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ENTRE PALAVRAS 10
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o
Ano
António Vilas-Boas
Manuel Vieira
Ď O que é?
Ď Auto da Feira
ISBN 978-989-23-3234-5
O que é?
A. EDUCAÇÃO LITERÁRIA 2
1. Poesia trovadoresca 2
Cantigas de amigo 2
Cantigas de amor 3
Cantigas de escárnio e maldizer 3
2. Fernão Lopes, Crónicas de D. João I 4
3. Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira 4
Caracterização de personagens 4
Relações entre as personagens 5
A representação do quotidiano 5
Linguagem, estilo, estrutura 6
4. Luís de Camões, Rimas 6
Contextualização histórico-literária 6
A poesia lírica de Camões: os temas 7
A poesia lírica de Camões: linguagem, estilo e estrutura 8
5. Luís de Camões, Os Lusíadas 8
B. GRAMÁTICA 10
FONÉTICA E FONOLOGIA
1. Processos fonológicos de inserção, supressão
e alteração 10
ETIMOLOGIA
2. Étimo 12
3. Palavras convergentes e divergentes 12
GEOGRAFIA DO PORTUGUÊS NO MUNDO
4. Português europeu e não europeu
e crioulos de base portuguesa 12
SINTAXE
5. Funções sintáticas 13
6. A frase complexa: coordenação e subordinação 18
LEXICOLOGIA
7. Arcaísmos e neologismos 20
8. Campo lexical e campo semântico 20
9. Processos irregulares de formação de palavras 21
Auto da Feira 22
Índice
1. Poesia trovadoresca
1.1 Quando se desenvolveu esta poesia?
A partir do final do século XII e até meados do século XIV.
1.2 Onde se desenvolveu?
No noroeste da Península Ibérica, na região que corresponde atualmente ao Minho e à Galiza.
1.3 Que géneros de cantigas a constituem?
Cantigas de amigo, cantigas de amor, cantigas de escárnio e maldizer.
1.4 Quem eram os trovadores e os jograis?
Os trovadores eram os autores desta poesia, as cantigas, nos seus vários géneros. Normalmente
eram nobres; escreviam a letra, por vezes a música; as cantigas eram cantadas pelos jograis,
homens de condição social mais baixa.
Cantigas de amigo
1.5 O que é uma cantiga de amigo?
É uma composição poética dirigida a um amigo por um sujeito lírico ou poético feminino, a amiga.
1.6 Quais são os temas mais frequentes?
Os temas mais frequentes são os seguintes: a saudade, pois o amigo está longe; o sofrimento
por ciúme; as queixas por promessas não cumpridas; a felicidade e a certeza de se saber amada;
o encontro amoroso junto à fonte; o baile; a espera angustiada pelo regresso do amigo; a ida à
romaria para encontrar um namorado; a confissão destes amores à mãe, ou às amigas, ou à Na-
tureza, etc.
1.7 Como é representado o sentimento amoroso?
O sentimento amoroso é representado de modo muito variado. Toda a gama deste sentimento
surge nas cantigas de amigo, desde o início da paixão, com as suas esperanças e incertezas, até
aos encontros com o amigo, ao ciúme, à reconciliação, etc.
1.8 O que é a confidência amorosa?
É a confissão dos estados amorosos, quer felizes quer infelizes, pelo sujeito poético (a amiga
apaixonada) à sua mãe, às suas amigas e, até, à Natureza. A amiga conta, confessa, para desa-
bafar, para se libertar dos seus receios ou para partilhar as suas alegrias.
1.9 Qual é a relação da mulher com a Natureza?
A Natureza surge frequentemente nas cantigas de amigo como confidente da amiga apaixonada
que com ela desabafa sobre os seus problemas amorosos. Também pode ser local de encontro
com o «amigo».
1.10 O que é o paralelismo?
É a técnica de elaboração das cantigas de amigo que consiste, em primeiro lugar, na relação evi-
dente entre versos que se repetem, quer pelas mesmas palavras quer por palavras de sentido
idêntico, – e assim se relacionam entre si. A cantiga de amigo apresenta, por isso, uma estrutura
fortemente repetitiva. Em segundo lugar, o paralelismo implica a presença de um refrão.
O paralelismo pode ser perfeito ou imperfeito. Consulta o esquema do manual na página 58.
Educação literária
O que é?
2
A.
1.11 O que é o refrão?
É um verso ou um conjunto variável de versos que se repete no final de cada estrofe ou cobla.
1.12 Qual é a função do paralelismo?
Intensifica a expressão das emoções através das repetições.
Cantigas de amor
1.13 O que é uma cantiga de amor?
É uma composição poética dirigida a uma senhor, dama de condição superior, por um sujeito
lírico ou poético masculino.
1.14 Quais são os temas mais frequentes?
A coita de amor e o elogio de amor cortês.
1.15 O que é a coita de amor?
É a expressão de um sentimento amoroso doloroso provocado pela não correspondência, por
parte da senhor, ao amor confessado pelo homem apaixonado. Está, frequentemente, associa-
da à morte por amor.
1.16 O que é o elogio de amor cortês?
É um louvor de natureza física e psicológica à senhor: ela é uma mulher única, a mais perfeita
de todas em tudo.
Cantigas de escárnio e maldizer
1.17 O que é uma cantiga de escárnio?
É uma cantiga de motivo satírico cuja crítica é feita indiretamente.
1.18 O que é uma cantiga de maldizer?
É uma cantiga de motivo satírico cuja crítica
é direta e clara.
1.19 Quais são os temas mais frequentes?
Parodiam o amor cortês, criticando as suas
convenções poéticas e criticam os costumes
– sempre através do riso. Relativamente à
paródia do amor cortês, encontramos a críti-
ca à expressão exagerada da coita de amor,
ao ridículo da morte de amor, ao ataque às
mulheres que, sendo velhas, querem ver a
sua beleza cantada… Costumes criticados
são muito variados: a infidelidade conjugal,
o mau trato dado aos animais, as mentiras
dos que pretendiam ter ido em peregrinação
à Terra Santa, freiras e frades que não cum-
priam os seus deveres, astrólogos mentiro-
sos, etc.
Missal Antigo do Lorvão,
século XV
3
2. Fernão Lopes, Crónica de D. João I
2.1 Qual é o contexto histórico dos acontecimentos narrados na Crónica de D. João I de Fernão
Lopes?
D. Fernando faleceu em 1383, sem outro sucessor que a sua filha, Dona Beatriz, casada com o
rei de Castela, D. João I. Este entendeu ter, por isso, direito ao trono português. Invadiu Portugal
e cercou Lisboa – 1384. A cidade era defendida por outro pretendente ao trono, D. João, Mestre
de Avis, filho bastardo do rei D. Pedro I.
2.2 De que modo se verifica nesta crónica a afirmação da consciência coletiva?
Através de grandes movimentos de multidões, principalmente na capital, antes do cerco, em
apoio ao Mestre de Avis; durante o cerco, através da solidariedade entre todos nos momentos
difíceis que atravessavam.
2.3 Quais são os dois grandes tipos de personagens nela presentes?
Personagens coletivas e personagens individuais.
2.4 O que são atores coletivos?
Atores coletivos são as multidões, principalmente, que agem como um corpo só, seja no mo-
vimento coletivo para levar ao poder o Mestre de Avis e protegê-lo de qualquer perigo seja na
união demonstrada pelo povo durante o cerco de Lisboa.
2.5 O que são atores individuais?
Atores individuais são personalidades bem caracterizadas por Fernão Lopes fisicamente, mas,
acima de tudo, psicologicamente: o manhoso Álvaro Pais, o por vezes excessivamente hesitante
D. João I, a ambiciosa Leonor Teles, entre outros.
3. Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira
Caracterização de personagens
3.1 Como é caracterizada Inês Pereira?
Podemos considerar três momentos na caracterização de Inês:
a) enquanto solteira, é uma burguesinha fantesiosa, que deseja sair do «ca-
tiveiro» materno através de um casamento que a faça ascender na escala
social;
b) enquanto casada, é uma mulher arrependida pela prisão a que o
marido – o escudeiro galante e discreto com que sempre sonhara
– a submete de novo, enquanto parte para a guerra;
c) enquanto novamente livre, devido à morte pouco gloriosa
do Escudeiro, aceita casar com o antigo pretendente, Pero
Marques, que lhe permite todas as liberdades.
3.2 Como é caracterizada a Mãe de Inês Pereira?
A Mãe é a voz da experiência e da sensatez. Como todas as
mães, repreende a filha por não ser tão diligente quanto devia
nas tarefas domésticas, mas também lhe dá diversos conse-
lhos, nomeadamente quanto ao tipo de casamento que pre-
tende e ao comportamento que uma moça ajuizada deve ter.
Educação
literária (cont.)
a) enquanto
tiveiro» m
socia
b)
O que é?
4
3.3 Como é caracterizado Pero Marques?
Pero Marques é um lavrador rico, mas ingénuo e rude, que se exprime numa linguagem antiqua-
da e que desconhece as mais elementares regras de convívio social – como prova o facto de não
se saber sentar numa cadeira. Mais tarde, já casado com Inês, a sua ingenuidade é visível quando
carrega a mulher às costas para a levar a um encontro galante com um Ermitão – um antigo
pretendente.
3.4 Como é caracterizado o Escudeiro?
Brás da Mata, de seu nome, é o típico escudeiro bem falante e de boas maneiras que vê em Inês
uma forma de escapar à pobreza em que vive, mas que dissimula . Uma vez casado, revela-se um
tirano no modo como trata Inês, fechando-a em casa, e, além disso, um covarde pois foi morto ao
fugir de uma batalha.
Relações entre as personagens
3.5 Qual é a relação entre Inês e a Mãe?
A relação entre Inês e a Mãe exemplifica o típico conflito de gerações: a Mãe queixa-se da pregui-
ça da filha; a filha queixa-se da tirania da Mãe, que a obriga a permanecer em casa «como panela
sem asa que sempre está num lugar», ao mesmo tempo que ignora os seus conselhos.
3.6 Como evolui a relação entre Inês e o Escudeiro?
Inicialmente, Inês vê-o como o homem dos seus sonhos – discreto, avisado, tangedor de viola,
que a viria libertar do cativeiro materno, mas rapidamente muda de atitude ao ver-se de novo
presa em casa pelo marido, logo após o casamento. Aí passa a vê-lo como um marido covarde
e «rascão», forte com ela mas fraco com o mouro pastor que o matou quando se escapulia da
batalha em que participava.
3.7 Como evolui a relação entre Inês e Pero Marques?
Inicialmente, Inês vê-o como um pretendente rude, ingénuo e sem maneiras, de que zomba sem
piedade, em tudo oposto ao tipo de homem que tinha idealizado para marido. Posteriormente,
após a viuvez, aceita este «manso marido» porque lhe dá toda a liberdade que pretende, sem
deixar, no entanto, de se aproveitar da sua ingenuidade para o trair com o Ermitão («ermitano de
cupido») – um antigo pretendente.
A representação do quotidiano
3.8 Que representações da vida quotidiana se encontram na Farsa de Inês Pereira?
Na Farsa de Inês Pereira, podemos encontrar:
a) cenas da vida doméstica (a Mãe censura Inês pelo seu desleixo nas tarefas domésticas; Inês
queixa-se de falta de liberdade);
b) conselhos maternos (sobre a escolha dos namorados, sobre o casamento…);
c) a festa do casamento de Inês;
d) vida conjugal (a prepotência do marido escudeiro, que obriga Inês a obedecer-lhe e a fecha em
casa);
e) traição conjugal (Inês trai Pero Marques com o Ermitão).
3.9 O que pretende satirizar Gil Vicente com a Farsa de Inês Pereira?
Nesta farsa, Gil Vicente satiriza comportamentos morais e sociais, nomeadamente a ascensão
social da mulher através do casamento e o adultério feminino. O comportamento de Inês Pereira
exemplifica ambas as situações.
A.
5
3.10 De que processo se serve Gil Vicente para criticar costumes e comportamentos morais
e sociais?
Serve-se do cómico (de caráter, de situação e de linguagem) de forma a provocar o riso nos
espetadores, expondo assim ao ridículo esses comportamentos e costumes.
Por exemplo, a leitura da carta, em que se anuncia a morte do Escudeiro às mãos de um
mouro pastor ao fugir do campo de batalha «pera a vila», provoca o riso na plateia acen-
tuando ainda mais a fraqueza de caráter desta personagem – cómico de caráter. O cómico
de situação está presente, por exemplo, quando Pero Marques se senta ao contrário numa
cadeira, objeto que desconhece. Já o cómico de linguagem transparece na fala antiquada
e rústica de Pedro Marques, ou em situações como a que ocorre entre os versos 78 e 81
(da página 157 do Manual) quando Inês utiliza o verbo «sair» no seu sentido habitual, mas
que Pedro Marques entende com o significado de defecar (que também possuia) – o que
provoca o riso nos espetadores.
Linguagem, estilo, estrutura
3.11 O que é a farsa?
Trata-se de um género pertencente ao modo dramático que apresenta normalmente o
tema do engano. Nela se representam cenas da vida profana, que tanto podem ser agressi-
vas, devido à sátira contundente que apresenta, como festivas, devido ao cómico hilariante.
3.12 Quais são as características da linguagem na Farsa de Inês Pereira?
Na Farsa de Inês Pereira, a maioria das personagens apresenta um registo linguístico ca-
racterístico da fala quotidiana do século XVI. Neste texto, encontram-se também marcas
da linguagem popular, especialmente através de provérbios e de palavras entretanto caí-
das em desuso – arcaísmos – como «asinha», «geitar», «muitieramá», etc., e outras que
constam sobretudo da linguagem antiquada de Pero Marques («pardelhas», «rebentinha»,
«chentar», «siquaes», etc.).
4. Luís de Camões, Rimas
Contextualização histórico-literária
4.1 Em que contexto histórico surge a obra de Luís de Camões?
No contexto histórico marcado principalmente pela Expansão Portuguesa em terras e mares do
Oriente – século XVI.
4.2 Qual é o contexto literário da sua obra?
A sua obra surge num contexto cultural marcado por três grandes movimentos – Renascimento,
Classicismo e Humanismo –, cuja natureza se interpenetra e funde em História, Estética, Ética e
Literatura.
4.3 O que é o Renascimento?
Movimento cultural marcado por características como:
a) a busca das fontes ou modelos culturais e literários greco-romanos – a partir de meados do
século XV;
b) a vontade de experimentar e de construir o conhecimento com base na experiência;
c) a dúvida em relação ao conhecimento fundado em textos de natureza religiosa;
d) o interesse por tudo o que é próprio do Homem e da sua natureza – em detrimento do divino;
e) a crença no Homem como motor do seu destino.
O que é?
Educação
literária (cont.)
6
4.4 O que é o Classicismo?
Movimento cultural centrado principalmente na imitação / recuperação da arte em geral e da lite-
ratura em particular das duas grandes civilizações da Antiguidade: a grega e a romana. A imitação
passou pela arquitetura, pela escultura, pela literatura… Literariamente, recuperam-se o gosto
pela perfeição formal e por composições como a tragédia, a epopeia, a elegia, a écloga, etc.
4.5 O que é o Humanismo?
Movimento cultural caracterizado pelo grande interesse pela Antiguidade greco-romana. Os hu-
manistas acreditavam fortemente no progresso humano com o Homem como seu motor; esta-
vam muito marcados por uma conceção ética da vida: censuravam os males da sociedade, os
maus governantes, por um lado; por outro, apresentavam um programa ético: aconselhavam os
poderosos no sentido de reformas.
A poesia lírica de Camões: os temas
4.6 Como é representada a amada?
Sempre como bela, na tradição das cantigas de amor, sendo comparada com elementos da Na-
tureza, vencendo-os sempre. Normalmente assume um modelo «clássico», loura e branca, de
belos olhos, «presença suave» – o modelo petrarquista. Mas pode ser consolo do Poeta também
a mulher de pele escura, de olhos e cabelos pretos – sempre – mais bela do que a Natureza.
4.7 Como é representada a Natureza?
Frequentemente a Natureza é apresentada de modo subjetivo, isto é, o Poeta projeta nela os
seus estados de espírito. A Natureza apresenta-se também, frequentemente, como polo de com-
paração relativamente à amada – que a vence sempre. A Natureza pode ainda assumir a condi-
ção de testemunha da infelicidade do Poeta.
4.8 Que experiências amorosas confessa o Poeta?
Quase sempre a experiência amorosa se apresenta como negativa: o Poeta é um conhecedor
profundo da dor de amar. O Amor é fonte de desenganos, desilusões, sofrimento. Apesar disso, o
Poeta apaixona-se, enredado pelos olhos da amada; queixa-se da sua indiferença, principalmente
quando ama verdadeiramente, possuído de amor «puro e limpo».
4.9 Que tipo de reflexão faz sobre o Amor?
Tendencialmente negativa. Apesar de não poder fugir-lhe, de lhe estar «destinado», o Amor não
lhe dá as alegrias que gostaria de receber, por causa da indiferença da amada, apesar da certeza
do seu amor.
4.10 Como reflete sobre a vida pessoal?
Desde logo lamentando-se por não ter experimentado mais do que «breves enganos» no Amor;
mas também assumindo os erros pessoais e queixando-se da má sorte. O Poeta é um ser desi-
ludido com a vida, que vai envelhecendo já sem esperança, numa desistência contínua. Exprime,
por vezes, revolta contra esta situação.
4.11 O que é o tema do desconcerto?
O tema do desconcerto consiste na constatação de que o mundo não é um local justo, pois o
Poeta verifica que frequentemente quem é mau é recompensado e quem é bom é castigado.
Também na sua vida, amorosa até, o Poeta é marcado por este desconcerto.
A.
7
4.12 O que é o tema da mudança?
O tema da mudança é um tema clássico e filosófico por excelência: tudo muda continuamente,
tudo se renova ciclicamente, um ano sucede ao outro, uma primavera virá depois da atual; con-
tudo, esta mudança não atinge o Poeta – que caminha inexoravelmente para o fim.
A poesia lírica de Camões: linguagem, estilo e estrutura
4.13 O que é a lírica tradicional?
É a lírica em que Camões segue a tradição poética peninsular que vem da Idade Média, da tra-
dição trovadoresca, com formas poéticas como o vilancete ou as trovas, com versos de redon-
dilha maior ou menor – sete e cinco sílabas métricas, respetivamente.
4.14 O que é a lírica de inspiração clássica?
É a lírica de versos decassílabos em que Camões adota formas poéticas recuperadas da Anti-
guidade, como a epopeia, a écloga, ou novas formas poéticas, como o soneto, vindo de Itália.
4.15 Quaissãoasprincipaismarcasdodiscursopessoal/subjetivopresentesnalíricacamoniana?
A presença forte da subjetividade marca as composições poéticas de Camões: os seus estados
de alma podem influenciar a visão da paisagem, projetando-se nela, fundindo-se deste modo o
interior subjetivo e o exterior objetivo.
4.16 Quais são as características formais do soneto?
O soneto é uma composição poética de origem italiana, introduzida em Portugal por Sá de
Miranda, no século XVI. É composto por catorze versos divididos em duas quadras e dois
tercetos. O seu esquema rimático é, normalmente, abba abba cde edc / cdc dcd / cde cde.
O verso usado é o decassílabo.
5. Luís de Camões, Os Lusíadas
5.1 O que é um poema épico?
É uma narrativa em verso com origem na Antiguidade Clássica greco-romana na qual
se exaltavam os feitos gloriosos de um herói mitológico, como Aquiles, na Ilíada,
e Ulisses, na Odisseia – ambas de Homero – e Eneias, na Eneida de Virgílio. Durante
o Renascimento, vários poemas épicos foram criados na Europa à semelhança dos
Antigos, entre os quais se destaca Os Lusíadas de Camões. Este género literário
exalta feitos excecionais e imortaliza heróis. O estilo é elevado, adequado à subli-
midade do assunto. O herói, embora individual, simboliza o seu povo. O assunto
tem interesse universal.
5.2 Qual é a matéria épica de Os Lusíadas?
A matéria épica de Os Lusíadas é a narrativa da viagem de Vasco da Gama
e da História de Portugal.
5.3 Qual é a estrutura externa de Os Lusíadas?
A obra está dividida em dez cantos, cada um com um número variável de es-
tâncias ou estrofes. As estâncias são oitavas, apresentando o esquema rimático
abababcc, rima cruzada nos seis primeiros versos e emparelhada nos dois últi-
mos. Os versos são de dez sílabas métricas, acentuados na sexta e na décima
sílabas: versos decassilábicos heroicos.
O que é?
Educação
literária (cont.)
8
5.4 Qual é a estrutura interna de Os Lusíadas?
O poema divide-se em quatro partes, seguindo, de modo geral, os modelos das epopeias da An-
tiguidade Clássica e das renascentistas:
Proposição
Canto I, estâncias 1-3
O Poeta indica o assunto que vai cantar: «o peito ilustre Lusitano», estância 3, verso 5, isto é,
os heróis Portugueses, a nobreza guerreira e os homens ilustres que se notabilizaram pela
grandiosidade dos seus feitos.
Invocação
Canto I, estâncias 4-5
O Poeta pede inspiração a musas nacionais, as Tágides, ninfas do Tejo, para cantar os feitos
do «peito ilustre Lusitano».
Dedicatória
Canto I, estâncias 6-18
O Poeta dedica o poema a D. Sebastião, que reinava em Portugal no ano da sua publicação –
1572.
Narração
Canto I, estâncias 19 e seguintes. Inicia-se in medias res, no meio da viagem, quando a armada
se encontrava já no oceano Índico.
5.5 Quais são os quatro planos de Os Lusíadas?
O plano da viagem, o dos deuses, o da História de Portugal e o das reflexões ou considerações
do Poeta. Frequentemente estes planos são interdependentes: numa mesma estância, pode-se
encontrar mais do que um.
5.6 Em que consiste a «sublimidade do canto» em Os Lusíadas?
Camões pede às Tágides, na Invocação, um canto marcado pela sublimidade, isto é, um canto de
estilo grandioso, um canto sublime, pois os feitos dos Portugueses são também grandiosos.
5.7 O que são as «reflexões do Poeta»?
São reflexões que surgem principalmente nos finais dos cantos. Nelas, o Poeta reflete sobre
assuntos tão variados como a fragilidade da vida humana, o poder corruptor do dinheiro, a ga-
nância, o mau governo, a ignorância da nobreza, o seu desinteresse pela cultura em geral e pela
Poesia em particular, etc. Por vezes, estas reflexões apresentam vincado caráter humanista, pois
Camões censura, por um lado, e aconselha a mudança de atitudes, por outro.
5.8 Como se concretiza a mitificação do herói em Os Lusíadas?
O herói, Vasco da Gama, é mitificado pois supera, pelos seus feitos, a condição humana. Momento
fulcral dessa mitificação ocorre quando Tethys desvenda a Vasco da Gama a Máquina do Mundo,
fazendo-o assumir o conhecimento total. A mitificação ocorre também aquando da união dos
Portugueses com as Ninfas, na Ilha dos Amores: através desta união eles transcendem, simboli-
camente, a condição humana, aproximando-se dos deuses. A mitificação do herói está anunciada
logo no início do poema, na estância 3, quando Camões apresenta os Portugueses como tendo
superado a Antiguidade – os heróis gregos e romanos.
A.
9
FONÉTICA E FONOLOGIA
1. Processos fonológicos de inserção, supressão e alteração
1.1 Quais são os processos fonológicos de inserção (+)?
Os processo fonológicos de inserção são a prótese, a epêntese e a paragoge.
O que é a prótese?
A prótese consiste na adição de uma unidade fónica ou de um
conjunto de unidades fónicas no início de uma palavra.
Ex.: SPIRITU-  espírito
O que é a epêntese?
A epêntese consiste na adição de uma ou mais unidades
fónicas no interior de uma palavra.
Ex.: HUMILE  humilde
O que é a paragoge?
A paragoge consiste na adição de uma ou mais unidades
fónicas no final de uma palavra.
ANTE  antes
1.2 Quais são os processos fonológicos de supressão (–)?
Os processo fonológicos de supressão são a aférese, a síncope e a apócope.
O que é a aférese?
A aférese consiste na queda de uma unidade fónica ou de um
conjunto de unidades fónicas no início de uma palavra.
Ex.: ACUME-  gume
O que é a síncope?
A síncope consiste na queda de uma unidade fónica ou de um
grupo de unidades fónicas no interior de uma palavra.
Ex.: OPERA-  obra
O que é a apócope?
A apócope consiste na queda de uma unidade fónica ou de
um grupo de unidades fónicas no final de uma palavra.
Ex.: AMARE  amar
1.3 Quais são os processos fonológico de alteração (–
˜)?
Os processo fonológicos de alteração são a sonorização, a palatalização, a redução vocálica,
a crase, a sinérese, a vocalização, a metátese, a assimilação e a dissimilação.
O que é a sonorização?
A sonorização consiste na passagem de uma consoante
surda, normalmente em posição intervocálica, a uma
consoante sonora.
Ex.: FOCU-  fogo
O que é a palatalização?
A palatalização consiste na passagem de sequências latinas
como li, ni, cl, pl, fl às consoantes palatais
/̒/(lh); /Ӷ/(lh); /̍/(ch) ou /t̍/.
Ex.: FILIU  filho; SENIORE  senhor; CLAVE  chave
Gramática
10
O que é?
O que é a redução vocálica?
A redução vocálica consiste no enfraquecimento de uma
unidade vocálica em posição átona.
Ex.: casa  casinha
O que é a crase?
A crase consiste na contração de duas vogais numa só.
Ex.: PE(D)E-  pee  pé
O que é a sinérese?
A sinérese ocorre quando duas vogais contíguas, em hiato,
dão lugar a um ditongo, por semivocalização de uma delas.
Ex.: LE(G)E-  lee  lei
O que é a vocalização?
A vocalização consiste na passagem de uma consoante a
vogal.
Ex.: ACTU-  auto
O que é a metátese?
A metátese consiste na transposição de segmentos ou
sílabas no interior de uma palavra.
Ex.: SEMPER  sempre
O que é a assimilação?
A assimilação é um processo fonológico de alteração em que
uma unidade fónica torna igual ou mais semelhante a si um
outro segmento contíguo ou não.
Ex.: IPSE  esse
O que é a dissimilação?
