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FACULDADE SÃO LUIZ
REGINALDO PEREIRA DE ALMEIDA
O PROBLEMA DOS MECANISMOS DETERMINISTAS NA
CONCEPÇÃO MOUNIERIANA DE PESSOA
BRUSQUE
2010
REGINALDO PEREIRA DE ALMEIDA
O PROBLEMA DOS MECANISMOS DETERMINISTAS NA
CONCEPÇÃO MOUNIERIANA DE PESSOA
Trabalho de Conclusão de Curso
para obtenção do grau de Bacharel
em Filosofia pela Faculdade São
Luiz.
Orientador: Prof. Dr. Adilson José
Colombi.
BRUSQUE
2010
Dedicatória:
Dedico este trabalho aos meus pais Ademir e Maria
Janete e aos meus irmãos Everaldo e Clodoaldo,
comunidade primeira na qual me encarnei. Também à
Mari, ao Gabriel e ao Rafael, e à Ires, que vieram a
integrar nossa existência familiar. Dedico este trabalho ao
Pe. Adalberto, ao Pe. Edson, ao Pe. Adenir Ronchi, meus
formadores, e também aos meus irmãos de caminhada, o
Claudemir Alves, o Adriano Sidnei, o Gentil, o Marcos
Ricardo, o Alexsandro Serafim, o Fernando Steffens, o
Gilson Siqueira, o Tiago Francisco, o Ronério, o Edinei (in
memorian), o Tiago Willian, o Cristiano e o Arnaldo Allein.
Aos meus professores e em especial, ao meu orientador,
Pe. Adilson José Colombi. Dedico também às famílias que
muitas forças me deram e me encantaram com o amor ali
manifestado: à família Cardoso (Denise, Celso, Dani e
Fernanda), à família Luchtenberg (José Luiz, Lenice, Aline
e Carol) e à família Brühmuller (Tarcísio, Rose, Bruno e
Camila).
Agradecimento:
Agradeço primeiramente a Deus, Fonte de toda a vida e
inspiração para a arte do pensar. Por Sua graça encontrei
pessoas que me orientaram e me apoiaram nas minhas
escolhas, aos quais sou também inteiramente grato pelo
amadurecimento que me proporcionaram: meus pais,
irmãos e demais familiares; meus formadores,
professores e amigos do tempo de Seminário, todos
colaboradores na constituição de minha personalidade.
RESUMO
O presente trabalho monográfico apresenta a proposta de personalização frente às
massificações ideológicas, aos sistemas sociais e econômicos que tendem, de
forma mecânica, a uniformizar o ser humano. Trata-se de uma pesquisa
bibliográfica, que busca trazer presente o progresso da mecanização e da
cientificidade e direcionar estes fatores exclusivamente para o desenvolvimento
humano. A partir de uma análise histórica acerca do aperfeiçoamento do método,
observamos a tentativa de aplicá-lo em todas as áreas do saber e do agir humano.
Logo vemos a indústria operando de forma mecanizada e sistematizada. Logo
vemos o ser humano a ser estudado como algo totalmente palpável e sistematizado.
Em contrapartida, com o propósito de encontrar no pensamento de Emmanuel
Mounier um amadurecimento da Pessoa, recorre-se aqui à sua principal obra sobre
a personalidade, O Personalismo. São assim apresentadas as principais categorias
do processo de personalização como atitude de rompimento com tudo o que fere a
dignidade humana e sufoca sua liberdade. Afronta-se então a Pessoa (crítica,
criativa, espontânea, imprevisível) com a realidade onde está encarnada.
Palavras-chave:
1. Pessoa 2. Mecanismo 3. Liberdade 4. Emmanuel Mounier
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................6
1. A CULTURA MECANICISTA..................................................................................9
1.1. MECANICISMO E DETERMINISMO ...................................................................9
1.1.1. Desenvolvimento da teoria mecanicista.......................................................11
1.2. A RACIONALIZAÇÃO DA FILOSOFIA...............................................................12
1.3. SOBRE AS LEIS NATURAIS .............................................................................13
1.4. AS INDÚSTRIAS MECÂNICAS..........................................................................15
1.4.1. Cientificidade nas organizações ..................................................................17
1.5. CIÊNCIA COMO STATUS..................................................................................18
2. EMMANUEL MOUNIER E O PROCESSO DE PERSONALIZAÇÃO...................21
2.1. A PESSOA HUMANA: UM SER ENCARNADO .................................................24
2.2. MOVIMENTO DE PERSONALIZAÇÃO: DIALÉTICA DA INTERIORIDADE E
OBJETIVIDADE ........................................................................................................26
2.2.1. O perigo da interiorização............................................................................27
2.2.2. O perigo da exteriorização...........................................................................28
2.3. O AFRONTAMENTO..........................................................................................29
2.4. A COMUNICABILIDADE DA PESSOA...............................................................31
2.5. AS DIMENSÕES DA AÇÃO...............................................................................33
2.6. PESSOA E COMUNIDADE................................................................................35
3. A LIBERDADE NAS CONDIÇÕES TOTAIS DA PESSOA...................................38
3.1. A PESSOA COMO SUPERAÇÃO DA NATUREZA ...........................................38
3.2. A PESSOA COMO SUPERAÇÃO DAS ESTRUTURAS ....................................40
3.2.1. Estrutura Comunista ....................................................................................41
3.2.1. Estrutura Capitalista.....................................................................................42
3.3. REVOLUÇÃO PERSONALISTA E COMUNITÁRIA ...........................................45
3.3.1. Para uma psicologia personalista....................................................................46
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................48
REFERÊNCIAS.........................................................................................................50
INTRODUÇÃO
No fascínio que se desperta pelos frutos da era tecnológica, pelas máquinas
cada vez mais independentes das participações humanas, esconde-se um temor de
que as necessidades reais da pessoa sejam lançadas para um segundo plano nos
interesses sociais. Quando o valor do ser humano se resume exclusivamente à
técnica, não importa mais o que ele é, mas a qualificação que tem. Na intenção de
apresentar a concepção de Pessoa sob a perspectiva personalista de Emmanuel
Mounier, o presente trabalho discorrerá acerca do processo de personalização e a
questão da mecanização da sociedade e da técnica frente à proposta mounieriana.
Sendo o processo de personalização um movimento dialético constante
entre o envolver-se nas profundas experiências interiores e exprimir-se na realidade
externa à Pessoa, se ocupará, o primeiro capítulo, em apresentar os mecanismos
que sufocam este movimento. Para tanto, uma breve explanação sobre o
aperfeiçoamento do método que, iniciado com Descartes, atingirá seu ponto alto em
Newton, em suas investigações das leis celestes, e mais tarde fará parte da
produção industrial e de todas as Ciências Experimentais. Faz-se importante notar
que o método, quanto mais minucioso, mais garantia dará sobre um acontecimento
futuro, gerando uma sensação de previsibilidade: prever a localização dos corpos
celestes e sua influência sobre a vida na Terra; prever a rentabilidade da produção
industrial; prever as manifestações sociais; prever a própria psicologia humana. É
neste ponto que o primeiro capítulo quer tocar: na transferência da noção de
previsibilidade até as ciências do comportamento humano, destacando assim a
7
desvalorização da capacidade criativa da pessoa em prol de um conhecimento
redutivo acerca das respostas biológicas às determinações da natureza.
Em contrapartida, o segundo capítulo apresenta o processo de superação
pessoal, o processo de personalização ante os determinismos mecanicistas que
admitem a técnica, por si mesma, como um fim supremo. Este capítulo reflete o
produto das experiências vividas por Mounier. Reflete a experiência do sentir-se
encarnado num tempo e num espaço mediante a materialidade do seu corpo.
Consequentemente a pessoa se afronta com a realidade, com o outro, da mesma
forma como se comunica, expressando-se, exprimindo-se, saindo de si para afirmar-
se e apreendendo a realidade para se consolidar como Pessoa. Apreender a
realidade e transformá-la; agir sobre a natureza; produzir. As dimensões da ação da
Pessoa devem englobar todo o seu ser e favorecer a realização pessoal.
O problema dos mecanismos deterministas na concepção mounieriana de
Pessoa surge como uma instigação à reflexão sobre a liberdade da pessoa. Somos
livres ou nossas escolhas e nossas ações são determinadas pelos interesses de
uma ideologia, de um sistema social ou econômico? A singularidade parece estar
escassa uma vez que a propaganda tenta uniformizar os gostos. A crítica de
Mounier se dirige contra as tendências filosóficas e econômicas que colocam a
pessoa à margem de seus interesses. O terceiro e último capítulo apresentará a
proposta mounieriana de uma revolução personalista e comunitária que,
contrariando o marxismo e o capitalismo, que se apóiam numa doutrina centrada
respectivamente no material e no capital, coloca as necessidades reais da pessoa
como motor para uma economia da realização humana.
Para esta pesquisa nos utilizamos do pensamento de Emmanuel Mounier
expresso em algumas de suas obras, sendo a principal O Personalismo. Foi também
8
indispensável para a análise da mecanização das atividades humanas, o contato
com algumas teorias da administração industrial, que colocaram o trabalho humano
sob as exigências da máquina, do lucro e do material.
1. A CULTURA MECANICISTA
Adotar a noção de Pessoa na perspectiva de Emmanuel Mounier, é entendê-
la como um movimento dialético constante da interioridade espiritual que se
manifesta criativamente na exterioridade, naquilo que nos é dado. A realidade
exterior, bem como a própria natureza humana, apresentam-se como que matérias-
prima para a atividade da Pessoa. Na medida em que transforma o meio, exprime-
se; e na medida em que apreende a realidade, se re-abastece.
Veremos, neste primeiro capítulo, o problema da mecanização dos sistemas
que englobam o ser humano e o fascínio sobre a previsibilidade que a noção de
mecânico favorece. Considerar o universo como máquina favoreceu prever o
posicionamento dos corpos celeste e a influência destes sobre a vida na Terra; a
indústria mecânica favoreceu prever a rentabilidade da produção; considerar as
estatísticas sociais favorece a delineação de um plano de desenvolvimento. E o ser
humano: pode ser assim considerado de forma a favorecer uma previsibilidade
acerca de suas ações?
