordou-os um
indivíduo pequeno e sem muitos atrativos, com duas carac
terísticas pouco comuns — uma abarrotada pasta enorme e
um colarinho clerical projetando-se do gasto sobretudo preto,
que logo revelaram-no como o padre Z., um sacerdote húngaro
itinerante, cujos ofícios envolviam freqüentes viagens por
países como Áustria, Suíça e Itália.
O visitante aproximou-se da mesa em silêncio e curvou-se
solenemente diante do professor.
—Laudetur Jesus Christus (J^ouvado seja Jesus Cristo) —
disse ele, à maneira tradicional da saudaçãò latina do clero
monástico da Hungria.
—In aeternum. Amen. (Por toda a eternidade. Amém.) — o
professor e seu companheiro responderam devidamente, enquan
to o visitante sentava-se em silêncio numa cadeira vazia junto à
mesa ocupada por seus compatriotas. Em tom abafado porém
discretamente audível, seguiu-se uma conversa de considerável
duração. O tópico inicial girou compreensivelmente em torno
de fatos iminentes e caros a corações ansiosos. Relataram-se
os últimos movimentos da ditadura comunista na Hungria; os
mais recentes encarceramentos de padres e freiras, os julgamen
tos espetaculares de membros do alto clero, a captura e prisão
de desafortunados amigos e parentes. As esperanças sussurradas
pela comunidade no exílio, a possível queda da tirania apoiada
16
19. pelos russos devido a pressões políticas das nações ocidentais,
as esperanças do Vaticano, as irresoluções de políticos de todo
o mundo, a condição dos inúmeros refugiados nos campos e
outros locais espalhados pela Europa Ocidental —esses e outros
assuntos correlatos foram narrados e discutidos, acompanhados
pelo franzir de sobrancelhas e por olhares aflitos. Finalmente,
mitigadas as urgências e respondidas as indagações ansiosas, era
hora de tratar do assunto há muito esperado.
— Meu amigo — disse o professor, revelando grave delibera
ção na voz —, você falou-me esta manhã de um pequeno livro
escrito pelo dr. Jung. Trouxe-o com você?
O padre Z. abriu a pasta devagar e com cuidado, e começou a
vasculhar seus repletos recessos. Após alguns minutos, ele puxou
um pequeno volume e depositou-o sobre a mesa, onde tanto o
professor como seu jovem amigo pudessem vê-lo facilmente. O
professor abriu-o, colocando-o numa posição em que a luz ilu
minasse as páginas de forma mais eficiente. Os três homens
olhavam com extasiada atenção. À sua frente estava um livro
pequeno de encadernação cara, impresso num tipo muito deco
rativo em papel artístico semelhante a pergaminho. As primeiras
letras de cada breve capítulo pareciam nada menos que as ini
ciais elaboradas dos manuscritos medievais, e uma moldura
circundava o texto em cada página, deixando margens bem
largas com numeração em algarismo romano. O livro estava
escrito em alemão, como se podia notar à primeira vista devido
ao antigo tipo gótico há muito em desuso. A despeito do texto
em alemão, o livro trazia o título em latim, com letras esmera
das e artísticas na página de rosto. Lia-se:
VII Sermones ad Mortuos
Identificava-se o autor numa linha abaixo do título como
Basilides, e o local onde foi escrito como Alexandria, a cidade
onde Oriente e Ocidente se encontram.
17
20. Ruborizado, o jovem empertigou-se como se tivesse sido atin
gido por um soco. Com esforço e a respiração suspensa, pergun
tou ao padre: — O professor J. disse-nos, e o senhor pareceu
concordar, que o livro foi escrito pelo dr. Jung. Por que então
traz o nome de Basilides, o famoso herege gnóstico de Alexan
dria, no Egito? O senhor tem certeza de que este é o livro
certo?
— Sim, barão, é este o livro, Os Sete Sermões aos Mortos.
Deixe-me contar-lhe rapidamente sua história para que possa
compreender. Ele foi escrito pelo dr. Carl Jung em 1916, mas
jamais levado a público. Esta é uma cópia muito rara da edição
impressa em particular por Jung, para uso de alguns de seus
amigos mais íntimos. De fato, este volume foi oferecido por
Jung há muito tempo a um médico da Holanda, que antes de
morrer deu-o a um prelado italiano em visita à Igreja da Holan
da e profundamente interessado em psicologia. O velho monsig-
nore, que agora se encontra no Vaticano, entregou-o a mim por
razões muito semelhantes. Como você deve ter ouvido, o
dr. Jung tem um interesse maior que d normal pelos antigos
gnósticos e, assim, usou o nome de Basilides como um pseu
dônimo neste caso particular.*
—Ele não é único a sentir-se fascinado pelos gnósticos —
sorriu o professor J. — O jovem barão também não é lá muito
ortodoxo em suas idéias. Mas vamos examinar melhor o livro.
O texto do volume era na verdade tão bizarro e fascinante
quanto prometia a página de rosto. O primeiro capítulo, inti
tulado “Sermo I”, começava com a ominosa sentença em
alemão:
Die toten kamen zurück von Jerusalem, wo sie nicht fanden, was
sie suchten. Sie begehrten bei mir Einlass Und verlangten bei mir
Lehre undso lehrte ich sie:
* Ver apêndice I, notas do tradutor dos Sermões para o inglês.
18
21. Höret: ich beginne beim Nichts, das nichts ist dasselbe wie die
fülle. In der Unendlichkeit ist voll so gut wie leer. Das Nichts ist leer
und voll. Ihr könnt auch ebenso gut etwas anderes vom Nichts sagen,
z.b. es sei weiss oder shwarz oder es sei nicht, oder es sei. Ein unendli
ches und ewiges hatkeineEigenschaften,weilesalleEigenschaftenhat...
* **
Os mortos retomaram de Jerusalem, onde nao encontraram o que
buscavam. Eles pediram para ser admitidos a minha presença e eocigi-
ramserpor mim instruídos; assim, eu os instruí:
Ouvi: Eu começo com nada. Nada é o mesmo que plenitude. No
estado de infinito, plenitude é o mesmo que vazio. ONada é ao mesmo
tempo vazio e pleno. Pode-se também afirmar alguma outra coisa a
respeito do Nada, ou seja, que é branco ou negro existente ou inexis-
tente. Aquilo que é infinito e eterno não possui qualidades porque
contém todas as qualidades ...
Eles continuaram a ler o primeiro capítulo ou sermão até
que o jovem dirigiu-se ao professor: — O que é toda essa obs
curidade? Eu reconheço a palavra Pleroma, a Plenitude sobre a
qual os antigos gnósticos escreveram, e algumas outras idéias
que vi expressas pelos Padres que escreveram a respeito ou,
antes, contra os gnósticos. Contudo, não consigo compreender
de jeito nenhum este suposto sermão!
O professor replicou de imediato: —Trata-se de uma descri
ção do Absoluto, do indescritível. Não me surpreende que o
dr. Jung teria tido dificuldades com ela. Lembra-se da escu
ridão mística anunciada por Dionísio, o areopagita? Ou
da imprecisão poética das descrições de Meister Eckhart? Sem
dúvida, Jung viu-se à frente de uma tarefa que esses místicos
anteriores também encontraram. Continuem lendo!
A página intitulada "Sermo III” chamou-lhes a atenção a
seguir:
Os mortos aproximaram-se como névoa saída dos pântanos e gri
taram: '‘Fala-nos mais sobre o Deus supremo! ” —Abraxas é o Deus
19
22. a quem é difícil conhecer. Seu poder é opoder verdadeiramente supre
moporque o homem não opercebe de modo algum.
O homem vê o s u m m u m bonum do Sole também o infinum malum
do demônio, mas Abraxas não, pois este é aprópria vida indefinível,
amãe do bem e do mal.
O professor J. interrompeu a leitura do texto. —Oh, sim —
Abraxas. O regente universal gnóstico, cuja cabeça assemelha-
se à de um galo. Como seriam mais coloridas nossas imagens e
pinturas sagradas se tivéssemos conservado algumas dessas estra
nhas divindades gnósticas! Certamente, as pessoas se cansam
até mesmo da imagem de Nosso. Senhor Jesus Cristo, em espe
cial aqui na Ãustria, onde ela sempre é folheada a ouro. De qual
quer forma, Jung conseguiu realmente alguma coisa com a des
crição que fez do antigo deus-galo. O mínimo que se pode dizer
é que se trata de uma poesia comovente! Ouçam!
E ele continua a ler em voz firme, embora baixa:
Ele éplenitude, unindo-se ao vazio.
Ele é o enlace sagrado;
Ele é o amor e o assassino do amor;
Ele é o santo eseu traidor.
Ele é a luz mais brilhante do dia, e amaisprofunda noite da loucura.
Vê-losignifica cegueira;
Conhecê-lo é doença;
Adorá-lo é morte;
Temê-lo é sabedoria;
Não resistir-lhe significa libertação.
Após um breve período de silêncio, o padre Z. retomou a
leitura em voz alta:
Assim é o terrívelAbraxas.
Ele ê o mais poderoso ser manifestado e, nele, a criação toma-se
temerosa de si mesma.
Ele ê oprotesto revelado da cfiação contra oPleroma e seu nada.
Ele ê o terror dofilho, que ele sente estar contra amãe.
20
23. Ele é o amorda mãepelo seufilho.
Ele é oprazerda terrae acrueldade do céu.
Diante dasuaface, o homemficaparalisado.
Diante dele, não hánempergunta nem resposta.
Ele é avida da criação.
Ele é aatividade da diferenciação.
Ele e o amordo homem.
Ele e apalavrado homem.
Ele è tanto o resplendorcomo asombra do homem.
Ele é arealidade enganosa.
— Esse Jung é realmente um poeta — observou o padre
portador de grandes pastas e livros raros. — Essa passagem é
digna de um Goethe ou pelo menos do nosso mais filosófico
poeta húngaro, Endre Ady, que chamou Deus de terrível tu
barão.
— Tubarão ou galo, é quase a mesma coisa. Deus é terror e
trevas tanto quanto amor e luz. De que outra forma se poderia
explicar Auschwitz e as câmaras de tortura da Sibéria e de
Budapeste manipuladas por Stalin e correligionários? O profes
sor J. balançou a cabeça e seus longos cabelos brancos caíram
em ondas soltas sobre sua fronte.
—Mas não serão essas ações tenebrosas e cruéis da alçada do
diabo, em vez de serem a alçada de Deus? —perguntou o padre
Z.
—Decididamente não, meu amigo. Neste pequeno livro, o
médico suíço declara corretamente que existem incontáveis
deuses e demônios. E, a propósito, o que é um demônio? A
igreja chama-o de anjo caído, e de fato o é. Mas de onde ele
caiu? Do reino da grandeza de Deus ou do Pleroma, a plenitu
de, como aqui é chamado. Cair significa descer, vir do alto para
baixo. Portanto, os demônios são seres que desceram de Deus
para os níveis inferiores da criação, chamados inferno. Alguns
pensam que a palavra diabolos significa de fato pequeno deus.