A dissimilação é um processo fonológico de alteração em que
duas unidades fónicas iguais se tornam diferentes.
Ex.: CALAMELLU-  caramelo
1.4 Os processos fonológicos verificam-se apenas na evolução da língua ao longo do tempo (dia-
cronia) ou também se verificam na atualidade, na língua que falamos (sincronia)?
Verificam-se em ambas as situações: através do tempo, na evolução da língua, e na atualidade.
Ex.: Tanto encontramos uma metátese na evolução de CONTRARIU para contrairo (português anti-
go) como na variação social, na atualidade, entre parteleira e prateleira.
B.
11
ETIMOLOGIA
2. Étimo
2.1 O que é o étimo de uma palavra?
O étimo de uma palavra é a forma mais antiga de que essa palavra provém. Por exemplo, o étimo
da palavra portuguesa filho é a forma do latim vulgar FILIU-.
2.2 As palavras portuguesas provêm de que étimos?
As palavras portuguesas provêm de étimos de várias línguas, mas a grande maioria tem origem
em étimos latinos, visto que o português é uma língua românica ou novilatina, isto é, que tem
origem no latim.
3. Palavras convergentes e divergentes
3.1 O que são palavras convergentes?
Palavras convergentes são as que provêm de étimos diferentes aos quais corresponde apenas
uma palavra portuguesa.
Ex.:
SANU-
SUNT
são (adjetivo)
são (verbo)
3.2 O que são palavras divergentes?
Palavras divergentes são as que provêm do mesmo étimo, umas por via erudita e outras por via
popular, dando origem a mais do que uma palavra portuguesa.
Ex.:
SOLITARIU-
solitário (forma erudita)
solteiro (forma popular)
GEOGRAFIA DO PORTUGUÊS NO MUNDO
4. Português europeu e não europeu e crioulos de base portuguesa
4.1 O que é e onde se fala o português europeu?
O português europeu é a língua falada em Portugal continental e nos arquipélagos dos Açores e
da Madeira.
4.2 O que é o português não europeu?
O português não europeu é a língua falada fora da Europa, nos países africanos de língua oficial
portuguesa (PALOP), que compreende as variedades sul-americana (brasileira) e africana (anti-
gas colónias portuguesas), onde também se falam crioulos.
Gramática
(cont.)
O que é?
12
4.3 O que é um crioulo?
Um crioulo é uma língua que se forma em comunidades onde se falam várias línguas a partir do
contacto de uma língua autóctone com uma língua dominante (de colonização) devido à neces-
sidade de comunicação.
Ex.: o Kriolu ou Kauberdianu de Cabo Verde.
4.4 O que são crioulos de base portuguesa?
São crioulos em que a base lexical, isto é, as palavras utilizadas na comunicação, é portuguesa.
4.5 Qual é a distribuição geográfica dos principais crioulos de base portuguesa?
a) Em África, existem os crioulos da Alta Guiné (Kuaberdianu, de Cabo Verde) e os crioulos
do Golfo da Guiné (Forro ou Santomense, de S.Tomé).
b) Na Ásia, encontramos os crioulos indo-portugueses (Língua da Casa, em Damão, na Ín-
dia), malaio-portugueses (Papiá Kristang, na Malásia, e o português de Bidau, em Timor
Leste) e sino-portugueses (o macaísta ou patuá de Macau, em vias de desaparecimento).
c) Na América, existem o papiamento nas Antilhas e o Saramancano, no Suriname.
SINTAXE
5. Funções sintáticas
5.1 O que é o sujeito?
É uma função sintática desempenhada por palavra (nome), expressão, oração que concordam
com o verbo da frase em que se encontram.
Exs.: • Maçãs não faltarão, na próxima primavera.
• Os meus primos ingleses visitam-nos, na próxima semana.
• Ir ao mar nesta altura é muito perigoso.
5.1.1 Quais são os tipos de sujeito?
O sujeito pode ser simples a) ou composto b).
Exs.: a) Os cães protegem os donos.
b) Os cães e os gatos são animais domésticos.
Quando não está expresso, o sujeito pode ser subentendido c) – quando pode ser recu-
perado através da conjugação verbal – e indeterminado d) – quando é substituível por
«alguém».
Exs.: c) O Pedro disse que [eles/elas] iam ao cinema.
d) Compra-se casas na baixa da cidade. / Alguém compra casas na baixa da cidade.
B.
13
5.2 O que é o vocativo?
É uma função sintática desempenhada por uma palavra ou expressão e que serve para chamar
ou interpelar o interlocutor.
O vocativo distingue-se do sujeito, junto do qual se encontra normalmente, porque não concorda
com o verbo da frase em que se encontra.
Sempre que se encontrar junto do sujeito, o vocativo é isolado por vírgulas.
Exs.: 1) João, traz-me aquele livro, por favor.
2) Tu, meu amigo, não sabes o que perdeste.
3) Tu, Pedro, já viste bem este exercício?
5.3 O que é o predicado?
É uma função sintática desempenhada pelo verbo, expressando o que se diz acerca do sujeito.
No predicado, podem incluir-se outras funções sintáticas, consoante as propriedades de seleção
dos verbos principais e copulativos (complementos). Podem ainda existir funções sintáticas não
selecionadas pelos verbos (modificadores).
Exs.: 1) O João deu um presente ao irmão. (O predicado inclui dois complementos.)
2) O Pedro almoça na cantina ao meio-dia. (O predicado inclui dois modificadores.)
3) O João deu um presente ao irmão, hoje, de manhã. (O predicado inclui dois complemen-
tos e dois modificadores.)
4) O Francisco está doente. (O predicado inclui um predicativo do sujeito.)
5) O Manuel acha este filme um espanto. (O predicado inclui um complemento e um pre-
dicativo do complemento direto.)
6) O António canta. (O predicado é apenas constituído pelo verbo.)
5.4 O que é o complemento direto?
É uma função sintática de um verbo transitivo direto e/ou transitivo direto e indireto, que pode ser
desempenhada por:
• uma palavra substituível pelos pronomes pessoais átonos -o, -a, -os, -as;
• uma expressão substituível pelos pronomes pessoais átonos -o, -a, -os, -as;
• pronomes pessoais (-me, -te, -o, -a, -nos, -vos, -os, -as);
• uma oração subordinada substantiva completiva.
Exs.: 1) Hoje comi marisco ao almoço. / Hoje comi-o ao almoço.
2) Inês Pereira recusa o primeiro namorado. – Inês Pereira recusa-o.
3) Ela viu-nos no cinema.
4) Inês Pereira afirma que só casará com um homem educado.
5.5 O que é o complemento indireto?
É uma função sintática selecionada por verbos transitivos indiretos e transitivos diretos e indire-
tos. É desempenhada por:
• expressões iniciadas pela preposição a, substituíveis pelo pronome pessoal átono -lhe;
• pronomes pessoais (-me, -te, -lhe, -nos, -vos, -lhes);
• uma oração subordinada substantiva relativa.
Exs.: 1) A alcoviteira falou a Inês de Pero Marques. / A alcoviteira falou-lhe de Pero Marques.
2) O meu pai ofereceu-me um livro de poesia.
3) A minha prima deu o presente a quem o merecia.
O que é?
Gramática
(cont.)
14
5.6 Como distingo o complemento direto do complemento indireto?
a) Um complemento direto é selecionado por verbos transitivos diretos e por verbos transitivos
diretos e indiretos.
Exs.: O João viu um ovni. / O Pedro deu um livro à irmã.
b) Um complemento indireto é selecionado por verbos transitivos indiretos e por verbos
transitivos diretos e indiretos.
Exs.: A Joana telefonou à mãe. / O Pedro deu um livro à irmã.
c) Um complemento direto é sempre desempenhado por palavra ou expressão substituível pelos
pronomes pessoais átonos o, a, os, as.
Ex.: O Pedro viu um ovni. / O Pedro viu-o.
d) Um complemento indireto é sempre desempenhado por uma palavra ou uma expressão
iniciada pela preposição a substituível pelos pronomes pessoais átonos lhe/lhes.
Ex.: O Pedro telefonou à irmã. / O Pedro telefonou-lhe.
5.7 Como sei se um pronome pessoal átono de 1.
a
pessoa (me/nos) ou de 2.
a
pessoa (te/vos)
desempenha a função sintática de complemento direto ou de complemento indireto?
É simples: basta substituí-los pelos pronomes de 3.
a
pessoa (o, a, os, as [complemento direto]
e lhe, lhes [complemento indireto]).
Se a frase ficar correta pela substituição com o, a, os, as, o pronome me, te, nos, vos
desempenhará a função sintática de complemento direto. Se, pelo contrário, ficar correta
ao ser substituída por lhe ou lhes, então desempenhará a função sintática de complemento
indireto.
Exs.: Ela viu-me no cinema.
É substituível por por lhe? Não, porque Ela viu-lhe no cinema é uma frase incorreta.
É substituível por o ou a? Sim, porque Ela viu-o(a) no cinema é uma frase correta.
Podemos, portanto, concluir que o pronome me na frase Ela viu-me no cinema desempenha a
função sintática de complemento direto.
5.8 O que é o complemento oblíquo?
É uma função sintática selecionada por verbos transitivos indiretos e transitivos diretos e indire-
tos. Pode ser desempenhada por:
a) uma palavra;
b) uma expressão substituível por um pronome pessoal precedido de preposição;
c) uma expressão substituível por um advérbio;
d) uma oração subordinada substantiva relativa.
Exs.: 1) O meu primo mora longe.
2) Inês Pereira gosta do Escudeiro. / Inês gosta dele.
3) Ela mora em Lisboa. / Ela mora lá.
4) Inês Pereira gosta de quem é educado e bem falante.
B.
15
5.9 Como distingo um complemento direto, um complemento indireto
e um complemento oblíquo?
a) O complemento direto é sempre substituível por um pronome pessoal átono o, a, os, as;
um complemento indireto, por um pronome pessoal lhe ou lhes; um complemento oblíquo
é substituível por um advérbio ou por um pronome precedido de preposição.
Assim, para identificar o complemento presente numa frase, substitui-o por o, a, os, as e por
lhe ou lhes.
Se a frase ficar correta com o, a, os, as, então o complemento é direto; se ficar correta com lhe
ou lhes é indireto; se ficar incorreta com direto e indireto, então o complemento é oblíquo.
Exs.: 1) Na frase O Pedro leu um livro, a expressão destacada desempenha a função de
complemento direto porque pode ser substituída pelo pronome átono o: O Pedro leu-o.
2) Na frase O João mora em Lisboa, a expressão destacada desempenha a função
sintática de complemento oblíquo porque não pode ser substituída por o, a, os, as
nem por lhe ou lhes, mas pode ser substituída por um advérbio.
• O João mora-a. (frase gramaticalmente incorreta)
• O João mora-lhe. (frase gramaticalmente incorreta)
• O João mora lá. (frase correta)
5.10 Tanto o complemento oblíquo como o complemento indireto podem ser desempenhados
por uma expressão iniciada pela preposição a. Nesse caso, como os distingo?
Procedendo à substituição dessa expressão por lhe ou lhes.
Se a frase ficar correta, estaremos na presença de um complemento indireto; se ficar
incorreta, estaremos na presença de um complemento oblíquo.
Exs.: 1) A Joana telefonou à mãe. / A Joana telefonou-lhe. (frase correta – «à mãe» é
complemento indireto).
2) O Pedro vai a Lisboa. / O Pedro vai-lhe. (frase incorreta – «a Lisboa» é
complemento oblíquo).
5.11 O que é o complemento do nome?
É uma função sintática selecionada por um nome. O complemento do nome pode ser desem-
penhado por um adjetivo, uma expressão iniciada por uma preposição ou por uma oração.
Exs.: 1) A pesca desportiva faz-se sempre à linha.
2) A polícia procedeu à identificação do suspeito.
3) A suposição de que os alunos não estudam é abusiva.
5.12 O que é o complemento do adjetivo?
É uma função sintática selecionada por um adjetivo. Pode ser desempenhada por uma expres-
são iniciada por uma preposição ou por uma oração.
Exs.: 1) Inês não estava interessada em Pero Marques.
2) Inês estava interessada em casar com o Escudeiro.
O que é?
Gramática
(cont.)
16
5.13 O que é o predicativo do sujeito?
É uma função sintática de uma palavra, uma expressão ou uma oração que indicam algo acerca
do sujeito (uma qualidade, um estado, uma localização).
Exs.: 1) Os meus amigos estão descontentes.
2) Brás da Mata é um escudeiro pouco escrupuloso.
3) Ele não é quem se pensa.
5.14 Como distingo um predicativo do sujeito de um complemento direto?
Basta saber que o predicativo do sujeito é desempenhado por verbos copulativos e que não é
substituível pelos pronomes pessoais átonos o, a, os, as.
Repara nas expressões destacadas nas frases dos exemplos.
Exs.: a) O Pedro ficou em casa.
A expressão «em casa» é predicativo do sujeito porque o verbo da frase é copulativo e
não pode ser substituído pelos pronomes pessoais átonos o, a, os, as.
b) O Pedro viu um lobo.
A expressão «um lobo» é complemento direto porque pode ser substituído pelo
pronome pessoal átono o.
5.15 O que é o predicativo do complemento direto?
É uma função sintática desempenhada por uma palavra, uma expressão ou uma oração se-
lecionadas por um verbo transitivo-predicativo (achar, chamar, considerar, julgar, tratar, no-
mear…) que indicam algo acerca do complemento direto.
Exs.: 1) Ele acha a Inês bonita.
2) Eles consideram aquele aluno muito estudioso.
3) Elas consideram que fumar é prejudicial.
5.16 Como distingo numa frase o complemento direto do predicativo do complemento direto?
a) Um complemento direto é sempre função sintática de verbos transitivos diretos, de verbos
transitivos diretos e indiretos e de verbos transitivos-predicativos.
Exs.: Ele achou um livro.
Ele vendeu o livro ao primo.
Ele acha a Maria bonita.
b) Um predicativo do complemento direto é função sintática apenas de verbos
transitivo-predicativos (achar, considerar, eleger…).
Exs.: Ele acha a Maria bonita.
Eles elegeram o Pedro deputado.
c) Um complemento direto é sempre substituível pelos pronomes pessoais átonos o, a, os, as.
Um predicativo do complemento direto nunca se pode substituir por estes pronomes.
Exs.: Ele achou o livro. / Ele achou-o.
Ele acha a Maria bonita. / Ele acha-a. (frase incompleta – Ele acha-a o quê?)
Ele acha-a bonita. (frase correta – «a» [complemento direto]; «bonita» [predicativo do
complemento direto].)
B.
17
5.17 O que é um modificador de grupo verbal?
É uma função sintática desempenhada por uma palavra, uma expressão ou uma oração não
selecionadas pelo verbo e que podem, por isso, ser omitidas sem que a frase fique gramatical-
mente incorreta.
Exs.: 1) Eles almoçam calmamente.
2) Eles trabalham em Paris.
3) Eles fazem surf sempre que podem.
5.18 O que é um modificador do nome?
É uma função sintática desempenhada por uma palavra, uma expressão ou uma oração não
selecionados pelo nome. Os modificadores do nome podem ser restritivos1
ou apositivos2
.
1
São restritivos quando restringem ou limitam a referência do nome que modificam. Podem
ser desempenhados por uma palavra, uma expressão ou uma oração subordinada adjetiva
relativa restritiva.
Exs.: 1) Vivo numa casa arrendada.
2) Vivo numa casa bastante espaçosa.
3) A casa que os meus primos compraram situa-se numa colina.
2
São apositivos quando não restringem nem limitam a referência do nome que modificam.
São sempre separados por vírgulas do nome que modificam. Podem ser desempenhados por
uma palavra, uma expressão ou uma oração subordinada adjetiva relativa explicativa.
Exs.: 1) A ave, livre, voou para longe.
2) Gil Vicente, o maior dramaturgo português, escreveu diversos autos e farsas.
3) Os golfinhos, que são mamíferos, abundam na baía do Sado.
6. A frase complexa: coordenação e subordinação
Coordenação
6.1 O que são orações coordenadas?
São orações quase sempre ligadas por conjunções ou locuções coordenativas; são independen-
tes uma da outra.
6.1.1 Que tipos de orações coordenadas existem?
As orações coordenadas são as seguintes:
a) copulativas
Ex.: Eu brinco e tu lês.
b) adversativas
Ex.: Comprei o livro, mas não o li ainda.
c) disjuntivas
Ex.: Ou vou a Paris ou vou a Londres.
d) conclusivas
Ex.: Estou muito cansado, logo tenho de parar o trabalho.
d) explicativas
Ex.: Entrego-te o livro, pois não consigo ler mais esta história tenebrosa.
O que é?
Gramática
(cont.)
18
Subordinação
6.2 O que são orações subordinadas?
São orações quase sempre iniciadas por conjunções ou locuções subordinativas e dependem de
uma oração subordinante ou de um elemento subordinante.
6.2.1 Que tipos de orações subordinadas existem?
Existem três tipos de orações subordinadas: adverbiais, adjetivas e substantivas.
• As adverbiais podem ser:
a) causais (Ex.: Vou almoçar porque tenho fome.);
b) temporais (Ex.: Vou ao cinema sempre que o filme é recomendado pela crítica.);
c) finais (Ex.: Falei alto para que me ouvisses.);
d) comparativas (Ex.: Esta cidade é mais bonita do que aquela [é].);
e) consecutivas (Ex.: É um país tão bonito que regressarei para o ano.);
f) concessivas (Ex.: Embora ele tenha esses defeitos, eu confio nele.);
g) condicionais (Ex.: Se vieres, ficarei contente.).
• As adjetivas podem ser:
a) relativas restritivas (Ex.: Eles ouviram o barulho que fizemos.);
b) explicativas (Ex.: Eles leram esses livros, que lhe tínhamos oferecido.).
• As substantivas podem ser:
a) relativas sem antecedente (Ex.: Quem jogar pode ganhar esse prémio.);
b) completivas (Ex.: Ele ontem afirmou perante todos que ia para França brevemente).
6.2.2 De que dependem as orações subordinadas?
As orações subordinadas ou dependem de uma oração subordinante ou de um elemento
subordinante.
• As adverbiais dependem das orações subordinantes.
Ex.: Nós fomos ver o filme porque o gabavam muito.
• As adjetivas dependem de um nome.
Ex.: Nós vimos ontem na estrada o carro que teve o acidente.
A subordinada só depende do elemento subordinante sublinhado.
• As substantivas dependem de um verbo.
Exs.: 1) Ela disse ontem no tribunal que desconhecia essa pessoa.
2) Eu sei bem quem escreveu esse livro.
3) Quem estudar tirará boas notas.
6.2.3 Quais são as funções sintáticas das orações subordinadas?
As orações subordinadas desempenham funções sintáticas – em relação à subordinante
ou a um elemento subordinante. Alguns exemplos:
• As adverbiais desempenham a função de modificador (de grupo verbal ou de frase).
Ex.: A minha prima faz os deveres quando chega a casa. (modificador de grupo verbal)
Ex.: Caso me saia a lotaria, farei grandes viagens. (modificador de frase)
B.
19
• As adjetivas desempenham a função sintática de modificador do nome (restritivo e
apositivo).
Ex.: O livro que ele leu foi escrito por José Saramago. (modificador do nome restritivo)
As baleias, que são mamíferos, não aparecem na nossa costa. (modificador do
nome apositivo)
• As substantivas completivas podem desempenhar as funções sintáticas de sujeito e de
complemento (direto, indireto e oblíquo).
Exs.: 1) É evidente que este preço é absurdo. (sujeito)
(= isso é evidente.)
2) O João disse que vai brevemente a Londres. (complemento direto)
(= O João disse isso.)
• As substantivas relativas podem desempenhar as funções sintáticas de sujeito, comple-
mento (direto, indireto, oblíquo) e modificador.
Exs.: 1) Quem tudo quer tudo perde. (sujeito)
(= Ele tudo perde.)
2) Ela sabe quem escreveu esse livro. (complemento direto)
(= Ela sabe isso.)
3) Dei os livros a quem mos pediu. (complemento indireto)
(= Dei os livros ao Pedro.)
LEXICOLOGIA
7. Arcaísmos e neologismos
7.1 O que é um arcaísmo?
Um arcaísmo é uma palavra, uma expressão ou uma construção sintática que entrou em desuso
na língua.
Exs.: O advérbio asinha (depressa) deixou de se usar no século XVI. O pronome vós (segunda
pessoa do plural) já quase não se usa na comunicação atual, sendo substituído por vocês.
7.2 O que é um neologismo?
Um neologismo é uma palavra nova que, num determinado momento, se cria através de meca-
nismos já existentes na língua, nomeadamente os processos morfológicos e os processos irre-
gulares de formação de palavras.
Exs.: deslocalizar (palavra nova formada por derivação por prefixação); bullying (palavra nova
proveniente, por empréstimo, do inglês).
8. Campo lexical e campo semântico
8.1 O que é um campo lexical?
Um campo lexical consiste num conjunto de palavras de categorias lexicais diferentes (nomes,
adjetivos, verbos) que se podem associar pelo sentido a uma mesma área da realidade.
Ex.: campo lexical de escola: aula, aluno, professor, ensinar, aprender, aprovado, reprovado.
O que é?
Gramática
(cont.)
20
8.2 O que é um campo semântico de uma palavra?
Um campo semântico de uma palavra consiste no conjunto de significados que ela pode ter em
diversos contextos.
Exs.: campo semântico da palavra cabeça:
1) O ciclista vai na cabeça do pelotão. (à frente, na dianteira)
2) Já não tenho cabeça para decorar todos estes números. (capacidade)
3) Concentra-te: estás sempre com a cabeça noutro lado. (pensamento)
4) Na compra da casa, exigiram-me os juros à cabeça. (adiantados)
5) Não sei esses números de cabeça. (de cor/de memória)
9. Processos irregulares de formação de palavras
9.1 O que é a extensão semântica?
É um processo irregular de palavras em que se atribui um significado diferente a palavras já
existentes na língua.
Exs.: 1) rato (animal roedor) / rato (periférico de computador)
2) janela (de uma casa) / janela (caixa de diálogo / informativa) de programa informático
9.2 O que é o empréstimo?
É um processo em que uma palavra de uma língua é adotada por outra.
Ex.: as palavras inglesas online e marketing foram adotadas pelos falantes do português e utili-
zadas na comunicação.
9.3 O que é a amálgama?
É um processo através do qual se forma uma nova palavra pela junção de partes de palavras
diferentes.
Ex.: A palavra informática resulta da junção dos elementos destacados das palavras infor-
mação+automática.
9.4 O que é a sigla?
É uma palavra que resulta das letras iniciais de um grupo de palavras. Essas iniciais são pronun-
ciadas separadamente.
Exs.: 1) PSP
2) GNR
9.5 O que é o acrónimo?
É um processo que dá origem a uma palavra formada por letra ou letras iniciais de um conjunto
de palavras, e que se pronuncia como uma palavra.
Exs.: 1) SIDA (Síndroma da Imuno-Deficiência Adquirida)
2) FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique)
9.6 O que é a truncação?
É um processo que consiste na redução de palavras mais extensas delas resultando outras de
menor extensão.
Ex.: A palavra metro formou-se pela redução da palavra metropolitano.
B.
21
1. No século XVI, principalmente nas três primeiras décadas, aproximadamente, o Papado foi marcado
por grandes escândalos de natureza política, militar, financeira, etc., que provocaram a reação de
alguns teólogos contra essa situação. O mais famoso foi Martinho Lutero.
2. Uma das críticas mais contundentes que se fazia ao Papado romano tinha a ver com a chamada
questão das indulgências, que consistia, basicamente, no facto de o Papado perdoar pecados a quem
os podia remir com dinheiro. Esta situação era intolerável para Lutero e outros teólogos: consideravam
que o Papado pecava fortemente com estas práticas.
3. Mas com outras também: escândalos muito fortes, de natureza vária, como referido em 1.,
abalavam o Papado; mas mais grave ainda era o facto de vários Papas terem uma vida escandalosa
em nada condizente com os votos de castidade, pobreza e humildade a que se tinham submetido.
4. Devido ao seu poder político e militar, o Papado envolveu-se em várias guerras, que veio a perder,
e que terminaram com o famoso saque de Roma, em 1527: Roma foi invadida e saqueada por cristãos,
com o apoio de Lutero, o que marcou negativamente de forma indelével a cristandade desses tempos.
5. A partir daqui o caminho estava aberto para a cisão entre os cristãos, o que aconteceria pouco
depois com o aparecimento de vários movimentos reformistas e de protesto contra Roma, de natureza
religiosa ou teológica, como os luteranos, os calvinistas, os anglicanos, etc.: a Reforma Protestante.
6. Quando Roma entra em cena, no Auto da Feira, o público reconhece-a como a personagem
alegórica que é pecadora, habitual cliente do Diabo – como ela própria admite. Os seus erros – as
indulgências, por exemplo – são referidos no auto. E o público reconhecer-se-ia também, por certo, nas
admoestações e fortes censuras a ela dirigidas pelo Tempo e por Mercúrio. Afinal, a Reforma estava
perto…
A crise do Papado: o saque de Roma, a questão
das indulgências, o anúncio da Reforma
A leitura do Auto da Feira pressupõe que conheças alguns factos relativos à história do cristianis-
mo, nomeadamente no século XVI, para melhor compreenderes a luta alegórica nele presente. Assim,
apresentamos-te as seguintes informações:
Gil Vicente,
Auto da Feira
22
Gil Vicente, Auto da Feira
É o anjo enviado por Deus a pedido do Tempo para o assessorar nas trocas dos «remédios» que se
encontram na tenda.
O que o Tempo troca precisa de tempo para ser trocado: a paz, os remédios contra as adversidades
e a Fortuna, o temor de Deus, as virtudes – tudo se achará na tenda do Tempo.
Aparece com uma tendinha de vendedor ambulante, na qual põe à disposição dos compradores toda
a espécie de coisas vis e, por isso, não tem dúvidas de que não terá rival nas vendas. Ofende-se quando
o Serafim pretende expulsá-lo da feira porque, como diz, quem lhe compra fá-lo por livre vontade: ele não
força ninguém.
