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o REALISMO DE CADA
interdependência e relações
políticas entre os Estados no
mundo pós- erra fria
•
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We are presented with a rare
historical momem in which (...) the
transfonnations of economies are
blurring the lines between natwns1
Robert B. Reich
The boss of an internatwnal cempany
who staked everything on a strong
move of the world ecenomy towarda
integration in the next five years
would be a foal.2
The Economist
ivemos numa era de interdepen­
dência. Esta frase vaga expressa
um sentimento mal compreendido,
embora generalizado, de que a-própria
natureza da política mundial está mu­
dando."
Marcos B. A. Ga/vão
Assim começa, não o último livro da
moda sobre o chamado pás-guerra fria,
mas o já 'clássico' Power and interck­
pencknce, lançado ainda nos anos 70.3
Os autores partem do pressuposto de
que nem os 'tradicionalistas', com sua
insistência na atualidade intocada dos
postulados do realismo, nem os 'mo­
dernistas" convencidos de que as tele­
comunicações e o avião ajato estariam
criando uma 'aldeia global' sem fron­
teiras, oferecem uma moldura adequa­
da à compreensão da interdependên­
cia. Enquanto 05 primeiros insistem na
prevalência do fator estratégico-mili­
tar e revelam-ee incapazes de atribuir
o necessário peso ao aprofundamento
da interdependência econômica, social
e ecológica, 08 últimos apreBSam-ee em
considerar que 08 avanços tecnológicos
e o aumento das transações internacio-
Nota:. O presente artigo é escrito 8 Ululo pcsoai e não representa o pen60mento do Ministério dQ8
RelAções Exleriore8. Gelson Fonseca Jr., Luís Fernando Panelli César, Evandro OidoneL, Sérgio DanE!e,
Alexandre Parola e Gisela PQ8Choal contribufram com críticas e sugestões.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 6, n. 12, 1993, p. 149-161.
•
150 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1993/12
nais levariam a um mundo em que 08
Estados e o controle da força armada
perderiam importância.
4
Com a vantagem da perspectiva de
meados de 1993, sabemos que os mo­
dernistas acertaram muito mais do
que Keohane e Nye jamais poderiam
supor. Tal fàto não retira, porem, a
utilidade de muitos aspectos desenvol·
vidos em Power anel interdependence,
razão pela qual o presente texto come­
ça por um breve apanhado de algumas
idéias centrais do livro.
Os autores partem de raciocínio
simples: interdependência 'significa
dependência mútua e, no caso de polí­
tica internacional, refere-se a situa­
ções de efeito recíproco entre países ou
atores em diferentes países. Tais efei·
tos decoJ'J'em, com freqüência crescen­
te, de transações internacionais - flu­
xos de dinheiro, bens, pessoas e men­
sagens através das fronteiras. Evitan­
do otimism06 infundados, Keohane e
Nye advertem que tal definição não se
restringe a situações em que DCOne
beneficio mútuo (e vão mais além): to­
da relação de interdependência envol­
ve custos, ao menos na COllUa de limi­
tação da autonomia, e não há como
saber a priori se os ganhos serão sufi­
cientes para compensá-los. Aliás, tam­
pouco haveria razões para assumir que
a possibilidade de ganhos compartidos
ajudaria a diminuir a disputa para
apropriá-los: em 6uma, não estaria
ocorrendoB substituição do velbo mun­
do mau do conflito internacional pelo
novo mundo bom da cooperação.
Em geral, observam, as situações de
interdependência não são equilibra·
das; encontram-se geralmente entre os
extremos da simetria perfeita, de um
lado, e da dependência completa, do
outro. A posição ocupada nesse espec·
tro afeta as condições de barganha en­
tre os atores envolvidos,pois a interde­
pendência assimétrica (em que um de-
pende mais do que o outro) pode, evi·
dentemente, transeOJmAr�e em fonte
elou instrumento de poder. Por si SÓ, no
entanto, essa Assimetria não explica o
desdobramento e o resultado dos pro­
cessos específicos de negociação,já que
há diversas modalidades de interde­
pendência, as quais se tradurem em
diferentes relações de poder.
Antes de delinearem seu modelo al­
ternativo, Keohane e Nye invocam o
'papa' do realismo e sua obra.mestra,
6
para resumir os fundamentos daquela
linha de pensamento:
a) os Estados são05 atores dominan­
tes Das relações internacionais e com­
portam-se como unidades coerentes;
b) embora outros,instrumentos tam­
bém possam ser utilizados, o liSO da
força, ou a ameaça de seu emprego, é a
COlma mais efetiva de exercício do po­
der,
c) existe uma hierarquia de temas
na política mundial, com predomínio
das questões de segurança militar so­
bre 08 assuntos econômicos e sociais.
Aos parãmetros básicos do realis­
mo, Keohane e Nye opõem as linhas
essenciais do modelo que designam 'in_
terdependência complexa':
a) as sociedades são ligadas por 'ca­
nais múltiplos'- fOl'lIIais,de governo a
governo; infol"mais,entre elites gover­
namentais e não-governamentais, e
entre organizações transnacionais;
b) a agenda das relações interesta­
tais não obedece a uma hierarquia clara
e consistente - os temas de segurança
nem sempre predominam; muitas ques­
tões têm origem no cenário nacional e
díficultam a distinção entre interno e
externo; matérias diferentes levam a
coalizões também distintas (dentro, fo­
ra e entre 06 governos) e acarretam
graus variados de conflito;
c) quando a interdependência com­
plexa prevalece numa dada região ou
num determinado tema, os governos
o REAUSMO DE CADA UM 151
envolvidos não empregam a força uns
contra os outros.
Enquanto model06, tal como descri­
tos acima, o realismo e a interdepen­
dência complexa não são necessaria­
mente excludentes e podem mesmo
complementar-.;e. Em certo sentido,
trata-se de duas formas próximas de
analisar arealidade,já que ambas pro­
curam revelar o mundo como ele é, não
como deveria ser. A diferença funda­
mental entre elas reside na disp06ição
menor ou maior de reconhecer que
houve mudanças e6senciaia nas re­
gi85, ou pelo menoe na prática das
relações internacionais..
Os chamados 'realistas' insistem na
atualidade de seus pressupostos, com
uma certa dose de fatalismo: o mundo
é assim, a natureza humana é assim,
8S relações internacionais são assim.
Quando confrontados, por exemplo,
com o fato de que há décadas não ocor­
rem guerras entre 05 atores mais rele­
vantes do sistema internacional, ou en­
tre duas democracias, respondem com
o argumento de que, em primeiro lu­
gar, essa paz deveu--se a uma situação
clara de equilíbrio de poder entre as
superpotências, em consonância, por­
tanto, com as prescrições do realismo.
E raramente deixam de assinalar que,
em última instância, 06 conflitos ten­
derão a ser dirimidos entre Estad06, a
partir do uso, ou ameaça de emprego
da força. Por detrás da visão realista
parece haver sempre um tom de sahe­
doria confol'mista: não se iludam com
as aparências, o mundo não mudou
(nem vai mudar) tanto assim.
Já os chamad06 'modernistas', na
designação de Keohane e Nye, exage­
ram na ênfase que dão 806 sinais de
mudança. Se isto já ocorria nos anos
70, com muito mais razão acontece ho­
je: a guerra fria acabou, a União Sovié­
tica dissolveu·se, o comunismo está em•
vias de extinção. E hem mais fácil su-
•
por, idealmente, que vivemos num
mundo novo do que insistir em que, no
essencial, as COi888 continuam iguais.
A maior parte da literatura sobre
relações internacionais ainda é produ­
zida n06 Estados Unid06 e dirige...e
prioritariamente ao público daquele
país. Ora, 06 acontecimentos dos ú1ti­
m06 quatro an06 afetaram fundamen­
talmente a posição d06 EUA no mundo
e alteraram o pepel que lhes cahe no
cenário internacional. Essa circui15-
tãncia, aliada à percepção de perda de
espaço relativo no conjunto da econo­
mia mundial, fenômeno que vem sendo
apontado há mais de vinte an06, refor­
çou ainda mais a vocação do mundo
acadêmico para tentar identificar no­
vas tendências globais e indicar cami­
nhos alternativos.
Há mais de quinze anos Keohane e
Nye já alertavam que, para os EUA,
uma questão central seria como exercer
liderança internacional sem capacidade
hegemônica: 'Temos de aprender tanto
a conviver com a interdependência, co­
mo a utilizá-la no exercício de lideran­
ça".6 Lester Thurow, em 1992, também
anuncia novidades e oferece conselhos:•
"E dificil admitir que o mundo mudou e
que as n0S88� antigas virtudes já não
são virtudes. E muito difícil reconhecer
que novas realidades forçam a criação
de novas virtudes - noV06 procedimen­
toe, novas regras, e novas instituições".7
Laura Tyaon é ainda mais explícita: "O
colapso da URSS oferece oportunidade
para reconsiderar prioridadee nacio­
nais e para ti"ocar 06 deeafi08 militaiC6
1�t��do pelosdesafioseconômiC06 do
Aliás, essa é uma diferença entre 08
modernistas (sobretudo 06 economis­
tas) e 06 realistas. Os primeiroe apon­
tam para a interdependência econômi­
ca, para o processo da chamada 'globa­
lização', e, a partir daí, faum suas
anãlises e recomendações. Os últimos,
152 ESTIJDOS HISTÓRICOS-1993/12
jX)r sua vez, comportam-se como ver·
dadeiroe marxistas às aveesB5, ou seja,
encaram as conelaçóes de poder e se­
gurança militar como dado estrutural,
e 88 mudanÇ8B no plano econômico,
como fenômeno8 8upereetruturais.
Contrariam, Assim, evidências inefuw
táveis de que, nas palaVl'88 de Gelson
FoD6eC8. Jr., °8 economia deixa de ser
comandada pelas nece68idades de se­
gurança e passa a gerar pautas para a
decisão política".
9
De qualquer modo, não épropósito do
pl'esente trabalho aprofundar a análi.se
das divergêllL'ias de ponto de vista entre
cOl'l'entes teóricas. O objetivo da descri­
ção simplificada dos dois modelos é Ie
forçar a idéia, defendida por Keobane e
Nye, de que a compreensão das relações
internacionais no mundo contemJXlrâ­
neo não invalida as concepçõestradicio­
nais, baseadas no primado das relações
de poder entre Estados, mAS exige que
sejam combinadas com novas fOl"mula­
ções, no centro das quais se encontra,
com peso significativo, a noção de inter­
dependência, que não se limita à esfera
econômica, e abrange todas as oubas
dimensões da vida coletiva das socieda­
des.
