SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 2
Baixar para ler offline
O que é arte?
Dra.Susana Rangel Vieira da Cunha
Publicado no Jornal Cultural KORALLE, Porto Alegre, v. 6, p. 3 , maio
2006.
A música “O que será” (A flor da pele) de Chico Buarque de
Holanda traduz, parcialmente, o que entendo por arte. En-
tão, arte seria o: “Que me bole por dentro, Que brota à flor
da pele, Que me salta os olhos a me atraiçoar, O que não tem
receita, Que desacata a gente, que é revelia, O que não tem
descanso nem nunca terá, O que não tem limite, Que me
queima por dentro, Que me perturba o sono, O que não tem
juízo” . Ou seja, todas aquelas produções humanas que de
algum modo mexem com meus sentidos, com meus pensa-
mentos, me incomodam, me deslocam, me mobilizam e me
fazem compreender a vida por outros pontos de vista consi-
dero como produções artísticas. Entretanto, entendo que o
que me perturba não se dá numa relação imediata, esponta-
neístas entre eu e as coisas, o que me bole é produzido pelo
Gottfried Helnwein
The Disasters of War 13, 2007, mixed media (oil and acrylic on canvas)
meu conhecimento sensível e racional, pelas vivências, pelos contextos culturais que vivi e vivo e pela minha história pessoal e
social.
M inhas experiências como professora e pesquisadora no campo do ensino das artes visuais, têm mostrado que as pessoas atri-
buem sentido, valorizam e denominam determinadas produções como arte a partir de seus repertórios culturais, que por sua
vez estão imbricados com aquilo que se convencionou e se instituiu como arte. Como exemplo, lembro a exposição dos Impres-
sionistas no M ARGS. Nesta exposição havia unanimidade de que todas as peças expostas eram obras arte. Quem e o que pode-
ria contestá-las? Os discursos e as instituições, ao fixar que determinados objetos são obras de arte, passam a glamorizar pro-
duções em detrimento de outras, e ao dizerem, previamente, que isso ou aquilo é arte, furtam dos espectadores a possibilidade
do questionamento, da dúvida e de tomar decisões frente ao visto. A questão que coloco não é de categorizar ou classificar o
que é arte, mas instigar o posicionamento das pessoas frente as diferentes produções culturais e que elas possam ser perturba-
das, mexidas, desestabilizadas diante dos mais variados objetos, sejam eles os “etiquetados” , sejam aqueles objetos anônimos
que participam do nosso cotidiano.
Entendo que as concepções que formamos em torno da arte acabam formulando também nossos modos de ensinar arte, as-
sim, procuro tecer experiências com minhas alunas da graduação em Pedagogia, mesclando o pensamento sensível e conceitu-
al, uma vez que não existe processo de conhecimento em arte numa perspectiva apenas teórica ou experiencial, o conhecimen-
to neste campo necessita da mediação entre o reflexivo e poético. É conhecendo e pensando sobre as diferentes produções
simbólicas, vivenciando e entendendo os próprios processos expressivos que as pessoas ampliarão suas visões sobre a arte em
sua dimensão histórica, social, individual, expressiva, conceitual, cultural, simbólica e técnica.

Mais conteúdo relacionado

Semelhante a O_que_e_arte.pdf

Jorge coli o que é arte
Jorge coli   o que é arteJorge coli   o que é arte
Jorge coli o que é arteBruno Piza
 
A Arteterapia como Facilitadora do Processo de Individuação
A Arteterapia como Facilitadora do Processo de IndividuaçãoA Arteterapia como Facilitadora do Processo de Individuação
A Arteterapia como Facilitadora do Processo de Individuaçãotania m f contrim
 
Fund. filosóficos e sociológicos da arte nota 10,0
Fund. filosóficos e sociológicos da arte   nota 10,0Fund. filosóficos e sociológicos da arte   nota 10,0
Fund. filosóficos e sociológicos da arte nota 10,0HENRIQUE GOMES DE LIMA
 
Museus, arte, educação
Museus, arte, educaçãoMuseus, arte, educação
Museus, arte, educaçãoJoão Lima
 
Museus, arte, educação
Museus, arte, educaçãoMuseus, arte, educação
Museus, arte, educaçãoJoão Lima
 
Museus, arte, educação
Museus, arte, educaçãoMuseus, arte, educação
Museus, arte, educaçãoJoão Lima
 
Museus, arte, educação
Museus, arte, educaçãoMuseus, arte, educação
Museus, arte, educaçãoJoão Lima
 
Museus, arte, educação
Museus, arte, educaçãoMuseus, arte, educação
Museus, arte, educaçãoJoão Lima
 
Museus, arte, educação
Museus, arte, educaçãoMuseus, arte, educação
Museus, arte, educaçãoJoão Lima
 
Museus, arte, educação
Museus, arte, educaçãoMuseus, arte, educação
Museus, arte, educaçãoJoão Lima
 
Museus, arte, educação
Museus, arte, educaçãoMuseus, arte, educação
Museus, arte, educaçãoJoão Lima
 
Antropologia e psicologia apontamentos para um diálogo aberto, 2004
Antropologia e psicologia   apontamentos para um diálogo aberto, 2004Antropologia e psicologia   apontamentos para um diálogo aberto, 2004
Antropologia e psicologia apontamentos para um diálogo aberto, 2004Jailda Gama
 
Arte e sua função - Alexandre Linares e Ana Paula Dibbern
Arte e sua função - Alexandre Linares e Ana Paula DibbernArte e sua função - Alexandre Linares e Ana Paula Dibbern
Arte e sua função - Alexandre Linares e Ana Paula DibbernAlexandre Linares
 

Semelhante a O_que_e_arte.pdf (20)