Personagem alegórica, atormentada pela falta de respeito de que é vítima, vem à feira comprar «paz,
verdade e fé», mas falta-lhe «santa vida» para dar em troca. Ainda tenta comprá-las com «perdões»,
«estações» e «jubileus», mas é severamente repreendida pelo Serafim e por Mercúrio.
Vêm juntos à feira.
Casado com Branca Anes, «a brava», Denis queixa-se dos maus tratos que ela lhe dá e, por isso, pretende
vendê-la na feira.
Casado com Marta Dias, «a mansa», Amâncio lamenta-se da mulher desajeitada que tem.
Mulheres dos anteriores, vêm juntas à feira.
Branca, casada com Amâncio, queixa-se de maus hábitos do marido.
Ambas demonstram, falando com o Serafim, desinteresse pela transcendência religiosa, centrando-se nos
seus interesses materiais.
Evidenciam, em geral, um comportamento coletivo, na medida em que atuam como grupo: organizam-se
para enganar o Serafim através da informação de Gilberto (vêm «folgar» e não feirar); resistem aos
avanços dos «compradores» Mateus e Vicente; recusam em coro comprar «virtudes» porque não
proporcionam bons casamentos; cantam em coro à Virgem.
Interessam-se por aquilo que as moças do lugar têm para «vender». Desenvolvem com elas diálogos
equívocos cheios de sugestões eróticas. De facto, vêm a «amores» e não às compras. Por isso se dirigem à
Ribeira, a outra feira.
Mercúrio
Serafim
Tempo
Diabo
Roma
Denis
e Amâncio
Branca Anes
e Marta Dias
Nove moças
e três
mancebos
Vicente
e Mateus
1. Caracterização das personagens e relações entre as personagens
2. A representação do quotidiano
O Auto da Feira permite o conhecimento de aspetos da vida quotidiana do povo no século XVI, como, por exemplo:
a crença generalizada na astrologia – denunciada por Mercúrio no seu monólogo inicial;
a indicação de mercadorias procuradas por determinadas pessoas ou grupos sociais nas feiras: cartas de jogar,
espelhos,unguentos–nãosóparatratardasaúde,masaindacompretensospoderesmágicos–,joias,vestuário,etc.;
a feira como lugar de encontro para negociar, mas também para falar com os amigos, desabafar, falar do trabalho
rural, da vida familiar, procurar amores…
a ignorância religiosa/teológica das camadas populares.
A representação do quotidiano passa ainda pelo facto de o Auto da Feira mostrar como as tensões religiosas de índole
teológica que grassavam na Europa e conduziram à Reforma estavam bem presentes em Portugal, nomeadamente no
público cortesão – nobreza e clero – que assistia ao auto naquele dia de Natal de 1527…
Define-se como «senhor / de muitas sabedorias, / e das moedas reitor,», vv. 162-164 (página 29). É, na
mitologia romana, o mensageiro dos deuses e o deus do comércio, o que faz dele um hábil negociador –
como também se define. Ridiculariza a astrologia, referindo os vários signos do Zodíaco e a sua inutilidade:
em nada influenciam a vida das pessoas.
23
3. A dimensão religiosa
Apesar da ignorância de natureza teológica que se verifica nos elementos populares presentes no Auto da Feira, este
revela modos de viver a prática religiosa por parte do povo:
a crença e o medo ao Diabo e ao Inferno;
o temor de Deus, da «ira do senhor dos céus», isto é, do castigo divino – típica da mentalidade medieval.
Mas o auto é ainda, e principalmente, lugar de crítica ao clero e ao Papado num tempo em que na Europa se anunciava
a Reforma. Essa necessidade de reforma, de mudança, de conversão por parte do cristianismo está bem presente no Auto
da Feira quando:
Mercúrio ataca «clérigos e frades» que só pensam em enriquecer, deixando de ter «ao céu respeito»;
o Tempo denuncia as dissensões e as guerras entre cristãos;
o Tempo lembra que por todo o lado se perdeu o «temor de Deus»;
o Serafim convoca para a feira os «papas adormidos»;
o Serafim insta a hierarquia cristã a mudar de roupa, usando as vestes simples dos primeiros «pastores» – modo
metafórico de apelar à reforma.
Contudo, é com a entrada em cena de Roma que a dimensão religiosa ocupa verdadeiramente o lugar central no
espetáculo – desde logo numa perspetiva de reforma. Roma apresenta-se como querendo trocar a mentira e o engano
outrora adquiridos ao Diabo, e em que tem vivido por «paz, verdade e fé» – num projeto de conversão. No diálogo com o
Serafim, a dimensão religiosa acentua-se quando:
o Serafim adverte Roma de que não respeita o «poder profundo» de Deus – daí as guerras em que se envolveu
e que perdeu;
Mercúrio acusa Roma de ser pecaminosa, referindo-se ao escandaloso pagamento dos pecados através das
indulgências, do dinheiro que tudo redime;
Mercúrio aconselha Roma a mudar de vida, apresentando Nossa Senhora como exemplo de virtude a seguir;

Mercúrio insta Roma a fazer um exame de consciência para verificar que o erro está nela e que não deve ser a
outrem atribuído,erro esse que consiste em ter-se esquecido de Deus, o «poder primeiro»: a ele deve regressar.
4. A representação alegórica
A representação no Auto da Feira é alegórica no sentido em que se trata de uma representação do mundo apresentada
através de uma série de figuras alegóricas relacionadas entre si. Este tipo de representação, típico do teatro medieval,
consiste em apresentar figuras ou personagens cuja natureza é simbólica ou metafórica: o espetador reconhecia
imediatamente a presença do Mal em palco logo que o Diabo entrava. No Auto da Feira lutam o Bem (alegorizado no
Tempo e no Anjo que o acompanha, o Serafim) e o Mal (alegorizado no Diabo).
A crise em que vivia o Papado está alegorizada em Roma, figura que se apresenta ligada ao Mal e a quem o Tempo
e Mercúrio avisam que tem de mudar em direção ao Bem.
Gil Vicente, Auto da Feira
24
Em Gil Vicente, nomeadamente, a designação de Auto aplica-se indiscriminadamente a qualquer tipo de
composição dramática, independentemente do seu tema, da sua extensão e da sua estrutura.
José Augusto Cardoso Bernardes, «Auto», in Biblos – Enciclopédia Verbo das literaturas de língua portuguesa,
Lisboa / São Paulo, Verbo, 1995, vol. I, coluna 455.
(Texto adaptado)
O Auto da Feira é uma alegoria (ou seja, representação simbólica) do mundo e da luta incessante que nele
ocorre entre o Bem e o Mal. Essa luta é transmitida através de um espetáculo de figuras alegóricas, figuras
que se podem considerar uma espécie de metáforas ou mesmo de símbolos. Para a representação alegórica
desta luta são figuras centrais o Tempo e o Serafim (alegorias do Bem), o Diabo (alegoria do Mal) e Roma
(alegoria do Papado em forte crise – dominado pelo Mal). O espetador entendia deste modo o espetáculo do
mundo que, de forma artística, indireta, metafórica, simbólica, isto é, alegórica, passava diante de si.
Moralidade composta por Gil Vicente «nas matinas do Natal», cerca de 1527. O autor representa o mundo sob
a forma duma feira em que os principais vendedores são um Serafim e o Diabo. O primeiro freguês é nem mais
nem menos que Roma, símbolo do Papado. A violência do ataque vicentino à cúria romana surpreende-nos,
tendo em atenção a data aproximada do auto. As outras personagens (maridos e mulheres queixosos dos
respetivos cônjuges, campónios e camponesas, as quais oferecem as suas mercadorias a dois compradores
que lhes fazem a corte) exprimem igual desprezo pelas virtudes que o Serafim vende. O auto acaba com uma
cantiga entoada pelas camponesas em louvor da Natividade.
I. S. R., «Auto da Feira», in Jacinto do Prado Coelho (Dir.), Dicionário de literatura, Porto, Figueirinhas, 1987, vol. I, p. 76.
(Texto adaptado)
Auto
Auto
da Feira –
uma alegoria,
um auto
alegórico
Auto
da Feira
Auto da Feira – Estrutura II
1. Mercúrio
Monólogo de Mercúrio:
• crítica satírica à astrologia e à presunção humana;
• anúncio de abertura de uma feira em dia de Natal.
2. A Feira
2.1 Roma
• o Tempo monta a sua tenda e anuncia os muitos produtos que vende; o Serafim vem ajudá-lo;
• o Diabo anuncia os produtos à venda na sua «tendinha»;
• Roma visita a Feira e é avisada de que tem de mudar de vida.
2.2 Os dois casais
• dois casais visitam a feira com a intenção de se libertarem dos respetivos cônjuges.
2.3 Os pastores
• um grupo de pastores visita a feira com intenção de se divertir em dia de Nossa Senhora.
Auto da Feira – Estrutura I
[…] Auto da Feira, cuja ação aparece disposta em forma de políptico1
, construído a partir da alegoria de uma fei-
ra de virtudes, instalada em noite de Natal. Temos primeiro Mercúrio («reitor das moedas») que, num dos monólo-
gos mais desenvolvido das moralidades vicentinas, satiriza a astrologia e, através dela, a presunção humana, em ge-
ral; a feira, onde pontificam os convencionais mercadores do Bem (o Anjo) e do Mal (o Diabo), é primeiro visitada por Roma,
que a ela acorre em busca da «paz dos céus»; mas só a troco de «santa vida» (que não tem) esta lhe poderá ser dada;
vêm a seguir dois compadres e duas comadres, casados entre si, na disposição vã de se livrarem dos respetivos consortes.
E vem depois um grupo de pastores (rapazes e raparigas), em adequação à circunstância natalícia do auto: estes, porém,
não necessitam de comprar mercadorias e, por isso, revelam-se imunes aos oferecimentos que lhes fazem na tenda do Diabo;
mas também não lhes interessam os produtos do Serafim, uma vez que tudo aquilo de que necessitam lhes é gratuitamente
disponibilizado pela Virgem (patrona da feira).
José Augusto Cardoso Bernardes, «VICENTE (Gil)», in Biblos – Enciclopédia Verbo das literaturas de língua portuguesa,
Lisboa / São Paulo, Verbo, 2005, vol. V, colunas 816 e 817.
Auto da Feira – Natureza da obra (um auto alegórico)
1
conjunto de quatro ou mais quadros independentes entre si, mas subordinados a um só tema
25
Nota
As informações sobre o vocabu-
lário e outros aspetos essenciais
à compreensão do texto, que apa-
recem em notas, foram retira-
das da edição referida, e ainda de
Auto da Feira de Gil Vicente,
Lisboa, Publicações Dom Quixo-
te, 1989. (Introdução e edição in-
terpretativa do Professor Luís F.
Lindley Cintra).
Mer. Pera que me conheçais,
e entendais meus partidos2
,
todos quantos aqui estais
afinai bem os sentidos,
mais que nunca, muito mais.
Eu sou estrela do céo,
e despois vos direi qual,
e quem me cá descendeo3
,
e a quê 4
,e todo o al5
que me a mi aconteceo.
E porque a estronomia6
anda agora mui maneira7
,
mal sabida e lisonjeira,
eu, à honra8
deste dia9
,
vos direi a verdadeira.
Muitos presumem10
saber
as operações dos céos,
e que morte hão-de morrer,
e o que há-de acontecer
aos anjos e a Deos,
e ao mundo e ao diabo.
E que o sabem têm por fé.
E eles todos em cabo
terão um cão polo rabo11
,
e não sabem cujo é12
.
E cada um sabe o que monta13
nas estrelas que olhou;
e ao moço que mandou,
não lhe sabe tomar conta
d’um vintém que lh’entregou14
.
Porém15
quero-vos pregar,
sem mentiras nem cautelas,
o que per curso d’estrelas
se poderá adivinhar,
pois no céo nasci com elas.
E se Francisco de Melo16
,
que sabe ciência avondo17
,
diz que o céo é redondo,
e o sol sobre amarelo,
diz verdade, não lh’o escondo.
-
-
-
-
5
-
-
-
-
10
-
-
-
-
15
-
-
-
-
20
Auto da Feira
Gil Vicente, «Auto da Feira», in Teatro de Gil Vicente, Lisboa, Dinalivro, 1988, pp. 265 a 299.
(Apresentação e leitura de António José Saraiva)
4
Figuras: Mercúrio1
, Tempo, Serafim, Diabo, Roma, Amâncio Vaz, Denis Lourenço, Branca
Anes, Marta Dias, Tesaura, Juliana, Dorotea, Móneca, Gilberto, Nabor, Mateus, Justina, Vicente,
Leonarda, Merenciana, Teodora e Giralda.
1
Mercúrio é o astro da
mediação, o astro mensageiro
por excelência. No auto, é
enviado por Deus à Terra,
como mensageiro, mas
fundamentalmente na função
de deus do comércio, hábil
negociador; 2
intenções;
3
enviou, fez descer do Céu;
4
e com que fim; 5
e tudo o
resto; 6
deve ler-se aqui não a
astronomia, uma ciência, mas
a astrologia, uma crença sem
bases científicas; 7
anda na
moda; 8
em honra; 9
o dia de
Natal; 10
pretendem; 11
terão
um cão atrás deles;
12
de quem é; 13
o que
interessa; 14
estes versos
constituem uma crítica
aos que pretendem ter
conhecimentos de astrologia
e que acreditam nesta crença;
a ironia está neles bem
presente, como nos que se
lhes seguem; 15
por isso;
16
matemático e astrólogo
muito conceituado que se
dedicava à astrologia, como
era comum na época;
17
sabe muita ciência
-
-
-
-
25
-
-
-
-
30
-
-
-
-
35
-
-
-
-
40
Entra primeiramente Mercúrio, e posto em seu assento, diz:
Monólogo de Mercúrio,
deus dos comerciantes (ou feirantes)
4
Gil Vicente, Auto da Feira
26
Que se o céo fora quadrado,
não fora redondo, senhor.
E se o sol fora azulado,
d’azul fora a sua cor,
e não fora assi dourado.
E porque está governado
per seus cursos naturais,
neste mundo onde morais
nenhum homem aleijado,
se for manco e corcovado,
não corre por isso mais18
.
E assi os corpos celestes
vos trazem tão compassados,
que todos quantos nacestes,
se nacestes e crecestes,
primeiro fostes gerados.
E que fazem os poderes
dos sinos19
resplandecentes?
Fazem que todalas gentes
ou são homens ou mulheres
ou crianças inocentes20
.
E porque Saturno a nenhum
influi21
vida contina22
,
a morte de cada um
é aquela de que se fina23
,
e não d’outro mal nenhum.
Outrossi24
o terremoto,
que às vezes causa perigo,
faz fazer ao morto voto
de não bulir mais consigo,
cantá de seu próprio moto25
.
E a claridade encendida
dos raios piramidais26
causa sempre nesta vida
que quando a vista é perdida,
os olhos são por demais27
.
E que mais quereis saber,
desses temporais e disso,
senão que, se quer chover,
está o céo pera isso,
e a terra pera a receber?
A lua tem este jeito:
vê que clérigos e frades
já não têm ao Céo respeito,
mingua-lhes as santidades,
e crece-lhes o proveito28
.
EtquantumadstellaMars,speculumbelli,etVenus,
Regina musicae, secundum Joannes Monteregio29
:
Mars, planeta dos soldados,
faz nas guerras conteúdas30
,
em que os reis são ocupados,
que morrem de homens barbados
mais que mulheres barbudas.
E quando Vénus declina31
,
e retrograda32
em seu cargo,
não se paga o desembargo
no dia que s’ele assina,
mas antes per tempo largo.
Et quantum ad Taurus et Aries, Cancer, Capricor-
nius positus in firmamento coeli33
:
E quanto ao Touro e Carneiro,
são tão maus d’haver agora,
que quando os põe no madeiro,
chama o povo ao carniceiro
«senhor», c’os barretes fora34
.
Depois do povo agravado,
que já mais fazer não pode,
invoca o sino do Bode,
Capricórnio chamado,
porque Libra não lhe acode35
.
Vocabulário
18
note-se a ironia presente em todos estes versos; 19
signos do Zodíaco – a astrologia, por associação; 20
a vacuidade da astrologia está bem presente nestes
versos; 21
dá; 22
eterna; 23
de que morre; 24
também; 25
de notar o tom jocoso destes versos [Lindley Cintra]: o cadáver enterrado move-se se houver um
terramoto e promete a si mesmo não se mexer mais… 26
a luz dos astros; 27
estes e outros versos de cariz irónico estão ao serviço da denúncia jocosa da as-
trologia; neste caso concreto podem significar uma verdade evidente, apresentada como chacota: quem é cego nada vê… 28
trata-se, nas palavras de Lindley
Cintra, «do primeiro ataque direto do autor ao clero corrupto da época»; note-se a antítese entre o que lhe falta, a santidade, e o que lhe sobra, o «proveito»,
a riqueza; 29
e quanto à estrela Marte [o planeta brilhante era considerado uma estrela], espelho da guerra [Marte era o deus da guerra], e a Vénus, rainha da
música, segundo João Monterregio, um célebre astrónomo alemão; 30
guerras contínuas; 31
quando o planeta Vénus desce, no seu movimento; o autor, neste
e noutros versos, estabelece associações de natureza astrológica entre movimentos dos astros e acontecimentos terrestres – sempre com intenção crítica e
de denúncia nos últimos; 32
recua; 33
e quanto ao Touro, Carneiro, Caranguejo e Capricórnio, [quatro importantes constelações para os astrólogos] postos no
firmamento do céu; 34
o conjunto dos versos 97 a 101 pode ser lido deste modo [Lindley Cintra]: como atualmente, «agora», é muito difícil conseguir comprar
carne de touro e de carneiro, quando o talhante as apresenta para venda, o povo tira o barrete em sinal de respeito; continua aqui a chacota a propósito das
crenças astrológicas – na referência às carnes de animais que deram nome a constelações que os astrólogos queriam influir sobre as pessoas, sobre o seu
destino… 35
a irrisão sobre as crenças astrológicas continua nestes versos: o povo «agravado», pobre, não consegue dinheiro, moeda, «Libra», nome de uma
constelação, para comprar a carne do «bode», chamado Capricórnio – nome de outra constelação
-
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-
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45
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50
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55
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60
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65
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70
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75
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80
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85
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90
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-
-
95
-
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-
-
100
-
-
-
-
105
-
27
E se este não hás tomado,
nem touro, carneiro assi,
vai-te ao sino do pescado,
chamado Piscis em latim,
e serás remediado36
.
E se piscis não tem ensejo37
,
porque pode não no haver,
vai-te ao sino38
do Cranguejo,
Signum39
Cancer40
, Ribatejo,
que está ali a quem no quer41
.
Sequuntur mirabilia Jupiter, Rex regum, dominus
dominantium42
.
Júpiter, rei das estrelas,
deos das pedras preciosas,
mui mais precioso qu’elas,
pintor de todalas rosas,
rosa mais fermosa delas;
é tão alto seu reinado,
influência e senhoria,
que faz per curso ordenado
que tanto val um cruzado
de noite como de dia43
.
E faz que ~
ua nao veleira
mui forte, muito segura,
que inda que o mar não queira,
e seja de cedro a madeira,
não preste sem pregadura44
.
Et quantum ad duodecim domus Zodiacus,
sequitur declaratio operationem suam45
.
No Zodíaco acharão
doze moradas palhaças46
,
onde os sinos47
estão
no inverno e no verão,
dando a Deos infindas graças.
Escutai bem, não durmais,
sabereis per conjeituras
que os corpos celestiais
não são menos nem são mais
que suas mesmas granduras48
.
E os que se desvelaram,
se das estrelas souberam,
foi que a estrela que olharam,
está onde a puseram,
e faz o que lhe mandaram.
E cuidam que Ursa maior,
Ursa minor e o Dragão,
e Lepus, que tem paixão49
,
porque um corregedor
manda enforcar um ladrão?
Não, porque as constelações
não alcançam mais poderes,
que fazer que os ladrões
sejam filhos de mulheres,
e os mesmos50
pais varões51
.
E aqui quero acabar.
E pois vos disse até ’qui
o que se pode alcançar,
quero-vos dizer de mi,
e o que venho buscar.
Vocabulário
36
estes versos continuam a «jogar» com nomes de constelações, através de trocadilhos entre esses nomes e determinados alimentos – tudo
como forma de criticar a astrologia, de a ridicularizar: se não consegues comer touro ou comer carneiro, come peixe; 37
se não consegues ma-
tar a fome com peixe; 38
signo (do Zodíaco); 39
signo (do Zodíaco); 40
signo representado por um caranguejo, a forma da constelação; 41
e
se não conseguir peixe, coma caranguejo, encontra-o no Ribatejo; 42
seguem-se as maravilhas de Júpiter, rei dos reis, senhor das dominações;
43
note-se a jocosidade na referência a Júpiter e a quem acredita na astrologia – que diz ser ele poderosíssimo: o que o poder dele consegue é que
um cruzado, uma moeda, valha o mesmo de dia e de noite! A referência à influência de Júpiter está na expressão «faz percurso ordenado»: o curso
de Júpiter influenciaria os humanos – para os astrólogos; 44
não preste sem que os pregos preguem a madeira; 45
e quanto às doze casas do Zodíaco
segue-se a declaração/explicação da sua forma de trabalhar; 46
doze casas feitas de palha: regressa a chacota – sugestiva da vacuidade da crença
astrológica, de palha…; 47
signos; 48
grandezas; 49
têm pena; 50
os seus – dos ladrões; 51
as constelações mais não podem do que fazer que os ladrões
sejam filhos de homens e de mulheres: sempre a crítica à crença astrológica
-
-
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110
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115
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120
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155
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-
160
-
Gil Vicente, Auto da Feira
28
52
sou
53
governador
54
negócios
55
pagamentos
Eu são52
Mercúrio, senhor
de muitas sabedorias,
e das moedas reitor53
,
e deos das mercadorias:
nestas tenho meu vigor.
Todos tratos54
e contratos,
valias, preços, avenças55
,
carestias e baratos,
ministro suas pretenças,
até as compras dos sapatos.
E porquanto nunca vi
na corte de Portugal
feira em dia de Natal,
ordeno ~
ua feira aqui
pera todos em geral.
Faço mercador-mor
ao Tempo, que aqui vem,
e assi o hei por bem.
E não falte comprador,
porque o Tempo tudo tem.
Educação literária
1. Atenta no início do monólogo de Mercúrio.
1.1 Indica, justificando, a quem se refere Mercúrio entre os vv. 16-20.
1.2 Explica de que modo ele ridiculariza seguidamente – vv. 21-40 – essas
pessoas.
2. Tem em atenção a pergunta que Mercúrio faz nos vv. 57-58.
2.1 Explica a sua função.
3. Tem em atenção os vv. 82-86.
3.1 Identifica quem é criticado.
3.2 Explicita os motivos da crítica.
-
-
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165
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170
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175
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180
-
Tem em atenção os seguintes vv. 117-121:
«Júpiter, rei das estrelas,
deos das pedras preciosas,
mui mais precioso qu’elas,
pintor de todalas rosas,
rosa mais fermosa delas;»
Apresentam uma sucessão de atributos do planeta Júpiter sob a forma de metáforas:
 rei das estrelas, v. 117;
 deus das pedras preciosas, v. 118;
 pedra mais preciosa do que qualquer pedra preciosa, v. 119;
 pintor de todas as rosas, v. 120;
 rosa mais formosa do que qualquer rosa, v. 121.
Esta sucessão metáforas constitui um recurso expressivo chamado alegoria: Júpiter é
representado alegoricamente, através dos seus atributos metaforizados.
29
EntraoTempo,earma~
uatendacommuitascousas,
e diz:
Tem. Em nome daquele que rege nas praças
d’ Anvers e Medina as feiras que têm1
,
começa-se a feira chamada das Graças,
à honra da Virgem parida em Belém2
.
Quem quiser feirar,
venha trocar, qu’eu não hei-de vender3
.
Todas virtudes qu’ houverem mister4
,
nesta minha tenda as podem achar,
a troco de cousas que hão-de trazer.
Todos remédios especialmente
contra fortunas ou adversidades
aqui se vendem na tenda presente,
conselhos maduros de sãs calidades.
Aqui se acharão
a mercadoria d’amor e rezão,
justiça e verdade, a paz desejada5
,
porque a Cristandade é toda gastada
só em serviço da openião6
.
Aqui achareis o temor de Deos7
,
que é já perdido em todos estados;
aqui achareis as chaves dos Céos,
muito bem guarnecidas em cordões dourados.
E mais achareis
soma8
de contas, todas de contar
quão poucas e poucos haveis de lograr
as feiras mundanas; e mais contareis
as contas sem conto qu’estão por contar9
.
Eporqueasvirtudes,senhorDeos,quedigo10
,
se foram perdendo de dias em dias,
com a vontade que deste ò Messias11
memoria o teu anjo12
que ande comigo13
,
Senhor, porque temo
ser esta feira de maos compradores,
porque agora os mais sabedores
fazem as compras na feira do Demo14
,
e os mesmos15
diabos são seus corretores16
.
Vocabulário
1
em Anvers (Antuérpia, Flandres) e Medina del Campo (Castela) tinham lugar feiras muito importantes; os dois versos são perífrase de
Mercúrio; 2
o auto representou-se no dia de Natal de 1527; 3
o Tempo diz que só aceita trocas de bens, nunca dinheiro para adquirir algum
bem; 4
necessidade; 5
trata-se de uma «alusão direta» [Lindley Cintra] às guerras várias que iam decorrendo na Europa entre reinos cristãos,
das quais o mais famoso e traumatizante episódio foi o saque de Roma, em maio de 1527, no mesmo ano da primeira representação deste
auto; 6
os cristãos europeus andam em contínua guerra; 7
temor ao castigo de Deus; 8
muitas; 9
as «contas» referidas nestes versos são as
contas a dar a Deus à hora da morte – pelos muitos pecados cometidos; 10
as virtudes que indiquei antes; 11
com a mesma vontade com que
enviaste o Messias à Terra; o Tempo dirige-se a Deus, que enviou o seu filho Jesus, o Messias, para salvação do género humano; 12
lembra
ao teu anjo; 13
que me proteja; 14
diabo; 15
próprios; 16
os aconselham, aos «mais sabedores»
-
-
-
-
5
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10
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15
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-
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30
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-
-
35
-
Gil Vicente, Auto da Feira
30
Vocabulário
17
o anjo pedido («a petição») pelo Tempo a Deus; 18
neste verso e nos quatro anteriores, Gil Vicente faz uma forte crítica à igreja, num tempo em
que os cristãos se preparavam para a divisão entre católicos e protestantes, o tempo da Reforma; o Serafim invetiva os «papas adormidos», isto
é, o papado que não cumpria o seu dever, e pede que se vistam como os «antecessores», modo metafórico de lhes dizer que deveriam recuperar
as virtudes dos primeiros cristãos; 19
mudai a vida de luxo em que viveis; 20
os Papas; o «crucificado» é Jesus Cristo, fundador do cristianismo;
21
poderoso; 22
temei; 23
quantidade; 24
vendedor ambulante; 25
gabar; 26
quem me queira comprar do que vendo; 27
imposto; 28
negócios; 29
quero-me
apresentar; 30
impede; 31
falando com tua licença, isto é, permite-me que te diga
Entra um Serafim17
enviado por Deos a petição do Tempo,
e diz:
Ser. À feira, à feira, igrejas, mosteiros,
pastores das almas, Papas adormidos!