Três temas da transição
Os eventos dos últimos anos f12eram
com que mesmo 06 analistas mais céti­
COS reconheçam algum nível de mu­
dança e que, em sua grande maioria,
admitam estanll08 atravessando um
período de transição no qual continui­
dades convivem com descontinuida­
des, o velho, com o novo: em primeiro
lugar, nem tudo mudou; em segundo,
nem tudo muda no mesmo ritmo. No­
ta-ae, por exemplo, uma clara diferen­
'ça de 'tempos'- enquanto as ltaDsfor­
mações no âmbito político estratégico
ocol"leram mais recentemente e foram
marcadas por acontecimentos de li'an­
de impacto efetivo e simbólico (queda
do muro de Berlim, extinção da URSS),
na área econômica estão em curso pro·
ce8808 (transnacionalização e integla·
ção econômica, globalização, aumento•
do peso da Europa e Aeia-Pacífico, que
paessm a ser vistos como novos 'pólos'
das relaÇÔ<ll5 internacionais) que se
vêm aprofundando há IDai. de trinta
anos e não tiveram marcoe divisores
táo I;)Ítidos.
Ainda assim, existe uma razoável
coincidência de opiniões quanto às ca­
racterísticas mais marcantes do perío·
do em que vivemos, as quais podem ser
mais claramente visualizadas se con·
siderarw08, entre outroe,os três aspec·
tos mencionados na descrição dos mo­
delos do realismo e da interdependên­
cia complexa.
I - Papel do Estado
Falar em 'crise do Estado'tornou-se
um verdadeiro clichê na última déca­
da. Oe diagnósticos e crítiCAS vieram
das fontes mais variadas: dos neolibe­
rais conservadores, que atacaram o
welfare state; da eequerda, que conti­
nuou a reclamar o cumprimento das
obrigações sociais do setor público e a
resistir à hegemonia neoliberal; dos
'pós-modernos' (verdes, paCifIStas, ho­
m088exuais, ONGs etc.), que int,odu­
zÍtam nOVaB reivindicações na agenda
política e não se satisfizeram com a
resposta por parte do Estado; e da pró­
pria burocracia estatal, que sofre com
a crescente disparidade entre o volume
de encargos e a escassez de meioe e
anseia por modernizar-se.
Por outro lado, as sociedades torna­
ram·se mais complexae e, a cada dia,
novos temas demandam a ação do Es­
tado. Nas palaVl'88 de Celso Lafer, "015
governos não estão conseguindo mais
o REALISMO DE CADAUM 153
processar ae demandas que lhes che­
gam".lO No dizer de Nicoe Poulantzaa,
a legitimação do Estado pa..... a depen­
der de uma 'racionalidade instrumen­
tal', ou seja, do julgamento da eficiên­
cia de suas incurséiee no domínio da
econOlnia (para enfrentar problemaa,
como a inflação e o desempre�, que
não tem capacidade de resolver).ll Es­
taríamos,assim,bempróximosdeuma
situação de pelmanente crise de legiti­
midade.
Além dessas dificuldades na frente
interna, é amplamente aceito que a
interdependência cada vez mais pro­
funda na economia mundial, com a
presença marcante deentidades trsns­
nacionais, e a intensificação dos conta­
tos e trsnsaçóeB diretas através daa
fronteiras nacionais condicionam, ho­
je, a posição do Estado como ator pri­
mordial daa relaçóes internacionais.
Há que reconhecer, portanto, o descon­
forto dessa posição: havendo perdido
progtessivamente o poder de controlar
os fluxos de dinheiro, de informação e
de mercadorias, O Estado continua a
ser considerado lusponsável por mis.
sões internat5 e externas que depen­
dem fortemente da situação econômica
nacional, a qual, por sua vez, está su­
jeita a08 efeitos de sua inserção no
contexto global.
12
Mas essa não é uma
tendência unívoca, p:>Í8, de outra par­
te, cada vez mais o comércio vem sendo
'administrado' pel08 govern06, que
também atuam intensamentena nego­
ciação de normas e 'regimes' interna­
cionais. Ai está a eleição de BiII Clinton
(a perda de impulso da onda neolibe­
ral) a indicar um desejo de volta da
'mão visível' do governo no estabeleci­
mento de políticas industriais e na pro­
moção de programas de competitivida­
de. Essa demanda por um maior inter­
vencionismo resulta, em boa medida,
da compreensível vontade - de seto­
Ies, grupoe ou empresas -de conter oe
custosda globalização (conco"ênciade
produtos estrangeiros, perda de tercei­
ros mercad08, desemprego etc.) e, se
poesível, permitir melhores condições
de participação no intercâmbio global.
Em resumo, coexistem tendências
de reforço e de condicionamento do pa­
peI do Estado nas relaçóeB internacio­
nais.Ao contrário do que muitoe anun­
ciaram n06 anos 70, 88 empresas mui·
tinacionais não assumiram o controle
do mundo e os vínculos privados e in­
for'liiais entre movimentos, organiza::,
ções e indivíduos não puseram em se­
gundo plano as fOImaa trsdicionais de
relacionamento entre países, Embora,
como dizem K.eohane e Nye, as socie·
dades estejam ligadaa por múltiplos
canais, o Estado peJ"loanece como o
agente fundamental daa relações in­
ternacionais, ainda que opere num
universo onde outros tipos de atores
têm presença cada vez mais importan­
te e decisiva.
11 - Poder militar e poder
econômico
A imensa maioria dos analistas do
mundo contemporâneo não tem dúvÍ·
daa de que a força militar perdeu espa­
ço para a capacidade econômica como
fonte e instrumento de poder: o 80ft
power tem um peso crescente, em de·
trimento, de certa forma, do hard po­
wer, Esse é um fenômeno decol"iente
do extraordinário crescimento das re­
lações econômicas internacionais, mas
também, em parte, do próprio poten­
cial destrutivo dos aiSenais acumula·
dos desde a 11 Grande Guella, o qual,
somado ao equilíbrio entre as supelP,O­
tências, 'imobilizou' esse poderio e le·
vou a quase meio século eem confron­
taçõesannadaaentre 08principais ato­
res da cena mundial. A88im - e embo­
ra, em última inatância, não 86 JXlMB
excluir a poesibilidade de uso, ou
154 ESTIJDOS HISTÓRICOS-199M2
ameaça de emprego da força, e o signi­
ficado crucial que o poderio militar ain­
da tem nas relações internacionais - a
deter111inação do status e do poder de
cada país passa a fazer"'8e,maia e mais,
a partir de critérioe econÔmicoe.
Não se trata meramente de substi­
tuir uma medida por outra. Em pri­
meiro lugar, porque a capacidade ec0-
nômica não é tão facilmente mensurá­
vel quanto o poderio militar. Se este
último pode ser expresso em número
de homens, navioe, tanques e ogivas
nucleares (ainda que tampouco essa
transposição fosse automática e linear,
como a própria 'imobilização' das ar­
mas nucleares confirmou), aquela tem
um número muito maior de indicado­
res, que precisam ser selecionados a
partir de critérios, 06 quais, por seu
turno, também são variáveis. Que pa­
rámetro deve ser escolhido: PIB (por
qual processo), comércio exterior, ex­
portações/PIB, endividamento exter­
no, abertuta do mercado doméstico,
taxa anual de crescimento? Em segun­
do lugar, porque a 'tradução' que se
fazia da força militar em poder inter­
nacional não serve para aferir como a
capacidade econômica se converte em
poseibilidade de influência (que in­
fluência têm, por exemplo, alguns paí-o
ses mêdios da Asia que se destacam
pelo desempenho exportador, pelos
giandes superávits comerciais?), pois
esses dados estarão condicionados por
outros (dimensão territorial e demo­
gráfica, situação geográfica, posição no
contexto regional etc.) nessa conver­
são. Em terceiro, porque a interdepen­
dência progressiva na economia mun­
dial limita o controle que os governos
nacionais têm condições de exercer so­
bre as transações internacionais (dia­
riamente, por exemplo, mais de US$
500 bilhões passam pelos princif:j'is
mercados de cámbio do mundo) 3 e
condiciona seu espectro de decisão.
Para concluir, poda.se recorrer a um
trabalho mais recente de Nye:"As fon­
tes do poder jamais são estáticas e (...)
continuam a mudar no mundo de hoje.
Numa era de economias baseadru5 na
infOl'lllSçãO e de interdependência
transnacional, o poder está-se tornan­
do menos fungível, menos tangível, e
menos coercitivo. O século XXI dará
.
I pod ,,_,
.
um mAIOr pape ao er UllO]'lHa ClO·
na' e institucional, mas a força militar
continuará a ser um fator importante,
assim como a escala econômica, tanto
em terrnos de mercado como de recur­
sos naturais:,14
111 - Agenda e prioridades
Durante Q'Jase meio século, o conflito
Leste-Oeste esteve no topo da agenda
internacional, não apeMS porque, em
última instãncia, havia a hipótese de
uma confrontação nuclear, mas tam­
bém porque a própria natureza da guer­
ra fria subordinava tudo mais à lógíca
da bipolaridade. Eeaa precedência era
cobrada pelas superpotências aos seus
aliados, sobretudo 806 mais revelevan­
tes estratêgica ou economicamente.
Nesse contexto, era natural que os as­
suntos de segurança tivessem priorida­
de, muito embora as considerações de
ordem econômica já viessem ganhando
espaço e, em certas circunstâncias, pre­
valecendo sobre os primeiros.
Com o fim da guena fria, coruU'llla­
se a avaliação de Keohane e Nye (men­
cionada acima) de que a agenda não
obedece a uma hierarquia clara e con­
sistente e de que os temas de seguran­
ça nem sempre predominam. Convém,
no entanto, evitar a impressão de que
estamos diante de uma agenda aberta,
livre. Em primeiro luga� a agenda das
relações internacionais fi continua a
refletir, quase sempre, a agenda inter­
nacional dos países mais importantes,
a qual, por sua vez, deriva geralmente
o REAUSMO DE CADA UM 155
de suas agendas nacionais. Em segun­
do lugar, consolida...e a tendência, de­
vida talvez ao afastamento da ameaça
nuclear e às dificuldades enfrentadas
pelas principais economjas do mundo,
de atribuir--se prioridade às matérias
qte afetam direta e imediatamente a
qualidade de vida das sociedades roais
desenvolvidas (comércio, imigração,
tráfico de drogas, terrorismo, AIDS
etc.). Mesmo um problema como o do
meio ambiente, que dessfm indiscrimi­
nadamente o conjunto do planeta e é
um doe grandes símboloe da interde­
pendência, perde peso pelo fato de não
haver convicção quanto à urgência de
se mobilizarem recUI'5OS para enfren­
tá-lo. Isto para não mencionar as ques­
tões que dependem também da solida­
riedade, como direitoe humanoe, po­
breza e fome; estas só entram na agen­
da quando 'traduzidas' em ameaça à
segurança das áreas prósperas da Ter­
ra (migrações, epidemias, guenas
etc.), ou quando a força de imagens e
dados transmitidos pelos meios de co­
municação desencadeia uma motiva­
ção ético-humanitária para movimen­
toe de mobilização e preBBão, e até para
ações armadas (como ocorreu na So­
mália). A propósito, cabe mencionar o
debate sobre a tese de que, diante des­
sas situações, haveria um 'dever de
ingerência' por parte da comunidade
internacional.