Esses pequenos deuses maléficos podem realmente ser respon
sáveis por instigar alguns erros, mas a responsabilidade final por
21
24. todo bem e mal deve recair sobre Deus. E é justamente por isso
que o Abraxas de Jung constitui uma imagem mais precisa de
Deus do que aquela a nós apresentada por Santo Tomás e pelos
nossos teólogos, os quais sustentam que o mal é apenas uma
ausência do bem. Os campos de extermínio russos e alemães e
seus autores não carecem apenas de bem; eles são maus.
Era hora de o mais jovem dos três admoestar cautelosamente
o mais idoso: —Parece, professor, que agora é o senhor que está
falando como um herege gnóstico. Certamente um Deus ao mes
mo tempo bom e mau seria objeto muito insatisfatório de adora
ção para o povo.
— Se por "povo” o senhor se refere às massas de crentes, en
tão sem dúvida tem razão. No entanto, seus antigos amigos
gnósticos teriam dito que mais importante do que adorar a Deus
é conhecê-lo e que para conhecê-lo é preciso também conhecer
o mal.
—Concordo com o senhor que isso é o que teriam dito os
gnósticos, mas o que o senhor diz, professor?
—Devo perguntar a mim mesmo se o que eu diria é sábio e
também necessário. Portanto, nada direi.
— Ainda fala como um jesuíta - murmurou o padre Z., arre
pendendo-se imediatamente da declaração impulsiva.
— Seja como for, sabe-se que os jesuítas sobrevivem quando
muitos outros sucumbem. - O professor voltou sua atenção ao
escrito uma vez mais.
O exame do livro estava chegando ao fim. O último capítulo
oferecia-se ao olhar dos três leitores. Intitulado “Sermo VII”,
tinha na página o número XVII em algarismo romano e começa
va com uma grande inicial iluminada, a letra gótica D:
Des nachts aber kamen die Toten wieder mit kläglichergebärde und
sprachen: noch eines, wir vergossen davon zu reden, lehre uns vom
Menschen ...
* * *
22
25. A noite novamente retornaram os mortos, dizendo entre queixas:
— Umacoisamaisdevemos saber,pois esquecemos de discuti-la:
ensina-nos arespeito do homem.
— O homem é um portal através do qual penetramos do mundo exte-
tior dos deuses, demônios e almasnomundo interior —do mundo maior
no menor. Pequeno e insignificante é o homem; logo o deixamospara
trás e assim entramos uma vez maisno espaço infinito, no microcosmo,
naeternidade interior.
Na imensurável distância cintila solitária uma estrela, noponto mais
elevado do céu. Trata-se do único Deus desse solitário ser. E o seu mun
do, o seu Pleroma, asuadivindade.
Nesse mundo, o homem é Abraxas, o que faz nascer seu proprio
mundo e o devora.
Essaestrela é o Deus do homem e oseu destino.
Elaé asua divindade tutelar; nela, o homem encontra repouso.
A elaconduz alongajornada daalma, apos amorte:
nela reluzem todas as coisas que, ao contrário, poderiam afastar o
homem do mundo maior, com o brilho de umagrande luz.
A esse Sero homem deveriaorar.
Essaprece aumenta aluz daestrela.
Essaprece constrói umaponte sobre amorte.
Ela aumenta a vida no microcosmo; quando o mundo exterior
esfria, essaestrelaainda brilha.
Nada poderá separar o homem de seupróprio Deus, se ele ao menos
conseguirdesviaro olhardofeérico espetáculo de Abraxas.
Homem aqui, Deus lá. Fraqueza e insignificância aqui, eternopoder
criador lá.
Aqui hásomente trevas efrio úmido. Lá tudo ésol.
Tendo assim ouvido, os mortos silenciaram e elevardm-se, como
se eleva a fumaça da fogueira do pastor que guarda o seu rebanho à
noite.
O texto finalizava com quatro linhas de palavras bárbaras,
intituladas “Anagrama”, indicando ostensivamente uma tenta
tiva por parte do dr. Jung de camuflar alguma mensagem secre
ta e pessoal mas também possivelmente contendo uma seqüên
23
26. cia mágica de fórmulas gnósticas, do tipo amiúde encontrado
nas últimas fontes egípcias.
Os três leitores entreolharam-se de maneira uniformemente
significativa. Uma fria atmosfera de assombro e respeito parecia
cercar a mesa. Mesmo o proprietário do livro, cuja familiaridade
com seu conteúdo estendia-se por muitos anos, fora visivelmen
te afetado. Ninguém falou por vários minutos.
O silêncio foi quebrado pelo professor J.: —O dr. Jung é um
vidente e um místico no estilo dos magos do Renascimento. Sei
já há algum tempo que existe nele algo mais do que percebem os
olhos acadêmicos. Ao contrário de Freud, ele não teme os obs
curos mistérios do espírito. Entre seus amigos e colaboradores
encontram-se pessoas com ligações e interesses peculiares e não-
convencionais. Fui informado de que um de seus discípulos
italianos é teosofista, enquanto um seguidor inglês, também
médico, tornou-se devoto de um feiticeiro russo.* Deve haver
também algum vínculo entre ele è o grupo fundado pelo místico
austríaco Rudolf Steiner, com sede na Suíça. Quase todos nós
sabemos que o dr. Jung era fascinado pelo espiritualismo e que
obteve seu doutoramento escrevendo uma tese sobre fenôme
nos ocultos. Alguns crêem que ele seja um pagão espiritualista,
enquanto outros o acusam de tender ao cristianismo. Este pe
queno livro derrubaria ambas as opiniões, pois mostra Jung
como uma espécie de gnóstico, o que o colocaria fora da cate
goria de pagão ou cristão. Fico contente por ter examinado
este memorável documento e sou grato ao senhor, padre.
O discreto sacerdote mal teve tempo de agradecer aos comen
tários do professor, pois o companheiro mais jovem precipitou-
se na conversa com ardor maior do que o costumeiro: —Também
sou realmente grato, além de limites e palavras. Preocupo-me
* Ver Roberto Assagiolli em Autobiografia Inacabada de Alice Baiyley (Nova York,
Lucis Publishing Company, 1951) ePsychological Commentaries on the Teachingsof
Gurdjieffand Ouspensky (Londres, Vincent and Stewaxd, 1964).
24
27. profundamente, no entanto, pois me lembro de o senhor ter
dito que este livro é muito raro. Gostaria de poder decorar seu
conteúdo para reter cada palavra. Se existe um livro que eu gos
taria de possuir, certamente é este!
— Não será preciso sobrecarregar assim a memória, barão,
porque não deixarei Innsbruck até amanhã à noite, e, até lá, o
senhor poderá copiar estas poucas páginas sem muita dificulda
de. Faça apenas a gentileza de devolvê-lo a mim antes das cinco
horas de amanhã. Estou hospedado no mosteiro franciscano,
próximo daqui
Ele entregou o livro a seu feliz compatriota que o segurou
com mãos trêmulas, guardando-o cuidadosamente no bolso do
sobretudo. —Vou copiá-lo esta noite. O senhor poderá tê-lo de
volta tão cedo quanto o desejar, mesmo antes da missa da
manhã.
Fora, a precoce noite de inverno havia caído. A sala de leitura
havia se esvaziado de seus freqüentadores e a bibliotecária obvia
mente se preparava para fechar as portas. Após polidos cumpri
mentos, os três companheiros vestiram seus agasalhos e retira
ram-se do edifício. A noite de inverno recebeu-os com todo o
vigor, e após caminharem um pouco juntos, eles se despediram,
dirigindo-se a seus próprios destinos. Um dia memorável havia
chegado a termo.
Não totalmente. Um deles não estava preparado para ver o
dia terminar. Nenhum cavaleiro da távola redonda poderia ter
conduzido o Santo Graal com maior reverência e ardor do
que o estudante húngaro ao carregar consigo a cópia dos Sete
Sermões aos Mortos, de Jung. O transporte coletivo frio e lento,
a caminhada do terminal até o alojamento na periferia da cida
de, as apressadas preparações envolvendo a provisão de quanti
dade suficiente de papel e uma durável caneta-tinteiro — essas
atividades representaram a auréola dos eventos numa jornada
para o lugar onde uma vida inteira de trabalho árduo e espe
rança seria recompensada e coroada. A tozinha* local sagrado
25
28. de operações alquímicas culinárias, foi rapidamente transfor
mada em escritório noturno, e o entusiástico escriba mergu
lhou com suprema dedicação numa das mais mágicas atividades
de sua jovem vida.
Página após página, o cuidadosamente produzido manuscrito
veio repousar sobre a sólida mesa da cozinha, preciosa proprie
dade da idosa senhoria que costumava utilizá-la para numerosas
tarefas úteis, desde o escovar matutino do pêlo de seu cão até o
preparo e o servir das refeições diárias, bem como o passar de
roupas, os freqüentes jogos noturnos com cartas do Tarock me
dieval, uma variação do antigo baralho mágico conhecido como
Taro. No entanto, jamais essa venerável mesa testemunhou
maior diligência e tão fervorosa devoção.
Passava muito da meia-noite quando a tarefa foi concluída.
Logo seria hora de levantar novamente e correr ao mosteiro dos
franciscanos, para assistir a missa da manhã e, após o seu térmi
no, devolver o precioso volume ao um tanto quanto titubeante
padre Z., na porta da sacristia.
O trabalho estava terminado, mas o mistério apenas começa
va. Um mundo de sombras a que não se pode escapar havia per
meado a luz da vida comum.
* * *
O tempo passou e o mundo mudou; os Sete Sermões conti
nuaram sendo um objeto de respeito e de interesse para seu anti
go copista. Treze anos depois, na distante Califórnia, os mortos
“voltaram”a seu entusiástico admirador uma vez mais. Eles não
vieram de Jerusalém mas de Zurique, e apareceram num livro
que tinha acabado de ser impresso pela Rascher Verlag, sob o tí
tulo Erinnerungen Traume Gedanken von C. G. Jung (Memó
rias, Sonhçs e Reflexões, de C. G. Jung). Como uma cópia da
pré-publicação tinha sido presenteada por um amigo suíço, nos
so protagonista logo descobriu que o apêndice desse livro conti
nha o texto em alemão dos misteriosos Sermões. A página intro
26
29. dutória aos Sermões encerrava uma estranha nota: “A ser publi
cado somente na edição alemã.” Uma vez mais o entusiasmo do
escriba atingiu seu pico. Veio-lhe à mente, com certa força, o
pensamento de que o texto alemão deveria tornar-se acessível
a muitas pessoas de bem que liam apenas inglês, e não deveriam*
ser privadas da experiência por essa razão. Agora apresentava-se-
lhe um trabalho um pouco menos romântico porém ainda intri
gante, que consistia em traduzir o original alemão para o inglês.
Essa tradução foi impressa em caráter particular e distribuída a
um número restrito de amigos pessoais, como a edição alemã
original, pelo próprio Jung. Por essa época, naturalmente, o ve
lho sábio de Zurique e Kusnack havia deixado o palco de sua
carreira terrena. Sua personalidade, ainda sujeita a especulação
e falatório, já emergia com muito mais clareza do que anterior
mente. A psicologia junguiana lentamente ganhava impulso fora
do mundo de língua alemã, e os interesses espirituais não-con-
vencionais de seu fundador já se encontravam em parte docu
mentados pelo aparecimento de suas grandes obras sobre alqui
mia e por sua investida gnóstic^ contra a teologia convencional
na sua Resposta a Job.