Comprai aqui panos, mudai os vestidos,
buscai as çamarras dos outros primeiros,
os antecessores18
.
Feirai o carão que trazeis dourado19
,
ó presidentes do Crucificado20
!
Lembrai-vos da vida dos santos pastores
do tempo passado.
Ó Príncipes altos, império facundo21
,
guardai-vos22
da ira do Senhor dos Céos!
Comprai grande soma23
do temor de Deos
na feira da Virgem, Senhora do mundo,
exemplo da paz,
pastora dos anjos, luz das estrelas.
À feira da Virgem, donas e donzelas,
porque este mercador sabei que aqui traz
as cousas mais belas!
Entra um Diabo com ~
ua tendinha diante de si,
como bofolinheiro24
, e diz:
Dia. Eu bem me posso gavar25
,
e cada vez que quiser,
que na feira onde eu entrar
sempre tenho que vender ,
e acho quem me comprar26
.
E mais vendo muito bem,
porque sei bem o que entendo;
e de tudo quanto vendo
não pago sisa27
a ninguém
por tratos28
que ande fazendo.
Quero-me fazer à vela29
nesta santa feira nova.
Verei os que vêm a ela,
e mais verei quem m’estrova30
de ser eu o maior dela.
Tem. És tu também mercador,
que a tal feira t’ofereces?
Dia. Eu não sei se me conheces?…
Tem. Falando com salvanor31
,
tu diabo me pareces.
-
-
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40
-
-
-
-
45
-
-
-
-
50
-
-
-
-
55
-
-
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-
60
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-
65
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-
-
70
-
-
-
-
31
Dia. Falando com salvos rabos32
,
inda que me tens por vil,
acharás homens cem mil
honrados, que são diabos,
que eu não tenho nem ceitil33
.
E bem honrados, te digo,
e homens de muita renda34
,
que tem dívedo35
comigo.
Pois36
não me tolhas37
a venda,
que não hei nada contigo38
.
Tempo (ao Serafim):
Tem. Senhor, em toda maneira
acudi a este ladrão,
que há-de danar39
a feira.
Dia. Ladrão? Pois haj’eu perdão,
se vos meter em canseira!
Olhai cá, anjo de bem:
eu, como cousa perdida,
nunca me tolhe ninguém
que não ganhe minha vida,
como quem vida não tem40
.
Vendo dessa marmelada,
e às vezes grãos torrados.
Isto não releva nada;
e em todolos mercados
entra a minha quintalada41
.
Ser. Muito bem sabemos nós
que vendes tu cousas vis…
Dia. I há de homens ruins
mais mil vezes que não bôs,
como vós mui bem sentis42
.
E estes43
hão-de comprar
disto que trago a vender,
que são artes de enganar,
e cousas pera esquecer
o que deviam lembrar.
Que44
o sages mercador45
há-de levar ao mercado
o que lhe compram milhor;
porque a ruim comprador
levar-lhe ruim borcado46
.
E mais47
as boas pessoas
são todas pobres a eito;
e eu por este respeito
nunca trato em cousas boas,
porque não trazem proveito48
.
Toda a glória de viver
das gentes é ter dinheiro,
e quem muito quiser ter
cumpre-lhe49
de ser primeiro
o mais ruim que puder.
E pois são desta maneira
os contratos50
dos mortais,
não me lanceis51
vós da feira
onde eu hei-de vender mais
que todos, à derradeira52
.
Vocabulário
32
a expressão «salvos rabos» está relacionada com «salvanor»: é uma
espécie de trocadilho; 33
moeda de fraco valor; 34
muito dinheiro;
35
têm parentesco comigo; 36
portanto; 37
impeças; 38
não tenho nada a
ver contigo; 39
condenar; 40
o sentido destes versos e dos anteriores é o
seguinte: sou um diabo, portanto não tenho vida, sou «cousa perdida»;
ninguém me impede nunca de ganhar a minha vida, como ninguém impede
quem é muito pobre de o fazer, quem não tem vida por ser assim pobre
[Lindley Cintra]; 41
mercadoria; 42
os homens maus são muito mais do que
os bons, como bem sabeis; 43
os homens maus; 44
porque; 45
o mercador
habilidoso; 46
enquanto mercador esperto, o Diabo, sabendo que os maus
são muito mais do que os bons, leva como mercadoria o que sabe que
venderá, dada a qualidade da clientela: patifarias, etc. – «ruim borcado»;
47
além disso; 48
como os bons são pobres, não têm dinheiro para gastar,
o Diabo nada de bom leva para a feira; 49
deve: uma vez que a grande
«glória» da vida é ter dinheiro e que os maus o têm, quem quiser ser rico
tem de ser mau; 50
a mentalidade; 51
expulseis; 52
quando as contas finais
da feira se fizerem, ver-se-á que foi o Diabo quem mais vendeu
75
-
-
-
-
80
-
-
-
-
85
-
-
-
-
90
-
-
-
-
95
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-
-
-
100
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-
-
-
105
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-
-
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110
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-
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115
-
-
-
-
120
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-
-
-
125
-
-
-
-
Gil Vicente, Auto da Feira
32
Ser. Venderás muito perigo,
que tens nas trevas escuras53
.
Dia. Eu vendo prefumaduras54
,
que, pondo-as no embigo,
se salvam as criaturas.
Às vezes vendo virotes55
,
e trago d’Andaluzia
naipes56
com que os sacerdotes
arreneguem cada dia,
e joguem até os pelotes.
Ser. Não venderás tu aqui isso,
que esta feira é dos céos:
vai lá vender ao abisso57
,
logo58
, da parte59
de Deos.
Dia. Senhor, apelo60
eu disso!
Se eu fosse tão mao rapaz,
que fizesse força61
a alguém,
era isso muito bem;
mas cada um veja o que faz,
porque eu não forço ninguém.
Se me vem comprar qualquer
clérigo, ou leigo, ou frade
falsas manhas de viver,
muito por sua vontade,
senhor, que lhe hei-de fazer62
?
Vocabulário
53
referências aos pecados e ao Inferno; 54
perfumes; 55
tipo de flecha
curta – por associação, a guerra; 56
cartas de jogar; nestes versos, o Diabo
refere o vício do jogo por parte de sacerdotes que chegam ao ponto de
perder até a roupa («pelotes») no jogo e de blasfemarem contra Deus
enquanto jogam («arreneguem»); 57
abismo, o Inferno; 58
já,
imediatamente; 59
por ordem de Deus; 60
o Diabo apela da decisão do
Serafim, isto é, protesta contra ela; 61
que obrigasse; 62
neste verso e
nos anteriores são apresentadas várias críticas a clientes do Diabo –
eclesiásticos e leigos; 63
ser bispo; 64
necessita de ser hipócrita;
65
em concorrência com ele: tanto tem hipocrisia o Diabo como que que
quer chegar a bispo; 66
para; 67
unguento, espécie de remédio – aqui
associado a bruxaria; 68
para escapar ao convento; 69
hei de satisfazê-la;
70
Mercúrio diz ao tempo para se preparar pois Roma vem à feira;
«aparelhar» tem valor imperativo – «Preparai-vos» [Lindley Cintra];
71
preparar; o Diabo diz que está habituado a negociar com Roma: crítica
ao Papado
E se o que quer bispar63
há mister hipocresia64
,
e com ela quer caçar,
tendo eu tanta em perfia65
,
porque lh’a hei-de negar?
E se ~
ua doce freira
vem à feira
por66
comprar um inguento67
,
com que voe do convento68
,
senhor, inda que eu não queira
lhe hei-de dar aviamento69
.
Mer. Alto, Tempo! aparelhar70
,
porque Roma vem à feira.
Dia. Quero-me eu concertar71
,
porque lhe sei a maneira
de seu vender e comprar…
Educação literária
1. O Tempo começa por anunciar determinado tipo de mercadoria na sua tenda.
1.1 Identifica a primeira mercadoria que o Tempo anuncia ter na sua tenda de feirante.
1.2 Apresenta uma justificação plausível, tendo em conta o sentido geral do auto, para o facto de o Tempo procla-
mar que na sua tenda essa mercadoria não pode ser comprada, mas somente trocada.
2. Atenta na referência à «Cristandade» presente no v. 17.
2.1 Explicita-a, tendo em consideração o ambiente de controvérsia religiosa presente na Europa da época.
130
-
-
-
-
135
-
-
-
-
140
-
-
-
-
145
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-
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150
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-
155
-
-
-
-
160
-
-
-
-
165
-
-
-
-
170
33
3. Atenta nos vv. 28-36.
3.1 Indica a quem se dirige neles o Tempo.
3.2 Explicita o seu pedido.
3.3 Justifica-o.
4. O Serafim entra em cena e convoca para a feira determinadas pessoas.
4.1 Identifica-as.
4.2 Explica por que motivo é que o Serafim as chama.
5. Atenta na entrada do Diabo – vv. 55-64.
5.1 Explica por que razão ele entra em cena autoelogiando-se.
6. Tem em atenção as palavras do Diabo nos vv. 120-121: «Toda a glória de viver / das gentes é ter
dinheiro,».
6.1 Apresenta uma opinião pessoal sobre a atualidade destas palavras, justificando.
7. Seleciona a opção correta. O Serafim, para se referir aos perigos do Diabo, usa, no v. 131, «que tens
nas trevas escuras.»,
a. uma personificação.
b. um pleonasmo.
c. uma hipérbole.
d. uma anáfora.
7.1 Justifica, explicitando a sua expressividade literária.
8. Identifica, justificando, os alvos de crítica do Diabo apresentados entre os vv. 135-165.
Nesta secção do auto verificaste que as personagens são o Tempo, o Serafim e o Diabo.
As duas últimas representam, respetivamente, o Bem e o Mal que sempre – no Tempo – coexis-
tiram e entre si lutaram – na natureza humana. Estas não são personagens que correspondam
a pessoas ou a classes sociais, mas sim metáforas do mundo, personagens alegóricas. O seu
conjunto forma uma alegoria, uma representação simbólica do mundo – na eterna luta entre o
Bem e o Mal. Deste modo, o Auto da Feira revela-se como um espetáculo no qual a representa-
ção alegórica assume especial significado.
Gil Vicente, Auto da Feira
34
Entra Roma, cantando:
Rom. Sobre mi armavam guerra1
;
ver quero eu quem a mi leva2
.
Três amigos que eu havia3
,
sobre mi armam prefia4
;
ver quero eu quem a mi leva.
Fala
Vejamos se nesta feira,
que Mercúrio aqui faz,
acharei a vender paz,
que me livre da canseira
em que a fortuna me traz.
Se os meus5
me desbaratam6
,
o meu socorro onde está?
Se os Cristãos mesmos7
me matam,
a vida quem m’a dará,
que todos me desacatam8
?
Pois s’eu aqui não achar
a paz firme e de verdade
na santa feira a comprar,
cant’a mi dá-me a vontade
que mourisco hei-de falar9
.
Dia. Senhora, se vos prouver,
eu vos darei bom recado10
…
Rom. Não pareces tu azado11
pera trazer a vender
o que eu trago no cuidado.
Dia. Não julgueis vós pola cor12
,
porque em al13
vai14
o engano;
ca15
dizem que sob mao pano
está o bom bebedor16
:
nem vós digais mal do ano.
Rom. Eu venho à feira dereita17
comprar Paz, Verdade e Fé.
Dia. A verdade pera quê?
Cousa que não aproveita18
,
e avorrece19
, pera que é?
Não trazeis bôs fundamentos20
pera o que haveis mister21
;
e a segundo são os tempos,
assi hão-de ser os tentos22
,
pera saberdes viver.
E pois agora à Verdade
chamam Maria Peçonha,
e parvoíce à vergonha,
e aviso à ruindade23
,
peitai24
a quem vo-la ponha,
a ruindade, digo eu.
E aconselho-vos mui bem,
porque quem bondade tem
nunca o mundo será seu,
e mil canseiras lhe vêm.
Vender-vos-ei nesta feira
mentiras vinta três mil,
todas de nova maneira,
cada ~
ua tão sutil25
,
que não vivais em canseira:
mentiras pera senhores,
mentiras pera senhoras,
mentiras pera os amores,
mentiras que a todas horas
vos naçam delas favores.
E como formos avindos26
nos preços disto que digo,
vender-vos-ei como amigo
muitos enganos infindos27
,
que aqui trago comigo.
Vocabulário
1
lutavam por minha causa; 2
quero ver quem vence; 3
provavelmente os «três
amigos» eram a França, os estados italianos e Carlos V, que se guerrearam
entre si em lutas que incluíram o saque de Roma; 4
lutam por minha causa;
5
os cristãos: os «três amigos» eram todos cristãos; 6
destroem;
7
os próprios cristãos; 8
tratam mal, faltam-me ao respeito; 9
Roma ameaça
passar a «falar» «mourisco» caso não consiga encontrar à venda a paz
na feira, isto é, Roma como que ameaça mudar de religião, de tal modo é
maltratada pelos cristãos, podendo até associar-se aos muçulmanos;
10
conselho; 11
apropriado; 12
o Diabo devia estar vestido de cor vermelha, a cor
a ele associada; 13
nisso; 14
está; 15
porque; 16
equivalente ao ditado popular
«o hábito não faz o monge»: o Diabo quer dizer que, apesar de estar vestido
de vermelho, isso nada de mau significa; 17
diretamente; 18
não serve para
nada – a verdade; 19
incomoda – a verdade; 20
bons motivos; 21
para aquilo de
que necessitais; 22
cuidados, preocupações; o que o Diabo está a dizer é que
em tempos de mentira não vale a pena comprar a verdade; 23
nestes tempos,
chama-se à «verdade» «peçonha», isto é, veneno; chama-se à «vergonha»
«parvoíce», chama-se à ruindade «aviso», isto é, esperteza; 24
pagai; 25
subtil;
26
logo que cheguemos a acordo nos preços; 27
infinitos
-
-
-
-
5
-
-
-
-
10
-
-
-
-
15
-
-
-
-
20
-
-
-
-
25
-
-
-
-
30
-
-
-
-
35
-
-
-
-
40
-
-
-
-
45
-
-
-
-
50
-
-
-
-
55
-
-
-
-
60
-
-
-
-
65
35
Rom. Tudo isso tu vendias,
e tudo isso feirei28
,
tanto que inda venderei,
e outras sujas mercancias,
que por meu mal te comprei29
.
Porque a troco do amor
de Deos, te comprei mentira,
e a troco do temor
que tinha da sua ira,
me deste o seu desamor.
E a troco da fama minha
e santas prosperidades,
me deste mil torpidades30
.
E quantas virtudes tinha
te troquei polas maldades.
E pois já sei o teu jeito,
quero ir ver que vai cá31
.
Dia. As cousas que vendem lá
são de bem pouco proveito
a quem quer que as comprará…
Vai-se Roma ao Tempo e Mercúrio, e diz:
Rom. Tão honrados mercadores
não podem leixar32
de ter
cousas de grandes primores;
e quanto eu houver mister
deveis vós de ter, senhores.
Ser. Sinal é de boa feira
virem a ela as donas tais33
;
e pois vós sois a primeira,
queremos ver que feirais
segundo vossa maneira.
Ca, se vós a paz quereis,
senhora, sereis servida,
e logo a levareis
a troco de santa vida.
Mas não sei se a trazeis…
Porque, Senhora, eu me fundo34
que quem tem guerra com Deos,
não pode ter paz c’o mundo;
porque tudo vem dos céos,
daquele poder profundo.
Rom. A troco das estações
não fareis algum partido,
e a troco de perdões,
que é tesouro concedido
pera quaisquer remissões35
?
Oh! vendei-me a paz dos céos,
pois tenho o poder36
na terra!
Ser. Senhora, a quem Deos dá guerra,
grande guerra faz a Deos,
que é certo que Deos não erra37
.
Vede vós que Lhe fazeis,
vede como O estimais,
vede bem se O temeis…
Atentai com quem lutais,
que temo que caireis38
.
Rom. Assi que a paz não se dá
a troco de jubileus39
?
Mer. Ó Roma, sempre vi lá
que matas pecados cá,
e leixas viver os teus40
.
Tu não te corras41
de mi:
mas com teu poder facundo42
assolves a todo o mundo43
,
e não te lembras de ti,
nem vês que te vás ao fundo.
Rom. Ó Mercúrio, valei-me ora,
que vejo maus aparelhos44
!
Mer. Dá-lhe, Tempo, a essa Senhora
o cofre dos meus conselhos:
e podes-te ir muito embora.
Vocabulário
28
comprei; 29
Roma admite ter comprado tantas mentiras, enganos, etc.,
«sujas mercancias», ao Diabo, no passado, que até tem para vender;
30
maldades, crimes; 31
o que mais se vende na feira; 32
deixar;
33
senhoras tais como Roma; 34
baseio-me no facto de; 35
este verso e os
quatro anteriores revelam uma situação muito criticada na época e que foi
um dos motivos que conduziu à Reforma protestante: quem podia pagava,
remia os seus pecados com dinheiro e assim era absolvido, tendo, para
isso, de visitar igrejas («estações») e de obter indulgências («perdões»);
36
neste caso, o poder de perdoar os pecados recebendo dinheiro – de
quem podia pagar…; 37
o Serafim lembra a Roma que Deus não erra: por
isso, se Deus lhe levou a guerra, é porque Roma ofendeu a Deus, lhe levou
a guerra da ofensa, por exemplo, com as remissões de pecados pagas em
dinheiro; 38
porque temo que sereis vencida – por Deus; 39
Roma começa
a perceber («assim» = portanto) que se quer a paz, dada por Deus, não
pode continuar com práticas como os «jubileus», momentos em que se
perdoavam os pecados a troco de generosas esmolas;
40
Mercúrio ataca Roma sem respeito, tratando-a por tu, acusando-a de
matar pecados, isto é, de perdoar os pecados dos outros pecando ela
mesma; 41
não te afastes; 42
enorme; 43
referência às absolvições dos
pecados por dinheiro, o que, para Mercúrio, é um pecado – conferir versos
seguintes; 44
maus presságios
-
-
-
-
70
-
-
-
-
75
-
-
-
-
80
-
-
-
-
85
-
-
-
-
90
-
-
-
-
95
-
-
-
-
100
-
-
-
-
105
-
-
-
-
110
-
-
-
-
115
-
-
-
-
120
-
-
-
-
125
-
-
-
-
130
-
-
-
-
135
Gil Vicente, Auto da Feira
36
Um espelho i acharás,
que foi da Virgem sagrada.
Co’ele te toucarás,
porque vives mal toucada,
e não sintes como estás45
:
e acharás a maneira
como emendes a vida.
E não digas mal da feira,
porque tu serás perdida,
se não mudas a carreira46
.
Não culpes aos reis do mundo,
que tudo te vem de cima,
polo que fazes cá em fundo:
que, ofendendo a causa prima,
se resulta o mal segundo47
.
E também o digo a vós,
e a qualquer meu amigo,
que não quer guerra consigo:
tenha sempre paz com Deos,
e não temerá perigo.
Dia. Prepósito, Frei Sueiro,
diz lá o exempro velho:
«dá-me tu a mi dinheiro,
e dá ao demo o conselho48
».
45
Mercúrio aconselha Roma,
a Igreja, a ter uma vida santa como
a de Nossa Senhora; Roma deve
ver-se ao espelho como Nossa
Senhora se via; 46
o modo de viver;
47
Mercúrio adverte Roma no
sentido de não culpar outros («aos
reis do mundo») pelo seu estado:
se quer a paz, deve começar por
deixar de ofender Deus («a causa
prima» – «prima» = primeira);
48
o Diabo, baseando-se num
ditado popular («exempro velho»),
pede a Roma que não atenda
aos conselhos de Mercúrio e lhe
compre a ele mercadoria.
Educação literária
1. Roma é uma personagem alegórica.
1.1 Explica porquê.
2. Explicita, justificando, a crítica que Roma faz entre os vv. 1-20.
3. Atenta na série de perguntas ou interrogações feita por Roma entre os vv. 11-16.
3.1 Escolhe a opção correta. Com estas interrogações, Roma, refletindo sobre a sua relação com a cristandade,
a. espera efetivamente que lhe seja dada uma resposta.
b. interroga sabendo já a resposta, isto é, interroga para acentuar a má relação que tem com ela.
4. O Diabo propõe-se vender a Roma determinado tipo de mercadoria, nomeadamente a que apresenta entre os vv. 56-
-60.
4.1 Identifica o recurso expressivo que usa para o fazer.
4.2 Explica a sua expressividade literária.
5. Roma faz uma autocrítica entre os vv. 66-80.
5.1 Justifica esta afirmação recorrendo a elementos textuais pertinentes.
6. Explicita as advertências que o Serafim faz a Roma.
7. Explica que tipo de relação se estabelece entre Roma e Mercúrio a partir do v. 131, justificando.
8. A relação entre Roma, o Diabo e o Serafim configura uma representação alegórica.
8.1 Explica porquê.
-
-
-
-
140
-
-
-
-
145
-
-
-
-
150
-
-
-
-
155
-
-
-
-
Acabas de identificar um recurso expressivo designado por interrogação retórica. Este tipo de inter-
rogação formula-se para causar um efeito retórico, isto é, um efeito persuasivo.
37
Depois de ida Roma, entram dous lavradores, um per
nome Amâncio Vaz, e outro Denis Lourenço, e diz:
Ama. Compadre, vás tu à feira?
Den. À feira, compadre.
Ama. Assi,
ora vamos eu e ti
ò longo desta ribeira.
Den. Bofá1
, vamos.
Ama. Folgo bem2
de3
te vir aqui achar4
!
Den. Vás tu lá buscar alguém,
ou esperas de comprar?
Ama. Isso te quero contar,
e iremos patorneando5
,
e er6
também aguardando
polas moças do lugar.
Compadre, enha7
mulher
é muito destemperada8
,
e agora, se Deos quiser,
faço conta de a vender,
e dá-la-ei por quase nada.
Qu’eu quando casei com ela
diziam-me: – étega9
é;
e eu cuidei pola abofé10
que mais cedo morresse ela,
e ela anda inda em pé.
E porque era étega assim
foi o que m’a mim danou:
avonda11
qu’ela engordou
e fez-me étego a mim.
Den. Tens boa mulher de teu!
Não sei que tu hás, amigo…
Ama. S’ela casara contigo,
renegaras12
tu com’eu,
e dixeras o que eu digo.
Den. Pois, compadre, cant’à minha,
é tão mole e desatada13
,
que nunca dá peneirada14
,
que não derrame a farinha.
E não põe cousa a guardar,
que a tope15
quando a cata16
;
e por mais que homem se mata,
de birra não quer falar.
Trás d’~
ua pulga andará
três dias, e oito, e dez,
sem lhe lembrar o que fez,
nem tão-pouco o que fará,
Pera que t’hei de falar?
Quando ontem cheguei do mato17
pôs ~
ua enguia a assar,
e crua a leixou levar,
por não dizer sape18
a um gato.
Quant’a mansa, mansa é ela:
dei-me logo conta disso!
Ama. Juro-t’eu que mais val isso
cinquenta vezes qu’ela.
1
pois sim; 2
estou contente; 3
por; 4
encontrar; 5
falando; 6
além disso; 7
minha;
8
zanga-se facilmente, desbocada; 9
tuberculosa; 10
em boa fé; 11
tanto; 12
a criticaras,
lamentar-te-ias; 13
preguiçosa, desajeitada; 14
movimento para peneirar o grão moído;
15
encontre; 16
procura; 17
do monte; 18
interjeição para enxotar gatos
-
-
-
-
5
-
-
-
-
10
-
-
-
-
15
-
-
-
-
20
-
-
-
-
25
-
-
-
-
30
-
-
-
-
35
-
-
-
-
40
-
-
-
-
45
-
-
-
-
50
-
-
Gil Vicente, Auto da Feira
38
A minha te digo eu
que se a visses assanhada19
…
parece demoninhada20
…
ante S. Bertolameu21
!
Den. Já siquer terá esprito22
…
Mas renega da mulher
que ò tempo do mester
não é cabra nem cabrito.
Ama. A minha tinh’eu em guarda
pera bem de minha prol,
cuidando que era ourinol,
e tornou-se-me bombarda23
.
Folga tu que ess’outra tenhas,
porque a minha é tal perigo,
que por nada que lhe digo24
logo me salta nas grenhas25
.
Então tanto punho seco
me chimpa nestes focinhos26
!
Eu chamo pelos vezinhos,
e ela nego dar-me em xeco27
.
Den. Isso é de coraçuda28
!
Não cures29
de a vender:
que se alguém te mal fizer
já sequer tens quem te acuda.
Mas a minha é tão cortês30
que se viesse ora à mão
que m’espancasse um rascão31
,
não diria: – «Mal fazês.32
»
Mas antes s’assentaria33
a olhar como eu bradava34
.
Todavia a mulher brava
é, compadre, a que eu queria.
Ama. Pardeos! Tanto me farás,
que feire35
a minha contêgo…
Den. Se queres feirar comêgo,
vejamos que me darás.
Ama. Mas antes m’hás-de tornar36
,
pois te dou mulher tão forte,
que te castigue de sorte
que não ouses de falar,
nem no mato, nem na corte.
Outro bem terás com ela:
quando vieres da arada37
,
comerás sardinha assada,
porqu’ela jenta a panela38
.