Mas se, por um lado, não estamos
diante de uma agenda táo aberta quan­
to conviria, por exemplo, aos países em
desenvolvimento, por outro, não se po­
de negar que houve algumas mudan­
ças significativas:
- ao contrário do que ocorria oom o
marco ideológico da guerra fria, a pre­
valência do econômico terá um efeito
dia
. 16
(di 'da� d
.
pel'81VO venn ..e e temas e in-
telb8Be6 na-c:;,ee campo gera dispersão en­
tre peíses e dentro doe países, pois, en­
quanto as questões ideológicas e estra-
tégiCRS uniam e mobilizavam, manten­
do alianças dumdouras 'acima' desses
'te
.
ifi
"
m resses malS espec lC06, as maténas
econômicas n:asaltam as diferenças e
até divergências de perspectiva, tanto
no plano internacional, como no nacio­
nal - a vantagem comparativa de um
pode ser a desvantagem do outro; o ne­
gócio de uma empresa pode significar
prejuÍzo para a outra; um emprego aqui
talvez produ71I um desempregado do
outro lado da fronteira etc.);
- a transposição de boa parte das
preocupações com segurança militar
do plano global para o regional, e a
diversidade de interesses no teneno
sóci�conômico dificulta a conciliação
das agendas nacionais e regionais num
temário global (antes haviauma estru­
tura mundial de segurança, a ordem
da guerra fria, que fornecia a moldura
para o 5ogo' internacional; agora, com
a tendência para a adoção de esquemas
de segurança com ênfase regional - o
processo em curso de definição de uma
'arquitetura' européia de segurança,
por exemplo -, e a presença de apenas•
uma superpotência com interesses
verdadeiramente globais, torna...e
mais dificil fazer com que a romunida­
de das nações tenha prioridades coin­
cidentes, além do domínio da retórica);
- a determinação da agenda e das
prioridades passa a obedecer à influên­
cia crescente de agentes não-governa­
mentais (empresas, moviinentos so­
ciais, ONGs, imprensa etc.), entre os
quais existem, evidentemente, con­
trastes e contradições;
- em função do tema, tendem a for­
mar-se coalizões Ide geometria variá­
vel', sob lideranças igualmente variá­
veis, que convivem com outras coali­
zões, formadas, não a partir de ques­
tões específicas, mas de dados como
vizinhança geográfica, semelhança de
nível de desenvolvimento etc.
•
156 ESTUDOS HISTORICOS- 1993/12
Em síntese, como é típico do período
de transição que vivemos hoje, tem·
bém no que se refere à agenda e às
prioridades internacionais há elemen­
tos de continuidade e de mudança. A
propósito, valem algumAS observações:
primeiro, o avanço da g1obalização eco­
nômica e o aprofundamento da inter­
dependência em todoe 08 campos fa­
zem com que a solução d"" problemas
nacionais de cada país passe cada vez
mais pelo ajuste de seus vínculos inter­
nacionais; torna--se, assim, mais im­
portante ter acesso ou participar ativa­
mente das instâncias que defmem a
agenda das relações internacionais
(tanto para buscar incluir temas e prio­
ridades do próprio interesse como para
evitar inclusões e ênfases contrárias a
tal interes.se); além disso, embora con­
tinuem a prevalecer a vontade dos 'for­
tes' e suas preocupações (agora prefe­
rencialmente com questões passíveis
de afetar-lhes a ·segurança sócio--eco­
nômica'), novos espaços se abriram a
partir da substituição da agenda da
guerra fria (na qual as prioridades e
lideranças eram flXas, embora muitos
considerem, por exemplo, que os temas
de interesse dos países em desenvolvi­
mento tinham mais espaço naquela
época do que loje) por outra que se
transforma ao longo do tempo, sob li­
deranças também variáveis.
Cabe uma indagação fina: se, por um
lado, a dispersão cansada pela preva­
lência da economia sobre a segurança
pode aumentar a diversidade e flexibi­
lidade das alinças, da agenda e das prio­
ridades, por outro, talvez sejustifique o
temor de que ....sa mesma dispersão de
interesses e vontades (e o particulari.s­
mo 'egoísta' dos cálculos fundados em
perspectivas exclusivamente indivi­
duais e nacionais, que deixam de lado
considerações ideológiei,,' e estratégi­
cas), além de dificultar a formação de
alianças duradouras, acabe por impedir
a construção de consensos, sobretudo
aqueles 'consensos ativ06', que envol·
vam mobilização de recursoe hUmSIlO6,
materiais e políticos,indispensáveispa­
ra que a comunidade internacional con­
siga lusolver alguns de seus maiores
problemas. A frustração das expectati­
vas geradas pela Conferencia do Rio, a
paralisia da Rodada Uruguai do GA'IT
e o tratamento da crise na ex-Iugoslávia
são exemplos distintos'e eloqüentes des­
sa dificuldade.
Realismo e interdependência
A observação desses três aspectos
da realidade contemporânea - os mes­
mos três empregados por Keohane e
Nye para a caracterização do realismo
e da interdependência complexa - con­
frrma que os dois modelos podem ser
úteis para a compreensão das relações
internacionais nos dias de hoje. Porque
nem tudo mudou, nem tudo vai mudar,
o reali.smo conserva sua atualidade.
Porque muito já mudou, e muito ainda
vai mudar, a visão da interdependên­
cia, por refletir tendências que conti­
nuam a aprofundar--se, torna.-ee cãda
vez mais essencial.
Para ilustrar de forma mais clara
como o realismo e a interdependência
podem combinar-se, estabelecem-se
daqui por diante três 'tipos' de a�res:
o das superJX>tências, que, estritamen�
te, conesponderia agora apenas a08
EUA; o das glandes poténcias econô­
micas, como Alemanha, Japão, e a pró·
pria Comunidade Européia; o dos paí­
ses em desenvolvimento de maior peso.
Essa tipologia, evidentemente, deixa
de fora, não apenas Estados que não
podem ser incluídos nessas categorias,
como outros tipos de atores (organia­
IDOS internacionais, empresas traI18·
nacionais, entidades como o G-7 e ()C..
o REAUSMO DE CADA UM 157
DE. grupos regionais. ONGs etc.) que.
cada vez mais, interagem entre si e
com os Estados:l7 Essa .implificação
justificase apenas por facilitar a expo­
sição do raciocínio que o presente arti·
go pretende explicitar.
Já se di..... que a literatura tratada
no presente artigo versa especialmen­
te sobre a situação dos EUA, ou .eja.
de uma superpotência. Neste caso. evi­
dentemente. a proposta do moelelo da
interdependência pretende 'temperar'
as percepções do realismo. tentando
fazer ver à sociedade norte-americana
que o mundo mudou equeessa mudan­
ça estabelece novos parâmetros e limi­
tes para o exercício do poder, além de
novos desafios internos e extern06.
Sem entrar no debate entre os que
percebem o declínio da posição relativa
dos EUA e aqueles que apontam seu
reforço. trata-se de chegar a uma visáo
que sirva a quem ainda tem poder.
muito poder (com supremacia absoluta
em termos de hard power e liderança
no que se refere ao 80ftpower como um
todo, apesar da concorrência e até da
vantagem do Japão ou Comunidade
Européia em certas áreas) numa era
em que os parâmetros de poder se
transfol"mam. Para o futuro, entre vá­
rias soluções, duas seriam mais evi­
dentes para a superpotência: ou atuar
para que o hardpower 000 se desvalo­
rize tão rapidamente no jogo interna­
cional (tomando. por exemplo. iniciati­
vas uni e multilaterais de emprego da
força militar, que assim continuaria
presente e 'necessária'no cotidiano das
nações), ou concentrar-se no desenvol­
vimento da capacidade de vencer na
competiçâo do 80ft power. .eja pela
modernização das estruturas econômi­
cas e sociais, seja pelos caminhos nem
sempre 80ft do protecionismo. das re­
taliações unilaterais e do comércio ad­
ministrado.l8 Como os fatos vêm indi­
cando, também neste caso a escolha
deverá ser a conciliaçãodas várias pos.
•ibilidad.... inclusive porque. na reali­
dade. 000 existe essa divisâo tão nítida
entre hardpower e 80ftpower: enquan­
to as nações e os indivlduos usarem a
força uns contra oe oUtl'06, a maior
capacidadedefazê-Io será .empre lima
fonte de poder, assim como, no domínio
da eoonomja,06 diferenciaia de riqueza
e dependência também o seráo. Além
disso. o poder militar poder servir a
objetiv08 de poder econômico, e vice·
versa.
No quese refereásglandespotências
econômicas, podese dizer que a equa­
ção anterior se inverte. Para elas, ao
contrário do que OCOIIe com a superpo­
tência. a interdependência aponta o seu
crescente peso relativo, enquanto o re­
alismo serviria para indicar 08 limites
de seu poder. De certo moelo. o ceOOrio
da interdependência é o habitat ideal
desse tipo de ator. Leeter Thurow. por
exemplo, chega a exagerar nesse senti­
do quando diz que. aonegociar as regras
para seu mercado comum e decidir co­
mo se relacionam com parceU'08 defora,
oseuropeus estaráo efetivamenteescre­
vendo 85 regIas do comércio comum no
próximo século.l9 Isto para 000 citar as
previsões de predomínio universal do
Japão.Já quandosepassa paraa'chave'
do realismo. o peso desses ato,es apare­
ce mais qualificado. sobretudo quando
se pensa em tel'lI108 de possível lideran­
ça de açÕ€6 internacionais (atê este mo­
mento. somenteos EUAtêm funcionado
como articulador e líder de grandes coa­
lizões). Em resumo. a situação seria a
de quem tem algum poder (fortemente
concentrado no80ftpower). num mundo
em que esse poder conta cada vez mais,
embora o hard power ainda seja o de
última instância. Para o fututo. como no
exemplo da superpotência. também se
poderiam aventar algumas hipóteses:
as glandes p:>tências podem continUAr
a investir prioritariamente no 80ft p<;
158 ESTUDOS HISTÓRICOS-19931l2
wer econômico, centrando suas iniciati­
vas políticas apenae na eefera regional
e mantendo lima postura cautel0l'!9
diante da 'cobrança' de um papel global
mais ativo, sobretudo em queetões de
segurança (esse caminho não exclui ris­
COS de conflito decommtee da competi­
ção econômica, porlicuJaImente no
triângulo EUA-Europa-Japão/pacífi­
co); podem, por outro lado, partir para a
conversão de seu soft power em hord
power. Essa não é uma escolha inteira­
mente livre, pois oe países em questão
poderiam ver-se obrigadoe, por exem­
plo, a responder pela força a desofioe de
segurança em 81'9S áreas, ou, por outro
lado, caso decidiR8CID aumentar seu per
derio militar, poderiam ser impedidoe
de fazê-Io, além de um certo limite, pela
atual superpotência, ou até pela 'ex-5u­
perpoténcia' (ou pelas duas juntas), ou
ainda pela impossibilidade de conciliar
maiores despe5A8 militares com equilí­
brio sócioeconômico interno. A propósi­
to, como afirma J.AGuilbon Albuquer­
que, oe EUA são hoje "a única poténcia
ainda com capacidade de intervenção
mundial, sem que iaso implique risco de
desordem doméstica".