No entanto, a tradução dos Sete Sermões continuou sendo
um assunto reservado a um texto a ser estudado por um peque
no número de pessoas com interesses no campo do gnosticismo
e da psicologia de Jung. Durante anos, essa foi a única tradução
e, além disso, era quase que desconhecida. Outro pequeno frag
mento do trabalho concluía-se, mas o mistério persistia e o
mundo de sombras estendeu-se por mais tempo.
* * *
O tempo continuou a passar e o mundo mudou ainda mais do
que antes. Os anos 60 e a maior parte da década seguinte escoa
ram-se, trazendo consigo uma era de turbulência e grande criativi
dade espiritual. A guerra do Vietná fora perdida (a única batalha
perdida pelos Estados Unidos da América), porém a luta contra a
27
30. consciência superficial e a estreiteza de alma da cultura ociden
tal moderna estava quase ganha. A cruzada dos filhos do que al
guns gostavam de chamar de Era de Aquário, á semelhança de
cruzadas anteriores, libertou temporariamente o Santo Sepulcro
onde repousava o poder salvador do espírito. Os filhos da nova
era, que tinham visão ampla, afastaram a lápide e proclamaram
o surgimento de uma inefável grandeza. Uma rústica mas glorio
sa besta, pressagiada certa vez pelo poeta Yeats, aproximou-se
de Belém para nascer. Os menestréis cantaram: “Os tempos es
tão mudando”, e realmente mudaram. As asas dos anjos estavam
no ar.
Nesses novos tempos, o reconhecimento ao dr. Jung tornou-
se ainda maior. Embora há muito fisicamente ausente, sua pre
sença começou a ser sentida mais intensamente ano após ano.
Psicólogos e psiquiatras continuavam a jogar pelas regras de
Freud e Skinner, comprazendo-se com a libido e os labirintos de
ratos neuróticos, mas, no domínio da literatura, da mitologia,
da poesia e de uma cultura como a que ainda permanecia num
mundo cada vez mais deseducado, crescia gradualmente a cons
cientização acerca de Jung. Ele se tornou mais importante do
que a sua terapia, mais importante ainda que a sua psicologia
analítica, e, fato curioso, essa circunstância pareceu inteiramen
te justa e correta.
Paralelamente à ascensão de Jung bem como de outras figuras
e assuntos anteriormente arcanos, o mundo assistiu também a
um modesto renascimento do interesse pelo gnosticismo, a ve
lha disciplina espiritual com a qual Jung se associou nos Sete
Sermões. Códices há muito soterrados vieram à luz no Egito,
chamando a atenção de muitos eruditos e de pessoas leigas ain
da mais criativas e dotadas de imaginação. Palavras e nomes,
tais como Pleroma, Abraxas e Basilides, não mais permanece
ram totalmente estranhas a um bom número de pessoas intuiti
vas e criativas. O tempo de Jung e dos gnósticos havia chegado.
O momento para os Sete Sermões aos Mortos era chegado.
28
31. Foi assim que os mortos retornaram de Jerusalém mais uma
vez e exigiram atenção. Trinta anos durara seu tributo entre os
participantes do pequeno drama original, que colaborou para o
estabelecimento da ligação entre os Sermões e a pessoa que cer
ta vez os copiou com devoção sem nenhuma previsão de seu fu
turo uso. A nobre figura do professor J. havia partido da acade
mia terrena. Comentou-se que partira o coração o desastroso
fracasso do levante patriótico de seu povo em 1956, o qual ele
observara ansiosamente do último local em que ficou exilado
em Munique, na Bavária. O padre Z., guardião do livro, também
havia morrido, de forma muito semelhante à que vivera, discreta
e modestamente, um humilde trabalhador em vinha alheia. O
exílio continuou, refletindo talvez o exílio maior mencionado
pelos antigos gnósticos — o exílio das centelhas que se despren
dem do corpo da luz. Longe dos Alpes tiroleses, onde pela pri
meira vez os confrontou, o outrora jovem escriba continuou a
ser perseguido pelos mortos e pelos sermões a eles pregados por
Basilides, o Sábio. O encorajamento de novos companheiros
num novo mundo avivara a chama acesa numa tarde de inverno
há muito tempo. E assim, três décadas após os eventos originais
aqui descritos, a Gnose do dr. Jung, conforme enunciara em
seus Sete Sermões, torna-se agora acessível a um círculo mais
amplo.
Em cada era da história humana existiram indivíduos imbuí
dos de uma qualidade especial de conhecimento ou Gnose. Carl
Jung foi um deles. Tal conhecimento, como ele repetidas vezes
afirmou, não poderia ser encontrado nas tradições da ciência e
da religião existentes em sua época, ou em qualquer outra. Ha
via apenas um caminho aberto, uma única opção; Jung precisou
viver a experiência original. Essa experiência de Gnose, a Urer-
fahrung (experiência arcaica ou original), como ele a chamou,
evou-o ao mundo de sombras de Basilides e aos mortos inquiri-
ores. Mesmo enquanto vivia no mundo radiante iluminado
pela luz do sol de seus primeiros anos, ele nunca pôde escapar
29
32. a uma condição que posteriormente descreveu como premoni
ção de um mundo de sombras ao qual não se podia escapar. Es
sa premonição certamente não constitui uma experiência exclu
siva de Jung, mas é compartilhada até certo ponto por toda a
humanidade. A natureza gnóstica da vocação humana evidencia-
se pela presença, em todas as pessoas, de uma percepção desse
mundo de sombras. Apesar de sua não-racionalidade e improba
bilidade, o elemento transcendente de uma gnose interior en
contra-se indelevelmente gravado no coração do homem; todas
as trivialidades do mundo cotidiano, decorrentes da desatenção
e da conseqüente ignorância, são incapazes de apagar a sua lem
brança. A negação da Gnose apenas afirma secretamente o seu
poder. Como Meister Eckhart expressou: “Quanto mais o ho
mem blasfema, mais louva a Deus”.
O estado de esquecimento da Gnose sempre carrega consigo
um perturbador senso de privação, que não se aplacará até que
seu único objetivo verdadeiro —e não os muitos falsos e engano
sos —seja novamente encontrado. Os antigos gnósticos, a partir
de cujo mundo de sombras Jung produziu os Sete Sermões, cos
tumavam dizer que todos os desejos de uma pessoa, todas as
suas tentativas de obter estímulo, felicidade e amor a partir de
algo ou de alguma experiência não passam de sinais de uma ines
gotável saudade do Pleroma, a “plenitude do Ser”, que é o ver
dadeiro lar da alma. Somente aqueles que descobriram o cami
nho de casa podem revelá-lo aos outros. Um homem que perdeu
seu rumo revela-se um guia medíocre. O argumento igualitário
de que os desinformados podem prestar serviço ao mundo des
de que bem-intencionados é invalidado por esse fato. A longo
prazo, só os que sabem podem prestar serviço útil, pois são eles
que conhecem a estrada por tê-la percorrido.
C. G. Jung era um curador de almas e um curador da cultura.
O mundo raramente viu servidor mais eficiente da humanidade.
Essa eficiência e essa sabedoria resultaram não de hereditarie
dade, ambiente, educação, mas do fato de ele ter percorrido o
30
33. caminho que conduz à terra das sombras, onde reside o conhe
cimento secreto da alma. Trilhar essa estrada e encontrar o pró
prio objetivo significa ir contra o mundo e as noções do que é
sensato e do que é provável. Certa vez, Jung escreveu que a
imagem que temos do mundo somente corresponde à realidade
quando o improvável tem lugar nela. E improvável que a ordem
prevaleça sobre o caos e que o significado vença a falta de senti
do. No entanto, o improvável acontece; ele é possível e não es
tá fora de nosso alcance. Num sentido muito verdadeiro, o im
provável representa a verdadeira vocação, o autêntico destino
do ser humano. Pode-se dizer que é essa vocação que nos torna
humanos, pois somos menos humanos na medida em que a ne
gligenciamos ou ignoramos. As árvores e as flores, os pássaros e
os animais que seguem o próprio destino são superiores ao ho
mem, que trai o seu.
Este prólogo, agora em seu final, constitui um testemunho
pessoal. Para o seu autor, os Sete Sermões e a maneira pela qual
ele um dia os descobriu foram e continuam sendo um grande
símbolo de um curioso destino, ao mesmo tempo profunda
mente pessoal e totalmente universal. A vida não foi nem pode
ria ter sido a mesma depois daquele momento mágico na acon
chegante sala de leitura, na fria e nevada cidade nos Alpes. Co
mo um volume de escritura sagrada ou um códice de fórmulas
de poder que levam à transformação, as palavras transcritas do
pequeno livro misterioso mudaram o curso de uma vida. O por
to seguro da ortodoxia havia perdido todos os seus atrativos e,
com eles, os sistemas de crença e tradição de idade venerável.
A perda da fé e das lealdades convencionais bem poderia ter
trazido consigo os sinais do desenraizamento espiritual, tão ca
racterístico naqueles que substituem a fé pelo pensamento e a
tradição pela busca. Como, num momento como esse, um indi
víduo pode condenar-se prontamente ao destino do Holandês
Voador e navegar incessantemente de cá para lá no oceano da
v* a> aterrorizado por suas tempestades e fascinado por suas
31
34. calmarias, enquanto busca um porto jamais encontrado! Esse
nao poderia ser o destino de uma pessoa que entrou em con
tato com o espírito de Jung e dos gnósticos; tal não será a sorte
de quem entrar no mundo encantado das sombras arquetípicas
armado com a espada da Gnose. A partir de uma premonição,
a vida criou uma realização e uma experiência. Assim é com fre
qüência; as realidades, a princípio não mais do que uma intri
gante mas longínqua visão, revelam-se mais próximas do que se
sonhou. Encontram-se “mais próximas do que a sua veia jugu-
lar”, como disse o Profeta do Islã falando com a eloqüência con
cisa do deserto. O mundo de sombras ao que não se pode esca
par está presente no espaço de cada um, como certamente este
ve no de Jung. E lamentável que para tantos ele permaneça in
visível para sempre. No entanto, aqueles que em sonho ou vigí
lia, nas mágicas sincronicidades da luz do dia ou na obscura ma
gia do sono, contataram efetivamente essas sombras, não ape
nas conservam a sua visibilidade, mas tornam-se na verdade as
fontes da própria existência. Foi talvez essa qualidade imperati
va do mundo das sombras que Jung desejou expressar quando
disse a Laurens van der Post: “O sonho é como uma mulher.
Terá a palavra final, como teve a primeira”.
Define-se prólogo como a primeira palavra. Em outro sentido,
também deve ser a última, pois nele deve-se resumir o Alfa e o
Omega da obra que se segue. Se essas linhas conseguiram realizar
isso, não cabe ao escritor julgar. Só lhe resta nutrir a esperança
de que o leitor receba uma premonição da estrutura mental ou
do estado de espírito que serviu como força motriz para o seu
trabalho. Jung disse que só um poeta poderia começar a en
tendê-lo; assim, talvez seja oportuno concluirmos com alguns
versos do poeta A. E., outro andarilho no estranho reino da
Gnose:
De um mundo atemporal
Sombras caem sobre o Tempo,
32
35. A partir de uma beleza mais antiga que
a terra,
A almapode subiruma escada.