1.1. MECANICISMO E DETERMINISMO
Frequente será, para elucidar a ideia deste primeiro capítulo, a ocorrência do
termo determinismo nas suas diversas variações. Parece-nos ser inapropriada a
utilização do verbo determinar quando nos referimos a ações humanas. Esquivamo-
10
nos ainda mais do termo, quando assumimos uma postura Personalista frente à
questão. Falar de Pessoa sob esta perspectiva implica numa contraposição aos
determinismos e supõe espontaneidade e criatividade das ações humanas. O
personalismo repugna profundamente “[...] aparelhagens de pensamento e ação
funcionando como automáticos distribuidores de soluções e instruções, obstáculo
frente às investigações, seguro contra a inquietação, a dificuldade, o risco.”1
O
personalismo repugna ainda a ideia de destinação já adotada na antiguidade, na
qual o ser humano é apenas mais um elemento na natureza, sujeito às mesmas leis
que aquela e possui um futuro já traçado pelas determinações naturais. As ações do
ser humano, sob esta perspectiva, se limitam a reações consequentes dos estímulos
provocados pelo meio em que vive.
Abbagnano vincula o conceito determinismo ao mecanicismo que, segundo
ele
[...] é a tendência dominante da Ciência do séc. XIX, como também
da Filosofia que se apóia nessa fase da ciência. O determinismo é a
crença na extensão universal do mecanismo, isto é, na extensão do
próprio mecanismo também ao homem.2
Trata-se de, no processo iluminista de racionalização do mundo, estender os
mecanismo às próprias atividades do ser humano. Os modelos científicos, industriais
e administrativos que surgiram como fruto dos métodos do conhecimento
desenvolvidos de Descartes a Newton, serão o foco da crítica presente nesta
pesquisa. Emmanuel Mounier sugerirá um conceito de Pessoa que afrontará a
ciência e a filosofia mecanicista no processo de personalização, pois estas
1
MOUNIER, Emmanuel. O Personalismo. Lisboa: Livraria Morais Editora, 1964, p. 15.
2
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução Alfredo Bosi. São Paulo: Editora
Mestre Jou, 1999, p. 229.
11
descartam o cultivo de uma interioridade, considerando o ser humano como simples
autômato, dependente de ordens e leis que orientem o seu agir.
1.1.1. Desenvolvimento da teoria mecanicista
Num princípio de análise frente ao que está determinado, parece
manifestar-se um ceticismo referente a abstrações: apenas o que está posto e
somente isso exerce influência sobre o que o rodeia. Esta é a única manifestação
existente: apenas o que aparece, o que é material e os fenômenos consequentes
dessa presença material. Porém os deístas, defensores espiritualistas do
mecanicismo, concordam em afirmar a existência de um Ser Superior que criou o
universo e o pré-determinou, mediante leis naturais, a se manter e se organizar na
sua existência.3
Todos os acontecimentos tornam-se previsíveis quando se conhece
a lógica que constitui a natureza das coisas. René Descartes (1596-1650), defensor
da teoria mecanicista, criou seu método para dirigir a razão e fazer com que as
ciências desvendassem as leis que regem o universo. Como Pitágoras, sua intenção
era associar as leis numéricas com as leis do mundo. Ao voltar seu olhar para a
natureza, para o céu, para as estrelas, para a Lua, Descartes comovia-se com
[...] certas leis que Deus de tal forma estabeleceu na natureza e das
quais imprimiu tais noções em nossas almas, que, após muita
reflexão, não é possível duvidarmos que elas não sejam exatamente
observadas em tudo quanto existe ou se faz no mundo.4
3
Cf. Ibid., p. 223.
4
DESCARTES, René. Discurso sobre o método: Para bem dirigir a própria razão e procurar
a verdade nas ciências. Tradução Márcio Pagliesi e Norberto de Paula Lima. 9. ed. São Paulo:
Editora Hemus, 1995, p. 82.
12
A abordagem analógica do universo como uma gigantesca máquina
oferecia-se para a ciência cartesiana como um mistério a ser desvendado. Esse
anseio, já na antiguidade inquietava o pensamento de quem, atentamente,
vislumbrava e se comovia com o comportamento dos céus. A própria filosofia surgiu
em torno do assombro pelo cosmos. Ptolomeu (90-168), por exemplo, da escola de
Alexandria, elaborou seu complexo sistema epicíclico dos astros celestes,
concebendo o Universo geometricamente. Tal concepção permitiu a previsão da
localização de planetas, da Lua em relação à Terra e contribuiu para a afirmação de
teorias que estavam por surgir.5
1.2. A RACIONALIZAÇÃO DA FILOSOFIA
Considerado o pai da filosofia moderna, René Descartes foi o grande
propulsor para o desenvolvimento das Ciências Experimentais. Dissecar corpos de
animais para minuciosamente descrever o funcionamento interno dos organismos
vivos, o sistema respiratório, o sistema digestivo, nervoso, enfim, tudo
detalhadamente, era uma das atividades nas quais se dedicava.6
Buscou-se tal
minuciosidade ao estabelecer o princípio do conhecimento metódico da divisão da
dificuldade a ser examinada.7
Em todo um sistema, deve ser levada em
consideração cada uma das partes particularmente, assim como a função das suas
particularidades.
5
Cf. SILVA, Luciano Pereira da. A astronomia de “Os Lusíadas”. Coimbra: Junta de
investigação do Ultramar, 1972, p. 72.
6
Cf. DESCARTES, op. cit., p. 89.
7
Cf. ibid., p. 40.
13
Corre-se aqui o risco de cair na infidelidade à filosofia cartesiana. Ela,
embora conceba o mundo material como regido por leis mecânicas, julga ser livre o
ser humano por possuir uma alma que controla a máquina do seu corpo.8
Todos os
seres animados funcionam como máquinas e agem como autômatos, até mesmo o
corpo humano. O que o distingue, no entanto, dos demais animais é justamente a
presença de uma alma racional que controla esta máquina.
Logo percebemos a origem da problemática que estará permeando nossa
pesquisa. Durante a história, sutilmente se estenderá a noção moderna de
funcionamento autômato do universo ao ser humano. O indivíduo, com o alvorecer
da era industrial e do capitalismo, será considerado uma peça da engrenagem
organizacional. A transferência da noção de automaticidade do universo para as
ciências do comportamento humano parece se iniciar no ato de assumir o
mecanicismo cartesiano munido de preconceito quanto à existência de uma res
cogitans, uma interioridade da pessoa. Esse ceticismo, promovido pelo pensamento
positivista, que apostou convictamente na racionalização da natureza e na
implantação da cientificidade em todas as áreas do saber, visava a elevação de uma
humanidade progressista e ordenada para o cume de sua evolução.
1.3. SOBRE AS LEIS NATURAIS
Há quem considere que tudo o que se havia especulado até Isaac Newton
acerca das forças do universo, foi apenas uma introdução.9
Embora seja
8
Cf. MONDIN, Battista. Curso de Filosofia: os filósofos do ocidente. 5. ed. Tradução Benôni
Lemos. São Paulo: Edições Paulinas, 1981. v. 3. p. 71.
9
Cf. REALE, Giovanni. História da Filosofia: do humanismo a Descartes. São Paulo: Paulus,
2004. v. 3. p. 233.
14
praticamente contemporâneo a Descartes e tenha utilizado, em partes, do próprio
método cartesiano10
, Newton particularizou seu trabalho em torno da física do
universo, sendo, portanto, um dos grandes promotores da divisão entre Ciência e
Filosofia. Sua ciência era composta de duas partes: deduzir leis mediante as
observações dos fenômenos que se deixam revelar para depois induzi-las às
dimensões que não alcançam nossos sentidos. Ou seja, toda a matéria, quando
submetida às mesmas condições, deve se comportar da mesma forma, em todos os
lugares por se submeterem às mesmas leis que estão também em todos os
lugares.11
Vale destacar, para esta nossa pesquisa que, das regras por ele
formuladas, na segunda delas, expressa o postulado da uniformidade da natureza.
Seguindo o raciocínio newtoniano todas as leis que podemos deduzir mediante a
experiência que nos é proporcionada, podem ser induzidas a todos os efeitos que
tenham semelhantes causas.12
Aplica-se ao todo as leis observadas nas partes.
A automaticidade que Descartes encontrou, mesmo nos corpos animados,
mediante a certeza da cientificidade newtoniana, vai perscrutar a razão positivista e
fazê-la tomar a Sociologia como Física Social. Assim como em todas as áreas do
saber, o conhecimento só terá valor na medida em que configurar seu discurso nos
limites do que é positivo. O próprio termo positivo faz tomar por verdadeiro apenas
aquilo que está posto, que é observável e livre de hipóteses. É a ciência newtoniana
levada ao seu extremo. Para o positivista, apenas o conhecimento que estiver sob
os padrões da metodologia científica será o conhecimento verdadeiro. O exagero
positivista coloca a própria filosofia em descrédito. Ela é apenas um estágio
10
Cf. ibid., p. 231.
11
Contanto que seja levada em consideração a primeira de suas regras: “Não se hão de
admitir mais causas das coisas naturais do que as que sejam verdadeiras e ao mesmo tempo bastem
para explicar os fenômenos de tudo.” (NEWTON, Sir Isaac. Princípios Matemáticos. Tradução
Carlos Lopes de Mattos e Pablo Rubén Mariconda. 2. ed. São Paulo: Editora Abril, 1983, p. 18)
12
Cf. Ibid., loc. Cit.
15
intermediário entre o conhecimento mitológico e o conhecimento científico (ou
positivo). A maturidade intelectual só é alcançada nesse último estágio, onde há
maior rigor sobre aquilo que se conhece, ao contrário da Filosofia que, embora
baseada na razão, permite a especulação livre.13
1.4. AS INDÚSTRIAS MECÂNICAS
É nesse fascínio acerca da revolução científica que emerge o
desenvolvimento industrial. O surgimento da indústria mecânica abre novos rumos
para a forma de produção que até então se limitava ao domínio da arte
monopolizada sobre o talento e a mística dos artesãos. É uma das marcas da
transição entre feudalismo e capitalismo.