20
Em síntRoo, 06
caminhoe estarão balizados pela confi­
guração mundial do poder. Uma coisa,
porém, é certa: o caminho a ser seguido
por este conjunto de atores terá impor.
tância decisiva para a configuração do
cenário internacional no século XXI.
Para os países em desenvolvimento
(PEDs) de maior relevo, finalmente, o
exercício especulativo aqui esboçado é
bem mais complexo. Neste caso, ambos
os modelos sempre apontaram muito
mais para 08 limites do que para as
possibilidades: de um prisma realista,
ressalta-se a escassez relativa de po­
der, ao menos em termos de projeção
mundial; da perspectiva da interde­
pendência, sobressai a assimetria dos
vínculos com os principais atores do
cenário internacional. Mas também há
possibilidades, a partir de ambos 08
pontoe de vista: na guetIa fria, alguns
paísee em desenvolvimento, eobretudo
aquelee localízadoe em área8 de mAior
significado estratégico, obtiveram ga­
nhoe pelo desempenho de papéis coad­
juvantes em esquemas de segurança
(hoje em dia, oe exemploe são raroe);
mais recentemente, outroe (ou os mee·
moe, em certos ca806) tém conseguido
benefícios no processo de globalização
econômica, ou seja, no aprofundamen.
to da interdependência, fato que vem
acentuando a diferenciação entre os
PEDs (diferenciação que sempre hou­
ve, é claro, mas que, no passado, não
dificultava tanto quanto hoje a conver­
gência de posições entre eles). E com
isso se inverteria a ótica da 'dependên­
cia' (que aconselhava a busca de mode­
los mais autônomos de desenvolvimen­
to, e, portanto, menos inteSlados à eco­
nomia internacional), jã que atual­
mente "o reforço da condição periférica
parece ocorrer pelo afastamento, pelo
enfraquecimento das articulações cen­
tro-periferia".
21
De qualquer forma, a
situação é a de quem tem pouco poder
(quer hard power, quer 80ft power),
num mundo que ainda é de poder, mas
em que a força militar vai perdendo
espaço para a capacidade econômica.
Em relação ao futuro, para concluir,
fazem-se, a seguir, algumas considera­
ções. Se os atores incluídos nesta cate­
goria não quiseram, ou não puderam,
afirmar-se pela via do hard power no
passado, menos razões teriam para
tentar fazê-lo agora que esse tipo de
poder serve cada vez menos para resol­
ver os seus verdadeiros problemas.
Haveria, pois, que explorar os espa­
ços abertos pelas transfoIluaçóes polí­
ticas no cenário internacional e pelo
avanço do proce88o de globalização, e
trabalhar no sentido de que as oportu­
nidades se multipliquem. Neste cam­
po, enquanto a perspectiva da interde-
o REALISMO DE CADA UM 159
pendência indicaria o acinamento da
disputa por investimentos e mercados,
e ainda o fechamento da maioria das
'portas conceSBionais'a08 países em de­
senvolvimento, dando ênfBBe à melho- .
ra das condições de participação mais
intensa e proveitosa na economia mun­
dial (capacitação econômica e tecnoló­
gica, competitividade, atração de in­
vestimentos etc.), o realismo ensinaria
algumas coisas: primeiro, que os paí·
Se8 em desenvolvimento, mesmo 06
maÍB importante., têm poder limitado
para influir na definição e alteração
da. reglBB do jogo; segundo, que, jus­
tamente por isso, é seu interesse prio­
ritário que a globalização tenha regl'BB
clarBB e UJÚversaÍB, multilateralmente
acordadas, para que não esteja sujeita
às vontades circunstanciais daqueles
que, sim, já (ou ainda) têm poder; ter­
ceiro, que, tal como a globalização, o
regionalismo veio para ficar e, espe­
cialmente para os países em desenvol­
vimento, é uma fOl'll18 de aumentar
sua capacidade de articulação, proje­
ção e influência no meio internacional;
quarto, que alguns desses países em
desenvolvimento de maior relevo terão
de vincular-se preferencialmente a um
dos 'pólos' da economia global (EUA,
Comunidade Européia e Japão/Pacífi­
co), enquanto outros, por SUBB dimen­
sões, peso político e/ou tradição de in­
tercámbio distribuído de modo equili­
brado (sem parceiros com predomínio
absoluto em SUBB relações econômicBB
externas) não poderão, ou não terão
interesse em fazê-lo.
Como se vê, também no caso d06
PEDe não existe 11m modelo único a
seguir, nem opções fechadas por esta ou
aquela fânnula. O natural é que cada
país busque realizar os seus objetivos,
os quais, sobretudo no C.SO de socieda­
des em desenvolvimento, deveriam dar
prioridade à superação da pobreza e das
deficiências estruturais que BB impe-
dem de fruir plenamente 06 beneficios
do progles.;o da humanidade.
Conclusão
A interdependência não elirninou o
dado do poder nas relações internacio­
nais, mas vai alterando proglessiva­
mente essa realidade. O s/ai"" das na­
ções na comunidade mundi.l resulta
cada vez mais da posição que ocupam
na VBBta e intricada malha dos inter­
câmbios econômiC:06, embora a capaci­
dade militar e a situação estratêgica
continuem a ser um fator importante. O
poder é hoje 1Ima combinação de hard
power e 80ftpower, e não há qualquer
receita fiXB para a mescla desses ingre­
dientes. Haverá variações de acordo
com o tema, com o momento, com os
interesses específicos dos atoles. Den­
tro das pc>56ibilidades de cada 11m, prin­
cipalmente d06 que procuram influir
nas decisões internacionais, existirá al­
guma margem de flexibilidade (talvez
decrescente) na escolha de caminh06.•
E neceSBário considerar, além disso,
que a chamada interdependência não
se limita hoje à atividade econômica, e
atinge praticamente todos os aspectos
do cotidiano das sociedades: o político,
no qual a fronteira entre o externo e o
interno se torna menos nítida; o social,
no '1ual o tratamento de questões como
direitos humanos e meio ambiente tem
uma dimensão internacional que se
acentua; o cultural, no qual os padrões
'globalizad05' de comportamento e de
consumo de bens materiais e culturais
se 5uperpãem às diferenças históricas.
Como aftrma Ignacio Ramonet: ''Na
história da humanidade, jamais BB
práticas próprias a uma cultura se im·
puseram como modelos universais 'tão
rapidamente. Modelos (...) admitidos
em todos 06 lug&ree como cracionais' e
•
160 ESTUDOS HISTORICOS - 1993/12
'naturais' e que participem, de fato, da
ocidentalização do mundo".
22
Daí resulta, entre muitas oubas,
uma conseqüência essencial: num mun­
do em que as distâncias geográficas con­
tam cada vez menos, em que a democra­
cia prevalece, em que as economias na­
cionais se complementam e, ao mesmo
tempo, competem entre si, em que se
torna mais transparente a ligação entre
fatos externos e efeitos internos, em que
os meios de comunicação pel'mitem a
divulgação imediata e ampla do dia-a­
dia nacional e internacional, terá que
haver um vínculo, cada vez mais claro
para o público em geral, entre política
extenaa e concretos para as
populações. Na medida.em que os paí­
tenham seus destinos unidos por
laços cada vez mais estreitos, seja de
cooperação, seja de concorrência, as I'e­
lações internacionais tornam-se mais
complexas e, sobretudo, mais delicadas,
pois sua condução dependerá crescente­
mente da difícil harmonização (ou sim­
plesmente da frustração) de interesses
distintos, e muitas vezes opostos, arti­
culados em escala local, nacional e
transnacional. •
Não existem mapas para essa via-,
gemo E preciso avançar ora com pru-
dência, ora com ousadia, sempre com
equilíbrio e criatividade.
•
Notas
1. Robert B.Reich, The work ofnations:
preparing ourselves for 21St century capi­
talism (Nova York: Vintage Books, 1992),
p.315.
2. "A survey of multinationals", The
Economist, 27 de março de 1993.
3. Robert O. Keohane e Joseph S. Nye,
Power and interdependence: worldpolitica
in transition (Boston: Little, BrowIl and
Company Inc., 1977).
4. Como exemplo do realismo dos tradi­
cionalistas, os autores citam, entre outroo
textos, Hans J. Morgenthau, Politica
among nations: the st/Uggle ofpower and
peace (Nova York: Knopf, 1948); entre os
modernistas , mencionam Lester R.
Brown, Worldwithout borders: the interde­
pendence ofnations (Nova York: Foreign
PolicyAssociation, Headline Series, 1972).
5. Morgenthau, op.cit.
•
6. Keohane e Nye, op.cit., p.242.
7. Lester Thurow, Head to head: the
coming economic battle wnongJapan, Eu­
rope and America (Nova York: Wllliam
Mol"l'oW and Co., Inc., 1992), p.16.
8. Laura D'Andrea 'l)rson, Whos bashing
whom? 'Irade oonflict in high-technology in­
dustries (Washington, D.C.: Institute for In­
ternational Economics, 1992), p.296.
9. Extraído de texto não destinado a
publicação.
10. Citado na Folha de S. Paulo,
11/07/93, p.6-4.
,
11. Nicos Poulantzas, L'Etat, lepouvoir,
lesocialisme, 2f!ed. (Paris: Presses Univer­
sitaires de France, 1981), p.238 e 243.
12. O argumento consta do artigo de
Ignacio Ramonet, ''Mondialisation et sé­
grégations", em Maniere de voir 18 - Le
Monde diplomatique, maio 1993.
13. Richard J. Barnet e John Cavanagh,
"National interests and global realities", em
Institute for Policy Studies-Briefing Paper,
Security Series, n2 2,janeiro 1992.
14. Joseph S. Nye, Bound to lead: the
changing nature ofAmericanpower (Nova
York: Basic Books, Inc., 1990), p.33-34.
15. Entende-se por 'agenda das relações
internacionais' não a lista ampla das ques­
tões arl'oladas f0l11lalmente para discus­
são nos organismos multilaterais, mas o
conjunto dos assuntos que efetivamente
mobilizam a atenção e os esforços da comu­
nidade das nações.
16. Gelson Fonseca Jr., "Aspectos da
multipolaridade contemporânea (notas
preliminares)", em Contexto Internacio­
nal, ano 6/ n2 11,janeiro-junho 1990, p.21.
•
o REAJJSMO DE CADA UM 161
•
17. Nessa divisão, deixou-se também de
incluiruma categoria que abarL"'8SSe atores
fundamentais, sobretudo a Rússia e a Chi-
na, que continuam a ter, por razões cada
vez mais distintas, importância crucial na
definição do futuro da ordem internacio­
nal.