Eu ascendopor uma escadaria espectral
A umapureza maisantiga que o Tempo.
33
36. Capítulo I
A Gnose de C. G. Jung
UMA CIÊNCIA NASCIDA DO MISTÉRIO
Neste último quartel do século XX, poucos contestariam a
verdade de que a psicologia profunda provou ser uma das mais
poderosas forças transformadoras da cultura da nossa época.
Emergindo da obscura alienação da consciência que caracteri
zou o século XIX, a redescoberta do mistério do inconsciente
dentro da mente humana tornou-se muito semelhante à influên
cia bíblica que fez surgir todo um mundo novo do espírito dian
te dos olhos de gerações passadas. O filósofo alemão Martin Hei
degger expressou uma grande verdade ao considerar o século
XIX o mais negro de todos os da era moderna; no entanto, foi
precisamente nesse período de maior obscurecimento da luz do
espírito que nasceram os dois gigantes pioneiros do inconsciente,
Sigmund Freud e Carl Gustav Jung, em 1856 e em 1875, respec
tivamente.
Freud foi um grande descobridor, destinado a desmascarar
muitas coisas. Tanto os psicólogos como o público ainda custam
a perceber a dívida de gratidão que têm para com ele. Como era
um homem da antiga e estritamente materialista escola de ciên
cia, que só trocou o laboratório de biologia pela arte da cura
por exigências práticas, Freud só poderia utilizar os padrões
34
37. de pensamento do seu tempo. Por trágica e irônica idios
sincrasia do destino, o homem cujas descobertas abalaram os ali
cerces do racionalismo científico permaneceu, ele próprio, pre
so ao dogma reducionista e racionalista, que preservou e defen
deu com convicção desesperada. Como Moisés, ele não pôde en
trar na terra prometida, à qual conduziu outros, e a tarefa da
conquista final recaiu então sobre um homem mais jovem, um
novo Josué da mente, cujo nome era Carl Gustav Jung.
Quem era Jung e como ele realizou a suprema missão do pio-
neirismo psíquico? Quais eram as fontes da sua intuição proféti
ca sobre os mais secretos recessos da alma humana? De onde
provinha a sua sabedoria?
Por toda longa vida de Jung (26 de julho de 1875 a 6 de ju
nho de 1961), as pessoas intrigaram-se com as implicações curio
samente mágicas e esotéricas do seu trabalho. Tratava-se de um
fenômeno até então inédito no mundo da intelectualidade, des
de a era do Iluminismo. Símbolos e imagens de venerável e obs
curo poder foram ressuscitados da poeira de. suas tumbas mile
nares. Hereges e alquimistas, místicos e magos, sábios taoístas e
lamas tibetanos emprestaram os tesouros de suas buscas arca-
nas à bruxaria do moderno Hermes Suíço. Findas estavam
as preocupações personalísticas e mundanas da psicanálise ante
rior, com seus traumas de infância e fantasias imaturas, e os deu
ses e heróis do passado não eram mais considerados máscaras
glorificadas de terrores e de luxúrias infantis. Como Venus, que
emergiu da espuma do mar, ou Atena, que nasceu da fronte de
Zeus, os arquétipos surgiram da prima matéria do inconsciente
coletivo: os Deuses mais uma vez caminhavam com os homens.
Acima dessas águas primordiais de criatividade da psique mo-
via-se o espírito de um homem, o gênio de Jung. Bem poderia o
intelectual surpreender-se e o sábio ficar atônito, pois uma nova
era da mente havia chegado.
Para os que estavam familiarizados com as disciplinas arcanas
e as teonas da tradição da realidade alternativa, chamada algu
35
38. mas vezes de filosofia perene, ou teosofia (sabedoria divina),
tornou-se logo claro que existiam certos paralelos entre os ensi-^
namentos de Jung e o que eles há muito conheciam como stsen-
da da iniciação. De acordo com o renomado poeta esotérico e
diplomata, Miguçl Serrano, em seu pequeno e original trabalho
C. G. Jung and Hermann Hesse, era como se houvesse uma se
gunda linguagem subjacente à primeira, em todas as obras de
Jung. O analista tornou-se um hierofante dos mistérios, enquan
to o paciente transformou-se no neófito ou discípulo. A doença
revelou-se uma condição dividida ou incompleta, e a saúde, um
estado de integridade espiritual. A psicologia analítica começou
a aparecer como um diálogo entre o indivíduo e o universo, sem
destruir a personalidade ou o ego, segundo a orientação de algu
mas teorias hindus e budistas.
As fontes do trabalho de Jung continuaram a ser objeto de
conjetura por muitas décadas. Durante sua vida, Jung velou as
origens de suas.descobertas sob um manto de precaução que fre
qüentemente se aproximava do segredo hermético. Ele afirmou
repetidas vezes que túdo o que escreveu baseava-se em evidência
empírica, indicando que, não obstante grande parte de sua obra
parecesse esotérica e mística, ela sempre se apoiava em experiên
cias no campo psicológico. A maioria das pessoas entendeu que
isso significava que Jung tratava muitos pacientes e que também
tinha acesso à pesquisa prática de muitos de seus colegas mais
jovens, seus livros sendo sem dúvida o resultado de dados coleta
dos dessas fontes. Havia, é claro, rumores quanto a ser ele um
cientista realmente muito pouco convencional, que se associava a
astrólogos e religiosos. Dizia-se ainda que ele próprio tinha expe
riências estranhas e ocultas, via fantasmas e consultava oráculos.
Foi somente após a morte de Jung em 1961, e em especial
após a publicação de seus notáveis fragmentos autobiográficos,
intitulados Memories, Dreams and Reflections, que uma contí
nua corrente de revelações cada vez mais arrojadas começou a
verter das penas de seus discípulos e de divulgações póstumas de
36
39. notas e cartas do próprio Jung. Essa multiplicidade de revela
ções mostrou que, entre 1 9 1 2 e l 9 1 7 , Jung passou por um in
tenso período de experiências que envolveram um enorme
afluir, em sua consciência e a partir de seu interior, de forças
que ele chamou arquetípicas, mas que épocas precedentes te
riam julgado divinas ou demoníacas. Jung confidenciou a respei
to dessas experiências a vários de seus colegas mas indubitavel
mente experimentou muito mais do que o que revelou e, de fa
to, mais do que algum dia se revelará. O grande pesquisador cos
tumava chamar essas experiências, ou melhor, esse ciclo de ex
periências, seu Nekyiaj utilizando o termo com que Homero
descreveu a descida de Ulisses ao Hades.* Comentà-se que nesse
período Jung afastou-se da maioria das atividades externas, com
exceção de uma pequena parte de sua prática psiquiátrica. Diz-
se até mesmo que durante essa fase não leu nenhum livro, segu
ramente um grande evento na vida de um estudioso tão ávido de
todas as formas de literatura. Apesar de não ter lido, escreveu.
Sua produção nessa época consistiu no registro de suas estranhas
experiências interiores, num total de 1.330 páginas manuscritas,
ilustradas de próprio punho. Sua escrita então mudou para a
usada no século XIV; as pinturas foram feitas com pigmentos
que ele mesmo fabricava, segundo o estilo dos artistas de eras
passadas. Jung conservou algumas das mais belas pinturas e ma
nuscritos encadernados em couro vermelho e guardados num lu
gar de honra entre os seus pertences, razão do nome com que fi
caram conhecidos. Red Book. De acordo com testemunhas,
os escritos desse período de sua vida enquadram-se em duas ca
tegorias distintas: alguns são luminosos e angelicais, enquanto
outros são sombrios e demoníacos na forma e no conteúdo. So
mos tentados a dizer que Jung, à maneira de outros magos,
passou por experiências pertencentes às categorias da Invocação
Kmh» “Remembering C. G. Jung’*, em “Psychological Perspectives”,
voi. o, p. 57 (N. do A.)
37
40. Teúrgica de deuses e da Evocação Goética de espíritos, tendo
guardado um “registro mágico” de cada uma.
Por mais fascinantes que esses fatos sobre as primeiras trans
formações de Jung possam ser, sua verdadeira importância só
se revela quando compreendemos haver evidência de que gran
de parte de seu trabalho científico, se não a totalidade, pode ba
sear-se em revelações visionárias. Dessa forma, o tão repetido
adjetivo empírico que caracteriza as fontes do trabalho de Jung
aparece sob uma luz inteiramente nova. Na realidade, a ciência
psicológica de Jung fundamentava-se em elementos empíricos;
estes porém, não eram fundamentalmente de natureza exterior
mas compunham-se de experiências que ele realizou em seu
mundo secreto, nas regiões ocultas de seu inconsciente mais
profundo. De fato, Jung não é “científico” no sentido mais es
trito da palavra, hoje em uso, na medida em que ele não contro
lou variáveis nem conduziu testes cuidadosos e repetitivos. Sua
‘ciência” consistiu no desenvolvimento de um corpo sistemati
zado de conhecimentos resultante da observação, do estudo e
da descoberta de princípios e significados subjacentes à área de
seus estudos através da utilização de padrões científicos de obje
tividade. Ele (e Freud) conta com um aceitável aliado, científi
co e atual, na fenomenologia. cujos proponentes consideram as
várias modalidades da consciência humana como seus dados pri
mários e constroem hipóteses, teorias e explicações com base
neles.
Talvez seja conveniente lembrar que Freud conduziu grande
parte de sua pesquisa de modo semelhante ao de Jung. O grande
médico vienense descobriu os segredos dos sonhos através da
análise de seus próprios sonhos; de fato, ele talvez tenha sido o
único psicanalista a nunca se submeter à análise por outra pes
soa, exceto uma breve discussão de alguns de seus sonhos com
Jung durante a viagem que fizeram juntos aos Estados Unidos.
Jung não estava sozinho na busca da companhia de ocultistas
e místicos não-convencionais, porque Freud foi um ávido fre-
38
41. qüentador dos círculos de adivinhos e nutriu uma importante
amizade com um cientista excêntrico chamado Wilhelm Fliess.*
Somos tentados a descrever Jung como um anti-racionalista su
mamente racional, enquanto Freud poderia ser chamado de um
racionalista muito irracional. No entanto, ambos buscavam a
mesma coisa: “Mais Luz” (o famoso Mehr Licht de Goethe)
no tocante aos mistérios da psique.