A revolução industrial mudou radicalmente o modo de vida na
Europa. E os entusiasmos se cristalizaram em torno da ideia de
progresso humano e social irrefreável, já que, de agora em diante,
possuíam-se os instrumentos para a solução de todos os problemas,
para o pensamento da época, esses instrumentos eram, sobretudo, a
ciência e suas aplicações na indústria [...]14
Começam a se formar os grandes centros próximos às indústrias, e o
camponês, assim como o artesão, deixa seus trabalhos de subsistência, para estar
sob o regulamento de uma organização corporativa. O trabalho do artesão e do
camponês não estava antes sujeito ao cumprimento rígido de horários
estabelecidos. Ambos tinham, ainda, acesso ao produto do seu trabalho. Estavam
sob o seu domínio todas as fases da produção e a criatividade era sua auxiliar ao
13
Cf. REALE, Giovanne; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: do romantismo até os
nossos dias. 6. ed. São Paulo: Paulus, 2003. v. 3. p. 298.
14
Ibid., p. 295.
16
dar forma à criação. Esse tipo de trabalho cede lugar à produção mecanizada e o
ritmo da produção passa a ser determinado pela máquina. Essa transformação, que
gerou e cresceu junto com o espírito capitalista de acúmulo de capital, fez pesar
sobre o operário pesadas cargas horárias e muitas vezes em péssimas condições
de segurança e com baixíssimos salários. Na indústria mecânica, cada trabalhador é
responsável por uma etapa da produção, podendo trabalhar sem nem mesmo saber
qual será o resultado final deste processo.
Pedrinho Guareschi cita em sua obra a distinção que os romanos faziam
entre estes dois modos de produção. O termo labor se refere à atividade que o
trabalhador desempenha sobre sua própria propriedade resultando um produto do
qual poderá usufruir, implicando um domínio sobre sua produção e a necessidade
do exercício de sua criatividade.15
É o que acontece no caso do artesão, por
exemplo, que se encarrega desde a busca pela matéria prima até a escolha das
cores e da forma de seu trabalho. Para um outro modo de produção, Guareschi cita
o termo tripalium, onde
[...] a pessoa trabalha no que não é seu, o que a pessoa faz não fica
para ela, não decide e nem participa do destino de sua produção.
Quando a alienação o transforma em um robô, um autômato, um
alienado mental. Ele é simples máquina produtora. Incorpora as
relações e os movimentos da máquina, transformando-se, ele
mesmo, em máquina. A sensibilidade humana e criadora, a iniciativa
e a espontaneidade desaparecem.16
A crítica de Mounier focará justamente a produção frenética movida pela
centralidade do rendimento. Para ele, toda a produção deve ser orientada pelo
consumo, e o consumo por uma ética das necessidades reais da pessoa. Tudo
começa e tudo termina na pessoa.
15
Cf. GUARESCHI, Pedrinho; RAMOS, Roberto. A máquina capitalista. Petrópolis: Vozes,
1988, p. 33.
16
Ibid., loc. Cit.
17
1.4.1. Cientificidade nas organizações
Com o lema positivista de Ordem e Progresso, a necessidade de elaborar
manuais que orientem o desenvolvimento da produção industrial torna-se
indispensável. A sensação é de que a humanidade conquistou todos os
instrumentos necessários para progredir na realização humana. Assim como
estabelecido por Newton, há uma necessidade de uniformização para que se
induzam certezas nos resultados a serem obtidos. Os Princípios de administração
científica, publicados por Frederick Winslow Taylor (1856-1915) buscaram fazer da
empresa um objeto de aplicação das teorias científicas, sendo uma das ideias
centrais, a racionalização do trabalho, ou seja, a divisão das funções para os
operários. A febre positivista invade a organização administrativa também na teoria
industrial. Tanto para o taylorismo quanto para a administração tradicional,
propagada por Henri Fayol (1841-1925), os interesses individuais devem ser
subordinados ao interesse administrativo. Assemelhando-se teoricamente a uma
sociedade fechada e originariamente contratualista, se distingue de tal por findar-se
na lucratividade, ou seja, no interesse de uns poucos. Taylor levanta severa crítica
ao incentivo da administração aos seus empregados e à iniciativa dos empregados
em relação aos interesses da administração. Chris Argurys cita, em sua obra
Personalidade e Organização, quatro princípios de controle administrativo adotados
pela estrutura tradicional de organização. São os seguintes:
1) O homem é um animal racional que se empenha em obter,
economicamente, lucros máximos. Daí se depreende que se deve
pagar ao empregado de acordo com o que ele produz; 2) O homem é
um indivíduo isolado, para efeito de cálculo de seu salário. Não é
afetado (ou, pelo menos, não deveria ser) por normas e pressões do
18
grupo de trabalho; 3) O homem, como a máquina, pode ser tratado
de uma maneira padronizada. Se bem que reconhecidas as
diferenças individuais, presume-se que há apenas “um modo ótimo”
de realizar o serviço, de tal forma que as variações no método de
trabalho podem e devem ser eliminadas; 4) O homem, como as
máquinas, para trabalhar precisa ser estimulado pela direção. As
máquinas são acionadas pela eletricidade, o homem, pelo dinheiro.17
Fayol começa a impor a idéia de que o administrador empresarial deve
considerar analogicamente tudo o que está sob suas responsabilidades na
organização: o mesmo cuidado e consideração que se prestam às máquinas devem
ser estendidos ao material humano do qual dispõe.
1.5. CIÊNCIA COMO STATUS
A Física, a partir de Isaac Newton, se tornou o centro das atenções
intelectuais da modernidade. O fascínio diante da precisão com a qual a Física
media o universo estimulou profissionais de todos os segmentos a aplicarem a
racionalização científica mesmo às ciências propriamente humanas. Na transição
entre o século XIX e XX, brota o anseio de desvincular a Psicologia da Filosofia,
para que tivesse o status de ciência. John B. Watson (1878-1958), que é
considerado pai do behaviorismo
[...] postulando então o comportamento como objeto da psicologia,
dava a esta ciência a consistência que os psicólogos da época
vinham buscando. Um objeto observável, mensurável, que podia ser
reproduzido em diferentes condições e em diferentes sujeitos. Essas
características eram importantes para que a psicologia alcançasse o
17
ARGURYS, Chris. Personalidade e Organização. Rio de Janeiro: Editora Renes, 1969, p.
135.
19
status de ciência, rompendo definitivamente com a sua tradição
filosófica.18
Burrhus Frederic Skinner (1904-1990) foi um continuador do trabalho de
Watson, desenvolvendo assim a ciência do comportamento, que segue uma
constante observável chamada estímulo-resposta. Tendo por objeto o
comportamento humano analisável, inicia-se uma busca quanto à origem do
comportamento, as motivações e as finalidades do mesmo, tornando o ser humano
algo inteiramente palpável. Vale lembrar que as análises dessas correntes sempre
surgiram confinadas em laboratórios, desconsiderando a vida interior e comunitária
da pessoa, mas valorizando exclusivamente os movimentos involuntários ou
autômatos produzidos por estímulos externos. Ainda lembramos que o behaviorismo
teve por base experimentos com animais não humanos, como a análise da salivação
canina de Pavlov e o “aprendizado” do camundongo na busca por água, estimulada
por Skinner.
A Psicologia, nestes moldes, busca seguir os mesmos preceitos
newtonianos de uniformidade sob um rigor positivista, onde apenas o que está
evidenciado pelos nossos sentidos é digno de ser investigado cientificamente. Os
estímulos para a resposta involuntária são os mais variados.
Para os apologistas das determinações naturais sobre os seres humanos, “A
terra é a mãe de todos nós... A mensagem da natureza quer ser obedecida.”19
Emmanuel Mounier ainda cita Ruskin, defensor de que a primeira virtude do ser
humano “consiste no conhecimento da nossa natureza inferior, e na submissão às
leis da natureza superior.”20
18
BOCK, Ana M. Bahia. Psicologias: uma introdução ao estudo de psicologia. 1. ed. São
Paulo: Editora saraiva, 1988, p. 38.
19
MOUNIER, Emmanuel. Sombras de Medo Sobre o Século XX. Tradução Salústio de
Figueiredo. Rio de Janeiro: Agir Editora, 1958, p. 68.
20
Ibid., loc. Cit.
20
O behaviorismo traz consigo o risco de desqualificar o ser humano de sua
singularidade. Os indivíduos teriam os mesmos comportamentos quando submetidos
a situações similares. A uniformização do processo de construção de personalidade
parece colaborar com o próprio capitalismo e seu primado da produção. Com o
crescimento das técnicas de marketing, busca-se criar gostos similares, expondo as
pessoas às mesmas imagens que produzam um efeito definido, como a necessidade
de consumir determinado produto. Tudo parece culminar no sistema capitalista. A
noção mesma de mecanicidade, automatismo, foi um fator que corroborou para o
nascimento e desenvolvimento do capitalismo: a racionalização dos métodos
científicos, a começar por Descartes, Galileu, Bacon, Newton... a implantação destes
métodos na indústria, na administração e, com Augusto Comte, até nas Ciências
Humanas e Sociais, afetou diretamente a visão sobre o ser humano e seu modo de
agir, acabando por enquadrar o seu próprio comportamento nos moldes da ciência.
2. EMMANUEL MOUNIER E O PROCESSO DE PERSONALIZAÇÃO
Emmanuel Mounier nasceu em Grenoble, na França, no dia 1º de abril de
1905. O trabalho por ele desenvolvido foi fortemente marcado pelas experiências
vividas no seio familiar. Viveu com sua modesta família até os dezessete anos de
idade e foi neste período que desenvolveu sua capacidade de meditação e reflexão
acerca da vida. Em seus escritos, Mounier traz recordações da maneira como a vida
o ensinou a reagir diante de situações imprevistas, isso sempre para lembrar a
característica criadora da pessoa humana. Lutando contra pensamentos
deterministas que estendiam seus mecanismos para as ações propriamente
humanas, defendeu a imprevisibilidade da natureza de seu agir.21
Desde criança, Mounier tinha um encantamento pelo encontrar-se com
outras pessoas e assim descreve o efeito que tais ocasiões o proporcionavam:
Encontrar pessoas, isto era o que eu esperava da vida... e bem
sentia o que isto queria dizer: encontrar o sofrimento. Criança, de
doze aos vinte anos, sonhava como todas as crianças, à noite antes
do sono, ou nas estradas, quando a gente se enche de ar, de futuro,
destas canções interiores. Ora, era sempre no sofrimento, lembro-me
muito bem, um acidente, uma doença, um luto, que eu imaginava o
encontro. Isto não diminuía de modo algum a juventude, o frescor; ao
contrário, parecia-me que não podia figurar a alegria senão através
da participação no sofrimento. Não se tratava absolutamente de
histórias de cavalaria; não encontrava o gosto do real senão neste
círculo e circunstâncias.22
21
Cf. SEVERINO, Antonio Joaquim. Pessoa e Existência: iniciação ao personalismo de
Emmanuel Mounier. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1983, p. 1.
