O documento discute o papel da extensão universitária nas ligas acadêmicas de medicina para ajudar a contornar o modelo flexneriano centrado na doença. A extensão pode fornecer um espaço para questionar conceitos ensinados e construir novos com a comunidade, focando na pessoa. Ela deve priorizar comunidades desfavorecidas e manter diálogo horizontal entre saberes populares e científicos.
1. O PAPEL DA EXTENSÃO NAS LIGAS ACADÊMICAS
Em 2014, o Ministério da Educação homologou o documento das Novas Diretrizes
Curriculares (DCNs) referentes ao curso de Medicina. Essas diretrizes foram formadas
com o intuito de adequar as grades curriculares já existentes no Brasil, como também,
padronizar aquelas dos cursos que estão por abrir. Elas foram lançadas com o objetivo
de reforçar as DCNs criadas em 2001, e de obrigar a sua total inserção na graduação.
Neste sentido, buscou-se resgatar o caráter antropológico e social da Medicina
praticada por Hipócrates, quando, em seu artigo 3º se diz:
" O graduado em Medicina terá formação geral, humanista, crítica,
reflexiva e ética, com capacidade para atuar nos diferentes níveis de
atenção do processo saúde-doença, com ações de promoção,
prevenção, recuperação e reabilitação da saúde, nos âmbitos
individual e coletivo, com responsabilidade social e compromisso com
a defesa da cidadania e da dignidade humana, objetivando-se como
promotor da saúde integral do ser humano." (DCN- 2014)
Entretanto, como já se tem visto nas instituições de ensino superior que adotaram tal
eixo de ensino, ainda existe uma enorme lacuna entre o que é ensinado em sala de
aula e nas práticas com o que se pretendeu estimular nos futuros médicos. Uma vez
que não existe clareza na diferenciação dos conceitos de "humanização" e
"cordialidade" para os médicos docentes, este acaba sendo pregado em toda a
graduação, e há pleno convencimento por parte dos discentes, de que médico
humanizado figura-se apenas na imagem de um clínico o qual saiba se portar de
maneira educada e acolhedora em uma determinada comunidade, com o propósito de
conquistar a confiança e a simpatia de seus futuros pacientes. Entretanto, como todo o
seu conhecimento baseou-se apenas na aprendizagem de protocolos definidos
internacionalmente, sua percepção da pessoa sentada por trás da mesa de consultório
torna-se nula, sendo feito um contrato de tratamento apenas dos sinais e sintomas
apresentados pela mesma.
Uma das possíveis explicações para esse fenômeno consiste na forte presença da
incorporação do modelo flexneriano nas faculdades brasileiras. Resumidamente, este
modelo tem o seguinte pressuposto: O ciclo clínico deve-se dar fundamentalmente no
2. hospital, pois ali se encontra o local privilegiado para estudar as doenças. Nas
palavras do próprio Flexner: “O estudo da medicina deve ser centrado na doença de
forma individual e concreta”. A doença é considerada um processo natural, biológico.
O social, o coletivo, o público e a comunidade não contam para o ensino médico e não
são considerados implicados no processo de saúde-doença. Portanto, os hospitais se
transformaram na principal instituição de transmissão do conhecimento médico. Às
faculdades resta o ensino de laboratório nas áreas básicas (anatomia, fisiologia,
patologia) e a parte teórica das especialidades.
Analisando toda essa prerrogativa apresentada acima, chega-se ao seguinte desafio:
como um modelo de ensino vigente desde meados do século XX, fundamentado na
Medicina centrada na doença e não na Medicina centrada na pessoa, o qual foi a
referência de conduta de todos os médicos e futuros professores formados durante
todo esse período, pode ser contornado no sentido de trazer o olhar destes
profissionais para o enfrentamento da real necessidade da população brasileira?
Nesse contexto engessado de graduação, grupos de alunos interessados em procurar
alternativas metodológicas diferentes para aquisição de conhecimento na área da
Saúde, organizaram-se sob a forma de grupos que, dotados de certa autonomia e sob
a supervisão de um profissional atuante na área, denominaram-se de ligas
acadêmicas. Como as ligas surgiram sob a forma de uma fuga da metodologia padrão
nacionalmente utilizada e dentro da estrutura da faculdade, elas tiveram que se
adequar às bases do tripé universitário: ensino, pesquisa e extensão.
Retomando o desafio ao modelo flexneriano anteriormente citado, pode-se dizer que a
extensão das ligas acadêmicas figura-se como o espaço ideal para que haja um
verdadeiro processo de conscientização dos acadêmicos a respeito da real
importância de se pensar de forma crítica e reflexiva a realidade existente fora das
salas de aulas, dos ambulatórios e dos hospitais, no sentido de se traçar um perfil
médico humanístico de fato. Ou seja, um médico capaz de perceber e reconhecer toda
uma série de conflitos, traumas preconceitos e demais questões culturais existentes
na vida da pessoa a quem se atende, para que, dessa forma, ela possa fornecer
ferramentas e direcionamentos realmente efetivos e convincentes à procura por
mudança advinda do próprio paciente.
Com esse objetivo, sugere-se que a extensão universitária feita no espaço das ligas
deva seguir o caráter de rever os conceitos que nos foram ensinados de forma não
reflexiva, e assim, buscar construir, junto com a comunidade alvo, conceitos de Saúde
e de adoecimento respaldados nos diferentes modos de viver, sob diferentes visões da
3. cultura, e, sobretudo, sobre a questão da exploração do trabalhador nos diversos
contextos econômicos.
Para isso, torna-se necessária a presença de vários aspectos na extensão, como: a
escolha da comunidade a ser trabalhada ( tendo como prioridade trabalhar com
aquelas menos favorecidas no contexto da construção histórica do Brasil); o cuidado
constante em manter uma forma de diálogo horizontalizada, em que todos os saberes
sejam respeitados (conhecimento popular e científico); a estratégia de se traçar
caminhos e alianças entre a comunidade e as entidades governamentais responsáveis
por sanar as demandas levantadas (controle social do SUS, etc); e, a percepção da
necessidade de intervenções pontuais quando há demandas mais agudas ou quando
a falta de acesso da comunidade à tal demanda seja de causa antropológica (como é
o caso do acesso à educação e lazer).
Dessa forma, pode-se concluir que o modelo ideal de extensão seja aquele que ocorra
como uma via de mão dupla entre universidade e comunidade, num verdadeiro diálogo
entre saberes reconhecidamente relevantes para ambas as partes, objetivando uma
universidade voltada para a resolução dos problemas levantados a partir desse
diálogo, assim como, uma comunidade esclarecida a respeito de seus Direitos como
cidadão (incluindo os relativo à Saúde) e sobre como interferências da vida cotidiana
podem refletir na integralidade da Saúde.
Lívia Paula Calado
Coordenação de Extensão Universitária- DENEM