Então geme, pardeus, si,
diz que lhe dói a moleira39
.
Den. Eu faria por maneira
que esperasse ela por mi.
Ama. Que lhe havias de fazer?
Den. Amâncio Vaz, eu o sei bem…
Ama. Denis Lourenço, ei-las cá vêm.
Vamo-nos nós esconder,
vejamos que vêm catar40
,
qu’elas ambas vêm à feira.
Mete-te nessa silveira,
qu’eu daqui hei-de espreitar.
Vem Branca Anes a brava, e Marta Dias a
mansa, e vem dizendo a brava:
Bra. Pois casei má hora, e nela,
e com tal marido, prima41
…
Comprarei cá ~
ua gamela,
par’ò ter debaixo dela,
e um grão penedo em cima.
Porque vai-se-me às figueiras,
e come verde e maduro;
e quantas uvas penduro
jeita42
nas gorgomeleiras43
:
parece negro monturo44
.
19
muito zangada; 20
que tem demónio; 21
São Bartolomeu – santo que
se festeja a 24 de agosto, dia em que, na crença popular, anda o diabo
à solta; 22
se calhar tem o diabo no corpo; 23
pensei que era mansa
mas é brava; 24
qualquer coisita que lhe diga; 25
bate-me; 26
dá-me
tantos murros; 27
e ela não para de me bater; 28
corajosa, 29
trates;
30
sossegada, mansa; 31
patife; 32
fazeis mal; 33
ficaria quieta;
34
gritava; 35
troque; 36
dar tornas, uma compensação; 37
do trabalho
no campo; 38
ela come a panela toda; 39
cabeça; 40
vejamos o que elas
vêm buscar («catar») à feira; 41
forma de tratamento carinhosa,
42
deita, engole; 43
goelas; 44
monte de lixo
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55
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  • 1. ENTRE PALAVRAS 10 '&)+,,Â*“ 0. o Ano António Vilas-Boas Manuel Vieira Ď O que é? Ď Auto da Feira ISBN 978-989-23-3234-5
  • 2. O que é? A. EDUCAÇÃO LITERÁRIA 2 1. Poesia trovadoresca 2 Cantigas de amigo 2 Cantigas de amor 3 Cantigas de escárnio e maldizer 3 2. Fernão Lopes, Crónicas de D. João I 4 3. Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira 4 Caracterização de personagens 4 Relações entre as personagens 5 A representação do quotidiano 5 Linguagem, estilo, estrutura 6 4. Luís de Camões, Rimas 6 Contextualização histórico-literária 6 A poesia lírica de Camões: os temas 7 A poesia lírica de Camões: linguagem, estilo e estrutura 8 5. Luís de Camões, Os Lusíadas 8 B. GRAMÁTICA 10 FONÉTICA E FONOLOGIA 1. Processos fonológicos de inserção, supressão e alteração 10 ETIMOLOGIA 2. Étimo 12 3. Palavras convergentes e divergentes 12 GEOGRAFIA DO PORTUGUÊS NO MUNDO 4. Português europeu e não europeu e crioulos de base portuguesa 12 SINTAXE 5. Funções sintáticas 13 6. A frase complexa: coordenação e subordinação 18 LEXICOLOGIA 7. Arcaísmos e neologismos 20 8. Campo lexical e campo semântico 20 9. Processos irregulares de formação de palavras 21 Auto da Feira 22 Índice
  • 3. 1. Poesia trovadoresca 1.1 Quando se desenvolveu esta poesia? A partir do final do século XII e até meados do século XIV. 1.2 Onde se desenvolveu? No noroeste da Península Ibérica, na região que corresponde atualmente ao Minho e à Galiza. 1.3 Que géneros de cantigas a constituem? Cantigas de amigo, cantigas de amor, cantigas de escárnio e maldizer. 1.4 Quem eram os trovadores e os jograis? Os trovadores eram os autores desta poesia, as cantigas, nos seus vários géneros. Normalmente eram nobres; escreviam a letra, por vezes a música; as cantigas eram cantadas pelos jograis, homens de condição social mais baixa. Cantigas de amigo 1.5 O que é uma cantiga de amigo? É uma composição poética dirigida a um amigo por um sujeito lírico ou poético feminino, a amiga. 1.6 Quais são os temas mais frequentes? Os temas mais frequentes são os seguintes: a saudade, pois o amigo está longe; o sofrimento por ciúme; as queixas por promessas não cumpridas; a felicidade e a certeza de se saber amada; o encontro amoroso junto à fonte; o baile; a espera angustiada pelo regresso do amigo; a ida à romaria para encontrar um namorado; a confissão destes amores à mãe, ou às amigas, ou à Na- tureza, etc. 1.7 Como é representado o sentimento amoroso? O sentimento amoroso é representado de modo muito variado. Toda a gama deste sentimento surge nas cantigas de amigo, desde o início da paixão, com as suas esperanças e incertezas, até aos encontros com o amigo, ao ciúme, à reconciliação, etc. 1.8 O que é a confidência amorosa? É a confissão dos estados amorosos, quer felizes quer infelizes, pelo sujeito poético (a amiga apaixonada) à sua mãe, às suas amigas e, até, à Natureza. A amiga conta, confessa, para desa- bafar, para se libertar dos seus receios ou para partilhar as suas alegrias. 1.9 Qual é a relação da mulher com a Natureza? A Natureza surge frequentemente nas cantigas de amigo como confidente da amiga apaixonada que com ela desabafa sobre os seus problemas amorosos. Também pode ser local de encontro com o «amigo». 1.10 O que é o paralelismo? É a técnica de elaboração das cantigas de amigo que consiste, em primeiro lugar, na relação evi- dente entre versos que se repetem, quer pelas mesmas palavras quer por palavras de sentido idêntico, – e assim se relacionam entre si. A cantiga de amigo apresenta, por isso, uma estrutura fortemente repetitiva. Em segundo lugar, o paralelismo implica a presença de um refrão. O paralelismo pode ser perfeito ou imperfeito. Consulta o esquema do manual na página 58. Educação literária O que é? 2
  • 4. A. 1.11 O que é o refrão? É um verso ou um conjunto variável de versos que se repete no final de cada estrofe ou cobla. 1.12 Qual é a função do paralelismo? Intensifica a expressão das emoções através das repetições. Cantigas de amor 1.13 O que é uma cantiga de amor? É uma composição poética dirigida a uma senhor, dama de condição superior, por um sujeito lírico ou poético masculino. 1.14 Quais são os temas mais frequentes? A coita de amor e o elogio de amor cortês. 1.15 O que é a coita de amor? É a expressão de um sentimento amoroso doloroso provocado pela não correspondência, por parte da senhor, ao amor confessado pelo homem apaixonado. Está, frequentemente, associa- da à morte por amor. 1.16 O que é o elogio de amor cortês? É um louvor de natureza física e psicológica à senhor: ela é uma mulher única, a mais perfeita de todas em tudo. Cantigas de escárnio e maldizer 1.17 O que é uma cantiga de escárnio? É uma cantiga de motivo satírico cuja crítica é feita indiretamente. 1.18 O que é uma cantiga de maldizer? É uma cantiga de motivo satírico cuja crítica é direta e clara. 1.19 Quais são os temas mais frequentes? Parodiam o amor cortês, criticando as suas convenções poéticas e criticam os costumes – sempre através do riso. Relativamente à paródia do amor cortês, encontramos a críti- ca à expressão exagerada da coita de amor, ao ridículo da morte de amor, ao ataque às mulheres que, sendo velhas, querem ver a sua beleza cantada… Costumes criticados são muito variados: a infidelidade conjugal, o mau trato dado aos animais, as mentiras dos que pretendiam ter ido em peregrinação à Terra Santa, freiras e frades que não cum- priam os seus deveres, astrólogos mentiro- sos, etc. Missal Antigo do Lorvão, século XV 3
  • 5. 2. Fernão Lopes, Crónica de D. João I 2.1 Qual é o contexto histórico dos acontecimentos narrados na Crónica de D. João I de Fernão Lopes? D. Fernando faleceu em 1383, sem outro sucessor que a sua filha, Dona Beatriz, casada com o rei de Castela, D. João I. Este entendeu ter, por isso, direito ao trono português. Invadiu Portugal e cercou Lisboa – 1384. A cidade era defendida por outro pretendente ao trono, D. João, Mestre de Avis, filho bastardo do rei D. Pedro I. 2.2 De que modo se verifica nesta crónica a afirmação da consciência coletiva? Através de grandes movimentos de multidões, principalmente na capital, antes do cerco, em apoio ao Mestre de Avis; durante o cerco, através da solidariedade entre todos nos momentos difíceis que atravessavam. 2.3 Quais são os dois grandes tipos de personagens nela presentes? Personagens coletivas e personagens individuais. 2.4 O que são atores coletivos? Atores coletivos são as multidões, principalmente, que agem como um corpo só, seja no mo- vimento coletivo para levar ao poder o Mestre de Avis e protegê-lo de qualquer perigo seja na união demonstrada pelo povo durante o cerco de Lisboa. 2.5 O que são atores individuais? Atores individuais são personalidades bem caracterizadas por Fernão Lopes fisicamente, mas, acima de tudo, psicologicamente: o manhoso Álvaro Pais, o por vezes excessivamente hesitante D. João I, a ambiciosa Leonor Teles, entre outros. 3. Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira Caracterização de personagens 3.1 Como é caracterizada Inês Pereira? Podemos considerar três momentos na caracterização de Inês: a) enquanto solteira, é uma burguesinha fantesiosa, que deseja sair do «ca- tiveiro» materno através de um casamento que a faça ascender na escala social; b) enquanto casada, é uma mulher arrependida pela prisão a que o marido – o escudeiro galante e discreto com que sempre sonhara – a submete de novo, enquanto parte para a guerra; c) enquanto novamente livre, devido à morte pouco gloriosa do Escudeiro, aceita casar com o antigo pretendente, Pero Marques, que lhe permite todas as liberdades. 3.2 Como é caracterizada a Mãe de Inês Pereira? A Mãe é a voz da experiência e da sensatez. Como todas as mães, repreende a filha por não ser tão diligente quanto devia nas tarefas domésticas, mas também lhe dá diversos conse- lhos, nomeadamente quanto ao tipo de casamento que pre- tende e ao comportamento que uma moça ajuizada deve ter. Educação literária (cont.) a) enquanto tiveiro» m socia b) O que é? 4
  • 6. 3.3 Como é caracterizado Pero Marques? Pero Marques é um lavrador rico, mas ingénuo e rude, que se exprime numa linguagem antiqua- da e que desconhece as mais elementares regras de convívio social – como prova o facto de não se saber sentar numa cadeira. Mais tarde, já casado com Inês, a sua ingenuidade é visível quando carrega a mulher às costas para a levar a um encontro galante com um Ermitão – um antigo pretendente. 3.4 Como é caracterizado o Escudeiro? Brás da Mata, de seu nome, é o típico escudeiro bem falante e de boas maneiras que vê em Inês uma forma de escapar à pobreza em que vive, mas que dissimula . Uma vez casado, revela-se um tirano no modo como trata Inês, fechando-a em casa, e, além disso, um covarde pois foi morto ao fugir de uma batalha. Relações entre as personagens 3.5 Qual é a relação entre Inês e a Mãe? A relação entre Inês e a Mãe exemplifica o típico conflito de gerações: a Mãe queixa-se da pregui- ça da filha; a filha queixa-se da tirania da Mãe, que a obriga a permanecer em casa «como panela sem asa que sempre está num lugar», ao mesmo tempo que ignora os seus conselhos. 3.6 Como evolui a relação entre Inês e o Escudeiro? Inicialmente, Inês vê-o como o homem dos seus sonhos – discreto, avisado, tangedor de viola, que a viria libertar do cativeiro materno, mas rapidamente muda de atitude ao ver-se de novo presa em casa pelo marido, logo após o casamento. Aí passa a vê-lo como um marido covarde e «rascão», forte com ela mas fraco com o mouro pastor que o matou quando se escapulia da batalha em que participava. 3.7 Como evolui a relação entre Inês e Pero Marques? Inicialmente, Inês vê-o como um pretendente rude, ingénuo e sem maneiras, de que zomba sem piedade, em tudo oposto ao tipo de homem que tinha idealizado para marido. Posteriormente, após a viuvez, aceita este «manso marido» porque lhe dá toda a liberdade que pretende, sem deixar, no entanto, de se aproveitar da sua ingenuidade para o trair com o Ermitão («ermitano de cupido») – um antigo pretendente. A representação do quotidiano 3.8 Que representações da vida quotidiana se encontram na Farsa de Inês Pereira? Na Farsa de Inês Pereira, podemos encontrar: a) cenas da vida doméstica (a Mãe censura Inês pelo seu desleixo nas tarefas domésticas; Inês queixa-se de falta de liberdade); b) conselhos maternos (sobre a escolha dos namorados, sobre o casamento…); c) a festa do casamento de Inês; d) vida conjugal (a prepotência do marido escudeiro, que obriga Inês a obedecer-lhe e a fecha em casa); e) traição conjugal (Inês trai Pero Marques com o Ermitão). 3.9 O que pretende satirizar Gil Vicente com a Farsa de Inês Pereira? Nesta farsa, Gil Vicente satiriza comportamentos morais e sociais, nomeadamente a ascensão social da mulher através do casamento e o adultério feminino. O comportamento de Inês Pereira exemplifica ambas as situações. A. 5
  • 7. 3.10 De que processo se serve Gil Vicente para criticar costumes e comportamentos morais e sociais? Serve-se do cómico (de caráter, de situação e de linguagem) de forma a provocar o riso nos espetadores, expondo assim ao ridículo esses comportamentos e costumes. Por exemplo, a leitura da carta, em que se anuncia a morte do Escudeiro às mãos de um mouro pastor ao fugir do campo de batalha «pera a vila», provoca o riso na plateia acen- tuando ainda mais a fraqueza de caráter desta personagem – cómico de caráter. O cómico de situação está presente, por exemplo, quando Pero Marques se senta ao contrário numa cadeira, objeto que desconhece. Já o cómico de linguagem transparece na fala antiquada e rústica de Pedro Marques, ou em situações como a que ocorre entre os versos 78 e 81 (da página 157 do Manual) quando Inês utiliza o verbo «sair» no seu sentido habitual, mas que Pedro Marques entende com o significado de defecar (que também possuia) – o que provoca o riso nos espetadores. Linguagem, estilo, estrutura 3.11 O que é a farsa? Trata-se de um género pertencente ao modo dramático que apresenta normalmente o tema do engano. Nela se representam cenas da vida profana, que tanto podem ser agressi- vas, devido à sátira contundente que apresenta, como festivas, devido ao cómico hilariante. 3.12 Quais são as características da linguagem na Farsa de Inês Pereira? Na Farsa de Inês Pereira, a maioria das personagens apresenta um registo linguístico ca- racterístico da fala quotidiana do século XVI. Neste texto, encontram-se também marcas da linguagem popular, especialmente através de provérbios e de palavras entretanto caí- das em desuso – arcaísmos – como «asinha», «geitar», «muitieramá», etc., e outras que constam sobretudo da linguagem antiquada de Pero Marques («pardelhas», «rebentinha», «chentar», «siquaes», etc.). 4. Luís de Camões, Rimas Contextualização histórico-literária 4.1 Em que contexto histórico surge a obra de Luís de Camões? No contexto histórico marcado principalmente pela Expansão Portuguesa em terras e mares do Oriente – século XVI. 4.2 Qual é o contexto literário da sua obra? A sua obra surge num contexto cultural marcado por três grandes movimentos – Renascimento, Classicismo e Humanismo –, cuja natureza se interpenetra e funde em História, Estética, Ética e Literatura. 4.3 O que é o Renascimento? Movimento cultural marcado por características como: a) a busca das fontes ou modelos culturais e literários greco-romanos – a partir de meados do século XV; b) a vontade de experimentar e de construir o conhecimento com base na experiência; c) a dúvida em relação ao conhecimento fundado em textos de natureza religiosa; d) o interesse por tudo o que é próprio do Homem e da sua natureza – em detrimento do divino; e) a crença no Homem como motor do seu destino. O que é? Educação literária (cont.) 6
  • 8. 4.4 O que é o Classicismo? Movimento cultural centrado principalmente na imitação / recuperação da arte em geral e da lite- ratura em particular das duas grandes civilizações da Antiguidade: a grega e a romana. A imitação passou pela arquitetura, pela escultura, pela literatura… Literariamente, recuperam-se o gosto pela perfeição formal e por composições como a tragédia, a epopeia, a elegia, a écloga, etc. 4.5 O que é o Humanismo? Movimento cultural caracterizado pelo grande interesse pela Antiguidade greco-romana. Os hu- manistas acreditavam fortemente no progresso humano com o Homem como seu motor; esta- vam muito marcados por uma conceção ética da vida: censuravam os males da sociedade, os maus governantes, por um lado; por outro, apresentavam um programa ético: aconselhavam os poderosos no sentido de reformas. A poesia lírica de Camões: os temas 4.6 Como é representada a amada? Sempre como bela, na tradição das cantigas de amor, sendo comparada com elementos da Na- tureza, vencendo-os sempre. Normalmente assume um modelo «clássico», loura e branca, de belos olhos, «presença suave» – o modelo petrarquista. Mas pode ser consolo do Poeta também a mulher de pele escura, de olhos e cabelos pretos – sempre – mais bela do que a Natureza. 4.7 Como é representada a Natureza? Frequentemente a Natureza é apresentada de modo subjetivo, isto é, o Poeta projeta nela os seus estados de espírito. A Natureza apresenta-se também, frequentemente, como polo de com- paração relativamente à amada – que a vence sempre. A Natureza pode ainda assumir a condi- ção de testemunha da infelicidade do Poeta. 4.8 Que experiências amorosas confessa o Poeta? Quase sempre a experiência amorosa se apresenta como negativa: o Poeta é um conhecedor profundo da dor de amar. O Amor é fonte de desenganos, desilusões, sofrimento. Apesar disso, o Poeta apaixona-se, enredado pelos olhos da amada; queixa-se da sua indiferença, principalmente quando ama verdadeiramente, possuído de amor «puro e limpo». 4.9 Que tipo de reflexão faz sobre o Amor? Tendencialmente negativa. Apesar de não poder fugir-lhe, de lhe estar «destinado», o Amor não lhe dá as alegrias que gostaria de receber, por causa da indiferença da amada, apesar da certeza do seu amor. 4.10 Como reflete sobre a vida pessoal? Desde logo lamentando-se por não ter experimentado mais do que «breves enganos» no Amor; mas também assumindo os erros pessoais e queixando-se da má sorte. O Poeta é um ser desi- ludido com a vida, que vai envelhecendo já sem esperança, numa desistência contínua. Exprime, por vezes, revolta contra esta situação. 4.11 O que é o tema do desconcerto? O tema do desconcerto consiste na constatação de que o mundo não é um local justo, pois o Poeta verifica que frequentemente quem é mau é recompensado e quem é bom é castigado. Também na sua vida, amorosa até, o Poeta é marcado por este desconcerto. A. 7
  • 9. 4.12 O que é o tema da mudança? O tema da mudança é um tema clássico e filosófico por excelência: tudo muda continuamente, tudo se renova ciclicamente, um ano sucede ao outro, uma primavera virá depois da atual; con- tudo, esta mudança não atinge o Poeta – que caminha inexoravelmente para o fim. A poesia lírica de Camões: linguagem, estilo e estrutura 4.13 O que é a lírica tradicional? É a lírica em que Camões segue a tradição poética peninsular que vem da Idade Média, da tra- dição trovadoresca, com formas poéticas como o vilancete ou as trovas, com versos de redon- dilha maior ou menor – sete e cinco sílabas métricas, respetivamente. 4.14 O que é a lírica de inspiração clássica? É a lírica de versos decassílabos em que Camões adota formas poéticas recuperadas da Anti- guidade, como a epopeia, a écloga, ou novas formas poéticas, como o soneto, vindo de Itália. 4.15 Quaissãoasprincipaismarcasdodiscursopessoal/subjetivopresentesnalíricacamoniana? A presença forte da subjetividade marca as composições poéticas de Camões: os seus estados de alma podem influenciar a visão da paisagem, projetando-se nela, fundindo-se deste modo o interior subjetivo e o exterior objetivo. 4.16 Quais são as características formais do soneto? O soneto é uma composição poética de origem italiana, introduzida em Portugal por Sá de Miranda, no século XVI. É composto por catorze versos divididos em duas quadras e dois tercetos. O seu esquema rimático é, normalmente, abba abba cde edc / cdc dcd / cde cde. O verso usado é o decassílabo. 5. Luís de Camões, Os Lusíadas 5.1 O que é um poema épico? É uma narrativa em verso com origem na Antiguidade Clássica greco-romana na qual se exaltavam os feitos gloriosos de um herói mitológico, como Aquiles, na Ilíada, e Ulisses, na Odisseia – ambas de Homero – e Eneias, na Eneida de Virgílio. Durante o Renascimento, vários poemas épicos foram criados na Europa à semelhança dos Antigos, entre os quais se destaca Os Lusíadas de Camões. Este género literário exalta feitos excecionais e imortaliza heróis. O estilo é elevado, adequado à subli- midade do assunto. O herói, embora individual, simboliza o seu povo. O assunto tem interesse universal. 5.2 Qual é a matéria épica de Os Lusíadas? A matéria épica de Os Lusíadas é a narrativa da viagem de Vasco da Gama e da História de Portugal. 5.3 Qual é a estrutura externa de Os Lusíadas? A obra está dividida em dez cantos, cada um com um número variável de es- tâncias ou estrofes. As estâncias são oitavas, apresentando o esquema rimático abababcc, rima cruzada nos seis primeiros versos e emparelhada nos dois últi- mos. Os versos são de dez sílabas métricas, acentuados na sexta e na décima sílabas: versos decassilábicos heroicos. O que é? Educação literária (cont.) 8
  • 10. 5.4 Qual é a estrutura interna de Os Lusíadas? O poema divide-se em quatro partes, seguindo, de modo geral, os modelos das epopeias da An- tiguidade Clássica e das renascentistas: Proposição Canto I, estâncias 1-3 O Poeta indica o assunto que vai cantar: «o peito ilustre Lusitano», estância 3, verso 5, isto é, os heróis Portugueses, a nobreza guerreira e os homens ilustres que se notabilizaram pela grandiosidade dos seus feitos. Invocação Canto I, estâncias 4-5 O Poeta pede inspiração a musas nacionais, as Tágides, ninfas do Tejo, para cantar os feitos do «peito ilustre Lusitano». Dedicatória Canto I, estâncias 6-18 O Poeta dedica o poema a D. Sebastião, que reinava em Portugal no ano da sua publicação – 1572. Narração Canto I, estâncias 19 e seguintes. Inicia-se in medias res, no meio da viagem, quando a armada se encontrava já no oceano Índico. 5.5 Quais são os quatro planos de Os Lusíadas? O plano da viagem, o dos deuses, o da História de Portugal e o das reflexões ou considerações do Poeta. Frequentemente estes planos são interdependentes: numa mesma estância, pode-se encontrar mais do que um. 5.6 Em que consiste a «sublimidade do canto» em Os Lusíadas? Camões pede às Tágides, na Invocação, um canto marcado pela sublimidade, isto é, um canto de estilo grandioso, um canto sublime, pois os feitos dos Portugueses são também grandiosos. 5.7 O que são as «reflexões do Poeta»? São reflexões que surgem principalmente nos finais dos cantos. Nelas, o Poeta reflete sobre assuntos tão variados como a fragilidade da vida humana, o poder corruptor do dinheiro, a ga- nância, o mau governo, a ignorância da nobreza, o seu desinteresse pela cultura em geral e pela Poesia em particular, etc. Por vezes, estas reflexões apresentam vincado caráter humanista, pois Camões censura, por um lado, e aconselha a mudança de atitudes, por outro. 5.8 Como se concretiza a mitificação do herói em Os Lusíadas? O herói, Vasco da Gama, é mitificado pois supera, pelos seus feitos, a condição humana. Momento fulcral dessa mitificação ocorre quando Tethys desvenda a Vasco da Gama a Máquina do Mundo, fazendo-o assumir o conhecimento total. A mitificação ocorre também aquando da união dos Portugueses com as Ninfas, na Ilha dos Amores: através desta união eles transcendem, simboli- camente, a condição humana, aproximando-se dos deuses. A mitificação do herói está anunciada logo no início do poema, na estância 3, quando Camões apresenta os Portugueses como tendo superado a Antiguidade – os heróis gregos e romanos. A. 9
  • 11. FONÉTICA E FONOLOGIA 1. Processos fonológicos de inserção, supressão e alteração 1.1 Quais são os processos fonológicos de inserção (+)? Os processo fonológicos de inserção são a prótese, a epêntese e a paragoge. O que é a prótese? A prótese consiste na adição de uma unidade fónica ou de um conjunto de unidades fónicas no início de uma palavra. Ex.: SPIRITU- espírito O que é a epêntese? A epêntese consiste na adição de uma ou mais unidades fónicas no interior de uma palavra. Ex.: HUMILE humilde O que é a paragoge? A paragoge consiste na adição de uma ou mais unidades fónicas no final de uma palavra. ANTE antes 1.2 Quais são os processos fonológicos de supressão (–)? Os processo fonológicos de supressão são a aférese, a síncope e a apócope. O que é a aférese? A aférese consiste na queda de uma unidade fónica ou de um conjunto de unidades fónicas no início de uma palavra. Ex.: ACUME- gume O que é a síncope? A síncope consiste na queda de uma unidade fónica ou de um grupo de unidades fónicas no interior de uma palavra. Ex.: OPERA- obra O que é a apócope? A apócope consiste na queda de uma unidade fónica ou de um grupo de unidades fónicas no final de uma palavra. Ex.: AMARE amar 1.3 Quais são os processos fonológico de alteração (– ˜)? Os processo fonológicos de alteração são a sonorização, a palatalização, a redução vocálica, a crase, a sinérese, a vocalização, a metátese, a assimilação e a dissimilação. O que é a sonorização? A sonorização consiste na passagem de uma consoante surda, normalmente em posição intervocálica, a uma consoante sonora. Ex.: FOCU- fogo O que é a palatalização? A palatalização consiste na passagem de sequências latinas como li, ni, cl, pl, fl às consoantes palatais /̒/(lh); /Ӷ/(lh); /̍/(ch) ou /t̍/. Ex.: FILIU filho; SENIORE senhor; CLAVE chave Gramática 10 O que é?