22
MOUNIER, apud Ibid., loc. Cit.
22
Os laços entre Emmanuel Mounier e sua família eram muito fortes. A família,
sendo fortemente religiosa, foi a promotora de sua fé cristã que permeou toda a sua
obra iluminando os fatos e dando sentido aos mesmos, potencializando sua
sensibilidade. Influenciado pelas familiares sugestões que queriam mantê-lo no lugar
de origem por mais tempo, dedicou-se ao estudo da medicina. Assim descreve como
o ambiente familiar, querendo apenas o seu bem, voltou-se contra seus próprios
anseios:
Aconteceu, então, já nos últimos anos do Liceu, que minhas virtudes
viraram-se contra mim. Não acusarei os meus. Devo-lhes muito num
plano infinitamente superior e de outra ordem. Mas gosto de unir a
afeição viva à clarividência calma. Estas pressões familiares teriam
sido rapidamente dobradas diante de uma vontade firmemente
declarada. Mas, você vê, meu desejo dobrava pelo escrúpulo (ir a
Paris, pensão cara etc.). Deixei uma visão de médico de campo
captar-me o ânimo generoso.23
Sentindo-se desgostoso já nos exames vestibulares para a Faculdade de
Ciências, seu desespero acerca do futuro que estava construindo para si o levou a
desejar morrer a estudar medicina. E foi num retiro espiritual que tomou posse de
sua verdadeira vocação e a assumiu com garra. Tal disposição levou até mesmo
sua família a apoiá-lo. Assim iniciava, na sua terra natal, os estudos em filosofia,
com a pretensão também à vida religiosa.24
Os quatro anos do curso de filosofia (1924-1927) passaram ligeiramente
para o jovem Mounier, pois dedicara-se com gosto ao saber filosófico. Obteve o
Diploma de Estudos Superiores de Filosofia mediante sua dissertação intitulada O
conflito do antropocentrismo e do teocentrismo na filosofia de Descartes.25
23
Ibid., p. 2.
24
Cf. ibid., p. 3.
25
Cf. Ibid., loc. Cit.
23
Logo no ano seguinte, mediante a obtenção de uma bolsa de doutoramento
de três anos, ingressa na Sorbonne, mas não se adapta àquele meio. Sua principal
indignação nos remete às conseqüências de sua formação infanto-juvenil em
Grenoble. Não admitia a forma sistemática com a qual agiam os jovens da
Sobornne. Segundo Mounier, eles estavam a considerar suas carreiras como “[...]
um mecanismo a montar-se metodicamente até um ponto fixo”.26
Contudo, mantém-
se firme e, incentivado por seu amigo Jean Lacroix, se debruça sobre o tema da
personalidade.27
Em 1932, é lançado o primeiro número da revista Esprit, idealizada por
Mounier, com a colaboração de seus amigos Georges Izard, Déleage, Jean Lacroix,
Nicolas Berdiaeff, Denis de Rougemont e René Biot. “Esprit, como movimento
nasceu das exigências de uma nova geração, inconformada com o estado das
coisas e com a atitude que diante dele tomava a velha geração.”28
O engajamento
de Mounier frente ao propósito da Esprit, o tornou alvo de severas críticas
associadas a movimentos revolucionários. Aconteceu por perder amizades
significativas para ele por não hesitar em seu compromisso com a verdade. Por
diversas vezes, no período da Segunda Guerra Mundial, foi preso por seu ideal de
afrontar-se amorosamente ao que está posto. A experiência da prisão gerou escritos
sobre o caráter e a fragilidade humanos, levando seu pensamento a configurar-se
com o existencialismo. Neste mesmo período, a revista teve dificuldades de manter-
se incensurável.29
26
Ibid.,. p. 4.
27
Cf. Ibid., loc. Cit.
28
Ibid., p. 5.
29
Cf. ibid., p. 5-6.
24
Após o período de guerra, Mounier viaja pelo mundo inteiro para reorganizar
e animar os grupos ligados ao movimento.30
Em 1950, com seus 45 anos de idade, Mounier falece de um colapso
cardíaco.
2.1. A PESSOA HUMANA: UM SER ENCARNADO
Diferente de todas as demais criaturas presentes no mundo, o ser humano é
um ser encarnado, feito matéria corpórea em meio ao mundo material. Eis os traços
da filosofia cartesiana, na qual se debruçava Mounier no término de seu curso
filosófico. Apoiado na consciência (res cogitans) da materialidade (res extensa) é
que a pessoa a transforma e se transcendentaliza. A encarnação distingue a pessoa
dos demais seres por fazer supor duas dimensões, dois movimentos que se unificam
em favor da construção de um “universo pessoal”31
. Os sentimentos vivenciados
pela pessoa são na sua natureza experiências no próprio corpo, na matéria, que
somente mediante o espírito poderão assumir um papel com valor significativo.
Emmanuel Mounier defende que
O homem é corpo exactamente como é espírito, é integralmente
“corpo” e é integralmente “espírito”. Dos seus mais primários
instintos, comer, reproduzir-se, é capaz de passar a artes subtis: a
culinária, a arte de amar.32
30
Cf. ibid., p. 7.
31
Por universo pessoal Mounier designa todas as facetas que constituem o ser pessoa. Desde
os fatores hereditários que possam condicionar o agir até os sentimentos mais íntimos provindos das
relações pessoais e com o meio. Também se considere a capacidade criadora do ser humano, sua
criatividade, espontaneidade, liberdade e o significado que tudo isso vai adquirindo no seu interior.
32
MOUNIER, 1964, p. 36.
25
Fazer com que esses instintos transcendam para uma dimensão significante
é uma ação permitida exclusivamente ao ser humano. Por ser a espécie humana
também um elemento natural, está sim sujeita às leis da natureza que oferecem,
nada mais “[...] que um feixe infinitamente complicado de determinações, das quais
não chegamos mesmo a saber se, para além dos sistemas que formulamos para
assegurar a nossa marcha, serão redutíveis a uma unidade lógica.”33
No entanto,
como bem distingue Marx, mesmo sendo um ser natural, é um ser natural humano: o
único que tem consciência destas determinações que a natureza lhe impõe.34
Desta
forma “[...] o homem singulariza-se por uma dupla capacidade de romper com a
natureza. Só ele conhece esse universo que o absorve e só ele o pode transformar,
ele, o menos armado e o menos poderoso dos grandes animais.”35
Encarnada na realidade natural, a Pessoa não é o mais maravilhoso dos
objetos que encontramos na natureza. Isso por não poder se definir pessoa como
objeto que, como uma pedra, apenas sofre as conseqüências das forças que sobre
ela se cruzam. A encarnação supõe algo além da passividade da matéria. Supõe
atividade. Não uma atividade instintiva, resposta a estímulos externos e laboratoriais
(como defendiam os behavioristas), mas que descentralize a pessoa de si e imprima
o seu universo pessoal na realidade objetiva. Há uma interação consciente por parte
do ser humano com a sua natureza.36
Sendo a pessoa um ser encarnado, elimina-se a possibilidade de defini-la
como se define um objeto. Emmanuel Mounier afirma que cada pessoa
Tem do seu corpo um sentimento único, de que não posso participar;
mas posso observar de fora esse corpo, examinar as suas
33
Ibid., p. 38.
34
Cf. ibid., p. 39.
35
Ibid., p. 40.
36
Cf. ibid., p. 78.
26
disposições, manifestações hereditárias, formas, doenças, numa
palavra, tratá-lo como se tratam matérias do saber fisiológico,
médico, etc. Se é funcionário, terá um regulamento de funcionário,
uma psicologia de funcionário, que podem ser estudados no seu
caso, embora se não identifiquem com ele, com ele todo na sua
realidade compreensiva.37
Uma vez que assim a consideramos temo-la integralmente como algo não
material e integralmente como material. Nessa composição evidencia-se uma
interioridade processadora de todos os acontecimentos externos captados pelos
sentidos do corpo humano, o qual se configura, na sua natureza, com a
exterioridade para apreendê-la e transformá-la mediante seu espírito.
2.2. MOVIMENTO DE PERSONALIZAÇÃO: DIALÉTICA DA
INTERIORIDADE E OBJETIVIDADE
“A existência pessoal permanece sempre entre um movimento de
exteriorização e um movimento de interiorização que lhe são essenciais e que
podem, quer fixá-la, quer dissipá-la.”38
É mediante a dialética que existe entre
interioridade e objetividade que se vai constituindo um ser pessoal. Em O
Personalismo, obra de base para esta pesquisa, encontramos, na primeira parte, a
divisão em capítulos das estruturas do universo pessoal. Todas essas menções ao
movimento de personalização estão a especificar a maneira de se dar da dialética
entre interiorização e exteriorização. O primeiro capítulo é intitulado existência
incorporada; no segundo temos a comunicação; no terceiro a conversão íntima; no
quarto o afrontamento e no quinto, liberdade com condições. Note-se que não são
37
Ibid., p. 16.
38
Ibid., p. 90.
27
etapas sucessivas, mas são implicações necessárias que partem de uma
consciência do estar situado e do ser-para-o-outro.
2.2.1. O perigo da interiorização
Existe um pensamento e existe um espaço onde ele se manifesta: existe,
logo, o ser humano. Não exclusivamente pensamento (espírito) e nem
exclusivamente matéria (corpo). Este ser humano, consciente de si e de tudo que o
cerca, pode, num momento de introspecção, recolher-se na sua interioridade,
correndo o risco de encontrar neste movimento um doce refúgio, uma fuga das
ameaças externas. Mounier alerta que
Na doce intimidade destas experiências, encontramos uma como que
plenitude, o sentimento duma intimidade que não é simples. Exprime
a alegria de reencontrar as fontes interiores e de aí nos
refrescarmos. Mas esta experiência é muitas vezes amolecida pelo
gosto duma vida vegetativa, fechada e bem rodeada, semelhante à
que vive o feto no seio da mãe, ou a criança nos seus braços,
magicamente isolada e protegida de qualquer contacto.39
O que buscar então na intimidade pessoal? A procura de quê vale o risco de
esconder-me do mundo na minha interioridade? Certamente não é o encontro de
uma explicação sistematizada do sentido do “ser Pessoa” que moverá esta busca.