,
18. E o que defendem Lester Thurow,
Robert Reich e Laura 1Yson (os dois últi­
mos ocupam funções de primeira linha no
goveI'IlO do presidente Bill Clinton, o pri­
meil'O como secretário do 'frabalho e a se­
gunda como chefe do Council of Economic
Advisers) nos recentes livllJS acima cita­
dos.
19. Lester Thurow, op.cit., p.65-66.
20. JoséAugusto GuilhonAlbuquerque,
"O fim da guerra fria e os novos conflitos
internacionais", em O futuro do Brasil,,
organizado por José Alvaro Moisés (São
Paulo, EDUSP, 1992).
21. Fonseca, op.cit., p.8
22. Ramonet, op.cit.
(Reoebidoparapublicação emjullw de 1993)
Mal:us B. A Galváo é diplomata, mes­
tre em relações internacionais pela
American University (Washington, D.C.) e
professor do Instituto Rio Branco.

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  • 1. u • o REALISMO DE CADA interdependência e relações políticas entre os Estados no mundo pós- erra fria • • We are presented with a rare historical momem in which (...) the transfonnations of economies are blurring the lines between natwns1 Robert B. Reich The boss of an internatwnal cempany who staked everything on a strong move of the world ecenomy towarda integration in the next five years would be a foal.2 The Economist ivemos numa era de interdepen­ dência. Esta frase vaga expressa um sentimento mal compreendido, embora generalizado, de que a-própria natureza da política mundial está mu­ dando." Marcos B. A. Ga/vão Assim começa, não o último livro da moda sobre o chamado pás-guerra fria, mas o já 'clássico' Power and interck­ pencknce, lançado ainda nos anos 70.3 Os autores partem do pressuposto de que nem os 'tradicionalistas', com sua insistência na atualidade intocada dos postulados do realismo, nem os 'mo­ dernistas" convencidos de que as tele­ comunicações e o avião ajato estariam criando uma 'aldeia global' sem fron­ teiras, oferecem uma moldura adequa­ da à compreensão da interdependên­ cia. Enquanto 05 primeiros insistem na prevalência do fator estratégico-mili­ tar e revelam-ee incapazes de atribuir o necessário peso ao aprofundamento da interdependência econômica, social e ecológica, 08 últimos apreBSam-ee em considerar que 08 avanços tecnológicos e o aumento das transações internacio- Nota:. O presente artigo é escrito 8 Ululo pcsoai e não representa o pen60mento do Ministério dQ8 RelAções Exleriore8. Gelson Fonseca Jr., Luís Fernando Panelli César, Evandro OidoneL, Sérgio DanE!e, Alexandre Parola e Gisela PQ8Choal contribufram com críticas e sugestões. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 6, n. 12, 1993, p. 149-161.
  • 2. • 150 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1993/12 nais levariam a um mundo em que 08 Estados e o controle da força armada perderiam importância. 4 Com a vantagem da perspectiva de meados de 1993, sabemos que os mo­ dernistas acertaram muito mais do que Keohane e Nye jamais poderiam supor. Tal fàto não retira, porem, a utilidade de muitos aspectos desenvol· vidos em Power anel interdependence, razão pela qual o presente texto come­ ça por um breve apanhado de algumas idéias centrais do livro. Os autores partem de raciocínio simples: interdependência 'significa dependência mútua e, no caso de polí­ tica internacional, refere-se a situa­ ções de efeito recíproco entre países ou atores em diferentes países. Tais efei· tos decoJ'J'em, com freqüência crescen­ te, de transações internacionais - flu­ xos de dinheiro, bens, pessoas e men­ sagens através das fronteiras. Evitan­ do otimism06 infundados, Keohane e Nye advertem que tal definição não se restringe a situações em que DCOne beneficio mútuo (e vão mais além): to­ da relação de interdependência envol­ ve custos, ao menos na COllUa de limi­ tação da autonomia, e não há como saber a priori se os ganhos serão sufi­ cientes para compensá-los. Aliás, tam­ pouco haveria razões para assumir que a possibilidade de ganhos compartidos ajudaria a diminuir a disputa para apropriá-los: em 6uma, não estaria ocorrendoB substituição do velbo mun­ do mau do conflito internacional pelo novo mundo bom da cooperação. Em geral, observam, as situações de interdependência não são equilibra· das; encontram-se geralmente entre os extremos da simetria perfeita, de um lado, e da dependência completa, do outro. A posição ocupada nesse espec· tro afeta as condições de barganha en­ tre os atores envolvidos,pois a interde­ pendência assimétrica (em que um de- pende mais do que o outro) pode, evi· dentemente, transeOJmAr�e em fonte elou instrumento de poder. Por si SÓ, no entanto, essa Assimetria não explica o desdobramento e o resultado dos pro­ cessos específicos de negociação,já que há diversas modalidades de interde­ pendência, as quais se tradurem em diferentes relações de poder. Antes de delinearem seu modelo al­ ternativo, Keohane e Nye invocam o 'papa' do realismo e sua obra.mestra, 6 para resumir os fundamentos daquela linha de pensamento: a) os Estados são05 atores dominan­ tes Das relações internacionais e com­ portam-se como unidades coerentes; b) embora outros,instrumentos tam­ bém possam ser utilizados, o liSO da força, ou a ameaça de seu emprego, é a COlma mais efetiva de exercício do po­ der, c) existe uma hierarquia de temas na política mundial, com predomínio das questões de segurança militar so­ bre 08 assuntos econômicos e sociais. Aos parãmetros básicos do realis­ mo, Keohane e Nye opõem as linhas essenciais do modelo que designam 'in_ terdependência complexa': a) as sociedades são ligadas por 'ca­ nais múltiplos'- fOl'lIIais,de governo a governo; infol"mais,entre elites gover­ namentais e não-governamentais, e entre organizações transnacionais; b) a agenda das relações interesta­ tais não obedece a uma hierarquia clara e consistente - os temas de segurança nem sempre predominam; muitas ques­ tões têm origem no cenário nacional e díficultam a distinção entre interno e externo; matérias diferentes levam a coalizões também distintas (dentro, fo­ ra e entre 06 governos) e acarretam graus variados de conflito; c) quando a interdependência com­ plexa prevalece numa dada região ou num determinado tema, os governos
  • 3. o REAUSMO DE CADA UM 151 envolvidos não empregam a força uns contra os outros. Enquanto model06, tal como descri­ tos acima, o realismo e a interdepen­ dência complexa não são necessaria­ mente excludentes e podem mesmo complementar-.;e. Em certo sentido, trata-se de duas formas próximas de analisar arealidade,já que ambas pro­ curam revelar o mundo como ele é, não como deveria ser. A diferença funda­ mental entre elas reside na disp06ição menor ou maior de reconhecer que houve mudanças e6senciaia nas re­ gi85, ou pelo menoe na prática das relações internacionais.. Os chamados 'realistas' insistem na atualidade de seus pressupostos, com uma certa dose de fatalismo: o mundo é assim, a natureza humana é assim, 8S relações internacionais são assim. Quando confrontados, por exemplo, com o fato de que há décadas não ocor­ rem guerras entre 05 atores mais rele­ vantes do sistema internacional, ou en­ tre duas democracias, respondem com o argumento de que, em primeiro lu­ gar, essa paz deveu--se a uma situação clara de equilíbrio de poder entre as superpotências, em consonância, por­ tanto, com as prescrições do realismo. E raramente deixam de assinalar que, em última instância, 06 conflitos ten­ derão a ser dirimidos entre Estad06, a partir do uso, ou ameaça de emprego da força. Por detrás da visão realista parece haver sempre um tom de sahe­ doria confol'mista: não se iludam com as aparências, o mundo não mudou (nem vai mudar) tanto assim. Já os chamad06 'modernistas', na designação de Keohane e Nye, exage­ ram na ênfase que dão 806 sinais de mudança. Se isto já ocorria nos anos 70, com muito mais razão acontece ho­ je: a guerra fria acabou, a União Sovié­ tica dissolveu·se, o comunismo está em• vias de extinção. E hem mais fácil su- • por, idealmente, que vivemos num mundo novo do que insistir em que, no essencial, as COi888 continuam iguais. A maior parte da literatura sobre relações internacionais ainda é produ­ zida n06 Estados Unid06 e dirige...e prioritariamente ao público daquele país. Ora, 06 acontecimentos dos ú1ti­ m06 quatro an06 afetaram fundamen­ talmente a posição d06 EUA no mundo e alteraram o pepel que lhes cahe no cenário internacional. Essa circui15- tãncia, aliada à percepção de perda de espaço relativo no conjunto da econo­ mia mundial, fenômeno que vem sendo apontado há mais de vinte an06, refor­ çou ainda mais a vocação do mundo acadêmico para tentar identificar no­ vas tendências globais e indicar cami­ nhos alternativos. Há mais de quinze anos Keohane e Nye já alertavam que, para os EUA, uma questão central seria como exercer liderança internacional sem capacidade hegemônica: 'Temos de aprender tanto a conviver com a interdependência, co­ mo a utilizá-la no exercício de lideran­ ça".6 Lester Thurow, em 1992, também anuncia novidades e oferece conselhos:• "E dificil admitir que o mundo mudou e que as n0S88� antigas virtudes já não são virtudes. E muito difícil reconhecer que novas realidades forçam a criação de novas virtudes - noV06 procedimen­ toe, novas regras, e novas instituições".7 Laura Tyaon é ainda mais explícita: "O colapso da URSS oferece oportunidade para reconsiderar prioridadee nacio­ nais e para ti"ocar 06 deeafi08 militaiC6 1�t��do pelosdesafioseconômiC06 do Aliás, essa é uma diferença entre 08 modernistas (sobretudo 06 economis­ tas) e 06 realistas. Os primeiroe apon­ tam para a interdependência econômi­ ca, para o processo da chamada 'globa­ lização', e, a partir daí, faum suas anãlises e recomendações. Os últimos,
  • 4. 152 ESTIJDOS HISTÓRICOS-1993/12 jX)r sua vez, comportam-se como ver· dadeiroe marxistas às aveesB5, ou seja, encaram as conelaçóes de poder e se­ gurança militar como dado estrutural, e 88 mudanÇ8B no plano econômico, como fenômeno8 8upereetruturais. Contrariam, Assim, evidências inefuw táveis de que, nas palaVl'88 de Gelson FoD6eC8. Jr., °8 economia deixa de ser comandada pelas nece68idades de se­ gurança e passa a gerar pautas para a decisão política". 9 De qualquer modo, não épropósito do pl'esente trabalho aprofundar a análi.se das divergêllL'ias de ponto de vista entre cOl'l'entes teóricas. O objetivo da descri­ ção simplificada dos dois modelos é Ie forçar a idéia, defendida por Keobane e Nye, de que a compreensão das relações internacionais no mundo contemJXlrâ­ neo não invalida as concepçõestradicio­ nais, baseadas no primado das relações de poder entre Estados, mAS exige que sejam combinadas com novas fOl"mula­ ções, no centro das quais se encontra, com peso significativo, a noção de inter­ dependência, que não se limita à esfera econômica, e abrange todas as oubas dimensões da vida coletiva das socieda­ des. Três temas da transição Os eventos dos últimos anos f12eram com que mesmo 06 analistas mais céti­ COS reconheçam algum nível de mu­ dança e que, em sua grande maioria, admitam estanll08 atravessando um período de transição no qual continui­ dades convivem com descontinuida­ des, o velho, com o novo: em primeiro lugar, nem tudo mudou; em segundo, nem tudo muda no mesmo ritmo. No­ ta-ae, por exemplo, uma clara diferen­ 'ça de 'tempos'- enquanto as ltaDsfor­ mações no âmbito político estratégico ocol"leram mais recentemente e foram marcadas por acontecimentos de li'an­ de impacto efetivo e simbólico (queda do muro de Berlim, extinção da URSS), na área econômica estão em curso pro· ce8808 (transnacionalização e integla· ção econômica, globalização, aumento• do peso da Europa e Aeia-Pacífico, que paessm a ser vistos como novos 'pólos' das relaÇÔ<ll5 internacionais) que se vêm aprofundando há IDai. de trinta anos e não tiveram marcoe divisores táo I;)Ítidos. Ainda assim, existe uma razoável coincidência de opiniões quanto às ca­ racterísticas mais marcantes do perío· do em que vivemos, as quais podem ser mais claramente visualizadas se con· siderarw08, entre outroe,os três aspec· tos mencionados na descrição dos mo­ delos do realismo e da interdependên­ cia complexa. I - Papel do Estado Falar em 'crise do Estado'tornou-se um verdadeiro clichê na última déca­ da. Oe diagnósticos e crítiCAS vieram das fontes mais variadas: dos neolibe­ rais conservadores, que atacaram o welfare state; da eequerda, que conti­ nuou a reclamar o cumprimento das obrigações sociais do setor público e a resistir à hegemonia neoliberal; dos 'pós-modernos' (verdes, paCifIStas, ho­ m088exuais, ONGs etc.), que int,odu­ zÍtam nOVaB reivindicações na agenda política e não se satisfizeram com a resposta por parte do Estado; e da pró­ pria burocracia estatal, que sofre com a crescente disparidade entre o volume de encargos e a escassez de meioe e anseia por modernizar-se. Por outro lado, as sociedades torna­ ram·se mais complexae e, a cada dia, novos temas demandam a ação do Es­ tado. Nas palaVl'88 de Celso Lafer, "015 governos não estão conseguindo mais