Em 1917, ao concluir a grande descida ao seu inferno espiri
tual e pessoal, Jung viu-se diante de uma escolha solene. Ele po
deria ter tomado suas revelações pelo valor aparente, poderia
talvez tê-las publicado como algum tipo sui generis de tomo reli
gioso juntando-se, assim, ao círculo dos grandes escritores ocul-
tistas de seu tempo, a exemplo de H. P. Blavatsky e Rudolf
Steiner. Contudo, decidiu permanecer no campo da disciplina
científica de sua escolha, ou seja, a psicologia profunda, embora
sem deixar de utilizar as 1.330 páginas do revelador material ar-
quetípico e misterioso para enriquecer seu trabalho científi
co. Existem boas razões para se suspeitar que Jung continuou,
por toda a vida a se valer desse registro de conhecimento secre
to e incorporar elementos dele em seus numerosos livros, quan-
reu no caso da primeira grande obra escrita após sua transforma
ção pessoal, ou seja, Psychological Types, publicada em 1921.
as primeiras 583 páginas em seis semanas. Mais tarde, confessou
ao poeta holandês Roland Holst que Psychological Types foi
inteiramente escrito com base no material contido em trinta
Páginas do Red £oofe.**
do julgava adequado. Há evidência indiscutível de que isso ocor-
Embora acometido por uma coqueluche contagiosa e, portan
to, isolado de seus pacientes de costume, ele ditou o manuscri
to dessa obra num ritmo incrivelmente acelerado, completando
Incjer(í^ o A ^°neS’ Li^e °nd Worte of Sigmund Freud (Nova York: Basic Books,
de esof^r^0 P°r G em palestra durante a primeira Conferência Panarion
39
42. Como se poderia esperar, Jung manteve por toda a vida
um contato constante com as fontes misteriosas que inspi
raram seu Red Book. Ele continuou a ser um inspirado —
alguns diriam visionário — revelador pelo resto de seus dias.
Seu trabalho científico jamais representou um compartimen
to de sua existência que fosse ou pudesse ser separado de
sua vida profética e mística; os dois estavam intrincada e ine
xoravelmente inter-relacionados. O Jung místico guiava e
inspirava o Jung cientista, enquanto o médico e o psicólogo
proporcionavam equilíbrio e bom senso para estabilizar e tor
nar práticas as mensagens dos deuses e dos demônios arquetí-
picos. Assim foi concebido e executado o memorável traba
lho de Carl Jung. Tanto em objetivo como em conteúdo, a
obra constitui um exemplo do precioso princípio de conjunctio
oppositorum, a união de polaridades que sempre produz o eli
xir do significado supremo.
A literatura que continha as experiências originais de Jung
quanto ao inconsciente no período de sua grande transfor
mação nunca foi por ele colocada à disposição do público.
A atitude de seus herdeiros parece ser, no mínimo, ainda
mais reservada a esse respeito do que a do próprio Jung. No
momento da redação destas palavras (1982), parece que qual
quer esperança ou expectativa que se possa alimentar com
respeito à publicação desse material não será consumada por
algum tempo ainda. Portanto, restam-nos os trabalhos cien
tíficos de Jung e muito pouco mais. Entretanto, na catego
ria desse mais encontramos pelo menos um documento real
mente importante, que nos revela muito sobre as fontes da
psicologia de Jung. Trata-se de uma pequena obra, pouco
mais que uma diminuta monografia, embora o significado de
seu conteúdo possa facilmente elevá-la a um item da maior
importância no estudo da mensagem e da missão de Jung.
A obra a que me refiro é conhecida como Os Sete Sermões
aos Mortos.
40
43. PREGANDO AOS MORTOS
Carl Jung permitiu a publicação de apenas uma fração solitá
ria do vasto material arquetípico que escreveu sob misteriosa
inspiração no início da carreira. Este foi escrito num curto pe
ríodo, entre 15 de dezembro de 1916 e 16 de fevereiro de 1917.
De acordo com declarações em seus fragmentos autobiográficos,
Jung concluiu-o em três noites.* A produção desse pequeno li
vro foi precedida por eventos estranhos e esteve repleta de fenô
menos de natureza parapsicológica. Primeiro, vários filhos de
Jung viram e perceberam entidades fantasmagóricas na casa, en
quanto ele próprio sentiu uma atmosfera ameaçadora à sua vol
ta. Uma das crianças teve um sonho de tom religioso um pouco
ameaçador, envolvendo um anjo e um demônio. Então —numa
tarde de domingo — o sino da porta de entrada soou furiosa
mente. Podia-se vê-lo movendo-se freneticamente, mas não havia
ninguém à vista que fosse responsável pelo ato. Uma multidão
de “espíritos” parecia encher a sala, na verdade a casa, e nin
guém podia respirar normalmente no vestíbulo infestado de fan
tasmas. O dr. Jung gritou com voz perturbada e trêmula: “Em
nome de Deus, o que significa isso?” A resposta veio num coro
de vozes fantasmagóricas: “Voltamos de Jerusalém, onde não en
contramos o que buscávamos.” Com essas palavras começa o
tratado, que se intitula em latim Septem Sermones ad Mortuos,
e então continua em alemão com o subtítulo: “Sete exortações
aos mortos, escritos por Basilides de Alexandria, a cidade onde
Oriente e Ocidente se encontram.”
Uma leitura mesmo superficial do tratado mostra que ele foi
escrito de acordo com o gnosticismo do século II e utiliza livre
mente a terminologia daquela época. O próprio subtítulo revela
o nome do famoso sábio gnóstico Basilides que ensinou em Ale-
Ver C. G. Jung, Memories, Dreams, Reflections, org. Aniela Jaffé, (Nova York,
Kanaom House, Inc., Pantheon Books). (N. do A.)
41
44. xandria, no Egito helenístico, por volta dos anos 125-140 d.C.
De fato, Jung parece atribuir a autoria do próprio documento
a Basilides, sugerindo assim a algumas pessoas um elemento de
mediunidade e (ou) escrita automática. Nesse sentido, deve-se
lembrar que por muitos séculos foi comum autores de literatura
de caráter espiritualista não assinarem seus nomes nessas obras,
mas, ao contrário, atribuí-las poeticamente a alguém que conside
ravam ocupar uma posição superior a sua. Assim, atribui-se ficti-
ciamente o célebre Zohar da literatura cabalística ao rabino Shi-
mon ben Jochai, sendo seu verdadeiro autor desconhecido. É
bem provável que C. G. Jung tenha utilizado esse antigo exercício
de humildade poética ao tomar o nome de Basilides como au
tor dos Sermões. Entretanto, o elemento parapsicológico conti
do nos fenômenos que envolvem a escrita do tratado foi espon
taneamente reconhecido e enfatizado por Jung, a ponto de apli-
car-lhe as palavras de Goethe, na segunda parte de Fausto: “Ele
caminha por toda parte, está no ar! ” Uma coisa é certa: trata-
se de um trabalho incomum, escrito em circunstâncias as mais
incomuns.
A importância dos Sete Sermões dentro do contexto do pen
samento junguiano constitui um assunto sobre o qual as opi
niões diferem. Quando, anos mais tarde, Jung foi interrogado
a respeito, ele resmungou, chamando isso de “indiscrição juve
nil”. Alguns de seus discípulos mais conservadores, como Anie-
la Jaffé, tendem a perpetuar o mito de uma “indiscrição juve
nil”., enquanto outros têm impressão diferente. M. L. von Franz,
discípula de grande importância, afirmou que, embora Jung se
referisse à publicação dos Sermões como uma tolice juvenil, de
forma alguma aí incluía as concepções neles contidas. Uma comis
são de especialistas junguianos, reunida na primeira Conferência
Panarion de Los Angeles, Califórnia, em 1975, chegou à conclu
são de que os Sete Sermões constituem nada menos do que “a
fonte e a origem” da obra de Jung, e a exposição do centenário
de C. G. Jung, que percorreu o mundo na época do centésimo
42
45. aniversário de seu nascimento, em 1975, mostrou a primeira pá
gina da edição original dos Sermões, descrevendo-os assim: “ Os
Septem Sermones ad Mortuos representam uma síntese das ex
periências que Jung teve com as imagens do inconsciente”. Ain
da mais significativas são as anotações que o próprio Jung fez a
respeito do conteúdo do Red Book e dos Sermões, declarando
que todas as suas obras, toda a sua atividade criativa derivava
desses sonhos e visões iniciais, que também já continham tudo
o que ele realizou mais tarde, na vida.* Trata-se de palavras que
dificilmente alguém utilizaria para referir-se a uma mera indiscri
ção juvenil!
O pequeno tratado poético foi publicado por Jung em
caráter particular, para o deleite de um círculo íntimo de
amigos, e o texto alemão logo seria traduzido para o inglês
por H. G. Baynes. Ele foi incluído no apêndice do original
alemão de Memoríes, Dreams and Reflections, editado por
Rascher Verlag, de Zurique, em 1962, porém omitido na
edição inglesa, publicada simultaneamente pela Pantheon
Books. Essa omissão deliberada só pode ser explicada como
mais uma evidência da bem conhecida desconfiança que a
mente européia têm dos povos de língua inglesa, com sua
tendência a compreender mal e a interpretar de forma errô
nea tudo o que se aproxima do místico e do oculto. Apesar
disso, um volume separado dos Sermões, artisticamente con
cebido, foi também publicado pela Stuart & Watkins, de Lon
dres, com a tradução de Baynes. Dessa forma, existem no
momento diversas edições em circulação, proporcionando
uma luz adicional ao próprio texto.**
Certamente, houve eventos ao longo da carreira de Jung em
que ele poderia ter-se arrependido facilmente da indiscrição ju-
^VerMemoríes, Dreams, Reflections, de C. G. Jung.
Para a história completa da publicação, ver as notas do tradutor (para o inglês)
no apêndice I.
43
46. venil de publicar seu pequeno volume de visões arquetípicas.
Um desses incidentes diz respeito ao formidável Martin Buber
que, com seus ares de Jeová, nunca se deu bem com Jung e,
além disso, conseguiu afastar dele um de seus mais caros discí
pulos, atraindo-o para seu próprio grupo. Esse discípulo infiel,
chamado Martin Trüb, deu uma cópia dos Sermões a Buber,
cuja ira, ao estilo do Velho Testamento, atingiu grandes propor
ções em vista do que ele considerou heresias gnósticas de Jung.
Buber atacou Jung repetidas vezes e, em seu livro Eclipse o f
God, acusou-o gravemente de ser um gnóstico. Muito perturba
do com o caso, Jung fez-lhe uma réplica um tanto ambígua, ne
gando e afirmando o seu gnosticismo num mesmo fôlego, por
assim dizer.* Outra história curiosa envolve o autor alemão Her
mann Hesse, Prêmio Nobel, e sua célebre novela Demian, à. qual
incorporou muitos temas explicitamente gnósticos,em particular
algumas referências ao arquetípico deus gnóstico Abraxas, que
se assemelham muito ao tratamento dado por Jung à mesma fi
gura nos Sermões. Embora o gnosticismo estivesse decididamen
te no ar durante as duas décadas que permearam guerras mun
diais, o tipo de gnosticismo adotado por Hesse em Demian apre
senta-se tão singularmente junguiano que muitos suspeitaram
haver aí uma conexão. De fato, um analista junguiano chamado
Lang tratou Hesse por volta de 1916 e poderia facilmente ter
passado uma cópia dos Sermões ao jovem gênio literário que
surgia. A afinidade que continuou a existir por muitas décadas
entre Jung e Hesse foi subseqüentemente imortalizada pelo di
plomata e poeta chileno Miguel Serrano, em sua fascinante obra
C. G. Jung and Hermann Hesse. Pode parecer que o pequeno li
vro, de um gnosticismo poético, que resultou da visita dos mor
tos a Jung em 1916, exerceu uma influência maior e produziu
mais reações do que até mesmo Jung julgaria provável. Todas
essas reações, no entanto, diziam respeito a um tema ao mesmo
* Relatado na primeira Conferência Panarion.