“A pessoa não é „uma coisa‟ que se pode encontrar no fundo das análises, ou uma
combinação definível de aspectos.”40
Por não ser determinado por limites
compreensíveis à nossa razão sistematizante, quase que se perde o centro da
liberdade ali presente. A este centro da liberdade, Mounier o trata como um segredo
39
Ibid., p. 81.
40
Ibid., p. 80.
28
pessoal, singular, intocável, uno e indivisível, “[...] onde a exaltação criadora e a vida
mística têm raízes.”41
2.2.2. O perigo da exteriorização
Mounier contrapõe ao intimista outro modo de estar no mundo afirmando
que existem também
As pessoas completamente viradas para fora, para a exibição, não
têm segredos, não têm densidade, nem nada por detrás delas.
Leem-se como um livro aberto, e depressa se esgotam. Não têm a
experiência desta profunda distância, ignoram o „respeito pelo
segredo‟, pelo seu ou pelo dos outros.42
Quanto ao ambiente onde o ser humano está encarnado e seu pensar
consciente se manifesta, é necessário que haja uma capacidade de romper com as
dependências deste meio para que floresça a vida pessoal na intimidade daquele
segredo acima citado. Tanto a interiorização quanto o ato de exteriorizar-se podem
ser fugas quando exclusivamente valorizados. “O importante não é a fuga, mas a
concentração, a conversão de forças. A Pessoa só recua para depois saltar
melhor.”43
Mounier define como “homem do divertimento” aquele que se confunde
com o mundo objetivo. Esquecendo-se de si
[...] vive como que expulso de si próprio, confundido com o tumulto
exterior: assim o homem prisioneiro de seus apetites, funções,
hábitos, relações, dum mundo que o distrai. Vida imediata, sem
41
Ibid., loc. Cit.
42
Ibid., loc. Cit.
43
Ibid., p. 78.
29
memória, sem projectos, sem domínio, e que é a própria definição de
exterioridade, ou, à escala humana, de vulgaridade.44
A Pessoa Humana é um ser encarnado. Uma intimidade complexa e
abstrata, centro da interioridade humana, rica em prazeres espirituais, onde estão
todos os segredos que orientam o viver, encarnada num elemento material, num
corpo humano. Mediante o corpo a interioridade se contextualiza na realidade
material e se defronta com ela. A existência está compreendida entre dois pólos: ser
e ter. A realização do ser ignora o mundo exterior e os riscos que ele comporta,
mergulhando no segredo da intimidade e se deliciando nas suas doçuras. A
realização do ter se concretiza quando não se consegue distinguir o ser humano do
meio onde está ele inserido. Existir implica ser e ter espaço, pois “sem ter, a
existência não se agarra, perde-se nos objetos.”45
Logo, a realização da pessoa está
entre ser e ter. O fato de possuir equilibra a dialética entre exterioridade e
interioridade. É necessário ter um espaço para afrontar. O choque entre o ser e o
ter, entre a íntima suavidade e aquilo que se opõe aos gostos particulares é um
importante fator para a constituição do Universo Pessoal.
2.3. O AFRONTAMENTO
Uma das principais características da pessoa segundo Mounier, é a sua
capacidade de se expor, de exprimir-se, de fazer face, de ser rosto. Desta forma
resgata a palavra grega que mais se aproxima de sua concepção acerca da pessoa.
Prósopon designa “[...] aquele que olha de frente, que afronta”.46
Faz-se pertinente
44
Ibid., loc. Cit.
45
Ibid., p. 85.
46
Ibid., p. 93.
30
lembrar um aspecto da biografia de Mounier que parece estimular o seu pensamento
quanto ao fazer face frente ao outro. Como citado na sua biografia, já na infância ele
se sentia atraído pelo encontro com pessoas. Este encontro favorecia conhecer
universos paralelos ao seu, que funcionavam dependentes uns dos outros, mas com
interioridades singulares, formada por experiências particulares. Diante do outro,
posso adquirir conhecimento como posso também ensinar. “O mundo dos outros
não é um jardim de delícias. É permanente provocação à luta, à adaptação, incita-
nos a ir mais além.”47
É uma troca de experiências. E essa dialética só se estabelece
quando disponho de minha vida interior, de meus conhecimentos que, por vezes, se
conflitarão com o pensamento do que está à minha frente.
Existir é dizer sim, é aceitar, é aderir. Mas se for aceitando sempre,
se não recusar e nunca me recusar, deixo-me submergir. Existir é
também e muitas vezes saber dizer não, protestar, desligar-se.48
Num mundo onde tudo parece se formar e evoluir sem um controle, onde o
próprio indivíduo não é soberano de sua liberdade e de seu modo de ser, coagido a
orientar-se por determinações externas, onde “Cada um de nós é, necessariamente,
ou um tirano, ou um escravo”, é impossível não surgir um inquietamento interior que
suplica por originalidade de vida, que suplica por querer exprimir-se conforme o que
se passa na intimidade do ser. Mounier justifica o surgimento das diversas filosofias
do protesto com o fato de que
O indivíduo se sente cada vez menos senhor do seu meio, que, por
seu lado, se desenvolve e organiza fora da sua alçada, a uma
velocidade cada vez maior; as máquinas, as massas, os poderes, a
administração, o universo e suas forças apresentam-se-lhe cada vez
47
Ibid., 56.
48
Ibid., p. 95.
31
mais como uma generalização da ameaça, enquanto ele procurava
nelas uma generalização da protecção.49
Viver controlado por uma ideologia ou conduzir a vida orientada por normas
ditatoriais fere a liberdade humana e sufoca a singularidade. No personalismo a
violência até se justifica quando se trava uma luta entre a ação e a regra, a vida e a
morte. É a pessoa manifestando seu anseio de exprimir-se, querendo libertar-se da
normatividade uniformizante, para fazer-se notar como única, insubstituível.
2.4. A COMUNICABILIDADE DA PESSOA
Encarnar-se na materialidade do mundo exige da pessoa uma dialética entre
a realidade objetiva e a interioridade. Como já dissemos, tal dialética é fundamental
no processo de personalização. Afrontar-se, exprimir-se, imprimir a personalidade na
exterioridade exige uma habilidade comunicativa que possibilite o crescimento
humano como pessoa na sua generalidade (quando se trata de um afrontar-se com
outra pessoa) e o desenvolvimento do meio (quando o afrontamento ocorre com as
estruturas do mundo material).
O personalismo levanta-se contra a noção individualista crescente no meio
burguês, onde o ser humano, segundo Mounier, passou a ser encarado
abstratamente,
[...] sem vínculos nem comunidades naturais, deus supremo no
centro duma liberdade sem direção nem medida, sempre pronto a
olhar os outros com desconfiança, cálculo ou reivindicações.50
49
Ibid., p. 96.
50
Ibid., p. 56.
32
Quando o personalismo se afronta com o individualismo é para fazer notar o
risco de atrofiamento da personalidade que este abarca. Uma individualidade existe
apenas para si, centrada na busca de satisfação no próprio indivíduo, algo
impensável para o personalista que encontra no protesto contra o fora-de-si
combustível para o espírito crítico-criativo. É necessário sim o ato do recolhimento,
pois
O movimento de interiorização constituído pelo „indivíduo‟ contribui
para assegurar a nossa forma. No entanto, a pessoa só cresce na
medida em que sem cessar se purifica do individuo que nela está.
Não o conseguirá virando toda a atenção sobre si própria, mas, pelo
contrário, tornando-se disponível, e por isso mesmo mais
transparente a si própria e aos outros. Tudo se passa como se nos
tornássemos então, quando já não estamos „ocupados conosco‟,
„cheios de nós‟, então, e então somente, prontos para os outros,
entrados em graça.51
Assegurar a forma singular intrínseca em cada Pessoa exige um ato de
defesa. Defender-se e estar pronto para o outro não deixam de ser atitudes
dependentes da comunicabilidade: como defender as estruturas do meu Universo
Interior sem apresentá-lo? Comunicar os aspectos constituintes de minha
personalidade equivale a exprimi-la de minha interioridade.
Como dissemos, as características do processo de personalização se
complementam e, por vezes, se confundem. A comunicação, por exemplo, é um ato
de manifestação da Pessoa que não se dá exclusivamente mediante a fala, mas
pelo próprio processo criativo que ela desenvolve na sua transformação do mundo.
Assim sendo, a comunicabilidade se configura com a ação da pessoa no mundo.
51
Ibid., p. 58.
33
2.5. AS DIMENSÕES DA AÇÃO
A pessoa desabrocha mediante a ação. Designando a ação como uma
maneira de exprimir-se no universo e de manifestar-se na existência, Emmanuel
Mounier a caracteriza mediante quatro finalidades: “A pessoa deve transformar a
realidade exterior, autoconstruir-se, aproximar as pessoas entre si e aumentar o
universo dos valores.”52
A primeira destas dimensões que queremos tratar é a econômica. A ação
econômica pode expressar-se no verbo fazer, que consiste na ação de transformar,
dominar e organizar a realidade exterior.53
“Atinge toda a esfera em que entram em
jogo forças naturais e determinismos. É o campo das ciências aplicadas, da indústria
e da técnica e sua medida é a eficácia.”54
Severino ainda comenta que esta ação
econômica não deve estar desvinculada das demais dimensões da ação, que a
vincularão a uma finalidade suprema, superando a pura eficácia tecnicista, pois que
“o homem não se satisfaz apenas pelo fabricar e organizar. A própria fabricação
exige, para sua realização mais perfeita, uma superação desta febre de produção.”55
A segunda das finalidades da ação, sendo a transformação do próprio
agente, expressa-se da melhor forma com o verbo agir. “É a zona da ação ética e
sua medida está na autenticidade.”56
Esta é a ação que orientará a ação econômica
para uma finalidade suprema, sendo complementar àquela. Não nos cabe defini-la
como em oposição à técnica produtivista, mas orientadora para a realização pessoal
do “homo-faber” que deve manter sua autenticidade, sem deixar ser tratado como
peça de máquina, como algo administrável.
52
SEVERINO, 1983, p. 106.
53
Cf. Ibid., loc. Cit.
54
Ibid., loc. Cit.
55
Ibid., p. 107.
56
Ibid., loc. Cit.
34
A ação contemplativa, visa atingir a perfeição e a universalidade dos valores.