O que é arte
O que é arteO que é arte
O que é arte
 
Jorge coli o que é arte
Jorge coli   o que é arteJorge coli   o que é arte
Jorge coli o que é arte
 
Jorge coli - o que é arte
Jorge coli - o que é arteJorge coli - o que é arte
Jorge coli - o que é arte
 
Recrearte
RecrearteRecrearte
Recrearte
 
Cap 15 Filosofia Estética
Cap 15  Filosofia EstéticaCap 15  Filosofia Estética
Cap 15 Filosofia Estética
 
Arte
ArteArte
Arte
 
Arte
ArteArte
Arte
 
A Arteterapia como Facilitadora do Processo de Individuação
A Arteterapia como Facilitadora do Processo de IndividuaçãoA Arteterapia como Facilitadora do Processo de Individuação
A Arteterapia como Facilitadora do Processo de Individuação
 
Arte
ArteArte
Arte
 
Fund. filosóficos e sociológicos da arte nota 10,0
Fund. filosóficos e sociológicos da arte   nota 10,0Fund. filosóficos e sociológicos da arte   nota 10,0
Fund. filosóficos e sociológicos da arte nota 10,0
 
Museus, arte, educação
Museus, arte, educaçãoMuseus, arte, educação
Museus, arte, educação
 
Museus, arte, educação
Museus, arte, educaçãoMuseus, arte, educação
Museus, arte, educação
 
Museus, arte, educação
Museus, arte, educaçãoMuseus, arte, educação
Museus, arte, educação
 
Museus, arte, educação
Museus, arte, educaçãoMuseus, arte, educação
Museus, arte, educação
 
Museus, arte, educação
Museus, arte, educaçãoMuseus, arte, educação
Museus, arte, educação
 
Museus, arte, educação
Museus, arte, educaçãoMuseus, arte, educação
Museus, arte, educação
 
Museus, arte, educação
Museus, arte, educaçãoMuseus, arte, educação
Museus, arte, educação
 
Museus, arte, educação
Museus, arte, educaçãoMuseus, arte, educação
Museus, arte, educação
 
Antropologia e psicologia apontamentos para um diálogo aberto, 2004
Antropologia e psicologia   apontamentos para um diálogo aberto, 2004Antropologia e psicologia   apontamentos para um diálogo aberto, 2004
Antropologia e psicologia apontamentos para um diálogo aberto, 2004
 
Arte e sua função - Alexandre Linares e Ana Paula Dibbern
Arte e sua função - Alexandre Linares e Ana Paula DibbernArte e sua função - Alexandre Linares e Ana Paula Dibbern
Arte e sua função - Alexandre Linares e Ana Paula Dibbern
 

O_que_e_arte.pdf

  • 1. O que é arte? Dra.Susana Rangel Vieira da Cunha Publicado no Jornal Cultural KORALLE, Porto Alegre, v. 6, p. 3 , maio 2006. A música “O que será” (A flor da pele) de Chico Buarque de Holanda traduz, parcialmente, o que entendo por arte. En- tão, arte seria o: “Que me bole por dentro, Que brota à flor da pele, Que me salta os olhos a me atraiçoar, O que não tem receita, Que desacata a gente, que é revelia, O que não tem descanso nem nunca terá, O que não tem limite, Que me queima por dentro, Que me perturba o sono, O que não tem juízo” . Ou seja, todas aquelas produções humanas que de algum modo mexem com meus sentidos, com meus pensa- mentos, me incomodam, me deslocam, me mobilizam e me fazem compreender a vida por outros pontos de vista consi- dero como produções artísticas. Entretanto, entendo que o que me perturba não se dá numa relação imediata, esponta- neístas entre eu e as coisas, o que me bole é produzido pelo Gottfried Helnwein The Disasters of War 13, 2007, mixed media (oil and acrylic on canvas)
  • 2. meu conhecimento sensível e racional, pelas vivências, pelos contextos culturais que vivi e vivo e pela minha história pessoal e social. M inhas experiências como professora e pesquisadora no campo do ensino das artes visuais, têm mostrado que as pessoas atri- buem sentido, valorizam e denominam determinadas produções como arte a partir de seus repertórios culturais, que por sua vez estão imbricados com aquilo que se convencionou e se instituiu como arte. Como exemplo, lembro a exposição dos Impres- sionistas no M ARGS. Nesta exposição havia unanimidade de que todas as peças expostas eram obras arte. Quem e o que pode- ria contestá-las? Os discursos e as instituições, ao fixar que determinados objetos são obras de arte, passam a glamorizar pro- duções em detrimento de outras, e ao dizerem, previamente, que isso ou aquilo é arte, furtam dos espectadores a possibilidade do questionamento, da dúvida e de tomar decisões frente ao visto. A questão que coloco não é de categorizar ou classificar o que é arte, mas instigar o posicionamento das pessoas frente as diferentes produções culturais e que elas possam ser perturba- das, mexidas, desestabilizadas diante dos mais variados objetos, sejam eles os “etiquetados” , sejam aqueles objetos anônimos que participam do nosso cotidiano. Entendo que as concepções que formamos em torno da arte acabam formulando também nossos modos de ensinar arte, as- sim, procuro tecer experiências com minhas alunas da graduação em Pedagogia, mesclando o pensamento sensível e conceitu- al, uma vez que não existe processo de conhecimento em arte numa perspectiva apenas teórica ou experiencial, o conhecimen- to neste campo necessita da mediação entre o reflexivo e poético. É conhecendo e pensando sobre as diferentes produções simbólicas, vivenciando e entendendo os próprios processos expressivos que as pessoas ampliarão suas visões sobre a arte em sua dimensão histórica, social, individual, expressiva, conceitual, cultural, simbólica e técnica.