SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 3
Baixar para ler offline
5
A ARANHA
Um dia, ele conta que tem medo de aranhas . Como
acontece com freqüência no início da análise, tenta
compreender: a aranha é um animal objetivamente
repugnante; além disso, há uma porção de gente
que tem medo de aranhas . Procura dar-lhe uma
significação: é bem conhecida a idéia de que a ara­
nha representa a mãe, ou o sexo feminino . É por
provocar medo e nojo que a aranha representa o
feminino, ou é por simbolizar o feminino que ela
causa medo?
Muitos meses mais tarde, ele sonha que está
montado nos ombros do Papa . O que é que o Papa
vem fazer em seus sonhos (não estamos em 1978)?
Realmente, a única coisa que este sonho lhe evoca
é que ele ocupava, às vezes, esta posição nos ombros
de seu pai quando era pequenino . Além disso, ''pa-.
pa", "papai", soam quase da mesma maneira. Longo
silêncio . . . Quando ele era pequeno, uma frase pas­
sava sempre por seus pensamentos, da qual ele não .
conseguia se desfazer: "O Papa está morto, um novo
28
a aranha 29
papa é chamado a reinar . Aranha . . . "' Completo
mentalmente: "Que nome esquisito para um Papa."
Mas não é disso que se trata . Ele acaba de ser
tomado pelo mesmo medo que teria se o animal
causador da fobia aparecesse . Compreendeu, ao
mesmo tempo, a origem da sua fobia . Mas a histó­
ria ainda não diz se esta, no entanto, desapareceu .
Primeira observação: esta origem é, de saída,
um significante; não está ligada a um acontecimento,
mas a uma frase .
Da mesma maneira que o cavalo do pequeno
Hans saía diretamente de um livro no qual estava
representado em frente ao significante cegonha . O
lobo do homem dos lobos saía também de um livro.
Não é sempre assim?
Segunda observação: Eu disse, inicialmente,
que o paciente buscava a significação de sua fobia .
O que ele descobre no fim será uma sigr1ificação?
Em que consiste a diferença? Como chamá-lo?
A significação dada à aranha é valiosa para
"uma porção de gente", está fixada antecipadamen­
te e, ainda que vaga, tem um efeito de inibição ima­
ginária; nenhuma descoberta pode surgir daí: vejam
a própria forma da pergunta que ela induz no su­
jeito, e da qual ele não consegue sair .
Mas é, exatamente, de uma descoberta qU:e se
trata, no final: esta só vale para o paciente, e o sen­
tido flui aos borbotões. Mas, �obretudo, ela o coloca
na posição de sujeito da enunciação, frente às ques­
tões da ·morte e da procriação . Não é, entretanto,
t No original, há uma homofonia entre os termos à régner (a rei·
nar) e araignée (aranha). (N. da T.)
30 o umbigo do sonho
que o sujeito esteja livre: ''montado sobre os om­
bros" de seu procriador, ele não é de modo algum
mestre da situação . O que ele enuncia, enuncia
apesar de si mesmo . Está preso na cadeia signifi­
cante tão solidamente quanto na cadeia de gerações
- e de modo igualmente deslizante e substitutivo:
ele também é "papai" quando conta o sonho . A ara­
nha representa o sujeito para o Papa morto .
Parece-me que é de sentido que se trata aqui .
O sujeito está aprisionado no sentido, o sentido
único do nascimento à morte . E já que seu nasci­
mento implica a morte de seu procriador, não lhe
resta grande coisa para viver. Nada mais insensato
que o sentido da vida .

Mais conteúdo relacionado

Semelhante a Laurence Bataille - O Umbigo do Sonho, Por uma Prática da Psicanálise-32-34.pdf

Semelhante a Laurence Bataille - O Umbigo do Sonho, Por uma Prática da Psicanálise-32-34.pdf (20)

D 11.pptx
D 11.pptxD 11.pptx
D 11.pptx
 
Vitorino de sousa jesus na nova energia protec
Vitorino de sousa jesus na nova energia protecVitorino de sousa jesus na nova energia protec
Vitorino de sousa jesus na nova energia protec
 
Vitorino de sousa jesus na nova energia protec
Vitorino de sousa jesus na nova energia protecVitorino de sousa jesus na nova energia protec
Vitorino de sousa jesus na nova energia protec
 
Olhos Verdes Cristalinos - Quotes 2
Olhos Verdes Cristalinos - Quotes 2Olhos Verdes Cristalinos - Quotes 2
Olhos Verdes Cristalinos - Quotes 2
 
Seminário Homens em Busca de Amor
Seminário Homens em Busca de AmorSeminário Homens em Busca de Amor
Seminário Homens em Busca de Amor
 
Do realismo do pecado chpr[final]ao
Do realismo do pecado chpr[final]aoDo realismo do pecado chpr[final]ao
Do realismo do pecado chpr[final]ao
 
Pedro Lins: Os Nefilins, Um Pequeno Panorama
Pedro Lins: Os Nefilins, Um Pequeno PanoramaPedro Lins: Os Nefilins, Um Pequeno Panorama
Pedro Lins: Os Nefilins, Um Pequeno Panorama
 