A atividade da pessoa deve dirigir-se à exploração destes, enriquecendo, além do
agente, a humanidade toda.
“Tal dimensão contemplativa não se refere apenas a um cultivo da
inteligência do homem, mas ao preparo do homem integral e nem se
isola, como se fosse uma ação privilegiada da atividade coletiva, pois
é „aspiração a um reino de valores invadindo e desenvolvendo toda
atividade humana‟.57
Nesta ação a pessoa busca descobrir conhecimentos e ideais que sejam de
apreço comum a toda humanidade, “[...] aperfeiçoando-os cada vez mais e
distribuindo-os o mais vastamente possível entre os homens.”58
Respondendo às “profundas coordenadas da existência pessoal”59
, a ação
compreendida nestas três dimensões acima citadas, deve ter por finalidade a
aproximação das pessoas,
[...] pois a pessoa sendo primitivamente abertura aos outros, a
comunicação, a reciprocidade das consciências assim como a
solidariedade dos destinos, exigem que no plano básico da ação, a
dimensão comunitária tenha sua expressão ôntica. „Pois não há ação
válida senão aquela em que cada consciência particular, ainda que
em retiro, amadureça através da consciência total e do drama inteiro
de sua época.‟60
Assim Mounier valoriza a vida comunitária, de abertura aos outros, de
comunicação, de afrontamento, que tem por objetivo um ponto comum: a realização
humana, tanto nas suas singularidades como na generalidade.
57
Ibid., p. 108.
58
Ibid., loc. Cit.
59
Ibid., loc. Cit.
60
Ibid., p. 109.
35
2.6. PESSOA E COMUNIDADE
Como já se fez notar, a Pessoa, para Emmanuel Mounier, se opõe ao
conceito de indivíduo. A individualidade tende a criar uma abstração do ser humano
de forma a desvinculá-lo de toda a realidade na qual está encarnado. Como
sinônimos para individualizar, citemos numerar, quantificar. Desconsideram-se
assim, todas as forças culturais, biológicas, genéticas e sociais que contribuíram
para a formação daquele ser humano.
A Pessoa é encarnação, e sua encarnação promove a dialética do
desabrochar pessoal, porque favorece o choque, o afrontamento com o diferente, a
atividade e a passividade. Daí a reflexão sobre uma relação pessimista entre os
seres humanos, onde se defende uma natureza egoísta do querer impor-se sobre os
outros. Evitam-se olhares detentores de minha liberdade e o isolamento ou a tirania
são as saídas para tal.
No entanto, quando Mounier se refere à encarnação e à dialética dela
resultante, necessariamente envolve o outro como suporte ao movimento de
exteriorização. “A primeira preocupação do personalismo é descentrar o indivíduo
para colocá-lo nas largas perspectivas abertas pela pessoa.”61
Ou seja, as
possibilidades oriundas da descentralização do indivíduo em direção ao outro,
multiplicam-se. Note-se quão indispensável o valor que Mounier atribui à
comunidade para a efetivação de uma personalidade intocável, exclusiva,
incomunicável, formada por si mesma, enfim, livre. Nenhuma singularidade pode ser
repetida, justamente pelo fato de que o conjunto das experiências com o mundo e
com os outros é único.
61
MOUNIER, 1964, p. 58.
36
Se para autores como Heidegger e Sartre o outro só se manifesta como
risco à minha liberdade, para Mounier o sentido de uma relação comunitária é criar
possibilidades.
O primeiro acto da pessoa deve ser, pois, a criação com outros duma
sociedade de pessoas, cujas estruturas, costumes, sentimentos e até
instituições estejam marcados pela sua natureza de pessoas:
sociedade de que apenas começamos a entrever e a esboçar os
costumes.62
Ao falarmos então de revolução personalista, devemos acrescentar a
dimensão comunitária que ela deve envolver. Sonhar uma comunidade com
objetivos comuns, parte da contemplação pessoal dos ideais valores universais
encontrados na própria natureza humana.
Permanece a dialética da ação contemplativa das pessoas que norteia a
apropriação de valores universais com a inserção na comunidade, onde acontece o
afrontamento das vontades. A personalização, no entanto, não encontra espaço
numa comunidade massificada, nem devemos entender por contemplação de
valores universais uma tentativa de massificação. Tais valores não estarão a favor
de uma seletividade, mas do gênero humano. Citando O admirável Mundo Novo, de
Huxley, Mounier exemplifica uma sociedade massificada, robotizada, determinada
por intencionalidades singulares de médicos e psicólogos. Embora todas as ações
sejam, ali, condicionadas para uma finalidade única, tal finalidade, por não
encontrar-se na natureza humana, não pôde ser contemplada por todos, mas
planejada por poucos. Huxley constrói em sua obra “[...] a antítese dum universo
pessoal, exactamente porque tudo está regulado, nada se cria, nada corre aí o risco
62
Ibid., p. 60-61.
37
duma liberdade responsável. Faz da humanidade uma imensa e perfeita casa de
bonecas.”63
63
Ibid., p. 16-17.
3. A LIBERDADE NAS CONDIÇÕES TOTAIS DA PESSOA
Expostos os dois capítulos anteriores, cabe-nos agora, investigar um plano
de afrontamento, pensado e vivido por Emmanuel Mounier, à massificação dos
povos e à uniformização das personalidades. O plano se desenvolve sob a
consciência de uma liberdade intrínseca à Pessoa que evoca uma participação de
sua mais intocável interioridade na direção do viver pessoal e comunitário.
O plano da liberdade aqui se discute pela necessidade de buscarmos a
natureza das ações do ser humano. Quando a ação é fruto de uma inspiração
reflexiva a respeito da capacidade humana de transformar o que é dado, a pessoa
encontra-se livre das coerções sobre sua atividade, apta para reagir a qualquer
elemento que ameace os valores humanos.
3.1 A PESSOA COMO SUPERAÇÃO DA NATUREZA
A encarnação da Pessoa é a condição pela qual a liberdade se manifesta,
mas também se limita. Nesses termos O Personalismo, em seu quinto capítulo,
desenvolve o título Liberdade com condições.
Por vezes assistimos a justificações criminais fundadas na hereditariedade
ou mesmo numa filosofia pessimista quanto à natureza humana. Em contrapartida,
como seres racionais, sabemos da graça que nos é dada do conhecimento do bem e
do mal. A ideia de bem e a ideia de mal nos são universais, bem como o desejo pelo
39
bem e a repulsa pelo mal. O fator da herança genética exemplifica a determinação
natural, a sobreposição de uma força herdada que pode ser lapidada e tornar-se
uma preciosa pedra, ou manifestada na sua mais bruta naturalidade, que por vezes
fere a dignidade.
Trabalhamos, muitas vezes, em planos diferentes ao falar da participação
humana na co-criação do universo. Se considerarmos o plano do macro-cosmo, da
grande máquina que é o universo, objeto de análise das forças por Newton
percebidas, sentiremos a angústia da qual trataram muitos existencialistas que se
viam jogados no mundo. Sob esta perspectiva, o ser humano, mesmo consciente de
si, se pensa exclusivamente como matéria sujeitando-se, assim, às determinações
das leis naturais tanto quanto a necessidade do movimento de translação da Lua em
torno da Terra. A humanidade toda se equipara a uma minúscula parte da
engrenagem da grande máquina. Colocando-se na dimensão macro-cósmica, o ser
humano se percebe contingente, substituível, infinitamente inferior ao universo e às
forças que o organizam. Porém quando estas forças alcançam o plano humano, ali e
somente ali deixam a característica meramente funcional para adquirirem um sentido
próprio, que faz nascer um universo particular tão imenso quanto o universo fora
situado. “A liberdade não se ganha contra os determinismos naturais, conquista-se
por cima deles, mas com eles.”64
Analisa Severino que:
A transcendentalidade do homem sobre a natureza na qual está
originariamente inserido vem de sua capacidade distintiva de só ele
conhecê-la e transformá-la, de sua exclusiva capacidade de amor, de
liberdade, capacidade de superar o rígido determinismo que regula a
natureza.65
64
Ibid., p. 51.
65
SEVERINO, 1983, p. 54.
40
A Pessoa é situada nos discursos teológicos como co-criadora do universo.
A esta capacidade de superar o regulamento da natureza é que se deve a distinção
privilegiada do ser humano em relação às demais criaturas. Podem ser adotadas
possibilidades inovadoras, que transcendam a monotonia do nascer, crescer,
reproduzir, envelhecer e morrer, como também possibilidades catastróficas à própria
sustentabilidade da vida humana. Essas opostas aplicabilidades da atividade, uma
com objetivo de superar a natureza e outra objetivando um maior poder de
destruição, se evidenciam durante a guerra.
Desde a origem, o progresso técnico foi mais rápido no armamento
de guerra do que em qualquer outro setor. [...] As duas guerras
mundiais, se não provocaram, imprimiram à motorização das
estradas, à aviação, às radiocomunicações, uma subida em flecha.
Aliás, a última dá o tom para as navegações interplanetárias e abre a
idade atômica.66
Aventuras antes impensáveis ao ser humano, como voar, ir à Lua, dominar
a eletricidade, estão no nosso dia-a-dia. Possibilidades que emergiram diante de
limitações frente a uma necessidade de se impor como nação (no caso da guerra)
ou como pessoa frente às limitações impostas pela natureza. Eis os pontos
(apropriação do evoluir humano ou expropriação do outro) entre os quais se situa a
liberdade da pessoa condicionada pela sua encarnação.
3.2 A PESSOA COMO SUPERAÇÃO DAS ESTRUTURAS
Pessoa é rompimento, é afrontamento. Não é um elemento simplesmente
passivo a ordens de planos maiores, como estruturas sociais, econômicas,
66
MOUNIER, 1958, p. 61-62.
41
científicas, etc... Sendo ela componente das estruturas, deve respeitar as leis
benéficas ao conjunto e lutar sempre pela participação ativa nas decisões dos
caminhos a trilhar, visando um planejamento consciente do ser pessoa e das
necessidades que esta condição abrange.
Segue uma exposição das estruturas econômicas que se confrontavam no
contexto de Mounier. Assim elencamos alguns pontos de sua proposta personalista
ante as lacunas deixadas tanto pelo capitalismo como pelo socialismo.
