2. Fui trazida pela cegonha. Vi a luz do império do Leão de Judá. Fui transplantada em seguida para amamentar-me com o leite da Loba Capitolina.
3. O coelhinho levou meu primeiro dente. O Bicho-Papão estabeleceu meu primeiro medo. A Gata Borralheira foi minha primeira história. O Gato-De-Botas a segunda. Aos poucos, comecei a formar minha cultura estudando os feitos das Águias Imperiais.
4. Estourada a guerra, agigantava-se o Urso alemão. E ao mesmo tempo em que me debruçava sobre os versos de Virgílio, Cisne de Mantua, acompanhava pelo rádio os feitos de Rommel, Raposa do deserto.
5. Mas chegou a hora de a onça beber água, a guerra acabou, e lá vim eu para o Brasil, terra de Zé Carioca, que eu já conhecia através do símbolo A Cobra Está Fumando.
6. No colégio soube da argúcia de Rui Barbosa, Águia de Haia. Ainda demoraria um pouco para descobrir o encanto de Rubem Braga, doce Sabiá da Crônica. E só bem mais tarde mergulharia nas profundezas de Herman Hesse, Lobo da Estepe.
7. Criava aos poucos minha sabedoria. Na primavera descobri que uma andorinha não faz verão. E no verão me dei conta de que mais vale um pássaro na mão que dois voando.
8. O primeiro susto me ensinou que cão que ladra não morde. E com a primeira mordida aprendi que não se deve cutucar a onça com vara curta.
9. Sem ter exatamente sete vidas como um gato, ia levando minha vidinha. Houve momentos em que tive fome de lobo, e outros em que me vi com sede de camelo.
10. E ao longo do tempo me esforcei sempre para ser como Cristo pediu aos Apóstolos: “prudente como a cobra e simples como a pomba.” Não posso dizer que seja astuta como a raposa, mas garanto que não sou estúpida como uma anta, nem burra como o próprio.
11. O mundo porém não é para pombas, e logo tive que reconhecer que o homem é o lobo do homem, embora o seja mais da mulher, sobretudo quando é também porco chauvinista.
12. Apelei então para o cão, que, este sim, é o melhor amigo do homem. E sem me pavonear de minhas virtudes, nem morcegar as virtudes alheias, fui em frente. Ah, não tenho lagartixado tanto quanto gostaria!
13. Assisti aos mais altos voos da águia americana (enquanto a águia do México ia perdendo suas penas).
14. Mas os capitalistas são tigres de papel e em festa de nhambu jacu não entra. Vai daí, eu que sou pobre e ainda não ganhei nenhuma fortuna no jogo do bicho, tirei meu cavalinho da chuva e aderi ao velho sistema de cada macaco no seu galho.
15. Em suma, sobrevivo sem apanhar como boi ladrão. Mas há dias em que me ponho a pensar na morte da bezerra, e de tanto pensar amarro um bode. Num mato sem cachorro, acabo rindo como uma hiena, certa de que é tudo obra do amigo-da-onça.
16. Espero apenas, como o peru, não morrer de véspera. E enquanto espero, penso no tremendo vazio que seria minha vida sem a existência do reino animal. Marina Colasanti Imagens: Google Música : Chorinho - Sivuca Formatação Christina Meirelles Neves