  • 12. O que é a redução vocálica? A redução vocálica consiste no enfraquecimento de uma unidade vocálica em posição átona. Ex.: casa casinha O que é a crase? A crase consiste na contração de duas vogais numa só. Ex.: PE(D)E- pee pé O que é a sinérese? A sinérese ocorre quando duas vogais contíguas, em hiato, dão lugar a um ditongo, por semivocalização de uma delas. Ex.: LE(G)E- lee lei O que é a vocalização? A vocalização consiste na passagem de uma consoante a vogal. Ex.: ACTU- auto O que é a metátese? A metátese consiste na transposição de segmentos ou sílabas no interior de uma palavra. Ex.: SEMPER sempre O que é a assimilação? A assimilação é um processo fonológico de alteração em que uma unidade fónica torna igual ou mais semelhante a si um outro segmento contíguo ou não. Ex.: IPSE esse O que é a dissimilação? A dissimilação é um processo fonológico de alteração em que duas unidades fónicas iguais se tornam diferentes. Ex.: CALAMELLU- caramelo 1.4 Os processos fonológicos verificam-se apenas na evolução da língua ao longo do tempo (dia- cronia) ou também se verificam na atualidade, na língua que falamos (sincronia)? Verificam-se em ambas as situações: através do tempo, na evolução da língua, e na atualidade. Ex.: Tanto encontramos uma metátese na evolução de CONTRARIU para contrairo (português anti- go) como na variação social, na atualidade, entre parteleira e prateleira. B. 11
  • 13. ETIMOLOGIA 2. Étimo 2.1 O que é o étimo de uma palavra? O étimo de uma palavra é a forma mais antiga de que essa palavra provém. Por exemplo, o étimo da palavra portuguesa filho é a forma do latim vulgar FILIU-. 2.2 As palavras portuguesas provêm de que étimos? As palavras portuguesas provêm de étimos de várias línguas, mas a grande maioria tem origem em étimos latinos, visto que o português é uma língua românica ou novilatina, isto é, que tem origem no latim. 3. Palavras convergentes e divergentes 3.1 O que são palavras convergentes? Palavras convergentes são as que provêm de étimos diferentes aos quais corresponde apenas uma palavra portuguesa. Ex.: SANU- SUNT são (adjetivo) são (verbo) 3.2 O que são palavras divergentes? Palavras divergentes são as que provêm do mesmo étimo, umas por via erudita e outras por via popular, dando origem a mais do que uma palavra portuguesa. Ex.: SOLITARIU- solitário (forma erudita) solteiro (forma popular) GEOGRAFIA DO PORTUGUÊS NO MUNDO 4. Português europeu e não europeu e crioulos de base portuguesa 4.1 O que é e onde se fala o português europeu? O português europeu é a língua falada em Portugal continental e nos arquipélagos dos Açores e da Madeira. 4.2 O que é o português não europeu? O português não europeu é a língua falada fora da Europa, nos países africanos de língua oficial portuguesa (PALOP), que compreende as variedades sul-americana (brasileira) e africana (anti- gas colónias portuguesas), onde também se falam crioulos. Gramática (cont.) O que é? 12
  • 14. 4.3 O que é um crioulo? Um crioulo é uma língua que se forma em comunidades onde se falam várias línguas a partir do contacto de uma língua autóctone com uma língua dominante (de colonização) devido à neces- sidade de comunicação. Ex.: o Kriolu ou Kauberdianu de Cabo Verde. 4.4 O que são crioulos de base portuguesa? São crioulos em que a base lexical, isto é, as palavras utilizadas na comunicação, é portuguesa. 4.5 Qual é a distribuição geográfica dos principais crioulos de base portuguesa? a) Em África, existem os crioulos da Alta Guiné (Kuaberdianu, de Cabo Verde) e os crioulos do Golfo da Guiné (Forro ou Santomense, de S.Tomé). b) Na Ásia, encontramos os crioulos indo-portugueses (Língua da Casa, em Damão, na Ín- dia), malaio-portugueses (Papiá Kristang, na Malásia, e o português de Bidau, em Timor Leste) e sino-portugueses (o macaísta ou patuá de Macau, em vias de desaparecimento). c) Na América, existem o papiamento nas Antilhas e o Saramancano, no Suriname. SINTAXE 5. Funções sintáticas 5.1 O que é o sujeito? É uma função sintática desempenhada por palavra (nome), expressão, oração que concordam com o verbo da frase em que se encontram. Exs.: • Maçãs não faltarão, na próxima primavera. • Os meus primos ingleses visitam-nos, na próxima semana. • Ir ao mar nesta altura é muito perigoso. 5.1.1 Quais são os tipos de sujeito? O sujeito pode ser simples a) ou composto b). Exs.: a) Os cães protegem os donos. b) Os cães e os gatos são animais domésticos. Quando não está expresso, o sujeito pode ser subentendido c) – quando pode ser recu- perado através da conjugação verbal – e indeterminado d) – quando é substituível por «alguém». Exs.: c) O Pedro disse que [eles/elas] iam ao cinema. d) Compra-se casas na baixa da cidade. / Alguém compra casas na baixa da cidade. B. 13
  • 15. 5.2 O que é o vocativo? É uma função sintática desempenhada por uma palavra ou expressão e que serve para chamar ou interpelar o interlocutor. O vocativo distingue-se do sujeito, junto do qual se encontra normalmente, porque não concorda com o verbo da frase em que se encontra. Sempre que se encontrar junto do sujeito, o vocativo é isolado por vírgulas. Exs.: 1) João, traz-me aquele livro, por favor. 2) Tu, meu amigo, não sabes o que perdeste. 3) Tu, Pedro, já viste bem este exercício? 5.3 O que é o predicado? É uma função sintática desempenhada pelo verbo, expressando o que se diz acerca do sujeito. No predicado, podem incluir-se outras funções sintáticas, consoante as propriedades de seleção dos verbos principais e copulativos (complementos). Podem ainda existir funções sintáticas não selecionadas pelos verbos (modificadores). Exs.: 1) O João deu um presente ao irmão. (O predicado inclui dois complementos.) 2) O Pedro almoça na cantina ao meio-dia. (O predicado inclui dois modificadores.) 3) O João deu um presente ao irmão, hoje, de manhã. (O predicado inclui dois complemen- tos e dois modificadores.) 4) O Francisco está doente. (O predicado inclui um predicativo do sujeito.) 5) O Manuel acha este filme um espanto. (O predicado inclui um complemento e um pre- dicativo do complemento direto.) 6) O António canta. (O predicado é apenas constituído pelo verbo.) 5.4 O que é o complemento direto? É uma função sintática de um verbo transitivo direto e/ou transitivo direto e indireto, que pode ser desempenhada por: • uma palavra substituível pelos pronomes pessoais átonos -o, -a, -os, -as; • uma expressão substituível pelos pronomes pessoais átonos -o, -a, -os, -as; • pronomes pessoais (-me, -te, -o, -a, -nos, -vos, -os, -as); • uma oração subordinada substantiva completiva. Exs.: 1) Hoje comi marisco ao almoço. / Hoje comi-o ao almoço. 2) Inês Pereira recusa o primeiro namorado. – Inês Pereira recusa-o. 3) Ela viu-nos no cinema. 4) Inês Pereira afirma que só casará com um homem educado. 5.5 O que é o complemento indireto? É uma função sintática selecionada por verbos transitivos indiretos e transitivos diretos e indire- tos. É desempenhada por: • expressões iniciadas pela preposição a, substituíveis pelo pronome pessoal átono -lhe; • pronomes pessoais (-me, -te, -lhe, -nos, -vos, -lhes); • uma oração subordinada substantiva relativa. Exs.: 1) A alcoviteira falou a Inês de Pero Marques. / A alcoviteira falou-lhe de Pero Marques. 2) O meu pai ofereceu-me um livro de poesia. 3) A minha prima deu o presente a quem o merecia. O que é? Gramática (cont.) 14
  • 16. 5.6 Como distingo o complemento direto do complemento indireto? a) Um complemento direto é selecionado por verbos transitivos diretos e por verbos transitivos diretos e indiretos. Exs.: O João viu um ovni. / O Pedro deu um livro à irmã. b) Um complemento indireto é selecionado por verbos transitivos indiretos e por verbos transitivos diretos e indiretos. Exs.: A Joana telefonou à mãe. / O Pedro deu um livro à irmã. c) Um complemento direto é sempre desempenhado por palavra ou expressão substituível pelos pronomes pessoais átonos o, a, os, as. Ex.: O Pedro viu um ovni. / O Pedro viu-o. d) Um complemento indireto é sempre desempenhado por uma palavra ou uma expressão iniciada pela preposição a substituível pelos pronomes pessoais átonos lhe/lhes. Ex.: O Pedro telefonou à irmã. / O Pedro telefonou-lhe. 5.7 Como sei se um pronome pessoal átono de 1. a pessoa (me/nos) ou de 2. a pessoa (te/vos) desempenha a função sintática de complemento direto ou de complemento indireto? É simples: basta substituí-los pelos pronomes de 3. a pessoa (o, a, os, as [complemento direto] e lhe, lhes [complemento indireto]). Se a frase ficar correta pela substituição com o, a, os, as, o pronome me, te, nos, vos desempenhará a função sintática de complemento direto. Se, pelo contrário, ficar correta ao ser substituída por lhe ou lhes, então desempenhará a função sintática de complemento indireto. Exs.: Ela viu-me no cinema. É substituível por por lhe? Não, porque Ela viu-lhe no cinema é uma frase incorreta. É substituível por o ou a? Sim, porque Ela viu-o(a) no cinema é uma frase correta. Podemos, portanto, concluir que o pronome me na frase Ela viu-me no cinema desempenha a função sintática de complemento direto. 5.8 O que é o complemento oblíquo? É uma função sintática selecionada por verbos transitivos indiretos e transitivos diretos e indire- tos. Pode ser desempenhada por: a) uma palavra; b) uma expressão substituível por um pronome pessoal precedido de preposição; c) uma expressão substituível por um advérbio; d) uma oração subordinada substantiva relativa. Exs.: 1) O meu primo mora longe. 2) Inês Pereira gosta do Escudeiro. / Inês gosta dele. 3) Ela mora em Lisboa. / Ela mora lá. 4) Inês Pereira gosta de quem é educado e bem falante. B. 15
  • 17. 5.9 Como distingo um complemento direto, um complemento indireto e um complemento oblíquo? a) O complemento direto é sempre substituível por um pronome pessoal átono o, a, os, as; um complemento indireto, por um pronome pessoal lhe ou lhes; um complemento oblíquo é substituível por um advérbio ou por um pronome precedido de preposição. Assim, para identificar o complemento presente numa frase, substitui-o por o, a, os, as e por lhe ou lhes. Se a frase ficar correta com o, a, os, as, então o complemento é direto; se ficar correta com lhe ou lhes é indireto; se ficar incorreta com direto e indireto, então o complemento é oblíquo. Exs.: 1) Na frase O Pedro leu um livro, a expressão destacada desempenha a função de complemento direto porque pode ser substituída pelo pronome átono o: O Pedro leu-o. 2) Na frase O João mora em Lisboa, a expressão destacada desempenha a função sintática de complemento oblíquo porque não pode ser substituída por o, a, os, as nem por lhe ou lhes, mas pode ser substituída por um advérbio. • O João mora-a. (frase gramaticalmente incorreta) • O João mora-lhe. (frase gramaticalmente incorreta) • O João mora lá. (frase correta) 5.10 Tanto o complemento oblíquo como o complemento indireto podem ser desempenhados por uma expressão iniciada pela preposição a. Nesse caso, como os distingo? Procedendo à substituição dessa expressão por lhe ou lhes. Se a frase ficar correta, estaremos na presença de um complemento indireto; se ficar incorreta, estaremos na presença de um complemento oblíquo. Exs.: 1) A Joana telefonou à mãe. / A Joana telefonou-lhe. (frase correta – «à mãe» é complemento indireto). 2) O Pedro vai a Lisboa. / O Pedro vai-lhe. (frase incorreta – «a Lisboa» é complemento oblíquo). 5.11 O que é o complemento do nome? É uma função sintática selecionada por um nome. O complemento do nome pode ser desem- penhado por um adjetivo, uma expressão iniciada por uma preposição ou por uma oração. Exs.: 1) A pesca desportiva faz-se sempre à linha. 2) A polícia procedeu à identificação do suspeito. 3) A suposição de que os alunos não estudam é abusiva. 5.12 O que é o complemento do adjetivo? É uma função sintática selecionada por um adjetivo. Pode ser desempenhada por uma expres- são iniciada por uma preposição ou por uma oração. Exs.: 1) Inês não estava interessada em Pero Marques. 2) Inês estava interessada em casar com o Escudeiro. O que é? Gramática (cont.) 16
  • 18. 5.13 O que é o predicativo do sujeito? É uma função sintática de uma palavra, uma expressão ou uma oração que indicam algo acerca do sujeito (uma qualidade, um estado, uma localização). Exs.: 1) Os meus amigos estão descontentes. 2) Brás da Mata é um escudeiro pouco escrupuloso. 3) Ele não é quem se pensa. 5.14 Como distingo um predicativo do sujeito de um complemento direto? Basta saber que o predicativo do sujeito é desempenhado por verbos copulativos e que não é substituível pelos pronomes pessoais átonos o, a, os, as. Repara nas expressões destacadas nas frases dos exemplos. Exs.: a) O Pedro ficou em casa. A expressão «em casa» é predicativo do sujeito porque o verbo da frase é copulativo e não pode ser substituído pelos pronomes pessoais átonos o, a, os, as. b) O Pedro viu um lobo. A expressão «um lobo» é complemento direto porque pode ser substituído pelo pronome pessoal átono o. 5.15 O que é o predicativo do complemento direto? É uma função sintática desempenhada por uma palavra, uma expressão ou uma oração se- lecionadas por um verbo transitivo-predicativo (achar, chamar, considerar, julgar, tratar, no- mear…) que indicam algo acerca do complemento direto. Exs.: 1) Ele acha a Inês bonita. 2) Eles consideram aquele aluno muito estudioso. 3) Elas consideram que fumar é prejudicial. 5.16 Como distingo numa frase o complemento direto do predicativo do complemento direto? a) Um complemento direto é sempre função sintática de verbos transitivos diretos, de verbos transitivos diretos e indiretos e de verbos transitivos-predicativos. Exs.: Ele achou um livro. Ele vendeu o livro ao primo. Ele acha a Maria bonita. b) Um predicativo do complemento direto é função sintática apenas de verbos transitivo-predicativos (achar, considerar, eleger…). Exs.: Ele acha a Maria bonita. Eles elegeram o Pedro deputado. c) Um complemento direto é sempre substituível pelos pronomes pessoais átonos o, a, os, as. Um predicativo do complemento direto nunca se pode substituir por estes pronomes. Exs.: Ele achou o livro. / Ele achou-o. Ele acha a Maria bonita. / Ele acha-a. (frase incompleta – Ele acha-a o quê?) Ele acha-a bonita. (frase correta – «a» [complemento direto]; «bonita» [predicativo do complemento direto].) B. 17
  • 19. 5.17 O que é um modificador de grupo verbal? É uma função sintática desempenhada por uma palavra, uma expressão ou uma oração não selecionadas pelo verbo e que podem, por isso, ser omitidas sem que a frase fique gramatical- mente incorreta. Exs.: 1) Eles almoçam calmamente. 2) Eles trabalham em Paris. 3) Eles fazem surf sempre que podem. 5.18 O que é um modificador do nome? É uma função sintática desempenhada por uma palavra, uma expressão ou uma oração não selecionados pelo nome. Os modificadores do nome podem ser restritivos1 ou apositivos2 . 1 São restritivos quando restringem ou limitam a referência do nome que modificam. Podem ser desempenhados por uma palavra, uma expressão ou uma oração subordinada adjetiva relativa restritiva. Exs.: 1) Vivo numa casa arrendada. 2) Vivo numa casa bastante espaçosa. 3) A casa que os meus primos compraram situa-se numa colina. 2 São apositivos quando não restringem nem limitam a referência do nome que modificam. São sempre separados por vírgulas do nome que modificam. Podem ser desempenhados por uma palavra, uma expressão ou uma oração subordinada adjetiva relativa explicativa. Exs.: 1) A ave, livre, voou para longe. 2) Gil Vicente, o maior dramaturgo português, escreveu diversos autos e farsas. 3) Os golfinhos, que são mamíferos, abundam na baía do Sado. 6. A frase complexa: coordenação e subordinação Coordenação 6.1 O que são orações coordenadas? São orações quase sempre ligadas por conjunções ou locuções coordenativas; são independen- tes uma da outra. 6.1.1 Que tipos de orações coordenadas existem? As orações coordenadas são as seguintes: a) copulativas Ex.: Eu brinco e tu lês. b) adversativas Ex.: Comprei o livro, mas não o li ainda. c) disjuntivas Ex.: Ou vou a Paris ou vou a Londres. d) conclusivas Ex.: Estou muito cansado, logo tenho de parar o trabalho. d) explicativas Ex.: Entrego-te o livro, pois não consigo ler mais esta história tenebrosa. O que é? Gramática (cont.) 18
  • 20. Subordinação 6.2 O que são orações subordinadas? São orações quase sempre iniciadas por conjunções ou locuções subordinativas e dependem de uma oração subordinante ou de um elemento subordinante. 6.2.1 Que tipos de orações subordinadas existem? Existem três tipos de orações subordinadas: adverbiais, adjetivas e substantivas. • As adverbiais podem ser: a) causais (Ex.: Vou almoçar porque tenho fome.); b) temporais (Ex.: Vou ao cinema sempre que o filme é recomendado pela crítica.); c) finais (Ex.: Falei alto para que me ouvisses.); d) comparativas (Ex.: Esta cidade é mais bonita do que aquela [é].); e) consecutivas (Ex.: É um país tão bonito que regressarei para o ano.); f) concessivas (Ex.: Embora ele tenha esses defeitos, eu confio nele.); g) condicionais (Ex.: Se vieres, ficarei contente.). • As adjetivas podem ser: a) relativas restritivas (Ex.: Eles ouviram o barulho que fizemos.); b) explicativas (Ex.: Eles leram esses livros, que lhe tínhamos oferecido.). • As substantivas podem ser: a) relativas sem antecedente (Ex.: Quem jogar pode ganhar esse prémio.); b) completivas (Ex.: Ele ontem afirmou perante todos que ia para França brevemente). 6.2.2 De que dependem as orações subordinadas? As orações subordinadas ou dependem de uma oração subordinante ou de um elemento subordinante. • As adverbiais dependem das orações subordinantes. Ex.: Nós fomos ver o filme porque o gabavam muito. • As adjetivas dependem de um nome. Ex.: Nós vimos ontem na estrada o carro que teve o acidente. A subordinada só depende do elemento subordinante sublinhado. • As substantivas dependem de um verbo. Exs.: 1) Ela disse ontem no tribunal que desconhecia essa pessoa. 2) Eu sei bem quem escreveu esse livro. 3) Quem estudar tirará boas notas. 6.2.3 Quais são as funções sintáticas das orações subordinadas? As orações subordinadas desempenham funções sintáticas – em relação à subordinante ou a um elemento subordinante. Alguns exemplos: • As adverbiais desempenham a função de modificador (de grupo verbal ou de frase). Ex.: A minha prima faz os deveres quando chega a casa. (modificador de grupo verbal) Ex.: Caso me saia a lotaria, farei grandes viagens. (modificador de frase) B. 19
  • 21. • As adjetivas desempenham a função sintática de modificador do nome (restritivo e apositivo). Ex.: O livro que ele leu foi escrito por José Saramago. (modificador do nome restritivo) As baleias, que são mamíferos, não aparecem na nossa costa. (modificador do nome apositivo) • As substantivas completivas podem desempenhar as funções sintáticas de sujeito e de complemento (direto, indireto e oblíquo). Exs.: 1) É evidente que este preço é absurdo. (sujeito) (= isso é evidente.) 2) O João disse que vai brevemente a Londres. (complemento direto) (= O João disse isso.) • As substantivas relativas podem desempenhar as funções sintáticas de sujeito, comple- mento (direto, indireto, oblíquo) e modificador. Exs.: 1) Quem tudo quer tudo perde. (sujeito) (= Ele tudo perde.) 2) Ela sabe quem escreveu esse livro. (complemento direto) (= Ela sabe isso.) 3) Dei os livros a quem mos pediu. (complemento indireto) (= Dei os livros ao Pedro.) LEXICOLOGIA 7. Arcaísmos e neologismos 7.1 O que é um arcaísmo? Um arcaísmo é uma palavra, uma expressão ou uma construção sintática que entrou em desuso na língua. Exs.: O advérbio asinha (depressa) deixou de se usar no século XVI. O pronome vós (segunda pessoa do plural) já quase não se usa na comunicação atual, sendo substituído por vocês. 7.2 O que é um neologismo? Um neologismo é uma palavra nova que, num determinado momento, se cria através de meca- nismos já existentes na língua, nomeadamente os processos morfológicos e os processos irre- gulares de formação de palavras. Exs.: deslocalizar (palavra nova formada por derivação por prefixação); bullying (palavra nova proveniente, por empréstimo, do inglês). 8. Campo lexical e campo semântico 8.1 O que é um campo lexical? Um campo lexical consiste num conjunto de palavras de categorias lexicais diferentes (nomes, adjetivos, verbos) que se podem associar pelo sentido a uma mesma área da realidade. Ex.: campo lexical de escola: aula, aluno, professor, ensinar, aprender, aprovado, reprovado. O que é? Gramática (cont.) 20
  • 22. 8.2 O que é um campo semântico de uma palavra? Um campo semântico de uma palavra consiste no conjunto de significados que ela pode ter em diversos contextos. Exs.: campo semântico da palavra cabeça: 1) O ciclista vai na cabeça do pelotão. (à frente, na dianteira) 2) Já não tenho cabeça para decorar todos estes números. (capacidade) 3) Concentra-te: estás sempre com a cabeça noutro lado. (pensamento) 4) Na compra da casa, exigiram-me os juros à cabeça. (adiantados) 5) Não sei esses números de cabeça. (de cor/de memória) 9. Processos irregulares de formação de palavras 9.1 O que é a extensão semântica? É um processo irregular de palavras em que se atribui um significado diferente a palavras já existentes na língua. Exs.: 1) rato (animal roedor) / rato (periférico de computador) 2) janela (de uma casa) / janela (caixa de diálogo / informativa) de programa informático 9.2 O que é o empréstimo? É um processo em que uma palavra de uma língua é adotada por outra. Ex.: as palavras inglesas online e marketing foram adotadas pelos falantes do português e utili- zadas na comunicação. 9.3 O que é a amálgama? É um processo através do qual se forma uma nova palavra pela junção de partes de palavras diferentes. Ex.: A palavra informática resulta da junção dos elementos destacados das palavras infor- mação+automática. 9.4 O que é a sigla? É uma palavra que resulta das letras iniciais de um grupo de palavras. Essas iniciais são pronun- ciadas separadamente. Exs.: 1) PSP 2) GNR 9.5 O que é o acrónimo? É um processo que dá origem a uma palavra formada por letra ou letras iniciais de um conjunto de palavras, e que se pronuncia como uma palavra. Exs.: 1) SIDA (Síndroma da Imuno-Deficiência Adquirida) 2) FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) 9.6 O que é a truncação? É um processo que consiste na redução de palavras mais extensas delas resultando outras de menor extensão. Ex.: A palavra metro formou-se pela redução da palavra metropolitano. B. 21
  • 23. 1. No século XVI, principalmente nas três primeiras décadas, aproximadamente, o Papado foi marcado por grandes escândalos de natureza política, militar, financeira, etc., que provocaram a reação de alguns teólogos contra essa situação. O mais famoso foi Martinho Lutero. 2. Uma das críticas mais contundentes que se fazia ao Papado romano tinha a ver com a chamada questão das indulgências, que consistia, basicamente, no facto de o Papado perdoar pecados a quem os podia remir com dinheiro. Esta situação era intolerável para Lutero e outros teólogos: consideravam que o Papado pecava fortemente com estas práticas. 3. Mas com outras também: escândalos muito fortes, de natureza vária, como referido em 1., abalavam o Papado; mas mais grave ainda era o facto de vários Papas terem uma vida escandalosa em nada condizente com os votos de castidade, pobreza e humildade a que se tinham submetido. 4. Devido ao seu poder político e militar, o Papado envolveu-se em várias guerras, que veio a perder, e que terminaram com o famoso saque de Roma, em 1527: Roma foi invadida e saqueada por cristãos, com o apoio de Lutero, o que marcou negativamente de forma indelével a cristandade desses tempos. 5. A partir daqui o caminho estava aberto para a cisão entre os cristãos, o que aconteceria pouco depois com o aparecimento de vários movimentos reformistas e de protesto contra Roma, de natureza religiosa ou teológica, como os luteranos, os calvinistas, os anglicanos, etc.: a Reforma Protestante. 6. Quando Roma entra em cena, no Auto da Feira, o público reconhece-a como a personagem alegórica que é pecadora, habitual cliente do Diabo – como ela própria admite. Os seus erros – as indulgências, por exemplo – são referidos no auto. E o público reconhecer-se-ia também, por certo, nas admoestações e fortes censuras a ela dirigidas pelo Tempo e por Mercúrio. Afinal, a Reforma estava perto… A crise do Papado: o saque de Roma, a questão das indulgências, o anúncio da Reforma A leitura do Auto da Feira pressupõe que conheças alguns factos relativos à história do cristianis- mo, nomeadamente no século XVI, para melhor compreenderes a luta alegórica nele presente. Assim, apresentamos-te as seguintes informações: Gil Vicente, Auto da Feira 22