3.2.1. Estrutura Comunista
O marxismo, que serviu também de aporte teórico para as denúncias de
Mounier acerca da sociedade burguesa67
, defende que a igualdade deve reinar entre
a humanidade. É um grito de protesto que defende a participação dos trabalhadores
na rentabilidade de seu trabalho. “O que Mounier viu no materialismo marxista, foi
um desejo de encarnação, de presença, de necessidade de comunhão com o
universo.”68
Esse anseio aí presente, de que todos participassem dos frutos do
trabalho, é o que ele define como encarnação, situar-se, fazer frente, criar
comunidade participativa. No entanto, a luta de classes que abominaria a divisão
social entre os mais e menos favorecidos, se orientaria por um princípio
individualista de satisfação dos desejos materiais, e não das necessidades reais da
pessoa. O socialismo deve purificar-se dessa base materialista e voltar-se para a
socialização dos frutos do trabalho, tendo como centro do sistema e da revolução a
pessoa humana.
67
Cf. LACROIX, Jean. et al. Presença de Mounier. Tradução Maria Lúcia Moreira. São Paulo:
Duas Cidades, 1969, p. 88.
68
Ibid., loc. Cit.
42
A tentativa de concretizar o pensamento de Marx na implantação do
comunismo em alguns países, feriu, pois, a liberdade da Pessoa. O propósito da
igualdade deixou o plano material e assumiu um caráter uniformizante, de forma que
todos devessem pensar e agir de forma igualitária. Assemelhou-se mais ao
Admirável Mundo Novo de Huxley, do que a uma sociedade de Pessoas. Aliás, ser é
também afirmar-se.
Qualquer organização, qualquer técnica, qualquer teoria que negue à
pessoa a vocação fundamental da opção responsável ou diminua a
sua concretização, mesmo quando acompanhada de mil e uma
seduções, é veneno mais perigoso do que o desespero.69
Todo regime e partido políticos, bem como toda religião deve conceder aos
seus afiliados liberdade de expressão. Assim se enriquece todo grupo na
multiplicidade, valorizando cada elemento singular de forma que este, estando no
grupo, não se perca no grupo.
3.2.2. Estrutura Capitalista
O capitalismo, sistema conseqüente da revolução industrial que permitiu
uma produção material em larga escala, assim como um sistema de produção das
necessidades pessoais, tem por finalidade, como o próprio nome já diz, o capital, o
lucro. A industrialização, colaborando com a noção de progresso, fez a humanidade
descobrir a potencialidade transformadora da sua razão. As máquinas a vapor, a
energia elétrica, os meios de transporte mais eficientes que os de tração animal, as
indústrias com a racionalização do trabalho se demonstrando mais eficientes que o
trabalho de um artesão, trouxeram ao mundo a sensação de que o homem estava
69
MOUNIER, 1964, p. 102.
43
próximo do auge de sua evolução. No entanto, a evolução foi unilateral. Como acima
mencionamos, esta é apenas uma das dimensões da ação do ser humano, a qual
Emmanuel Mounier chama de ação econômica. É a ação do fazer, da técnica, cuja
medida é a eficácia. Os burgueses industriários tiveram grande participação no
desenvolvimento da noção de transformação, de dominação e de organização da
realidade exterior. Transformar, de maneira organizada, tudo que a natureza dispõe
em benefícios para a humanidade: eis a primeira grande propulsão para o avanço da
técnica. O problema se estabeleceu quando esse motor de transformação deixou de
ter um fim benéfico para a humanidade em favor de um acúmulo de capital, que
distinguiria uns poucos ricos dominadores da técnica e do poder, de muitos outros
pobres fornecedores de mão de obra. O personalismo propõe uma revolução
espiritual que não esteja desvinculada da política e da economia. “As estruturas do
capitalismo devem ser destruídas em prol de uma organização socialista da
produção e do consumo.”70
É uma das características centrais na economia
personalista: o anticapitalismo, juntamente com o socialismo renovado, centrado nas
necessidades originais da pessoa.
O que entra em jogo ainda no processo de industrialização é o
comportamento do ser humano diante do mundo técnico. Não foram poucas vezes
que trabalhadores invadiram as fábricas e destruíram as máquinas. “Não se tratava
então de uma indiferença ou de uma incapacidade de adaptação: surtiram em
operários de escol e de ideias socialmente progressistas.”71
Não era, como hoje se
diz, o fato de as máquinas tomarem o lugar de milhares de homens na indústria que
gerava a revolta dos trabalhadores. A crise foi mais de ordem psicológica diante da
mudança:
70
Ibid., p. 103.
71
MOUNIER, 1958, p.49.
44
Com afastar o patrão do camarada, substituíam uma estrutura
paternalista, mas humana, da empresa, por uma disciplina impessoal
e desumana: o regulamento da oficina, o contrato de trabalho
unilateral, que o operário era obrigado a aceitar, e dava margem a
numerosos abusos, notadamente a multas que comiam às vezes
uma parte importante do salário.72
Os operários sentiam-se escravos do sistema. A máquina lhes era familiar,
mas a forma como sua utilização era empregada, tirava a liberdade de quem a
manejava. “A introdução da racionalização, com os seus ritmos excessivos, a
mecanização do trabalho, a uniformidade; em tudo isto o operário se sentia mais
escravo do que nunca, o „membro vivo de um mecanismo morto‟.”73
Para o
personalismo, o sistema capitalista é “[...] objeto de um duplo julgamento crítico de
ordem técnica e moral.”
O capitalismo se disfarça com uma falsa liberdade. Todos têm praticamente
os mesmo direitos e os mesmos deveres. Mas é na desigualdade, consequente do
acúmulo, que se estabelece uma desordem mascarada. O princípio capitalista que
“[...] deixa a liberdade evoluir fora de qualquer disciplina, abre a porta a todos os
determinismos do mal „onde os mais fortes despojam e oprimem os mais fracos‟.”74
O primado da produção, sendo um dos pilares que sustentam o capitalismo (assim
como o otimismo liberal, o lucro e o dinheiro citados por Georges Ngango)75
, torna-
se o consagrador da sujeição do homem à economia.
A economia se torna um sistema fechado, com suas próprias regras,
e o homem deve a ele submeter seu modo de vida e seus princípios.
Não há mais coisas desde então para ele: há apenas mercadorias;
72
Ibid., loc, Cit.
73
Ibid., loc. Cit.
74
LACROIX, 1969, p. 107.
75
Cf. Ibid., loc. Cit.
45
não mais necessidades, mas apenas um mercado; não mais valores
amados, mas apenas preços.76
Como parte deste sistema o ser humano é impulsionado a viver como
autômato, perde sua liberdade e sua originalidade. Seus gostos são definidos pela
propaganda, sua vida orientada pelo dinheiro que buscará satisfazer aqueles gostos;
seu trabalho terá por finalidade a aquisição dos bens que lhe informaram serem
necessários para uma vida melhor. O ser humano é um joguete na economia que
tem por primazia o lucro, a produção de necessidades e a produção de bens que as
satisfaçam.
3.3. REVOLUÇÃO PERSONALISTA E COMUNITÁRIA
Diante desta constatação, não basta uma revolução social como propõe o
socialismo da luta de classes. A humanidade tem a interioridade manchada por uma
ideologia individualista consumista. São anos do reinado capitalista onde se
desenvolveram técnicas de coerção sobre a personalidade, uniformizando-a de
forma a sufocá-la, tornando previsíveis os desejos pessoais, aniquilando a
capacidade de encontrar no âmago da pessoa as verdadeiras necessidades. Se
extinguíssemos a divisão das classes e o proletariado tivesse nas mãos o poder, ou
mesmo se extinguíssemos o poder governamental, sendo cada um senhor de si,
cairíamos nas mesmas perdições exploradoras que hoje encontramos. Quereríamos
ser senhores de outros que consideraríamos mais fracos. Ciente dos perigos que a
revolução socialista poderia ocasionar, Mounier propõe antes uma revolução
personalista e comunitária, que põe a pessoa no centro das motivações econômicas.
76
Ibid., loc. Cit.
46
Uma economia personalista regula [...] o lucro pelo serviço prestado
à produção, a produção, pelo consumo e o consumo por uma ética
das necessidades humanas reintegradas na perspectiva total da
pessoa. A pessoa é a peça principal da estrutura e deve fazer sentir
sua primazia em toda a organização econômica.77
Vemos como se complementam as transformações sociais com a conversão
íntima pessoal. A implantação de uma economia personalista pode confundir-se com
uma sociedade socialista. Porém as bases para transformação são diferentes: para
o personalismo as necessidades e a satisfação da pessoa dirigem a revolução; para
o marxismo a base material, do desfrutar igualmente dos bens da produção. É
necessária antes uma revolução pessoal, que conscientize a todos das reais
necessidades da pessoa, por isso também comunitária. É indispensável uma ética
das necessidades.
Trata-se de uma ética individual que admite uma certa pobreza como
norma econômica ideal da pessoa. „Por pobreza entendemos [...] a
desconfiança do apego às coisas materiais, um gosto de
simplicidade, um estado de disponibilidade e de liberdade que não
exclui nem a magnificência, nem a generosidade, nem mesmo um
importante movimento de riquezas, se for um movimento preservado
da avareza‟.”78
A compreensão desta pobreza dará ritmo à produção, que será coordenada
mediante as necessidades reais das pessoas dos consumidores.
3.3.1. Para uma psicologia personalista
A criatividade do ser humano emerge quando o consideramos um todo
espiritual e material. As discussões atuais sobre a dualidade cérebro-mente tentam
77
Ibid., p. 109.
78
Ibid., p. 110.
47
colocar em xeque a capacidade de transcendência, impondo ao ser humano funções
exclusivamente de ordem biológicas: assim, sentimentos e crenças não passam de
reações químicas que acontecem no cérebro.
Pierre Tap escreve que um psicólogo personalista não deve descartar a
característica espiritual de imprevisibilidade da pessoa, simplesmente enquadrando-
a nos uniformes métodos exigidos pela cientificidade da psicologia.79
“A psicologia,
como toda ciência, pretende ser determinista; o personalismo, por seu lado,
considera que os atos da pessoa são livres, ou antes, que a pessoa em ato se
liberta.”80
O personalismo se manifesta contra as correntes da psicologia que se
posicionam acerca dos comportamentos exclusivamente mediante a análise
observável dos mesmos. Os behavioristas defendem que o ser humano age
conforme as obrigações que lhe são impostas pelo meio. O personalismo aposta na
interação da pessoa com o meio: este oferece os subsídios para a atividade criativa
da pessoa.