44
47. tempo obscuro e controvertido, que era, evidentemente, o gnos-
ticismo.*
AFINAL, QUEM SÃO OS GNÓSTICOS?
As palavras gnóstico e gnosticismo não são exatamente co
muns no vocabulário dos nossos contemporâneos. De fato, há
mais pessoas familiarizadas com o antônimo de gnóstico, isto é,
agnóstico; literalmente, esse termo significa um desconhecedor
ou ignorante, mas em sentido figurativo descreve uma pessoa
sem fé religiosa que não obstante se ressente de ser chamada de
ateísta. No entanto, os gnósticos já existiam muito antes dos
agnósticos e, na maioria, parecem ter representado uma classe
muito mais interessante que o último grupo. Em oposição aos
não-conhecedores, eles se consideravam conhecedores —gnosti-
koiy em grego — denotando aqueles que possuem a gnose ou o
conhecimento. Os gnósticos viveram, na maior parte, durante os
três ou quatro primeiros séculos da Era Cristã. Em geral, prova
velmente eles não teriam se autodenominado gnósticos; teriam
se considerado cristãos ou mais raramente judeus ou ainda se
guidores das tradições dos antigos cultos do Egito, da Babilônia,
da Grécia e de Roma. Não eram sectários nem membros de
uma nova religião específica, como queriam seus detratores,
mas pessoas que compartilhavam entre si certa atitude perante
a vida. Pode-se dizer que essa atitude consistia na convicção de
que o conhecimento direto, pessoal e absoluto das verdades au
tenticas da existência é acessível aos seres humanos e, mais ain
da, que a obtenção de tal conhecimento deve sempre constituir
a suprema realização da vida humana. Esse conhecimento ou
Gnose não era concebido como um saber racional de natureza
científica, ou mesmo um saber filosófico da verdade, mas um
O leitor deve consultar as págs. 140-43 desta obra para maiores detalhes sobre
o vinculo de Hermann Hesse com Jung e os Sete Sermões aos Mortos. (N. do A.)
45
48. conhecimento que brota no coração de forma misteriosa e intui
tiva, sendo portanto chamado em pelo menos uma obra gnóstica
(o Evangelho da Verdade) de Gnosis kardias, o conhecimento do
coração. Trata-se é claro, de um conceito que é ao mesmo tempo
religioso e altamente psicológico, pois o significado, o propósito
da vida não aparece então nem como a fé, com sua ênfase
na crença cega e na também cega repressão, nem como as ações,
com sua extrovertida orientação para as boas ações, mas sim
como uma transformação e uma visão interior, em suma, um pro
cesso ligado à psicologia profunda.
Se passarmos a considerar os gnósticos como os primeiros
profissionais da psicologia profunda, torna-se imediatamente
aparente a razão pela qual a prática e o ensinamento gnósti
co de forma radical diferia da prática e do ensinamento da
ortodoxia cristã e judaica. O conhecimento do coração, em favor
do qual os gnósticos se empenhavam não podia ser adquirido por
meio de uma barganha com Jeová, através de um tratado ou alian
ça que garantisse bem-estar espiritual e físico ao homem, em tro
ca do cumprimento servil de um conjunto de regras. Da mesma
forma, não se poderia obter a Gnose pela mera crença fervorosa
de que a atitude de sacrifício de um homem divino na história pu
desse aliviar a carga de culpa e frustração de nossos ombros e
assegurar bem-aventurança perpétua, além dos limites da exis
tência mortal. Os gnósticos não negaram o benefício do Torá
nem a magnificência da figura de Cristo, o ungido do Deus
supremo. Eles consideravam a Lei necessária a um certo tipo
de personalidade que precisa de regras para o que atualmente
poderia chamar de a formação e o fortalecimento do ego psi
cológico. Também não negaram a importância da missão do
personagem misterioso que, em seu disfarce, era conhecido
pelos homens como o rabino Joshua de Nazaré. A Lei e o Salva
dor, os dois mais reverenciados conceitos de judeus e cristãos,
tornaram-se para os gnósticos apenas meios para um fim maior
que esses mesmos conceitos. Eles configuravam incentivos e ar
46
49. tifícios de alguma forma capazes de conduzir ao conhecimento
pessoal que, uma vez obtido, prescinde tanto da lei como da
fé. Para eles, como para Carl Jung muitos séculos depois, a teo
logia e a ética constituíam apenas pontos de-partida no caminho
do autoconhecimento.
Dezessete ou dezoito séculos separam-nos dos gnósticos. Du
rante esse período, o gnosticismo tornou-se não apenas uma fé
esquecida (como um de seus intérpretes, G. R. S. Mead, cha
mou-o), mas também uma fé e uma verdade reprimidas. Aparen
temente, quase nenhum outro grupo foi temido e odiado de
forma tão incansável e persistente, por quase dois milênios,
quanto os infelizes gnósticos. Textos de teologia ainda se refe
rem a eles como os primeiros e mais perniciosos de todos os
hereges, e a era do ecumenismo não lhes parece ter estendido
nenhum dos benefícios do amor cristão. Muito antes de Hitler,
o imperador Constantino e seu cruel episcopado iniciaram a
prática do genocídio religioso contra os gnósticos, sendo esses
primeiros holocausitos seguidos por muitos outros no decorrer
da história. A última grande perseguição terminou com o sacri
fício de aproximadamente duzentos gnósticos em 1244 no cas
telo de Montségur, na França, um acontecimento que Laurence
Durell descreveu como as Termópilas da alma Gnóstica. Apesar
disso, alguns proeminentes representantes das vítimas do último
holocausto não consideraram á minoria religiosa mais perseguida
da história como companheira de infortúnio, como indicam os
ataques de Martin Buber a Jung e ao gnosticismo. Judeus e
cristãos, católicos, protestantes e os ortodoxos orientais (e, no
caso da Gnose Maniqueísta, até os zoroastristas, os muçulma
nos e os budistas) odiaram e perseguiram os gnósticos com per
sistente determinação.
Por quê? Seria apenas porque seu antinomianismo ou sua des
consideração pela lei moral escandalizava os rabinos, ou porque
suas dúvidas relativas à encarnação física de Jesus e sua reinter-
pretação da ressurreição enfurecia os sacerdotes? Seria porque
47
50. eles rejeitavam o casamento e a procriação, como afirmam al
guns de seus detratores? Eram eles detestados devido a licencio-
sidades e orgias, como alegam outros? Ou poderia ocorrer que
os gnósticos realmente tivessem algum conhecimento, e que es
se conhecimento os tornasse sumamente perigosos às institui
ções, tanto seculares como eclesiásticas?
Não é fácil responder a essa indagação; contudo, deve-se fa
zer uma tentativa. Poderíamos ensaiar uma resposta dizendo
que os gnósticos diferiam da maior parte da humanidade, não
apenas em detalhes de crença ou de preceitos éticos, porém em
sua visão mais essencial e fundamental da existência e de seu
propósito. Sua divergência era radical no sentido mais exato da
palavra, por reportar-se à raiz (latim: radix) das atitudes e con-
jeturas da humanidade com respeito à vida. Independentemen
te de suas crenças filosóficas e religiosas, a maioria das pessoas
acalenta certas suposições inconscientes, pertencentes a condi
ção humana, que não originam das atividades convergentes de
formulação da consciência, mas que irradiam de um profundo e
inconsciente substrato da mente. Essa mente é regida pela biolo
gia, e não pela psicologia; ela é automática, e não está sujeita a
escolhas conscientes nem a percepções. A mais importante des
sas suposições, a qual poder-se-ia dizer que sintetiza todas as
outras, consiste na crença de que o mundo é bom e que o nosso
envolvimento nele é de alguma forma desejável e fundamental
mente benéfico. Essa premissa conduz a inúmeras outras, todas
mais ou menos caracterizadas pela submissão às condições exter
nas e às leis que parecem governá-las. A despeito dos incontáveis
acontecimentos incoerentes e maléficos em nossas vidas, dos in
críveis fatos que se sucedem, dos desvios das reiteradas insanida-
des da história humana, tanto coletiva como individualmente,
acreditaremos ser nossa incumbência prosseguir com o mundo,
pois ele é, afinal, o mundo de Deus, devendo,'portanto, haver
significado e bondade ocultos em seus processos, mesmo que se
ja difícil discerni-los. Assim, devemos continuar no cumprimen
48
51. to de nosso papel dentro do sistema, da melhor maneira possível,
sendo filhos obedientes, maridos zelosos, esposas respeitosas,
bem-comportados açougueiros, padeiros, fabricantes de velas, es
perando contra toda a esperança, que uma revelação do significa
do resulte, de algum modo, dessa vida de resignação sem sentido.
Não é assim, disseram os gnósticos. Dinheiro, poder, governo,
constituição de famílias, pagamento de impostos, a infinita sé
rie de armadilhas das circunstâncias e obrigações —nada disso foi
jamais rejeitado tão total e inequivocamente na história humana
como pelos gnósticos. Estes nunca esperaram que alguma re
volução política ou econômica pudesse, ou devesse^ eliminar to
dos os elementos iníquos do sistema em que a alma humana en-
contra-se aprisionada. Sua rejeição não se referia a um governo
ou sistema de propriedade em favor de outro; ao contrário, dizia
respeito à total e predominante sistematização da vida e da ex
periência. Portanto, os gnósticos eram na verdade conhecedores
de um segredo tão fatal e terrível que os governantes deste mun
do — i.e., os poderes, secular e religioso, que sempre lucraram
com os sistemas estabelecidos da sociedade —não podiam per-
mitir-se ver esse segredo conhecido e, muito menos, tê-lo publi
camente proclamado em seus domínios. De fato, os gnósticos
sabiam algo: a vida humana não alcança a sua realização dentro
das estruturas e instituições da sociedade, porque estas represen
tam, na melhor das hipóteses, apenas obscuras projeções de ou
tra realidade mais fundamental. Ninguém atinge sua verdadeira
natureza individual sendo o que a sociedade espera nem fazendo
o que ela deseja. Família, sociedade, igreja, ocupação e profis
são, lealdade patriótica e política, bem como regras e normas
morais e éticas, na realidade de modo algum conduzem ao ver
dadeiro bem-estar espiritual da alma humana. Ao contrário,
constituem, com maior freqüência, as próprias algemas que nos
alienam de nosso real destino espiritual.
Esse aspecto do gnosticismo foi considerado herético em épo
cas passadas e até hoje costuma ser chamado de “negação do
49
52. mundo” e “antivida” ; porém constitui, obviamente, nada mais
que boa psicologia e boà teologia espiritual, por ser tratar de
bom senso. O político e o filósofo social podem considerar o
mundo um problema a ser resolvido, mas o gnóstico, com seu
discernimento psicológico, reconhece-o como uma condição
da qual precisamos nos libertar pela visão interior. Isso porque
os gnósticos, como os psicólogos, não buscam a transformação
do mundo mas a transformação da mente, com sua conseqüên
cia natural — uma mudança de postura perante o mundo. A
maior parte das religiões também tende a ratificar uma atitude
familiar de interiorização na teoria; contudo, como resultado
de sua presença dentro das instituições da sociedade, elas sem
pre negam isso na prática. As religiões costumam se iniciar co
mo movimentos de libertação radical seguindo linhas espirituais
mas inevitavelmente terminam como pilares das próprias socie
dades, as carcereiras de nossas almas.