  • 24. Gil Vicente, Auto da Feira É o anjo enviado por Deus a pedido do Tempo para o assessorar nas trocas dos «remédios» que se encontram na tenda. O que o Tempo troca precisa de tempo para ser trocado: a paz, os remédios contra as adversidades e a Fortuna, o temor de Deus, as virtudes – tudo se achará na tenda do Tempo. Aparece com uma tendinha de vendedor ambulante, na qual põe à disposição dos compradores toda a espécie de coisas vis e, por isso, não tem dúvidas de que não terá rival nas vendas. Ofende-se quando o Serafim pretende expulsá-lo da feira porque, como diz, quem lhe compra fá-lo por livre vontade: ele não força ninguém. Personagem alegórica, atormentada pela falta de respeito de que é vítima, vem à feira comprar «paz, verdade e fé», mas falta-lhe «santa vida» para dar em troca. Ainda tenta comprá-las com «perdões», «estações» e «jubileus», mas é severamente repreendida pelo Serafim e por Mercúrio. Vêm juntos à feira. Casado com Branca Anes, «a brava», Denis queixa-se dos maus tratos que ela lhe dá e, por isso, pretende vendê-la na feira. Casado com Marta Dias, «a mansa», Amâncio lamenta-se da mulher desajeitada que tem. Mulheres dos anteriores, vêm juntas à feira. Branca, casada com Amâncio, queixa-se de maus hábitos do marido. Ambas demonstram, falando com o Serafim, desinteresse pela transcendência religiosa, centrando-se nos seus interesses materiais. Evidenciam, em geral, um comportamento coletivo, na medida em que atuam como grupo: organizam-se para enganar o Serafim através da informação de Gilberto (vêm «folgar» e não feirar); resistem aos avanços dos «compradores» Mateus e Vicente; recusam em coro comprar «virtudes» porque não proporcionam bons casamentos; cantam em coro à Virgem. Interessam-se por aquilo que as moças do lugar têm para «vender». Desenvolvem com elas diálogos equívocos cheios de sugestões eróticas. De facto, vêm a «amores» e não às compras. Por isso se dirigem à Ribeira, a outra feira. Mercúrio Serafim Tempo Diabo Roma Denis e Amâncio Branca Anes e Marta Dias Nove moças e três mancebos Vicente e Mateus 1. Caracterização das personagens e relações entre as personagens 2. A representação do quotidiano O Auto da Feira permite o conhecimento de aspetos da vida quotidiana do povo no século XVI, como, por exemplo: a crença generalizada na astrologia – denunciada por Mercúrio no seu monólogo inicial; a indicação de mercadorias procuradas por determinadas pessoas ou grupos sociais nas feiras: cartas de jogar, espelhos,unguentos–nãosóparatratardasaúde,masaindacompretensospoderesmágicos–,joias,vestuário,etc.; a feira como lugar de encontro para negociar, mas também para falar com os amigos, desabafar, falar do trabalho rural, da vida familiar, procurar amores… a ignorância religiosa/teológica das camadas populares. A representação do quotidiano passa ainda pelo facto de o Auto da Feira mostrar como as tensões religiosas de índole teológica que grassavam na Europa e conduziram à Reforma estavam bem presentes em Portugal, nomeadamente no público cortesão – nobreza e clero – que assistia ao auto naquele dia de Natal de 1527… Define-se como «senhor / de muitas sabedorias, / e das moedas reitor,», vv. 162-164 (página 29). É, na mitologia romana, o mensageiro dos deuses e o deus do comércio, o que faz dele um hábil negociador – como também se define. Ridiculariza a astrologia, referindo os vários signos do Zodíaco e a sua inutilidade: em nada influenciam a vida das pessoas. 23
  • 25. 3. A dimensão religiosa Apesar da ignorância de natureza teológica que se verifica nos elementos populares presentes no Auto da Feira, este revela modos de viver a prática religiosa por parte do povo: a crença e o medo ao Diabo e ao Inferno; o temor de Deus, da «ira do senhor dos céus», isto é, do castigo divino – típica da mentalidade medieval. Mas o auto é ainda, e principalmente, lugar de crítica ao clero e ao Papado num tempo em que na Europa se anunciava a Reforma. Essa necessidade de reforma, de mudança, de conversão por parte do cristianismo está bem presente no Auto da Feira quando: Mercúrio ataca «clérigos e frades» que só pensam em enriquecer, deixando de ter «ao céu respeito»; o Tempo denuncia as dissensões e as guerras entre cristãos; o Tempo lembra que por todo o lado se perdeu o «temor de Deus»; o Serafim convoca para a feira os «papas adormidos»; o Serafim insta a hierarquia cristã a mudar de roupa, usando as vestes simples dos primeiros «pastores» – modo metafórico de apelar à reforma. Contudo, é com a entrada em cena de Roma que a dimensão religiosa ocupa verdadeiramente o lugar central no espetáculo – desde logo numa perspetiva de reforma. Roma apresenta-se como querendo trocar a mentira e o engano outrora adquiridos ao Diabo, e em que tem vivido por «paz, verdade e fé» – num projeto de conversão. No diálogo com o Serafim, a dimensão religiosa acentua-se quando: o Serafim adverte Roma de que não respeita o «poder profundo» de Deus – daí as guerras em que se envolveu e que perdeu; Mercúrio acusa Roma de ser pecaminosa, referindo-se ao escandaloso pagamento dos pecados através das indulgências, do dinheiro que tudo redime; Mercúrio aconselha Roma a mudar de vida, apresentando Nossa Senhora como exemplo de virtude a seguir;  Mercúrio insta Roma a fazer um exame de consciência para verificar que o erro está nela e que não deve ser a outrem atribuído,erro esse que consiste em ter-se esquecido de Deus, o «poder primeiro»: a ele deve regressar. 4. A representação alegórica A representação no Auto da Feira é alegórica no sentido em que se trata de uma representação do mundo apresentada através de uma série de figuras alegóricas relacionadas entre si. Este tipo de representação, típico do teatro medieval, consiste em apresentar figuras ou personagens cuja natureza é simbólica ou metafórica: o espetador reconhecia imediatamente a presença do Mal em palco logo que o Diabo entrava. No Auto da Feira lutam o Bem (alegorizado no Tempo e no Anjo que o acompanha, o Serafim) e o Mal (alegorizado no Diabo). A crise em que vivia o Papado está alegorizada em Roma, figura que se apresenta ligada ao Mal e a quem o Tempo e Mercúrio avisam que tem de mudar em direção ao Bem. Gil Vicente, Auto da Feira 24
  • 26. Em Gil Vicente, nomeadamente, a designação de Auto aplica-se indiscriminadamente a qualquer tipo de composição dramática, independentemente do seu tema, da sua extensão e da sua estrutura. José Augusto Cardoso Bernardes, «Auto», in Biblos – Enciclopédia Verbo das literaturas de língua portuguesa, Lisboa / São Paulo, Verbo, 1995, vol. I, coluna 455. (Texto adaptado) O Auto da Feira é uma alegoria (ou seja, representação simbólica) do mundo e da luta incessante que nele ocorre entre o Bem e o Mal. Essa luta é transmitida através de um espetáculo de figuras alegóricas, figuras que se podem considerar uma espécie de metáforas ou mesmo de símbolos. Para a representação alegórica desta luta são figuras centrais o Tempo e o Serafim (alegorias do Bem), o Diabo (alegoria do Mal) e Roma (alegoria do Papado em forte crise – dominado pelo Mal). O espetador entendia deste modo o espetáculo do mundo que, de forma artística, indireta, metafórica, simbólica, isto é, alegórica, passava diante de si. Moralidade composta por Gil Vicente «nas matinas do Natal», cerca de 1527. O autor representa o mundo sob a forma duma feira em que os principais vendedores são um Serafim e o Diabo. O primeiro freguês é nem mais nem menos que Roma, símbolo do Papado. A violência do ataque vicentino à cúria romana surpreende-nos, tendo em atenção a data aproximada do auto. As outras personagens (maridos e mulheres queixosos dos respetivos cônjuges, campónios e camponesas, as quais oferecem as suas mercadorias a dois compradores que lhes fazem a corte) exprimem igual desprezo pelas virtudes que o Serafim vende. O auto acaba com uma cantiga entoada pelas camponesas em louvor da Natividade. I. S. R., «Auto da Feira», in Jacinto do Prado Coelho (Dir.), Dicionário de literatura, Porto, Figueirinhas, 1987, vol. I, p. 76. (Texto adaptado) Auto Auto da Feira – uma alegoria, um auto alegórico Auto da Feira Auto da Feira – Estrutura II 1. Mercúrio Monólogo de Mercúrio: • crítica satírica à astrologia e à presunção humana; • anúncio de abertura de uma feira em dia de Natal. 2. A Feira 2.1 Roma • o Tempo monta a sua tenda e anuncia os muitos produtos que vende; o Serafim vem ajudá-lo; • o Diabo anuncia os produtos à venda na sua «tendinha»; • Roma visita a Feira e é avisada de que tem de mudar de vida. 2.2 Os dois casais • dois casais visitam a feira com a intenção de se libertarem dos respetivos cônjuges. 2.3 Os pastores • um grupo de pastores visita a feira com intenção de se divertir em dia de Nossa Senhora. Auto da Feira – Estrutura I […] Auto da Feira, cuja ação aparece disposta em forma de políptico1 , construído a partir da alegoria de uma fei- ra de virtudes, instalada em noite de Natal. Temos primeiro Mercúrio («reitor das moedas») que, num dos monólo- gos mais desenvolvido das moralidades vicentinas, satiriza a astrologia e, através dela, a presunção humana, em ge- ral; a feira, onde pontificam os convencionais mercadores do Bem (o Anjo) e do Mal (o Diabo), é primeiro visitada por Roma, que a ela acorre em busca da «paz dos céus»; mas só a troco de «santa vida» (que não tem) esta lhe poderá ser dada; vêm a seguir dois compadres e duas comadres, casados entre si, na disposição vã de se livrarem dos respetivos consortes. E vem depois um grupo de pastores (rapazes e raparigas), em adequação à circunstância natalícia do auto: estes, porém, não necessitam de comprar mercadorias e, por isso, revelam-se imunes aos oferecimentos que lhes fazem na tenda do Diabo; mas também não lhes interessam os produtos do Serafim, uma vez que tudo aquilo de que necessitam lhes é gratuitamente disponibilizado pela Virgem (patrona da feira). José Augusto Cardoso Bernardes, «VICENTE (Gil)», in Biblos – Enciclopédia Verbo das literaturas de língua portuguesa, Lisboa / São Paulo, Verbo, 2005, vol. V, colunas 816 e 817. Auto da Feira – Natureza da obra (um auto alegórico) 1 conjunto de quatro ou mais quadros independentes entre si, mas subordinados a um só tema 25
  • 27. Nota As informações sobre o vocabu- lário e outros aspetos essenciais à compreensão do texto, que apa- recem em notas, foram retira- das da edição referida, e ainda de Auto da Feira de Gil Vicente, Lisboa, Publicações Dom Quixo- te, 1989. (Introdução e edição in- terpretativa do Professor Luís F. Lindley Cintra). Mer. Pera que me conheçais, e entendais meus partidos2 , todos quantos aqui estais afinai bem os sentidos, mais que nunca, muito mais. Eu sou estrela do céo, e despois vos direi qual, e quem me cá descendeo3 , e a quê 4 ,e todo o al5 que me a mi aconteceo. E porque a estronomia6 anda agora mui maneira7 , mal sabida e lisonjeira, eu, à honra8 deste dia9 , vos direi a verdadeira. Muitos presumem10 saber as operações dos céos, e que morte hão-de morrer, e o que há-de acontecer aos anjos e a Deos, e ao mundo e ao diabo. E que o sabem têm por fé. E eles todos em cabo terão um cão polo rabo11 , e não sabem cujo é12 . E cada um sabe o que monta13 nas estrelas que olhou; e ao moço que mandou, não lhe sabe tomar conta d’um vintém que lh’entregou14 . Porém15 quero-vos pregar, sem mentiras nem cautelas, o que per curso d’estrelas se poderá adivinhar, pois no céo nasci com elas. E se Francisco de Melo16 , que sabe ciência avondo17 , diz que o céo é redondo, e o sol sobre amarelo, diz verdade, não lh’o escondo. - - - - 5 - - - - 10 - - - - 15 - - - - 20 Auto da Feira Gil Vicente, «Auto da Feira», in Teatro de Gil Vicente, Lisboa, Dinalivro, 1988, pp. 265 a 299. (Apresentação e leitura de António José Saraiva) 4 Figuras: Mercúrio1 , Tempo, Serafim, Diabo, Roma, Amâncio Vaz, Denis Lourenço, Branca Anes, Marta Dias, Tesaura, Juliana, Dorotea, Móneca, Gilberto, Nabor, Mateus, Justina, Vicente, Leonarda, Merenciana, Teodora e Giralda. 1 Mercúrio é o astro da mediação, o astro mensageiro por excelência. No auto, é enviado por Deus à Terra, como mensageiro, mas fundamentalmente na função de deus do comércio, hábil negociador; 2 intenções; 3 enviou, fez descer do Céu; 4 e com que fim; 5 e tudo o resto; 6 deve ler-se aqui não a astronomia, uma ciência, mas a astrologia, uma crença sem bases científicas; 7 anda na moda; 8 em honra; 9 o dia de Natal; 10 pretendem; 11 terão um cão atrás deles; 12 de quem é; 13 o que interessa; 14 estes versos constituem uma crítica aos que pretendem ter conhecimentos de astrologia e que acreditam nesta crença; a ironia está neles bem presente, como nos que se lhes seguem; 15 por isso; 16 matemático e astrólogo muito conceituado que se dedicava à astrologia, como era comum na época; 17 sabe muita ciência - - - - 25 - - - - 30 - - - - 35 - - - - 40 Entra primeiramente Mercúrio, e posto em seu assento, diz: Monólogo de Mercúrio, deus dos comerciantes (ou feirantes) 4 Gil Vicente, Auto da Feira 26
  • 28. Que se o céo fora quadrado, não fora redondo, senhor. E se o sol fora azulado, d’azul fora a sua cor, e não fora assi dourado. E porque está governado per seus cursos naturais, neste mundo onde morais nenhum homem aleijado, se for manco e corcovado, não corre por isso mais18 . E assi os corpos celestes vos trazem tão compassados, que todos quantos nacestes, se nacestes e crecestes, primeiro fostes gerados. E que fazem os poderes dos sinos19 resplandecentes? Fazem que todalas gentes ou são homens ou mulheres ou crianças inocentes20 . E porque Saturno a nenhum influi21 vida contina22 , a morte de cada um é aquela de que se fina23 , e não d’outro mal nenhum. Outrossi24 o terremoto, que às vezes causa perigo, faz fazer ao morto voto de não bulir mais consigo, cantá de seu próprio moto25 . E a claridade encendida dos raios piramidais26 causa sempre nesta vida que quando a vista é perdida, os olhos são por demais27 . E que mais quereis saber, desses temporais e disso, senão que, se quer chover, está o céo pera isso, e a terra pera a receber? A lua tem este jeito: vê que clérigos e frades já não têm ao Céo respeito, mingua-lhes as santidades, e crece-lhes o proveito28 . EtquantumadstellaMars,speculumbelli,etVenus, Regina musicae, secundum Joannes Monteregio29 : Mars, planeta dos soldados, faz nas guerras conteúdas30 , em que os reis são ocupados, que morrem de homens barbados mais que mulheres barbudas. E quando Vénus declina31 , e retrograda32 em seu cargo, não se paga o desembargo no dia que s’ele assina, mas antes per tempo largo. Et quantum ad Taurus et Aries, Cancer, Capricor- nius positus in firmamento coeli33 : E quanto ao Touro e Carneiro, são tão maus d’haver agora, que quando os põe no madeiro, chama o povo ao carniceiro «senhor», c’os barretes fora34 . Depois do povo agravado, que já mais fazer não pode, invoca o sino do Bode, Capricórnio chamado, porque Libra não lhe acode35 . Vocabulário 18 note-se a ironia presente em todos estes versos; 19 signos do Zodíaco – a astrologia, por associação; 20 a vacuidade da astrologia está bem presente nestes versos; 21 dá; 22 eterna; 23 de que morre; 24 também; 25 de notar o tom jocoso destes versos [Lindley Cintra]: o cadáver enterrado move-se se houver um terramoto e promete a si mesmo não se mexer mais… 26 a luz dos astros; 27 estes e outros versos de cariz irónico estão ao serviço da denúncia jocosa da as- trologia; neste caso concreto podem significar uma verdade evidente, apresentada como chacota: quem é cego nada vê… 28 trata-se, nas palavras de Lindley Cintra, «do primeiro ataque direto do autor ao clero corrupto da época»; note-se a antítese entre o que lhe falta, a santidade, e o que lhe sobra, o «proveito», a riqueza; 29 e quanto à estrela Marte [o planeta brilhante era considerado uma estrela], espelho da guerra [Marte era o deus da guerra], e a Vénus, rainha da música, segundo João Monterregio, um célebre astrónomo alemão; 30 guerras contínuas; 31 quando o planeta Vénus desce, no seu movimento; o autor, neste e noutros versos, estabelece associações de natureza astrológica entre movimentos dos astros e acontecimentos terrestres – sempre com intenção crítica e de denúncia nos últimos; 32 recua; 33 e quanto ao Touro, Carneiro, Caranguejo e Capricórnio, [quatro importantes constelações para os astrólogos] postos no firmamento do céu; 34 o conjunto dos versos 97 a 101 pode ser lido deste modo [Lindley Cintra]: como atualmente, «agora», é muito difícil conseguir comprar carne de touro e de carneiro, quando o talhante as apresenta para venda, o povo tira o barrete em sinal de respeito; continua aqui a chacota a propósito das crenças astrológicas – na referência às carnes de animais que deram nome a constelações que os astrólogos queriam influir sobre as pessoas, sobre o seu destino… 35 a irrisão sobre as crenças astrológicas continua nestes versos: o povo «agravado», pobre, não consegue dinheiro, moeda, «Libra», nome de uma constelação, para comprar a carne do «bode», chamado Capricórnio – nome de outra constelação - - - - 45 - - - - 50 - - - - 55 - - - - 60 - - - - 65 - - - - 70 - - - - 75 - - - - 80 - - - - 85 - - - - 90 - - - - 95 - - - - 100 - - - - 105 - 27
  • 29. E se este não hás tomado, nem touro, carneiro assi, vai-te ao sino do pescado, chamado Piscis em latim, e serás remediado36 . E se piscis não tem ensejo37 , porque pode não no haver, vai-te ao sino38 do Cranguejo, Signum39 Cancer40 , Ribatejo, que está ali a quem no quer41 . Sequuntur mirabilia Jupiter, Rex regum, dominus dominantium42 . Júpiter, rei das estrelas, deos das pedras preciosas, mui mais precioso qu’elas, pintor de todalas rosas, rosa mais fermosa delas; é tão alto seu reinado, influência e senhoria, que faz per curso ordenado que tanto val um cruzado de noite como de dia43 . E faz que ~ ua nao veleira mui forte, muito segura, que inda que o mar não queira, e seja de cedro a madeira, não preste sem pregadura44 . Et quantum ad duodecim domus Zodiacus, sequitur declaratio operationem suam45 . No Zodíaco acharão doze moradas palhaças46 , onde os sinos47 estão no inverno e no verão, dando a Deos infindas graças. Escutai bem, não durmais, sabereis per conjeituras que os corpos celestiais não são menos nem são mais que suas mesmas granduras48 . E os que se desvelaram, se das estrelas souberam, foi que a estrela que olharam, está onde a puseram, e faz o que lhe mandaram. E cuidam que Ursa maior, Ursa minor e o Dragão, e Lepus, que tem paixão49 , porque um corregedor manda enforcar um ladrão? Não, porque as constelações não alcançam mais poderes, que fazer que os ladrões sejam filhos de mulheres, e os mesmos50 pais varões51 . E aqui quero acabar. E pois vos disse até ’qui o que se pode alcançar, quero-vos dizer de mi, e o que venho buscar. Vocabulário 36 estes versos continuam a «jogar» com nomes de constelações, através de trocadilhos entre esses nomes e determinados alimentos – tudo como forma de criticar a astrologia, de a ridicularizar: se não consegues comer touro ou comer carneiro, come peixe; 37 se não consegues ma- tar a fome com peixe; 38 signo (do Zodíaco); 39 signo (do Zodíaco); 40 signo representado por um caranguejo, a forma da constelação; 41 e se não conseguir peixe, coma caranguejo, encontra-o no Ribatejo; 42 seguem-se as maravilhas de Júpiter, rei dos reis, senhor das dominações; 43 note-se a jocosidade na referência a Júpiter e a quem acredita na astrologia – que diz ser ele poderosíssimo: o que o poder dele consegue é que um cruzado, uma moeda, valha o mesmo de dia e de noite! A referência à influência de Júpiter está na expressão «faz percurso ordenado»: o curso de Júpiter influenciaria os humanos – para os astrólogos; 44 não preste sem que os pregos preguem a madeira; 45 e quanto às doze casas do Zodíaco segue-se a declaração/explicação da sua forma de trabalhar; 46 doze casas feitas de palha: regressa a chacota – sugestiva da vacuidade da crença astrológica, de palha…; 47 signos; 48 grandezas; 49 têm pena; 50 os seus – dos ladrões; 51 as constelações mais não podem do que fazer que os ladrões sejam filhos de homens e de mulheres: sempre a crítica à crença astrológica - - - 110 - - - - 115 - - - - 120 - - - - 125 - - - - 130 - - - - 135 - - - - 140 - - - - 145 - - - - 150 - - - - 155 - - - - 160 - Gil Vicente, Auto da Feira 28
  • 30. 52 sou 53 governador 54 negócios 55 pagamentos Eu são52 Mercúrio, senhor de muitas sabedorias, e das moedas reitor53 , e deos das mercadorias: nestas tenho meu vigor. Todos tratos54 e contratos, valias, preços, avenças55 , carestias e baratos, ministro suas pretenças, até as compras dos sapatos. E porquanto nunca vi na corte de Portugal feira em dia de Natal, ordeno ~ ua feira aqui pera todos em geral. Faço mercador-mor ao Tempo, que aqui vem, e assi o hei por bem. E não falte comprador, porque o Tempo tudo tem. Educação literária 1. Atenta no início do monólogo de Mercúrio. 1.1 Indica, justificando, a quem se refere Mercúrio entre os vv. 16-20. 1.2 Explica de que modo ele ridiculariza seguidamente – vv. 21-40 – essas pessoas. 2. Tem em atenção a pergunta que Mercúrio faz nos vv. 57-58. 2.1 Explica a sua função. 3. Tem em atenção os vv. 82-86. 3.1 Identifica quem é criticado. 3.2 Explicita os motivos da crítica. - - - 165 - - - - 170 - - - - 175 - - - - 180 - Tem em atenção os seguintes vv. 117-121: «Júpiter, rei das estrelas, deos das pedras preciosas, mui mais precioso qu’elas, pintor de todalas rosas, rosa mais fermosa delas;» Apresentam uma sucessão de atributos do planeta Júpiter sob a forma de metáforas:  rei das estrelas, v. 117;  deus das pedras preciosas, v. 118;  pedra mais preciosa do que qualquer pedra preciosa, v. 119;  pintor de todas as rosas, v. 120;  rosa mais formosa do que qualquer rosa, v. 121. Esta sucessão metáforas constitui um recurso expressivo chamado alegoria: Júpiter é representado alegoricamente, através dos seus atributos metaforizados. 29
  • 31. EntraoTempo,earma~ uatendacommuitascousas, e diz: Tem. Em nome daquele que rege nas praças d’ Anvers e Medina as feiras que têm1 , começa-se a feira chamada das Graças, à honra da Virgem parida em Belém2 . Quem quiser feirar, venha trocar, qu’eu não hei-de vender3 . Todas virtudes qu’ houverem mister4 , nesta minha tenda as podem achar, a troco de cousas que hão-de trazer. Todos remédios especialmente contra fortunas ou adversidades aqui se vendem na tenda presente, conselhos maduros de sãs calidades. Aqui se acharão a mercadoria d’amor e rezão, justiça e verdade, a paz desejada5 , porque a Cristandade é toda gastada só em serviço da openião6 . Aqui achareis o temor de Deos7 , que é já perdido em todos estados; aqui achareis as chaves dos Céos, muito bem guarnecidas em cordões dourados. E mais achareis soma8 de contas, todas de contar quão poucas e poucos haveis de lograr as feiras mundanas; e mais contareis as contas sem conto qu’estão por contar9 . Eporqueasvirtudes,senhorDeos,quedigo10 , se foram perdendo de dias em dias, com a vontade que deste ò Messias11 memoria o teu anjo12 que ande comigo13 , Senhor, porque temo ser esta feira de maos compradores, porque agora os mais sabedores fazem as compras na feira do Demo14 , e os mesmos15 diabos são seus corretores16 . Vocabulário 1 em Anvers (Antuérpia, Flandres) e Medina del Campo (Castela) tinham lugar feiras muito importantes; os dois versos são perífrase de Mercúrio; 2 o auto representou-se no dia de Natal de 1527; 3 o Tempo diz que só aceita trocas de bens, nunca dinheiro para adquirir algum bem; 4 necessidade; 5 trata-se de uma «alusão direta» [Lindley Cintra] às guerras várias que iam decorrendo na Europa entre reinos cristãos, das quais o mais famoso e traumatizante episódio foi o saque de Roma, em maio de 1527, no mesmo ano da primeira representação deste auto; 6 os cristãos europeus andam em contínua guerra; 7 temor ao castigo de Deus; 8 muitas; 9 as «contas» referidas nestes versos são as contas a dar a Deus à hora da morte – pelos muitos pecados cometidos; 10 as virtudes que indiquei antes; 11 com a mesma vontade com que enviaste o Messias à Terra; o Tempo dirige-se a Deus, que enviou o seu filho Jesus, o Messias, para salvação do género humano; 12 lembra ao teu anjo; 13 que me proteja; 14 diabo; 15 próprios; 16 os aconselham, aos «mais sabedores» - - - - 5 - - - - 10 - - - - 15 - - - - 20 - - - - 25 - - - - 30 - - - - 35 - Gil Vicente, Auto da Feira 30