  • 5. o REALISMO DE CADAUM 153 processar ae demandas que lhes che­ gam".lO No dizer de Nicoe Poulantzaa, a legitimação do Estado pa..... a depen­ der de uma 'racionalidade instrumen­ tal', ou seja, do julgamento da eficiên­ cia de suas incurséiee no domínio da econOlnia (para enfrentar problemaa, como a inflação e o desempre�, que não tem capacidade de resolver).ll Es­ taríamos,assim,bempróximosdeuma situação de pelmanente crise de legiti­ midade. Além dessas dificuldades na frente interna, é amplamente aceito que a interdependência cada vez mais pro­ funda na economia mundial, com a presença marcante deentidades trsns­ nacionais, e a intensificação dos conta­ tos e trsnsaçóeB diretas através daa fronteiras nacionais condicionam, ho­ je, a posição do Estado como ator pri­ mordial daa relaçóes internacionais. Há que reconhecer, portanto, o descon­ forto dessa posição: havendo perdido progtessivamente o poder de controlar os fluxos de dinheiro, de informação e de mercadorias, O Estado continua a ser considerado lusponsável por mis. sões internat5 e externas que depen­ dem fortemente da situação econômica nacional, a qual, por sua vez, está su­ jeita a08 efeitos de sua inserção no contexto global. 12 Mas essa não é uma tendência unívoca, p:>Í8, de outra par­ te, cada vez mais o comércio vem sendo 'administrado' pel08 govern06, que também atuam intensamentena nego­ ciação de normas e 'regimes' interna­ cionais. Ai está a eleição de BiII Clinton (a perda de impulso da onda neolibe­ ral) a indicar um desejo de volta da 'mão visível' do governo no estabeleci­ mento de políticas industriais e na pro­ moção de programas de competitivida­ de. Essa demanda por um maior inter­ vencionismo resulta, em boa medida, da compreensível vontade - de seto­ Ies, grupoe ou empresas -de conter oe custosda globalização (conco"ênciade produtos estrangeiros, perda de tercei­ ros mercad08, desemprego etc.) e, se poesível, permitir melhores condições de participação no intercâmbio global. Em resumo, coexistem tendências de reforço e de condicionamento do pa­ peI do Estado nas relaçóeB internacio­ nais.Ao contrário do que muitoe anun­ ciaram n06 anos 70, 88 empresas mui· tinacionais não assumiram o controle do mundo e os vínculos privados e in­ for'liiais entre movimentos, organiza::, ções e indivíduos não puseram em se­ gundo plano as fOImaa trsdicionais de relacionamento entre países, Embora, como dizem K.eohane e Nye, as socie· dades estejam ligadaa por múltiplos canais, o Estado peJ"loanece como o agente fundamental daa relações in­ ternacionais, ainda que opere num universo onde outros tipos de atores têm presença cada vez mais importan­ te e decisiva. 11 - Poder militar e poder econômico A imensa maioria dos analistas do mundo contemporâneo não tem dúvÍ· daa de que a força militar perdeu espa­ ço para a capacidade econômica como fonte e instrumento de poder: o 80ft power tem um peso crescente, em de· trimento, de certa forma, do hard po­ wer, Esse é um fenômeno decol"iente do extraordinário crescimento das re­ lações econômicas internacionais, mas também, em parte, do próprio poten­ cial destrutivo dos aiSenais acumula· dos desde a 11 Grande Guella, o qual, somado ao equilíbrio entre as supelP,O­ tências, 'imobilizou' esse poderio e le· vou a quase meio século eem confron­ taçõesannadaaentre 08principais ato­ res da cena mundial. A88im - e embo­ ra, em última inatância, não 86 JXlMB excluir a poesibilidade de uso, ou
  • 6. 154 ESTIJDOS HISTÓRICOS-199M2 ameaça de emprego da força, e o signi­ ficado crucial que o poderio militar ain­ da tem nas relações internacionais - a deter111inação do status e do poder de cada país passa a fazer"'8e,maia e mais, a partir de critérioe econÔmicoe. Não se trata meramente de substi­ tuir uma medida por outra. Em pri­ meiro lugar, porque a capacidade ec0- nômica não é tão facilmente mensurá­ vel quanto o poderio militar. Se este último pode ser expresso em número de homens, navioe, tanques e ogivas nucleares (ainda que tampouco essa transposição fosse automática e linear, como a própria 'imobilização' das ar­ mas nucleares confirmou), aquela tem um número muito maior de indicado­ res, que precisam ser selecionados a partir de critérios, 06 quais, por seu turno, também são variáveis. Que pa­ rámetro deve ser escolhido: PIB (por qual processo), comércio exterior, ex­ portações/PIB, endividamento exter­ no, abertuta do mercado doméstico, taxa anual de crescimento? Em segun­ do lugar, porque a 'tradução' que se fazia da força militar em poder inter­ nacional não serve para aferir como a capacidade econômica se converte em poseibilidade de influência (que in­ fluência têm, por exemplo, alguns paí-o ses mêdios da Asia que se destacam pelo desempenho exportador, pelos giandes superávits comerciais?), pois esses dados estarão condicionados por outros (dimensão territorial e demo­ gráfica, situação geográfica, posição no contexto regional etc.) nessa conver­ são. Em terceiro, porque a interdepen­ dência progressiva na economia mun­ dial limita o controle que os governos nacionais têm condições de exercer so­ bre as transações internacionais (dia­ riamente, por exemplo, mais de US$ 500 bilhões passam pelos princif:j'is mercados de cámbio do mundo) 3 e condiciona seu espectro de decisão. Para concluir, poda.se recorrer a um trabalho mais recente de Nye:"As fon­ tes do poder jamais são estáticas e (...) continuam a mudar no mundo de hoje. Numa era de economias baseadru5 na infOl'lllSçãO e de interdependência transnacional, o poder está-se tornan­ do menos fungível, menos tangível, e menos coercitivo. O século XXI dará . I pod ,,_, . um mAIOr pape ao er UllO]'lHa ClO· na' e institucional, mas a força militar continuará a ser um fator importante, assim como a escala econômica, tanto em terrnos de mercado como de recur­ sos naturais:,14 111 - Agenda e prioridades Durante Q'Jase meio século, o conflito Leste-Oeste esteve no topo da agenda internacional, não apeMS porque, em última instãncia, havia a hipótese de uma confrontação nuclear, mas tam­ bém porque a própria natureza da guer­ ra fria subordinava tudo mais à lógíca da bipolaridade. Eeaa precedência era cobrada pelas superpotências aos seus aliados, sobretudo 806 mais revelevan­ tes estratêgica ou economicamente. Nesse contexto, era natural que os as­ suntos de segurança tivessem priorida­ de, muito embora as considerações de ordem econômica já viessem ganhando espaço e, em certas circunstâncias, pre­ valecendo sobre os primeiros. Com o fim da guena fria, coruU'llla­ se a avaliação de Keohane e Nye (men­ cionada acima) de que a agenda não obedece a uma hierarquia clara e con­ sistente e de que os temas de seguran­ ça nem sempre predominam. Convém, no entanto, evitar a impressão de que estamos diante de uma agenda aberta, livre. Em primeiro luga� a agenda das relações internacionais fi continua a refletir, quase sempre, a agenda inter­ nacional dos países mais importantes, a qual, por sua vez, deriva geralmente
  • 7. o REAUSMO DE CADA UM 155 de suas agendas nacionais. Em segun­ do lugar, consolida...e a tendência, de­ vida talvez ao afastamento da ameaça nuclear e às dificuldades enfrentadas pelas principais economjas do mundo, de atribuir--se prioridade às matérias qte afetam direta e imediatamente a qualidade de vida das sociedades roais desenvolvidas (comércio, imigração, tráfico de drogas, terrorismo, AIDS etc.). Mesmo um problema como o do meio ambiente, que dessfm indiscrimi­ nadamente o conjunto do planeta e é um doe grandes símboloe da interde­ pendência, perde peso pelo fato de não haver convicção quanto à urgência de se mobilizarem recUI'5OS para enfren­ tá-lo. Isto para não mencionar as ques­ tões que dependem também da solida­ riedade, como direitoe humanoe, po­ breza e fome; estas só entram na agen­ da quando 'traduzidas' em ameaça à segurança das áreas prósperas da Ter­ ra (migrações, epidemias, guenas etc.), ou quando a força de imagens e dados transmitidos pelos meios de co­ municação desencadeia uma motiva­ ção ético-humanitária para movimen­ toe de mobilização e preBBão, e até para ações armadas (como ocorreu na So­ mália). A propósito, cabe mencionar o debate sobre a tese de que, diante des­ sas situações, haveria um 'dever de ingerência' por parte da comunidade internacional. Mas se, por um lado, não estamos diante de uma agenda táo aberta quan­ to conviria, por exemplo, aos países em desenvolvimento, por outro, não se po­ de negar que houve algumas mudan­ ças significativas: - ao contrário do que ocorria oom o marco ideológico da guerra fria, a pre­ valência do econômico terá um efeito dia . 16 (di 'da� d . pel'81VO venn ..e e temas e in- telb8Be6 na-c:;,ee campo gera dispersão en­ tre peíses e dentro doe países, pois, en­ quanto as questões ideológicas e estra- tégiCRS uniam e mobilizavam, manten­ do alianças dumdouras 'acima' desses 'te . ifi " m resses malS espec lC06, as maténas econômicas n:asaltam as diferenças e até divergências de perspectiva, tanto no plano internacional, como no nacio­ nal - a vantagem comparativa de um pode ser a desvantagem do outro; o ne­ gócio de uma empresa pode significar prejuÍzo para a outra; um emprego aqui talvez produ71I um desempregado do outro lado da fronteira etc.); - a transposição de boa parte das preocupações com segurança militar do plano global para o regional, e a diversidade de interesses no teneno sóci�conômico dificulta a conciliação das agendas nacionais e regionais num temário global (antes haviauma estru­ tura mundial de segurança, a ordem da guerra fria, que fornecia a moldura para o 5ogo' internacional; agora, com a tendência para a adoção de esquemas de segurança com ênfase regional - o processo em curso de definição de uma 'arquitetura' européia de segurança, por exemplo -, e a presença de apenas• uma superpotência com interesses verdadeiramente globais, torna...e mais dificil fazer com que a romunida­ de das nações tenha prioridades coin­ cidentes, além do domínio da retórica); - a determinação da agenda e das prioridades passa a obedecer à influên­ cia crescente de agentes não-governa­ mentais (empresas, moviinentos so­ ciais, ONGs, imprensa etc.), entre os quais existem, evidentemente, con­ trastes e contradições; - em função do tema, tendem a for­ mar-se coalizões Ide geometria variá­ vel', sob lideranças igualmente variá­ veis, que convivem com outras coali­ zões, formadas, não a partir de ques­ tões específicas, mas de dados como vizinhança geográfica, semelhança de nível de desenvolvimento etc.