Se desejamos obter a Gnose, o conhecimento do coração que
liberta os seres humanos, devemos nos desvencilhar do falso
cosmo criado pela nossa mente condicionada. A palavra grega
Kosmos, bem como o vocábulo hebraico olam, embora quase
sempre mal traduzidos como mundo, realmente designam mais
o conceito de sistemas. Quando os gnósticos diziam que o siste
ma à sua volta era mau e que precisaríamos sair dele para conhe
cer a verdade e descobrir o,seu significado, comportavam-se não
só como precursores de inúmeros alienados da sociedade, desde
São Francisco de Assis até os beatniks e hippies, mas também
exprimiam um fato psicológico desde então redescoberto pela
moderna psicologia profunda. Jung reafirmou uma antiga per
cepção gnóstica ao dizer que o extrovertido ego humano deve,
em primeiro lugar, tomar plena consciência de sua própria alie
nação do Self Superior, antes de poder começar a retornar ao
estado de união mais íntima com o inconsciente. Até nos cons
cientizarmos inteiramente da inadequação de nosso estado de
extroversão e de sua insuficiência quanto às nossas necessida-
50
53. des espirituais mais profundas, não obteremos nenhum grau
sequer de individuação, através da qual uma personalidade
mais madura e ampla surge, O ego alienado é o precursor e
uma pré-condição inevitável do ego individualizado. Como Jung,
os gnósticos não rejeitavam necessariamente a terra per se, que
reconheciam como uma tela sobre a qual o Demiurgo da mente
projeta seu sistema ilusório. Quando nos deparamos com uma
condenação do mundo nos escritos gnósticos, o termo usado é
fatalmente Kosmos ou este eon e nunca a palavra ge (terra),
que consideravam neutra, se não totalmente satisfatória.
Era desse conhecimento — o conhecimento que se tem no
próprio coração a respeito da inutilidade espiritual e absoluta in
suficiência das instituições e valores estabelecidos do mundo ex
terior — que os gnósticos valiam-se para construir tanto uma
imagem de ser universal como um sistema de inferências coeren
tes a serem extraídas dessa imagem. (Como era de esperar, eles
o realizaram não,tanto em termos de filosofia e teologia, mas
em termos de mito, ritual e cúltivo das qualidades imaginativas
e mitopoéticas da alma). Como muitas outras pessoas inteligen
tes e sensíveis, antes e depois de sua época, eles se sentiram es
trangeiros num país desconhecido, uma semente abandonada
dos mundos distantes de luz infinita. Alguns, como a juventude
alienada dos anos 60, retiraram-se para comunidades e eremité-
rios à margem da civilização. Outros, mais numerosos talvez,
permaneceram em meio à vasta cultura metropolitana das gran
des cidades, como Alexandria e Roma, aparentemente desempe
nhando seus papéis na sociedade, enquanto no íntimo serviam a
um mestre diferente —no mundo, mas não do mundo. A maio
ria deles tinha instrução, cultura e riqueza; entretanto, continua
vam conscientes do inegável fato de que todas essas realizações e
tesouros perdem a cor perante a Gnose do coração, o conheci
mento do que existe. Não surpreende que o mago de Küstnacht,
que desde sua primeira infância buscou e encontrou a própria
Gnose, tivesse afinidade com esse povo estranho e solitário, es
51
54. ses peregrinos da eternidade, prontos para voltar ao lar entre as
estrelas.
JUNG E O GNOSTICISMO
Desde o princípio de sua carreira psicanalítica até a morte,
Jung manteve um vivo interesse e uma profunda simpatia pe
los gnósticos. Já em 12 de agosto de 1912, Jung escreveu uma
carta a Freud a respeito dos gnósticos, na qual qualificou a con
cepção gnóstica de Sofia de reaproveitamento de uma antiga sabe
doria que poderia aparecer uma vez mais na moderna psicanálise.
Não lhe faltava literatura capaz de estimular seu interesse pelos
gnósticos, porque os eruditos do século XIX na Alemanha (em
bora quase que em nenhum outro país) devotavam-se diligente
mente aos estudos gnósticos. Em parte como reação contra a ri
gidez da Alemanha bismarckiana e a seus efeitos conformistas,
tanto teológicos como intelectuais, inúmeros eruditos excelen
tes (Reitzenstein, Leisengang e Carl Schmidt, entre outros),
além de poetas e escritores criativos (Herman Usner, Albrecht
Dieterich), e, pelo menos, alguns membros da intelectualidade
francesa (M. Jacques Matter, Anatole France) investigaram a
tradição gnóstica. Todos os biógrafos de Jung mencionam seu
profundo interesse por assuntos gnósticos. Uma das declarações
mais reveladoras a esse respeito é citada por uma de suas ex-co-
laboradoras, Barbara Hannah, que lhe reproduz as palavras so
bre os gnósticos: “Senti como se finalmente tivesse encontrado
um círculo de amigos que me entendessem”. A mesma biógrafa
também ressalta que Jung desenvolveu um interesse por Schope
nhauer justamente porque o grande filósofo alemão lembrava-
lhe os gnósticos e a ênfase que colocavam no aspecto do sofri
mento do mundo; álém disso, ele aprovava de todo o coração o
fato de Schopenhauer “não falar nem da providência onisciente
e todo-misericordiosa de um Criador, nem da harmonia do cos
mo, mas ter afirmado abertamente que uma falha fundamental
52
55. subjazia ao triste curso da história humana e à crueldade da na
tureza; a cegueira da Vontade criadora do mundo. . .” Que essas
são afirmações completamente gnósticas não é preciso dizer. Co
mo seu interesse por Schopenhauer remonta à infância, pode
mos considerar Jung, sob muitos aspectos, como um gnóstico
“natural”, possuidor de uma postura gnóstica mesmo antes de
familiarizar-se com alguns dos ensinamentos do gnosticismo.
Apesar de Jung ter tido acesso a certo volume de literatura
poética e erudita bem cedo na vida, o que estimulou seu interes
se pelo gnosticismo, ele não contou com quase nenhum material
de natureza gnóstica procedente de fontes originais à sua dispo
sição. Como muitos outros, para informar-se sobre os gnósticos.
Jung teve de se basear nos relatos fragmentários e sobretudo
deslealmente distorcidos dos padres da igreja antignóstica, em
particular Irineu e Hipólito. As pesadas engrenagens da erudi
ção acadêmica apenas começavam, com extrema lentidão e mes
mo relutância, a dedicar-se aos três códices coptas Codex Ag-
new, Codex Bruce, Codex Askew, que na época mofavam em
vários museus, esperando para ser traduzidos e publicados. Po-
obter tanta compreensão e extrair tanta informação valiosa,
favorável ao gnosticismo, das polêmicas dos padres caçadores
de hereges da Igreja. A contribuição de Jung aos estudos gnósti
cos em geral e a uma esclarecida interpretação contemporânea
do gnosticismo em particular é pouco menos que notável em al
cance e importância. E lamentável que essa contribuição não se
ja ainda apreciada por um número crescente de especialistas em
gnosticismo, dentro do campo de estudos bíblicos, embora is
so não seja particularmente surpreendente, em vista do fato de
que a maioria desses eruditos provêm de escolas de teologia e de
religião com tendências ortodoxas. Além disso, muitos deles ca
recem por completo de qualquer apreciação séria da psicologia,
especialmente do tipo de psicologia que Jung proclamou. Afir-
nia-se que a guerra é por demais importante para ser confiada a
53
56. generais; da mesma forma, Seria igualmente justo dizer que o
gnosticismo representa uma tradição de muito valor para Ser
consignada a estudiosos da Bíblia e a sofistas de palavras coptas.
A falta de atenção e respeito dispensados a Jung por alguns des
ses eruditos é ainda mais inacreditável, considerando-se que a
influência de Jung consiste praticamente na única responsável
pelo projeto vital de publicação do maior acervo de escritos
gnósticos originais jamais descobertos na história: a Biblioteca
de Nag Hammadi.
Os gnósticos foram prolíficos escritores da tradição sacra.
Seus inimigos observaram com desaprovação que os seguidores
do instrutor gnóstico Valentino costumavam escrever um novo
evangelho a cada dia, e que nenhum deles era muito estimado, a
menos que desse uma nova contribuição à sua literatura. En
tretanto, de toda essa profusão de textos, muito pouco sobrevi
veu, devido à incansável supressão e destruição da literatura
gnóstica a que se dedicaram os queimadores de livros e caçado
res de hereges da Igreja que, com o apoio do poder constituído,
obtiveram predominância Sobre seus rivais. Durante muitos sécu
los, não se soube da existência de nenhuma escritura gnóstica
original. Foi somente nos séculos XVIII e XIX que viajantes,
como o destemido e romântico escocês James Bruce, começa
ram a trazer para a Europa, do Egito e localidades vizinhas,
fragmentos de papiros antigos contendo textos. Embora talvez
escritos originariamente em grego, esses haviam sido traduzidos
pelos escribas gnósticos para o copta, a língua popular do Egito
helênico. Sendo realmente raros os eruditos coptas e demais pes
soas interessadas em gnosticismo, a tradução desses textos pro
cedeu-se muito lentamente. Então, um quase milagre aconteceu.
Em dezembro de 1945, pouco após o término da II Guerra
Mundial, um camponês egípcio encontrou uma coleção inteira
de manuscritos gnósticos enquanto cavava para extrair fertili
zantes na vizinhança de algumas cavernas, na cadeia montanho
sa de Jabal al-Tarif, próximo ao Nilo, no Alto Egito. Aparente
54
57. mente, esses tesouros fizeram parte, em certa época, da biblio
teca do vasto complexo monástico fundado na região pelo pai
do monasticismo cristão, o monge copta São Pacômio.
Como suas predecessoras, a descoberta de Nag Hammadi cus
tou muito a se concretizar. Os métodos lentos dos acadêmicos
foram, entretanto, bastante acelerados pela influência de um ho
mem que nao era nem erudito copta nem especialista bíblico,
mas simplesmente um arqueólogo da alma humana. Esse homem
era, é claro, Carl Jung. Ele se interessou pela descoberta de
Nag Hammadi desde o princípio; foi um antigo amigo e colabo
rador de Jung, o professor Gilles Quispel, que tomou a iniciativa
de traduzir e publicar os livros de Nag Hammadi. Em 10 de
maio de 1952, embora a crise política e a dissensão acadêmica
paralisassem todos os trabalhos relativos aos manuscritos, Quis
pel adquiriu um dos códices em Bruxelas, e desta porção da
grande biblioteca, reálizou-se a maior parte das primeiras tradu
ções, envergonhando assim a comunidade erudita, que se viu na
contingência de apressar o trabalho longamente adiado. Esse do
cumento, intitulado Jung Codex, foi apresentado ao Instituto
Jung de Zurique por ocasião do octogésimo aniversário do dr.