Ataque e defesa astral marcelo ramos mota
Ataque e defesa astral   marcelo ramos motaAtaque e defesa astral   marcelo ramos mota
Ataque e defesa astral marcelo ramos mota
 
54 sexta categoria - segundo subgrupo
54   sexta categoria - segundo subgrupo54   sexta categoria - segundo subgrupo
54 sexta categoria - segundo subgrupo
 
Narração
NarraçãoNarração
Narração
 
1 4918339399097254230
1 49183393990972542301 4918339399097254230
1 4918339399097254230
 
Ap3 8º 2011
Ap3 8º 2011Ap3 8º 2011
Ap3 8º 2011
 
Peeiras HQ
Peeiras HQPeeiras HQ
Peeiras HQ
 
Ciencia-Na-Alma-Richard-Dawkins.pdf
Ciencia-Na-Alma-Richard-Dawkins.pdfCiencia-Na-Alma-Richard-Dawkins.pdf
Ciencia-Na-Alma-Richard-Dawkins.pdf
 
Prova da fumarc, 2010, clínico geral
Prova da fumarc, 2010, clínico geralProva da fumarc, 2010, clínico geral
Prova da fumarc, 2010, clínico geral
 
Ebook
EbookEbook
Ebook
 
Olhos Verdes Cristalinos - Quotes
Olhos Verdes Cristalinos - QuotesOlhos Verdes Cristalinos - Quotes
Olhos Verdes Cristalinos - Quotes
 
2007 0911torricelli
2007 0911torricelli2007 0911torricelli
2007 0911torricelli
 
Projeto rosa e lilás 2º d
Projeto rosa e lilás   2º dProjeto rosa e lilás   2º d
Projeto rosa e lilás 2º d
 
Narração
NarraçãoNarração
Narração
 

Laurence Bataille - O Umbigo do Sonho, Por uma Prática da Psicanálise-32-34.pdf

  • 1. 5 A ARANHA Um dia, ele conta que tem medo de aranhas . Como acontece com freqüência no início da análise, tenta compreender: a aranha é um animal objetivamente repugnante; além disso, há uma porção de gente que tem medo de aranhas . Procura dar-lhe uma significação: é bem conhecida a idéia de que a ara­ nha representa a mãe, ou o sexo feminino . É por provocar medo e nojo que a aranha representa o feminino, ou é por simbolizar o feminino que ela causa medo? Muitos meses mais tarde, ele sonha que está montado nos ombros do Papa . O que é que o Papa vem fazer em seus sonhos (não estamos em 1978)? Realmente, a única coisa que este sonho lhe evoca é que ele ocupava, às vezes, esta posição nos ombros de seu pai quando era pequenino . Além disso, ''pa-. pa", "papai", soam quase da mesma maneira. Longo silêncio . . . Quando ele era pequeno, uma frase pas­ sava sempre por seus pensamentos, da qual ele não . conseguia se desfazer: "O Papa está morto, um novo 28
  • 2. a aranha 29 papa é chamado a reinar . Aranha . . . "' Completo mentalmente: "Que nome esquisito para um Papa." Mas não é disso que se trata . Ele acaba de ser tomado pelo mesmo medo que teria se o animal causador da fobia aparecesse . Compreendeu, ao mesmo tempo, a origem da sua fobia . Mas a histó­ ria ainda não diz se esta, no entanto, desapareceu . Primeira observação: esta origem é, de saída, um significante; não está ligada a um acontecimento, mas a uma frase . Da mesma maneira que o cavalo do pequeno Hans saía diretamente de um livro no qual estava representado em frente ao significante cegonha . O lobo do homem dos lobos saía também de um livro. Não é sempre assim? Segunda observação: Eu disse, inicialmente, que o paciente buscava a significação de sua fobia . O que ele descobre no fim será uma sigr1ificação? Em que consiste a diferença? Como chamá-lo? A significação dada à aranha é valiosa para "uma porção de gente", está fixada antecipadamen­ te e, ainda que vaga, tem um efeito de inibição ima­ ginária; nenhuma descoberta pode surgir daí: vejam a própria forma da pergunta que ela induz no su­ jeito, e da qual ele não consegue sair . Mas é, exatamente, de uma descoberta qU:e se trata, no final: esta só vale para o paciente, e o sen­ tido flui aos borbotões. Mas, �obretudo, ela o coloca na posição de sujeito da enunciação, frente às ques­ tões da ·morte e da procriação . Não é, entretanto, t No original, há uma homofonia entre os termos à régner (a rei· nar) e araignée (aranha). (N. da T.)
  • 3. 30 o umbigo do sonho que o sujeito esteja livre: ''montado sobre os om­ bros" de seu procriador, ele não é de modo algum mestre da situação . O que ele enuncia, enuncia apesar de si mesmo . Está preso na cadeia signifi­ cante tão solidamente quanto na cadeia de gerações - e de modo igualmente deslizante e substitutivo: ele também é "papai" quando conta o sonho . A ara­ nha representa o sujeito para o Papa morto . Parece-me que é de sentido que se trata aqui . O sujeito está aprisionado no sentido, o sentido único do nascimento à morte . E já que seu nasci­ mento implica a morte de seu procriador, não lhe resta grande coisa para viver. Nada mais insensato que o sentido da vida .