  • 8. • 156 ESTUDOS HISTORICOS- 1993/12 Em síntese, como é típico do período de transição que vivemos hoje, tem· bém no que se refere à agenda e às prioridades internacionais há elemen­ tos de continuidade e de mudança. A propósito, valem algumAS observações: primeiro, o avanço da g1obalização eco­ nômica e o aprofundamento da inter­ dependência em todoe 08 campos fa­ zem com que a solução d"" problemas nacionais de cada país passe cada vez mais pelo ajuste de seus vínculos inter­ nacionais; torna--se, assim, mais im­ portante ter acesso ou participar ativa­ mente das instâncias que defmem a agenda das relações internacionais (tanto para buscar incluir temas e prio­ ridades do próprio interesse como para evitar inclusões e ênfases contrárias a tal interes.se); além disso, embora con­ tinuem a prevalecer a vontade dos 'for­ tes' e suas preocupações (agora prefe­ rencialmente com questões passíveis de afetar-lhes a ·segurança sócio--eco­ nômica'), novos espaços se abriram a partir da substituição da agenda da guerra fria (na qual as prioridades e lideranças eram flXas, embora muitos considerem, por exemplo, que os temas de interesse dos países em desenvolvi­ mento tinham mais espaço naquela época do que loje) por outra que se transforma ao longo do tempo, sob li­ deranças também variáveis. Cabe uma indagação fina: se, por um lado, a dispersão cansada pela preva­ lência da economia sobre a segurança pode aumentar a diversidade e flexibi­ lidade das alinças, da agenda e das prio­ ridades, por outro, talvez sejustifique o temor de que ....sa mesma dispersão de interesses e vontades (e o particulari.s­ mo 'egoísta' dos cálculos fundados em perspectivas exclusivamente indivi­ duais e nacionais, que deixam de lado considerações ideológiei,,' e estratégi­ cas), além de dificultar a formação de alianças duradouras, acabe por impedir a construção de consensos, sobretudo aqueles 'consensos ativ06', que envol· vam mobilização de recursoe hUmSIlO6, materiais e políticos,indispensáveispa­ ra que a comunidade internacional con­ siga lusolver alguns de seus maiores problemas. A frustração das expectati­ vas geradas pela Conferencia do Rio, a paralisia da Rodada Uruguai do GA'IT e o tratamento da crise na ex-Iugoslávia são exemplos distintos'e eloqüentes des­ sa dificuldade. Realismo e interdependência A observação desses três aspectos da realidade contemporânea - os mes­ mos três empregados por Keohane e Nye para a caracterização do realismo e da interdependência complexa - con­ frrma que os dois modelos podem ser úteis para a compreensão das relações internacionais nos dias de hoje. Porque nem tudo mudou, nem tudo vai mudar, o reali.smo conserva sua atualidade. Porque muito já mudou, e muito ainda vai mudar, a visão da interdependên­ cia, por refletir tendências que conti­ nuam a aprofundar--se, torna.-ee cãda vez mais essencial. Para ilustrar de forma mais clara como o realismo e a interdependência podem combinar-se, estabelecem-se daqui por diante três 'tipos' de a�res: o das superJX>tências, que, estritamen� te, conesponderia agora apenas a08 EUA; o das glandes poténcias econô­ micas, como Alemanha, Japão, e a pró· pria Comunidade Européia; o dos paí­ ses em desenvolvimento de maior peso. Essa tipologia, evidentemente, deixa de fora, não apenas Estados que não podem ser incluídos nessas categorias, como outros tipos de atores (organia­ IDOS internacionais, empresas traI18· nacionais, entidades como o G-7 e ()C..
  • 9. o REAUSMO DE CADA UM 157 DE. grupos regionais. ONGs etc.) que. cada vez mais, interagem entre si e com os Estados:l7 Essa .implificação justificase apenas por facilitar a expo­ sição do raciocínio que o presente arti· go pretende explicitar. Já se di..... que a literatura tratada no presente artigo versa especialmen­ te sobre a situação dos EUA, ou .eja. de uma superpotência. Neste caso. evi­ dentemente. a proposta do moelelo da interdependência pretende 'temperar' as percepções do realismo. tentando fazer ver à sociedade norte-americana que o mundo mudou equeessa mudan­ ça estabelece novos parâmetros e limi­ tes para o exercício do poder, além de novos desafios internos e extern06. Sem entrar no debate entre os que percebem o declínio da posição relativa dos EUA e aqueles que apontam seu reforço. trata-se de chegar a uma visáo que sirva a quem ainda tem poder. muito poder (com supremacia absoluta em termos de hard power e liderança no que se refere ao 80ftpower como um todo, apesar da concorrência e até da vantagem do Japão ou Comunidade Européia em certas áreas) numa era em que os parâmetros de poder se transfol"mam. Para o futuro, entre vá­ rias soluções, duas seriam mais evi­ dentes para a superpotência: ou atuar para que o hardpower 000 se desvalo­ rize tão rapidamente no jogo interna­ cional (tomando. por exemplo. iniciati­ vas uni e multilaterais de emprego da força militar, que assim continuaria presente e 'necessária'no cotidiano das nações), ou concentrar-se no desenvol­ vimento da capacidade de vencer na competiçâo do 80ft power. .eja pela modernização das estruturas econômi­ cas e sociais, seja pelos caminhos nem sempre 80ft do protecionismo. das re­ taliações unilaterais e do comércio ad­ ministrado.l8 Como os fatos vêm indi­ cando, também neste caso a escolha deverá ser a conciliaçãodas várias pos. •ibilidad.... inclusive porque. na reali­ dade. 000 existe essa divisâo tão nítida entre hardpower e 80ftpower: enquan­ to as nações e os indivlduos usarem a força uns contra oe oUtl'06, a maior capacidadedefazê-Io será .empre lima fonte de poder, assim como, no domínio da eoonomja,06 diferenciaia de riqueza e dependência também o seráo. Além disso. o poder militar poder servir a objetiv08 de poder econômico, e vice· versa. No quese refereásglandespotências econômicas, podese dizer que a equa­ ção anterior se inverte. Para elas, ao contrário do que OCOIIe com a superpo­ tência. a interdependência aponta o seu crescente peso relativo, enquanto o re­ alismo serviria para indicar 08 limites de seu poder. De certo moelo. o ceOOrio da interdependência é o habitat ideal desse tipo de ator. Leeter Thurow. por exemplo, chega a exagerar nesse senti­ do quando diz que. aonegociar as regras para seu mercado comum e decidir co­ mo se relacionam com parceU'08 defora, oseuropeus estaráo efetivamenteescre­ vendo 85 regIas do comércio comum no próximo século.l9 Isto para 000 citar as previsões de predomínio universal do Japão.Já quandosepassa paraa'chave' do realismo. o peso desses ato,es apare­ ce mais qualificado. sobretudo quando se pensa em tel'lI108 de possível lideran­ ça de açÕ€6 internacionais (atê este mo­ mento. somenteos EUAtêm funcionado como articulador e líder de grandes coa­ lizões). Em resumo. a situação seria a de quem tem algum poder (fortemente concentrado no80ftpower). num mundo em que esse poder conta cada vez mais, embora o hard power ainda seja o de última instância. Para o fututo. como no exemplo da superpotência. também se poderiam aventar algumas hipóteses: as glandes p:>tências podem continUAr a investir prioritariamente no 80ft p<;
  • 10. 158 ESTUDOS HISTÓRICOS-19931l2 wer econômico, centrando suas iniciati­ vas políticas apenae na eefera regional e mantendo lima postura cautel0l'!9 diante da 'cobrança' de um papel global mais ativo, sobretudo em queetões de segurança (esse caminho não exclui ris­ COS de conflito decommtee da competi­ ção econômica, porlicuJaImente no triângulo EUA-Europa-Japão/pacífi­ co); podem, por outro lado, partir para a conversão de seu soft power em hord power. Essa não é uma escolha inteira­ mente livre, pois oe países em questão poderiam ver-se obrigadoe, por exem­ plo, a responder pela força a desofioe de segurança em 81'9S áreas, ou, por outro lado, caso decidiR8CID aumentar seu per derio militar, poderiam ser impedidoe de fazê-Io, além de um certo limite, pela atual superpotência, ou até pela 'ex-5u­ perpoténcia' (ou pelas duas juntas), ou ainda pela impossibilidade de conciliar maiores despe5A8 militares com equilí­ brio sócioeconômico interno. A propósi­ to, como afirma J.AGuilbon Albuquer­ que, oe EUA são hoje "a única poténcia ainda com capacidade de intervenção mundial, sem que iaso implique risco de desordem doméstica". 20 Em síntRoo, 06 caminhoe estarão balizados pela confi­ guração mundial do poder. Uma coisa, porém, é certa: o caminho a ser seguido por este conjunto de atores terá impor. tância decisiva para a configuração do cenário internacional no século XXI. Para os países em desenvolvimento (PEDs) de maior relevo, finalmente, o exercício especulativo aqui esboçado é bem mais complexo. Neste caso, ambos os modelos sempre apontaram muito mais para 08 limites do que para as possibilidades: de um prisma realista, ressalta-se a escassez relativa de po­ der, ao menos em termos de projeção mundial; da perspectiva da interde­ pendência, sobressai a assimetria dos vínculos com os principais atores do cenário internacional. Mas também há possibilidades, a partir de ambos 08 pontoe de vista: na guetIa fria, alguns paísee em desenvolvimento, eobretudo aquelee localízadoe em área8 de mAior significado estratégico, obtiveram ga­ nhoe pelo desempenho de papéis coad­ juvantes em esquemas de segurança (hoje em dia, oe exemploe são raroe); mais recentemente, outroe (ou os mee· moe, em certos ca806) tém conseguido benefícios no processo de globalização econômica, ou seja, no aprofundamen. to da interdependência, fato que vem acentuando a diferenciação entre os PEDs (diferenciação que sempre hou­ ve, é claro, mas que, no passado, não dificultava tanto quanto hoje a conver­ gência de posições entre eles). E com isso se inverteria a ótica da 'dependên­ cia' (que aconselhava a busca de mode­ los mais autônomos de desenvolvimen­ to, e, portanto, menos inteSlados à eco­ nomia internacional), jã que atual­ mente "o reforço da condição periférica parece ocorrer pelo afastamento, pelo enfraquecimento das articulações cen­ tro-periferia". 