Jung, tornando-se o primeiro item da descoberta de Nag Ham
madi a ser abertamente examinado por eruditos e leigos fora do
turbulento ambiente não-cooperativo do Egito dos anos 50. O
próprio professor Quispel declarou ter sido Jung uma peça-cha-
ve no despertar da atenção sobre os manuscritos e na publica
ção da valiosa coleção de Nag Hammadi. Existem boas razões
para se crer que, sem a influência de Jung, essa coleção também
poderia ter sido relegada à obscuridade pela aparentemente sem
pre ativa conspiração da negligência erudita. (Para maiores de
talhes sobre a história da Biblioteca de Nag Hammadi e a parti
cipação de Jung, ver: H. C. Puech, G. Quispel, W. C. Van Unnik:
—The Jung Codex, Londres, M. R. Mowbray, 1955.)
Qual era a verdadeira visão de Jüng a respeito do gnosticis-
mo? Ao contrário da maioria dos eruditos até bem recentemen
55
58. te, ele jamais acreditou que se tratasse de uma heresia cristã dos
séculos II e III. Também nunca deu importância às infindáveis
disputas de especialistas a respeito das possíveis origens do gnos
ticismo: indiana, iraniana, grega e outras. Antes de qualquer ou
tra autoridade no campo dos estudos sobre os gnósticos, Jung
reconheceu-os por aquilo que eram: videntes que produziram
criações originais e primordiais, a partir do mistério que ele
chamou de inconsciente. Quando, em 1940, perguntaram-lhe
se o gnosticismo era filosofia ou mitologia, ele respondeu com
seriedade que os gnósticos lidavam com imagens reais e originais
e não eram filósofos sincretistas, como muitos supunham. Jung
reconheceu que imagens gnósticas surgem ainda hoje nas expe
riências interiores das pessoas, ligadas à individuação da psique;
nisso ele via evidência do fato de que os gnósticos expressavam
imagens arquetípicas reais que, como se sabe, persistem e exis
tem independentemente do tempo ou de circunstâncias históri
cas. Ele identificou no gnosticismo uma poderosa e absoluta
mente primordial e original expressão da mente humana, uma
expressão dirigida para a mais profunda e importante tarefa da
alma, ou seja, a obtenção de sua plenitude. Os gnóstiços, como
Jung os percebia, interessavam-se acima de tudo por uma coi
sa — a experiência da plenitude do ser. Considerando que isso
incorporava seu interesse pessoal e também o objetivo de sua
psicologia, é incontestável que sua afinidade com os gnósticos
e com sua sabedoria era realmente grande. Essa visão do gnosti
cismo não se confinoü aos trabalhos psicológicos de Jung, mas
logo entrou nç> mundo dos estudos gnósticos por intermédio do
supracitado colaborador, Gilles Quispel, que, em seu importan
te trabalho Gnosis als Weltreligion (1951), apresentou a tese de
que o gnosticismo não expressa nem uma filosofia nem uma he
resia, mas uma experiência religiosa específica, qúe então se ma
nifesta como mito e(ou) ritual. E de fato lamentável que, após
mais de vinte e cinco anos da publicação desse trabalho, tão
poucos tenham apreciado suas significativas implicações.
56
59. Em vista dessas considerações, pode-se compreensivelmente
indagar: Jung era um gnóstico? Pessoas mal-informadas, como
Martin Buber, responderam sim a essa pergunta, querendo dizer
com isso que Jung não era nem um cientista respeitável nem um
bom homem, de acordo com o significado religioso ortodoxo do
termo. Em virtude do uso pejorativo da expressão gnóstico,
muitos dos seguidores de Jung, e ocasionalmente o próprio
Jung, negaram que ele fosse um gnóstico. Um exemplo bem tí
pico dessas evasivas foi a declaração de Gilles Quispel, segundo
a qual “Jung não era um gnóstico no sentido comum do ter
mo”. Por outro lado, é muito duvidoso que jamais tenha havido
um único gnóstico no sentido comum do termo. O gnosticismo
não constitui um conjunto de doutrinas, mas a expressão mito
lógica de uma experiência interior. Em termos de psicologia
junguiana, poderíamos dizer que os gnósticos deram expressão
em linguagem poética e mitológica às suas experiências dentro
do processo de individuação. Ao fazê-lo, eles produziram uma
profusão do mais significativo material, contendo profundas
percepções da estrutura da psique, do conteúdo do inconscien
te coletivo e da dinâmica do processo de individuação. Como o
próprio Jung, os gnósticos não descreveram apenas os aspectos
conscientes e pessoais inconscientes da psique humana, ijias ex
ploraram empiricamente o inconsciente coletivo e forneceram
descrições e formulações das várias imagens e forças arquetípi-
cas. Como afirmou Jung, os gnósticos foram muito mais bem-
sucedidos do que os cristãos ortodoxos na descoberta de ex
pressões simbólicas adequadas do Self, e essas expressões as
semelham-se às formuladas por Jung. Embora Jung não tenha
se identificado abertamente com o gnosticismo como escola
religiosa, da mesma forma que não se identificou com nenhuma
seita religiosa, pouca dúvida pode existir de que ele fez, mais do
que qualquer outra pessoa, lançar luz sobre o impulso central das
imagens e da prática simbólica gnósticas. Ele viu no gnosticismo
uma expressão particularmente valiosa da luta universal do ho
57
60. mem para readquirir a plenitude. Embora náo fosse prático
nem modesto que ele o dissesse, não há dúvida de que essa ex
pressão gnóstica do anseio pela plenitude só foi reproduzida
uma vez na história do Ocidente, e isso se deu no próprio siste
ma de psicologia analítica de Jung.
Que tipo de gnóstico era Jung? Certamente, não um seguidor
literal de nenhum dos antigos mestres da Gnose, o que teria sido
um empreendimento impossível, diante da insuficiência de in
formações detalhadas a respeito desses e de seus ensinamentos.
Por outro lado, como os gnósticos do passado, ele formulou
pelo menos os rudimentos de um sistema de transformação ou
individuação, que se baseava não na fé numa fonte exterior (se
ja Jesus ou Valentino), mas na experiência interior, natural da
alma, que sempre representou a fonte de toda verdadeira Gno
se.
A definição léxica de gnóstico é conhecedor, e não seguidor
de alguém que pode ser um conhecedor. Jung sem dúvida era
um conhecedor, se é que já houve algum. Negar que ele era um
gnóstico nesse sentido eqüivaleria à negação de todos os dados
reconhecidos sobre sua vida e seu trabalho. A mais provável in
dicação do caráter especificamente gnóstico da linha seguida por
Jung, nö entanto, não é outra senão o tratado intitulado Sete
Sermões aos Mortos, o qual, segundo admitem proeminentes
junguianos, constitui a fonte e a origem de seu trabalho poste
rior. Quem, a não ser um gnóstico, escreveria ou poderia escre
ver uma obra como esses sermões? Quem optaria por revestir
suas revelações arquetípicas pessoais, que formam o esqueleto
do trabalho de sua vida, usando a terminologia e o estilo mitoló
gico da gnose alexandrina? Quem preferiria eleger Basilides, em
vez de qualquer outro vulto, como autor dos Sermões? Quem
usaria com versada compreensão e finesse, termos tais como
Pleroma e Abraxas para simbolizar estados psicológicos alta
mente abstratos? Há apenas uma resposta para essas perguntas:
somente um gnóstico fàría essas coisas* Como Carl Jung realizou
58
61. tudo isso e muito mais, podemos portanto considerá-lo gnósti-
co, tanto no sentido geral de um verdadeiro conhecedor das
mais profundas realidades do ser psíquico como no sentido mais
estrito de moderno restaurador do gnosticismo dos primeiros
séculos da era cristã.
JUNG E A GNOSE PANSOFICA
De acordo com Morton Smith, notável descobridor do Evan
gelho Secreto de Marco, o termo gnostikoi em geral se aplicava a
pessoas de tendência pitagórica e/ou platônica, embora natural
mente a expressão gnose apareça nos escritos de muitos autores
ligados a outras escolas, incluindo Padres da igreja ortodoxa cris
tã, como Orígenes e Clemente de Alexandria. A Biblioteca
Gnóstica de Nag Hammadi continha cópias da República de Pla
tão e também de certos tratados herméticos que os eruditos pu
ristas da vindima contemporânea jamais sonhariam incluir na
literatura gnóstica. Tudo isso fornece indícios para a convicção
de que, já em tempos primitivos, quando as escolas gnósticas ain
da estavam vivas fisicamente, o gnosticismo caracterizava-se por
um considerável ecumenismo e flexibilidade. Os membros da
Suposta comunidade gnóstica do Alto Egito provavelmente te
riam definido a literatura gnóstica como qualquer escritura de
valor espiritual, capaz de produzir gnose no leitor. Acadêmicos
versados em gnosticismo podem aspirar ao status de puristas,
mas os próprios gnósticos nunca o foram, nem poderiam ser.
Assim, nos séculos posteriores, após a destruição das comunida
des gnósticas primitivas e de suas escrituras, o espírito gnóstico
continuou a viver sob muitos nomes e disfarces, servindo ainda
a seus propósitos originais e imorredouros. Enquanto existir
uma luz na individualidade mais recôndita da natureza humana,
enquanto existirem homens e mulheres que se sintam semelhan
tes a essa luz, sempre haverá gnósticos no mundo. Podemos con
siderar sua contínua existência resultante em grande medida da
59
62. sobrevivência dos arquétipos gnósticos no inconsciente coletivo
e da própria natureza dos processos de crescimento e desenvolvi
mento da psique em si. Jung indubitavelmente sabia disso quan
do se referiu ao processo de confronto com a sombra (o reco
nhecimento da parte inaceitável ou “má” de nós mesmos) co
mo um “processo gnóstico”. Os padres da Igreja cunharam a
frase anima naturaliter christiana (a alma que é cristã por natu
reza), entretanto os gnósticos, com muito maior legitimidade,
poderiam ter dito que o conteúdo da alma e sua senda de cresci
mento são por natureza gnósticos. O inegável caráter arquetípi-
co do gnosticismo não constitui a única causa de sua sobrevivên
cia. Além do caráter gnóstico do inconsciente, que tende espon
taneamente a produzir sistemas gnósticos de realidade, existe
também um desenvolvimento histórico e umá continuidade li
gando os antigos adeptos do gnosticismo a seus herdeiros de pe
ríodos históricos posteriores.
Movimentos subterrâneos raras vezes se prestam como obje
tos de trabalho para o historiador. Compelidos ao segredo pelo
ambiente hostil, sua principal preocupação é a sobrevivência, e
portanto eles deixam relativamente poucos vestígios perceptí
veis no solo do tempo. Grande parte, embora não a totalidade,
da história gnóstica posterior aos séculos III e IV constitui-se
de especulação e intuição em lugar de fatos. Contudo, nessa
tênue estrutura de segredos e subterfúgios, de evasões e oca
sionais declarações ousadas, certos dados significativos se sobres
saem com singular força e brilho. Como um desses dados encon
tra-se a vida e o trabalho do esplêndido profeta persa Mani
(215-277 d.C.), cuja estrela se elevou justamente quando a dos
gnósticos declinava. Mani foi um gnóstico, tanto pela natureza
de seu caráter como em virtude da tradição. Aos doze anos de
idade, recebeu a visita de um anjo que lhe anunciou haver sido
escolhido para grandes tarefas. Aos vinte e quatro anos o anjo
voltou à sua presença e exortou-o a aparecer em público e pro
clamar a sua doutrina. O termo persa que designa esse anjo sig
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