  • 32. Vocabulário 17 o anjo pedido («a petição») pelo Tempo a Deus; 18 neste verso e nos quatro anteriores, Gil Vicente faz uma forte crítica à igreja, num tempo em que os cristãos se preparavam para a divisão entre católicos e protestantes, o tempo da Reforma; o Serafim invetiva os «papas adormidos», isto é, o papado que não cumpria o seu dever, e pede que se vistam como os «antecessores», modo metafórico de lhes dizer que deveriam recuperar as virtudes dos primeiros cristãos; 19 mudai a vida de luxo em que viveis; 20 os Papas; o «crucificado» é Jesus Cristo, fundador do cristianismo; 21 poderoso; 22 temei; 23 quantidade; 24 vendedor ambulante; 25 gabar; 26 quem me queira comprar do que vendo; 27 imposto; 28 negócios; 29 quero-me apresentar; 30 impede; 31 falando com tua licença, isto é, permite-me que te diga Entra um Serafim17 enviado por Deos a petição do Tempo, e diz: Ser. À feira, à feira, igrejas, mosteiros, pastores das almas, Papas adormidos! Comprai aqui panos, mudai os vestidos, buscai as çamarras dos outros primeiros, os antecessores18 . Feirai o carão que trazeis dourado19 , ó presidentes do Crucificado20 ! Lembrai-vos da vida dos santos pastores do tempo passado. Ó Príncipes altos, império facundo21 , guardai-vos22 da ira do Senhor dos Céos! Comprai grande soma23 do temor de Deos na feira da Virgem, Senhora do mundo, exemplo da paz, pastora dos anjos, luz das estrelas. À feira da Virgem, donas e donzelas, porque este mercador sabei que aqui traz as cousas mais belas! Entra um Diabo com ~ ua tendinha diante de si, como bofolinheiro24 , e diz: Dia. Eu bem me posso gavar25 , e cada vez que quiser, que na feira onde eu entrar sempre tenho que vender , e acho quem me comprar26 . E mais vendo muito bem, porque sei bem o que entendo; e de tudo quanto vendo não pago sisa27 a ninguém por tratos28 que ande fazendo. Quero-me fazer à vela29 nesta santa feira nova. Verei os que vêm a ela, e mais verei quem m’estrova30 de ser eu o maior dela. Tem. És tu também mercador, que a tal feira t’ofereces? Dia. Eu não sei se me conheces?… Tem. Falando com salvanor31 , tu diabo me pareces. - - - 40 - - - - 45 - - - - 50 - - - - 55 - - - - 60 - - - - 65 - - - - 70 - - - - 31
  • 33. Dia. Falando com salvos rabos32 , inda que me tens por vil, acharás homens cem mil honrados, que são diabos, que eu não tenho nem ceitil33 . E bem honrados, te digo, e homens de muita renda34 , que tem dívedo35 comigo. Pois36 não me tolhas37 a venda, que não hei nada contigo38 . Tempo (ao Serafim): Tem. Senhor, em toda maneira acudi a este ladrão, que há-de danar39 a feira. Dia. Ladrão? Pois haj’eu perdão, se vos meter em canseira! Olhai cá, anjo de bem: eu, como cousa perdida, nunca me tolhe ninguém que não ganhe minha vida, como quem vida não tem40 . Vendo dessa marmelada, e às vezes grãos torrados. Isto não releva nada; e em todolos mercados entra a minha quintalada41 . Ser. Muito bem sabemos nós que vendes tu cousas vis… Dia. I há de homens ruins mais mil vezes que não bôs, como vós mui bem sentis42 . E estes43 hão-de comprar disto que trago a vender, que são artes de enganar, e cousas pera esquecer o que deviam lembrar. Que44 o sages mercador45 há-de levar ao mercado o que lhe compram milhor; porque a ruim comprador levar-lhe ruim borcado46 . E mais47 as boas pessoas são todas pobres a eito; e eu por este respeito nunca trato em cousas boas, porque não trazem proveito48 . Toda a glória de viver das gentes é ter dinheiro, e quem muito quiser ter cumpre-lhe49 de ser primeiro o mais ruim que puder. E pois são desta maneira os contratos50 dos mortais, não me lanceis51 vós da feira onde eu hei-de vender mais que todos, à derradeira52 . Vocabulário 32 a expressão «salvos rabos» está relacionada com «salvanor»: é uma espécie de trocadilho; 33 moeda de fraco valor; 34 muito dinheiro; 35 têm parentesco comigo; 36 portanto; 37 impeças; 38 não tenho nada a ver contigo; 39 condenar; 40 o sentido destes versos e dos anteriores é o seguinte: sou um diabo, portanto não tenho vida, sou «cousa perdida»; ninguém me impede nunca de ganhar a minha vida, como ninguém impede quem é muito pobre de o fazer, quem não tem vida por ser assim pobre [Lindley Cintra]; 41 mercadoria; 42 os homens maus são muito mais do que os bons, como bem sabeis; 43 os homens maus; 44 porque; 45 o mercador habilidoso; 46 enquanto mercador esperto, o Diabo, sabendo que os maus são muito mais do que os bons, leva como mercadoria o que sabe que venderá, dada a qualidade da clientela: patifarias, etc. – «ruim borcado»; 47 além disso; 48 como os bons são pobres, não têm dinheiro para gastar, o Diabo nada de bom leva para a feira; 49 deve: uma vez que a grande «glória» da vida é ter dinheiro e que os maus o têm, quem quiser ser rico tem de ser mau; 50 a mentalidade; 51 expulseis; 52 quando as contas finais da feira se fizerem, ver-se-á que foi o Diabo quem mais vendeu 75 - - - - 80 - - - - 85 - - - - 90 - - - - 95 - - - - 100 - - - - 105 - - - - 110 - - - - 115 - - - - 120 - - - - 125 - - - - Gil Vicente, Auto da Feira 32
  • 34. Ser. Venderás muito perigo, que tens nas trevas escuras53 . Dia. Eu vendo prefumaduras54 , que, pondo-as no embigo, se salvam as criaturas. Às vezes vendo virotes55 , e trago d’Andaluzia naipes56 com que os sacerdotes arreneguem cada dia, e joguem até os pelotes. Ser. Não venderás tu aqui isso, que esta feira é dos céos: vai lá vender ao abisso57 , logo58 , da parte59 de Deos. Dia. Senhor, apelo60 eu disso! Se eu fosse tão mao rapaz, que fizesse força61 a alguém, era isso muito bem; mas cada um veja o que faz, porque eu não forço ninguém. Se me vem comprar qualquer clérigo, ou leigo, ou frade falsas manhas de viver, muito por sua vontade, senhor, que lhe hei-de fazer62 ? Vocabulário 53 referências aos pecados e ao Inferno; 54 perfumes; 55 tipo de flecha curta – por associação, a guerra; 56 cartas de jogar; nestes versos, o Diabo refere o vício do jogo por parte de sacerdotes que chegam ao ponto de perder até a roupa («pelotes») no jogo e de blasfemarem contra Deus enquanto jogam («arreneguem»); 57 abismo, o Inferno; 58 já, imediatamente; 59 por ordem de Deus; 60 o Diabo apela da decisão do Serafim, isto é, protesta contra ela; 61 que obrigasse; 62 neste verso e nos anteriores são apresentadas várias críticas a clientes do Diabo – eclesiásticos e leigos; 63 ser bispo; 64 necessita de ser hipócrita; 65 em concorrência com ele: tanto tem hipocrisia o Diabo como que que quer chegar a bispo; 66 para; 67 unguento, espécie de remédio – aqui associado a bruxaria; 68 para escapar ao convento; 69 hei de satisfazê-la; 70 Mercúrio diz ao tempo para se preparar pois Roma vem à feira; «aparelhar» tem valor imperativo – «Preparai-vos» [Lindley Cintra]; 71 preparar; o Diabo diz que está habituado a negociar com Roma: crítica ao Papado E se o que quer bispar63 há mister hipocresia64 , e com ela quer caçar, tendo eu tanta em perfia65 , porque lh’a hei-de negar? E se ~ ua doce freira vem à feira por66 comprar um inguento67 , com que voe do convento68 , senhor, inda que eu não queira lhe hei-de dar aviamento69 . Mer. Alto, Tempo! aparelhar70 , porque Roma vem à feira. Dia. Quero-me eu concertar71 , porque lhe sei a maneira de seu vender e comprar… Educação literária 1. O Tempo começa por anunciar determinado tipo de mercadoria na sua tenda. 1.1 Identifica a primeira mercadoria que o Tempo anuncia ter na sua tenda de feirante. 1.2 Apresenta uma justificação plausível, tendo em conta o sentido geral do auto, para o facto de o Tempo procla- mar que na sua tenda essa mercadoria não pode ser comprada, mas somente trocada. 2. Atenta na referência à «Cristandade» presente no v. 17. 2.1 Explicita-a, tendo em consideração o ambiente de controvérsia religiosa presente na Europa da época. 130 - - - - 135 - - - - 140 - - - - 145 - - - - 150 - - - - 155 - - - - 160 - - - - 165 - - - - 170 33
  • 35. 3. Atenta nos vv. 28-36. 3.1 Indica a quem se dirige neles o Tempo. 3.2 Explicita o seu pedido. 3.3 Justifica-o. 4. O Serafim entra em cena e convoca para a feira determinadas pessoas. 4.1 Identifica-as. 4.2 Explica por que motivo é que o Serafim as chama. 5. Atenta na entrada do Diabo – vv. 55-64. 5.1 Explica por que razão ele entra em cena autoelogiando-se. 6. Tem em atenção as palavras do Diabo nos vv. 120-121: «Toda a glória de viver / das gentes é ter dinheiro,». 6.1 Apresenta uma opinião pessoal sobre a atualidade destas palavras, justificando. 7. Seleciona a opção correta. O Serafim, para se referir aos perigos do Diabo, usa, no v. 131, «que tens nas trevas escuras.», a. uma personificação. b. um pleonasmo. c. uma hipérbole. d. uma anáfora. 7.1 Justifica, explicitando a sua expressividade literária. 8. Identifica, justificando, os alvos de crítica do Diabo apresentados entre os vv. 135-165. Nesta secção do auto verificaste que as personagens são o Tempo, o Serafim e o Diabo. As duas últimas representam, respetivamente, o Bem e o Mal que sempre – no Tempo – coexis- tiram e entre si lutaram – na natureza humana. Estas não são personagens que correspondam a pessoas ou a classes sociais, mas sim metáforas do mundo, personagens alegóricas. O seu conjunto forma uma alegoria, uma representação simbólica do mundo – na eterna luta entre o Bem e o Mal. Deste modo, o Auto da Feira revela-se como um espetáculo no qual a representa- ção alegórica assume especial significado. Gil Vicente, Auto da Feira 34
  • 36. Entra Roma, cantando: Rom. Sobre mi armavam guerra1 ; ver quero eu quem a mi leva2 . Três amigos que eu havia3 , sobre mi armam prefia4 ; ver quero eu quem a mi leva. Fala Vejamos se nesta feira, que Mercúrio aqui faz, acharei a vender paz, que me livre da canseira em que a fortuna me traz. Se os meus5 me desbaratam6 , o meu socorro onde está? Se os Cristãos mesmos7 me matam, a vida quem m’a dará, que todos me desacatam8 ? Pois s’eu aqui não achar a paz firme e de verdade na santa feira a comprar, cant’a mi dá-me a vontade que mourisco hei-de falar9 . Dia. Senhora, se vos prouver, eu vos darei bom recado10 … Rom. Não pareces tu azado11 pera trazer a vender o que eu trago no cuidado. Dia. Não julgueis vós pola cor12 , porque em al13 vai14 o engano; ca15 dizem que sob mao pano está o bom bebedor16 : nem vós digais mal do ano. Rom. Eu venho à feira dereita17 comprar Paz, Verdade e Fé. Dia. A verdade pera quê? Cousa que não aproveita18 , e avorrece19 , pera que é? Não trazeis bôs fundamentos20 pera o que haveis mister21 ; e a segundo são os tempos, assi hão-de ser os tentos22 , pera saberdes viver. E pois agora à Verdade chamam Maria Peçonha, e parvoíce à vergonha, e aviso à ruindade23 , peitai24 a quem vo-la ponha, a ruindade, digo eu. E aconselho-vos mui bem, porque quem bondade tem nunca o mundo será seu, e mil canseiras lhe vêm. Vender-vos-ei nesta feira mentiras vinta três mil, todas de nova maneira, cada ~ ua tão sutil25 , que não vivais em canseira: mentiras pera senhores, mentiras pera senhoras, mentiras pera os amores, mentiras que a todas horas vos naçam delas favores. E como formos avindos26 nos preços disto que digo, vender-vos-ei como amigo muitos enganos infindos27 , que aqui trago comigo. Vocabulário 1 lutavam por minha causa; 2 quero ver quem vence; 3 provavelmente os «três amigos» eram a França, os estados italianos e Carlos V, que se guerrearam entre si em lutas que incluíram o saque de Roma; 4 lutam por minha causa; 5 os cristãos: os «três amigos» eram todos cristãos; 6 destroem; 7 os próprios cristãos; 8 tratam mal, faltam-me ao respeito; 9 Roma ameaça passar a «falar» «mourisco» caso não consiga encontrar à venda a paz na feira, isto é, Roma como que ameaça mudar de religião, de tal modo é maltratada pelos cristãos, podendo até associar-se aos muçulmanos; 10 conselho; 11 apropriado; 12 o Diabo devia estar vestido de cor vermelha, a cor a ele associada; 13 nisso; 14 está; 15 porque; 16 equivalente ao ditado popular «o hábito não faz o monge»: o Diabo quer dizer que, apesar de estar vestido de vermelho, isso nada de mau significa; 17 diretamente; 18 não serve para nada – a verdade; 19 incomoda – a verdade; 20 bons motivos; 21 para aquilo de que necessitais; 22 cuidados, preocupações; o que o Diabo está a dizer é que em tempos de mentira não vale a pena comprar a verdade; 23 nestes tempos, chama-se à «verdade» «peçonha», isto é, veneno; chama-se à «vergonha» «parvoíce», chama-se à ruindade «aviso», isto é, esperteza; 24 pagai; 25 subtil; 26 logo que cheguemos a acordo nos preços; 27 infinitos - - - - 5 - - - - 10 - - - - 15 - - - - 20 - - - - 25 - - - - 30 - - - - 35 - - - - 40 - - - - 45 - - - - 50 - - - - 55 - - - - 60 - - - - 65 35
  • 37. Rom. Tudo isso tu vendias, e tudo isso feirei28 , tanto que inda venderei, e outras sujas mercancias, que por meu mal te comprei29 . Porque a troco do amor de Deos, te comprei mentira, e a troco do temor que tinha da sua ira, me deste o seu desamor. E a troco da fama minha e santas prosperidades, me deste mil torpidades30 . E quantas virtudes tinha te troquei polas maldades. E pois já sei o teu jeito, quero ir ver que vai cá31 . Dia. As cousas que vendem lá são de bem pouco proveito a quem quer que as comprará… Vai-se Roma ao Tempo e Mercúrio, e diz: Rom. Tão honrados mercadores não podem leixar32 de ter cousas de grandes primores; e quanto eu houver mister deveis vós de ter, senhores. Ser. Sinal é de boa feira virem a ela as donas tais33 ; e pois vós sois a primeira, queremos ver que feirais segundo vossa maneira. Ca, se vós a paz quereis, senhora, sereis servida, e logo a levareis a troco de santa vida. Mas não sei se a trazeis… Porque, Senhora, eu me fundo34 que quem tem guerra com Deos, não pode ter paz c’o mundo; porque tudo vem dos céos, daquele poder profundo. Rom. A troco das estações não fareis algum partido, e a troco de perdões, que é tesouro concedido pera quaisquer remissões35 ? Oh! vendei-me a paz dos céos, pois tenho o poder36 na terra! Ser. Senhora, a quem Deos dá guerra, grande guerra faz a Deos, que é certo que Deos não erra37 . Vede vós que Lhe fazeis, vede como O estimais, vede bem se O temeis… Atentai com quem lutais, que temo que caireis38 . Rom. Assi que a paz não se dá a troco de jubileus39 ? Mer. Ó Roma, sempre vi lá que matas pecados cá, e leixas viver os teus40 . Tu não te corras41 de mi: mas com teu poder facundo42 assolves a todo o mundo43 , e não te lembras de ti, nem vês que te vás ao fundo. Rom. Ó Mercúrio, valei-me ora, que vejo maus aparelhos44 ! Mer. Dá-lhe, Tempo, a essa Senhora o cofre dos meus conselhos: e podes-te ir muito embora. Vocabulário 28 comprei; 29 Roma admite ter comprado tantas mentiras, enganos, etc., «sujas mercancias», ao Diabo, no passado, que até tem para vender; 30 maldades, crimes; 31 o que mais se vende na feira; 32 deixar; 33 senhoras tais como Roma; 34 baseio-me no facto de; 35 este verso e os quatro anteriores revelam uma situação muito criticada na época e que foi um dos motivos que conduziu à Reforma protestante: quem podia pagava, remia os seus pecados com dinheiro e assim era absolvido, tendo, para isso, de visitar igrejas («estações») e de obter indulgências («perdões»); 36 neste caso, o poder de perdoar os pecados recebendo dinheiro – de quem podia pagar…; 37 o Serafim lembra a Roma que Deus não erra: por isso, se Deus lhe levou a guerra, é porque Roma ofendeu a Deus, lhe levou a guerra da ofensa, por exemplo, com as remissões de pecados pagas em dinheiro; 38 porque temo que sereis vencida – por Deus; 39 Roma começa a perceber («assim» = portanto) que se quer a paz, dada por Deus, não pode continuar com práticas como os «jubileus», momentos em que se perdoavam os pecados a troco de generosas esmolas; 40 Mercúrio ataca Roma sem respeito, tratando-a por tu, acusando-a de matar pecados, isto é, de perdoar os pecados dos outros pecando ela mesma; 41 não te afastes; 42 enorme; 43 referência às absolvições dos pecados por dinheiro, o que, para Mercúrio, é um pecado – conferir versos seguintes; 44 maus presságios - - - - 70 - - - - 75 - - - - 80 - - - - 85 - - - - 90 - - - - 95 - - - - 100 - - - - 105 - - - - 110 - - - - 115 - - - - 120 - - - - 125 - - - - 130 - - - - 135 Gil Vicente, Auto da Feira 36
  • 38. Um espelho i acharás, que foi da Virgem sagrada. Co’ele te toucarás, porque vives mal toucada, e não sintes como estás45 : e acharás a maneira como emendes a vida. E não digas mal da feira, porque tu serás perdida, se não mudas a carreira46 . Não culpes aos reis do mundo, que tudo te vem de cima, polo que fazes cá em fundo: que, ofendendo a causa prima, se resulta o mal segundo47 . E também o digo a vós, e a qualquer meu amigo, que não quer guerra consigo: tenha sempre paz com Deos, e não temerá perigo. Dia. Prepósito, Frei Sueiro, diz lá o exempro velho: «dá-me tu a mi dinheiro, e dá ao demo o conselho48 ». 45 Mercúrio aconselha Roma, a Igreja, a ter uma vida santa como a de Nossa Senhora; Roma deve ver-se ao espelho como Nossa Senhora se via; 46 o modo de viver; 47 Mercúrio adverte Roma no sentido de não culpar outros («aos reis do mundo») pelo seu estado: se quer a paz, deve começar por deixar de ofender Deus («a causa prima» – «prima» = primeira); 48 o Diabo, baseando-se num ditado popular («exempro velho»), pede a Roma que não atenda aos conselhos de Mercúrio e lhe compre a ele mercadoria. Educação literária 1. Roma é uma personagem alegórica. 1.1 Explica porquê. 2. Explicita, justificando, a crítica que Roma faz entre os vv. 1-20. 3. Atenta na série de perguntas ou interrogações feita por Roma entre os vv. 11-16. 3.1 Escolhe a opção correta. Com estas interrogações, Roma, refletindo sobre a sua relação com a cristandade, a. espera efetivamente que lhe seja dada uma resposta. b. interroga sabendo já a resposta, isto é, interroga para acentuar a má relação que tem com ela. 4. O Diabo propõe-se vender a Roma determinado tipo de mercadoria, nomeadamente a que apresenta entre os vv. 56- -60. 4.1 Identifica o recurso expressivo que usa para o fazer. 4.2 Explica a sua expressividade literária. 5. Roma faz uma autocrítica entre os vv. 66-80. 5.1 Justifica esta afirmação recorrendo a elementos textuais pertinentes. 6. Explicita as advertências que o Serafim faz a Roma. 7. Explica que tipo de relação se estabelece entre Roma e Mercúrio a partir do v. 131, justificando. 8. A relação entre Roma, o Diabo e o Serafim configura uma representação alegórica. 8.1 Explica porquê. - - - - 140 - - - - 145 - - - - 150 - - - - 155 - - - - Acabas de identificar um recurso expressivo designado por interrogação retórica. Este tipo de inter- rogação formula-se para causar um efeito retórico, isto é, um efeito persuasivo. 37
  • 39. Depois de ida Roma, entram dous lavradores, um per nome Amâncio Vaz, e outro Denis Lourenço, e diz: Ama. Compadre, vás tu à feira? Den. À feira, compadre. Ama. Assi, ora vamos eu e ti ò longo desta ribeira. Den. Bofá1 , vamos. Ama. Folgo bem2 de3 te vir aqui achar4 ! Den. Vás tu lá buscar alguém, ou esperas de comprar? Ama. Isso te quero contar, e iremos patorneando5 , e er6 também aguardando polas moças do lugar. Compadre, enha7 mulher é muito destemperada8 , e agora, se Deos quiser, faço conta de a vender, e dá-la-ei por quase nada. Qu’eu quando casei com ela diziam-me: – étega9 é; e eu cuidei pola abofé10 que mais cedo morresse ela, e ela anda inda em pé. E porque era étega assim foi o que m’a mim danou: avonda11 qu’ela engordou e fez-me étego a mim. Den. Tens boa mulher de teu! Não sei que tu hás, amigo… Ama. S’ela casara contigo, renegaras12 tu com’eu, e dixeras o que eu digo. Den. Pois, compadre, cant’à minha, é tão mole e desatada13 , que nunca dá peneirada14 , que não derrame a farinha. E não põe cousa a guardar, que a tope15 quando a cata16 ; e por mais que homem se mata, de birra não quer falar. Trás d’~ ua pulga andará três dias, e oito, e dez, sem lhe lembrar o que fez, nem tão-pouco o que fará, Pera que t’hei de falar? Quando ontem cheguei do mato17 pôs ~ ua enguia a assar, e crua a leixou levar, por não dizer sape18 a um gato. Quant’a mansa, mansa é ela: dei-me logo conta disso! Ama. Juro-t’eu que mais val isso cinquenta vezes qu’ela. 1 pois sim; 2 estou contente; 3 por; 4 encontrar; 5 falando; 6 além disso; 7 minha; 8 zanga-se facilmente, desbocada; 9 tuberculosa; 10 em boa fé; 11 tanto; 12 a criticaras, lamentar-te-ias; 13 preguiçosa, desajeitada; 14 movimento para peneirar o grão moído; 15 encontre; 16 procura; 17 do monte; 18 interjeição para enxotar gatos - - - - 5 - - - - 10 - - - - 15 - - - - 20 - - - - 25 - - - - 30 - - - - 35 - - - - 40 - - - - 45 - - - - 50 - - Gil Vicente, Auto da Feira 38
  • 40. A minha te digo eu que se a visses assanhada19 … parece demoninhada20 … ante S. Bertolameu21 ! Den. Já siquer terá esprito22 … Mas renega da mulher que ò tempo do mester não é cabra nem cabrito. Ama. A minha tinh’eu em guarda pera bem de minha prol, cuidando que era ourinol, e tornou-se-me bombarda23 . Folga tu que ess’outra tenhas, porque a minha é tal perigo, que por nada que lhe digo24 logo me salta nas grenhas25 . Então tanto punho seco me chimpa nestes focinhos26 ! Eu chamo pelos vezinhos, e ela nego dar-me em xeco27 . Den. Isso é de coraçuda28 ! Não cures29 de a vender: que se alguém te mal fizer já sequer tens quem te acuda. Mas a minha é tão cortês30 que se viesse ora à mão que m’espancasse um rascão31 , não diria: – «Mal fazês.32 » Mas antes s’assentaria33 a olhar como eu bradava34 . Todavia a mulher brava é, compadre, a que eu queria. Ama. Pardeos! Tanto me farás, que feire35 a minha contêgo… Den. Se queres feirar comêgo, vejamos que me darás. Ama. Mas antes m’hás-de tornar36 , pois te dou mulher tão forte, que te castigue de sorte que não ouses de falar, nem no mato, nem na corte. Outro bem terás com ela: quando vieres da arada37 , comerás sardinha assada, porqu’ela jenta a panela38 . Então geme, pardeus, si, diz que lhe dói a moleira39 . Den. Eu faria por maneira que esperasse ela por mi. Ama. Que lhe havias de fazer? Den. Amâncio Vaz, eu o sei bem… Ama. Denis Lourenço, ei-las cá vêm. Vamo-nos nós esconder, vejamos que vêm catar40 , qu’elas ambas vêm à feira. Mete-te nessa silveira, qu’eu daqui hei-de espreitar. Vem Branca Anes a brava, e Marta Dias a mansa, e vem dizendo a brava: Bra. Pois casei má hora, e nela, e com tal marido, prima41 … Comprarei cá ~ ua gamela, par’ò ter debaixo dela, e um grão penedo em cima. Porque vai-se-me às figueiras, e come verde e maduro; e quantas uvas penduro jeita42 nas gorgomeleiras43 : parece negro monturo44 . 19 muito zangada; 20 que tem demónio; 21 São Bartolomeu – santo que se festeja a 24 de agosto, dia em que, na crença popular, anda o diabo à solta; 22 se calhar tem o diabo no corpo; 23 pensei que era mansa mas é brava; 24 qualquer coisita que lhe diga; 25 bate-me; 26 dá-me tantos murros; 27 e ela não para de me bater; 28 corajosa, 29 trates; 30 sossegada, mansa; 31 patife; 32 fazeis mal; 33 ficaria quieta; 34 gritava; 35 troque; 36 dar tornas, uma compensação; 37 do trabalho no campo; 38 ela come a panela toda; 39 cabeça; 40 vejamos o que elas vêm buscar («catar») à feira; 41 forma de tratamento carinhosa, 42 deita, engole; 43 goelas; 44 monte de lixo - - 55 - - - - 60 - - - - 65 - - - - 70 - - - - 75 - - - - 80 - - - - 85 - - - - 90 - - - - 95 - - - - 100 - - - - 105 - - - - 110 - - - - 115 - - - - 39