21 De qualquer forma, a situação é a de quem tem pouco poder (quer hard power, quer 80ft power), num mundo que ainda é de poder, mas em que a força militar vai perdendo espaço para a capacidade econômica. Em relação ao futuro, para concluir, fazem-se, a seguir, algumas considera­ ções. Se os atores incluídos nesta cate­ goria não quiseram, ou não puderam, afirmar-se pela via do hard power no passado, menos razões teriam para tentar fazê-lo agora que esse tipo de poder serve cada vez menos para resol­ ver os seus verdadeiros problemas. Haveria, pois, que explorar os espa­ ços abertos pelas transfoIluaçóes polí­ ticas no cenário internacional e pelo avanço do proce88o de globalização, e trabalhar no sentido de que as oportu­ nidades se multipliquem. Neste cam­ po, enquanto a perspectiva da interde-
  • 11. o REALISMO DE CADA UM 159 pendência indicaria o acinamento da disputa por investimentos e mercados, e ainda o fechamento da maioria das 'portas conceSBionais'a08 países em de­ senvolvimento, dando ênfBBe à melho- . ra das condições de participação mais intensa e proveitosa na economia mun­ dial (capacitação econômica e tecnoló­ gica, competitividade, atração de in­ vestimentos etc.), o realismo ensinaria algumas coisas: primeiro, que os paí· Se8 em desenvolvimento, mesmo 06 maÍB importante., têm poder limitado para influir na definição e alteração da. reglBB do jogo; segundo, que, jus­ tamente por isso, é seu interesse prio­ ritário que a globalização tenha regl'BB clarBB e UJÚversaÍB, multilateralmente acordadas, para que não esteja sujeita às vontades circunstanciais daqueles que, sim, já (ou ainda) têm poder; ter­ ceiro, que, tal como a globalização, o regionalismo veio para ficar e, espe­ cialmente para os países em desenvol­ vimento, é uma fOl'll18 de aumentar sua capacidade de articulação, proje­ ção e influência no meio internacional; quarto, que alguns desses países em desenvolvimento de maior relevo terão de vincular-se preferencialmente a um dos 'pólos' da economia global (EUA, Comunidade Européia e Japão/Pacífi­ co), enquanto outros, por SUBB dimen­ sões, peso político e/ou tradição de in­ tercámbio distribuído de modo equili­ brado (sem parceiros com predomínio absoluto em SUBB relações econômicBB externas) não poderão, ou não terão interesse em fazê-lo. Como se vê, também no caso d06 PEDe não existe 11m modelo único a seguir, nem opções fechadas por esta ou aquela fânnula. O natural é que cada país busque realizar os seus objetivos, os quais, sobretudo no C.SO de socieda­ des em desenvolvimento, deveriam dar prioridade à superação da pobreza e das deficiências estruturais que BB impe- dem de fruir plenamente 06 beneficios do progles.;o da humanidade. Conclusão A interdependência não elirninou o dado do poder nas relações internacio­ nais, mas vai alterando proglessiva­ mente essa realidade. O s/ai"" das na­ ções na comunidade mundi.l resulta cada vez mais da posição que ocupam na VBBta e intricada malha dos inter­ câmbios econômiC:06, embora a capaci­ dade militar e a situação estratêgica continuem a ser um fator importante. O poder é hoje 1Ima combinação de hard power e 80ftpower, e não há qualquer receita fiXB para a mescla desses ingre­ dientes. Haverá variações de acordo com o tema, com o momento, com os interesses específicos dos atoles. Den­ tro das pc>56ibilidades de cada 11m, prin­ cipalmente d06 que procuram influir nas decisões internacionais, existirá al­ guma margem de flexibilidade (talvez decrescente) na escolha de caminh06.• E neceSBário considerar, além disso, que a chamada interdependência não se limita hoje à atividade econômica, e atinge praticamente todos os aspectos do cotidiano das sociedades: o político, no qual a fronteira entre o externo e o interno se torna menos nítida; o social, no '1ual o tratamento de questões como direitos humanos e meio ambiente tem uma dimensão internacional que se acentua; o cultural, no qual os padrões 'globalizad05' de comportamento e de consumo de bens materiais e culturais se 5uperpãem às diferenças históricas. Como aftrma Ignacio Ramonet: ''Na história da humanidade, jamais BB práticas próprias a uma cultura se im· puseram como modelos universais 'tão rapidamente. Modelos (...) admitidos em todos 06 lug&ree como cracionais' e
  • 12. • 160 ESTUDOS HISTORICOS - 1993/12 'naturais' e que participem, de fato, da ocidentalização do mundo". 22 Daí resulta, entre muitas oubas, uma conseqüência essencial: num mun­ do em que as distâncias geográficas con­ tam cada vez menos, em que a democra­ cia prevalece, em que as economias na­ cionais se complementam e, ao mesmo tempo, competem entre si, em que se torna mais transparente a ligação entre fatos externos e efeitos internos, em que os meios de comunicação pel'mitem a divulgação imediata e ampla do dia-a­ dia nacional e internacional, terá que haver um vínculo, cada vez mais claro para o público em geral, entre política extenaa e concretos para as populações. Na medida.em que os paí­ tenham seus destinos unidos por laços cada vez mais estreitos, seja de cooperação, seja de concorrência, as I'e­ lações internacionais tornam-se mais complexas e, sobretudo, mais delicadas, pois sua condução dependerá crescente­ mente da difícil harmonização (ou sim­ plesmente da frustração) de interesses distintos, e muitas vezes opostos, arti­ culados em escala local, nacional e transnacional. • Não existem mapas para essa via-, gemo E preciso avançar ora com pru- dência, ora com ousadia, sempre com equilíbrio e criatividade. • Notas 1. Robert B.Reich, The work ofnations: preparing ourselves for 21St century capi­ talism (Nova York: Vintage Books, 1992), p.315. 2. "A survey of multinationals", The Economist, 27 de março de 1993. 3. Robert O. Keohane e Joseph S. Nye, Power and interdependence: worldpolitica in transition (Boston: Little, BrowIl and Company Inc., 1977). 4. Como exemplo do realismo dos tradi­ cionalistas, os autores citam, entre outroo textos, Hans J. Morgenthau, Politica among nations: the st/Uggle ofpower and peace (Nova York: Knopf, 1948); entre os modernistas , mencionam Lester R. Brown, Worldwithout borders: the interde­ pendence ofnations (Nova York: Foreign PolicyAssociation, Headline Series, 1972). 5. Morgenthau, op.cit. • 6. Keohane e Nye, op.cit., p.242. 7. Lester Thurow, Head to head: the coming economic battle wnongJapan, Eu­ rope and America (Nova York: Wllliam Mol"l'oW and Co., Inc., 1992), p.16. 8. Laura D'Andrea 'l)rson, Whos bashing whom? 'Irade oonflict in high-technology in­ dustries (Washington, D.C.: Institute for In­ ternational Economics, 1992), p.296. 9. Extraído de texto não destinado a publicação. 10. Citado na Folha de S. Paulo, 11/07/93, p.6-4. , 11. Nicos Poulantzas, L'Etat, lepouvoir, lesocialisme, 2f!ed. (Paris: Presses Univer­ sitaires de France, 1981), p.238 e 243. 12. O argumento consta do artigo de Ignacio Ramonet, ''Mondialisation et sé­ grégations", em Maniere de voir 18 - Le Monde diplomatique, maio 1993. 13. Richard J. Barnet e John Cavanagh, "National interests and global realities", em Institute for Policy Studies-Briefing Paper, Security Series, n2 2,janeiro 1992. 14. Joseph S. Nye, Bound to lead: the changing nature ofAmericanpower (Nova York: Basic Books, Inc., 1990), p.33-34. 15. Entende-se por 'agenda das relações internacionais' não a lista ampla das ques­ tões arl'oladas f0l11lalmente para discus­ são nos organismos multilaterais, mas o conjunto dos assuntos que efetivamente mobilizam a atenção e os esforços da comu­ nidade das nações. 16. Gelson Fonseca Jr., "Aspectos da multipolaridade contemporânea (notas preliminares)", em Contexto Internacio­ nal, ano 6/ n2 11,janeiro-junho 1990, p.21.
  • 13. • o REAJJSMO DE CADA UM 161 • 17. Nessa divisão, deixou-se também de incluiruma categoria que abarL"'8SSe atores fundamentais, sobretudo a Rússia e a Chi- na, que continuam a ter, por razões cada vez mais distintas, importância crucial na definição do futuro da ordem internacio­ nal. , 18. E o que defendem Lester Thurow, Robert Reich e Laura 1Yson (os dois últi­ mos ocupam funções de primeira linha no goveI'IlO do presidente Bill Clinton, o pri­ meil'O como secretário do 'frabalho e a se­ gunda como chefe do Council of Economic Advisers) nos recentes livllJS acima cita­ dos. 19. Lester Thurow, op.cit., p.65-66. 20. JoséAugusto GuilhonAlbuquerque, "O fim da guerra fria e os novos conflitos internacionais", em O futuro do Brasil,, organizado por José Alvaro Moisés (São Paulo, EDUSP, 1992). 21. Fonseca, op.cit., p.8 22. Ramonet, op.cit. (Reoebidoparapublicação emjullw de 1993) Mal:us B. A Galváo é diplomata, mes­ tre em relações internacionais pela American University (Washington, D.C.) e professor do Instituto Rio Branco.