Logo, não há determinismos que possibilitem a previsão de uma conduta de
vida da pessoa. O que existe é a possibilidade de apoiar-se neles (que sim, existem)
para construir-se enquanto pessoa. Uma ética das necessidades, como a proposta
por Mounier, envolve toda uma reflexão sobre a condição humana. Guiar-se pelas
necessidades reais da pessoa é colocar toda a humanidade sob um mesmo plano
existencial que favoreça encontrar o outro como um outro-eu, que compartilha das
mesmas necessidades, que são também as minhas. Assim forma-se a comunidade
personalista da luta por uma finalidade comum.
79
Cf. ibid., p. 95.
80
Ibid., loc. Cit.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Pessoa é movimento: é ação e é contemplação. enquanto existirem seres
humanos, haverá também a possibilidade de transformação e significação do
mundo. Mesmo mergulhados num complexo emaranhado de ideais, de
sistematizações, de determinismos que tentam falar por si, no movimento eles
sustentam a propulsão para, na superfície, encontrarmos ar e voltarmos a respirar.
São eles a base para a personalização. O vácuo só nos permite contemplá-lo,
enquanto que as estruturas materiais, econômicas, sociais nas quais estamos
encarnados, nos permitem, além de contemplar, exercer a criatividade, agir sobre
elas, transformá-las. A atividade transformadora, no entanto, não bastando por si,
deve ser um meio para atingirmos a realização humana. Quando a atividade aliena o
indivíduo, desencadeia, como vimos, num socialismo materialista ou num
capitalismo individualista. A ação deve transformar o meio de forma a adaptá-lo às
necessidades reais da Pessoa, o que não faz, exclusivamente, o material e, da
mesma forma, o capital.
Por esta razão este trabalho apresentou a revolução proposta por Mounier
que tem por base a Pessoa e a comunidade. A revolução necessita de uma
conscientização da liberdade e das necessidades reais da pessoa. Logo, entende-se
a dupla dimensão desta transformação: a pessoal (onde deve-se admitir uma certa
pobreza ideal da pessoa para querer somente o necessário) e a comunitária (onde
encontram-se as liberdades, definindo os seus limites).
49
Encontramos nesta proposta uma tentativa de reaproximar o ser humano de
sua essência. Assim como Mounier, não adotamos uma pretensão utópica de uma
revolução personalista a nível de humanidade, mas a nível de Pessoa, a partir da
base de todo o pensamento mounieriano.
REFERÊNCIAS
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução Alfredo Bosi. São Paulo:
Editora Mestre Jou, 1999.
ARGURYS, Chris. Personalidade e Organização. Rio de Janeiro: Editora Renes,
1969.
BOCK, Ana M. Bahia. Psicologias: uma introdução ao estudo de psicologia. 1. ed.
São Paulo: Editora saraiva, 1988.
DESCARTES, René. Discurso sobre o método: Para bem dirigir a própria razão e
procurar a verdade nas ciências. Tradução Márcio Pagliesi e Norberto de Paula
Lima. São Paulo: Editora Hemus, 1995.
LACROIX, Jean. et al. Presença de Mounier. Tradução Maria Lúcia Moreira. São
Paulo: Duas Cidades, 1969.
GUARESCHI, Pedrinho; RAMOS, Roberto. A máquina capitalista. Petrópolis:
Vozes, 1988.
MONDIN, Battista. Curso de Filosofia: os filósofos do ocidente. 5. ed. Tradução
Benôni Lemos. São Paulo: Edições Paulinas, 1981.
MOUNIER, Emmanuel. O Personalismo. Lisboa: Livraria Morais Editora, 1960.
____. Sombras de Medo Sobre o Século XX. Tradução Salústio de Figueiredo. Rio
de Janeiro: Agir Editora, 1958.
REALE, Giovanne; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: do romantismo até os
nossos dias. 6. ed. São Paulo: Paulus, 2003. v. 3.
51
SEVERINO, Antonio Joaquim. Pessoa e Existência: iniciação ao personalismo de
Emmanuel Mounier. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1983.
SILVA, Luciano Pereira da. A astronomia de “Os Lusíadas”. Coimbra: Junta de
investigação do Ultramar, 1972.

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  • 1. FACULDADE SÃO LUIZ REGINALDO PEREIRA DE ALMEIDA O PROBLEMA DOS MECANISMOS DETERMINISTAS NA CONCEPÇÃO MOUNIERIANA DE PESSOA BRUSQUE 2010
  • 2. REGINALDO PEREIRA DE ALMEIDA O PROBLEMA DOS MECANISMOS DETERMINISTAS NA CONCEPÇÃO MOUNIERIANA DE PESSOA Trabalho de Conclusão de Curso para obtenção do grau de Bacharel em Filosofia pela Faculdade São Luiz. Orientador: Prof. Dr. Adilson José Colombi. BRUSQUE 2010
  • 3. Dedicatória: Dedico este trabalho aos meus pais Ademir e Maria Janete e aos meus irmãos Everaldo e Clodoaldo, comunidade primeira na qual me encarnei. Também à Mari, ao Gabriel e ao Rafael, e à Ires, que vieram a integrar nossa existência familiar. Dedico este trabalho ao Pe. Adalberto, ao Pe. Edson, ao Pe. Adenir Ronchi, meus formadores, e também aos meus irmãos de caminhada, o Claudemir Alves, o Adriano Sidnei, o Gentil, o Marcos Ricardo, o Alexsandro Serafim, o Fernando Steffens, o Gilson Siqueira, o Tiago Francisco, o Ronério, o Edinei (in memorian), o Tiago Willian, o Cristiano e o Arnaldo Allein. Aos meus professores e em especial, ao meu orientador, Pe. Adilson José Colombi. Dedico também às famílias que muitas forças me deram e me encantaram com o amor ali manifestado: à família Cardoso (Denise, Celso, Dani e Fernanda), à família Luchtenberg (José Luiz, Lenice, Aline e Carol) e à família Brühmuller (Tarcísio, Rose, Bruno e Camila).
  • 4. Agradecimento: Agradeço primeiramente a Deus, Fonte de toda a vida e inspiração para a arte do pensar. Por Sua graça encontrei pessoas que me orientaram e me apoiaram nas minhas escolhas, aos quais sou também inteiramente grato pelo amadurecimento que me proporcionaram: meus pais, irmãos e demais familiares; meus formadores, professores e amigos do tempo de Seminário, todos colaboradores na constituição de minha personalidade.
  • 5. RESUMO O presente trabalho monográfico apresenta a proposta de personalização frente às massificações ideológicas, aos sistemas sociais e econômicos que tendem, de forma mecânica, a uniformizar o ser humano. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, que busca trazer presente o progresso da mecanização e da cientificidade e direcionar estes fatores exclusivamente para o desenvolvimento humano. A partir de uma análise histórica acerca do aperfeiçoamento do método, observamos a tentativa de aplicá-lo em todas as áreas do saber e do agir humano. Logo vemos a indústria operando de forma mecanizada e sistematizada. Logo vemos o ser humano a ser estudado como algo totalmente palpável e sistematizado. Em contrapartida, com o propósito de encontrar no pensamento de Emmanuel Mounier um amadurecimento da Pessoa, recorre-se aqui à sua principal obra sobre a personalidade, O Personalismo. São assim apresentadas as principais categorias do processo de personalização como atitude de rompimento com tudo o que fere a dignidade humana e sufoca sua liberdade. Afronta-se então a Pessoa (crítica, criativa, espontânea, imprevisível) com a realidade onde está encarnada. Palavras-chave: 1. Pessoa 2. Mecanismo 3. Liberdade 4. Emmanuel Mounier
  • 6. SUMÁRIO INTRODUÇÃO............................................................................................................6 1. A CULTURA MECANICISTA..................................................................................9 1.1. MECANICISMO E DETERMINISMO ...................................................................9 1.1.1. Desenvolvimento da teoria mecanicista.......................................................11 1.2. A RACIONALIZAÇÃO DA FILOSOFIA...............................................................12 1.3. SOBRE AS LEIS NATURAIS .............................................................................13 1.4. AS INDÚSTRIAS MECÂNICAS..........................................................................15 1.4.1. Cientificidade nas organizações ..................................................................17 1.5. CIÊNCIA COMO STATUS..................................................................................18 2. EMMANUEL MOUNIER E O PROCESSO DE PERSONALIZAÇÃO...................21 2.1. A PESSOA HUMANA: UM SER ENCARNADO .................................................24 2.2. MOVIMENTO DE PERSONALIZAÇÃO: DIALÉTICA DA INTERIORIDADE E OBJETIVIDADE ........................................................................................................26 2.2.1. O perigo da interiorização............................................................................27 2.2.2. O perigo da exteriorização...........................................................................28 2.3. O AFRONTAMENTO..........................................................................................29 2.4. A COMUNICABILIDADE DA PESSOA...............................................................31 2.5. AS DIMENSÕES DA AÇÃO...............................................................................33 2.6. PESSOA E COMUNIDADE................................................................................35 3. A LIBERDADE NAS CONDIÇÕES TOTAIS DA PESSOA...................................38 3.1. A PESSOA COMO SUPERAÇÃO DA NATUREZA ...........................................38 3.2. A PESSOA COMO SUPERAÇÃO DAS ESTRUTURAS ....................................40 3.2.1. Estrutura Comunista ....................................................................................41 3.2.1. Estrutura Capitalista.....................................................................................42 3.3. REVOLUÇÃO PERSONALISTA E COMUNITÁRIA ...........................................45 3.3.1. Para uma psicologia personalista....................................................................46 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................48 REFERÊNCIAS.........................................................................................................50
  • 7. INTRODUÇÃO No fascínio que se desperta pelos frutos da era tecnológica, pelas máquinas cada vez mais independentes das participações humanas, esconde-se um temor de que as necessidades reais da pessoa sejam lançadas para um segundo plano nos interesses sociais. Quando o valor do ser humano se resume exclusivamente à técnica, não importa mais o que ele é, mas a qualificação que tem. Na intenção de apresentar a concepção de Pessoa sob a perspectiva personalista de Emmanuel Mounier, o presente trabalho discorrerá acerca do processo de personalização e a questão da mecanização da sociedade e da técnica frente à proposta mounieriana. Sendo o processo de personalização um movimento dialético constante entre o envolver-se nas profundas experiências interiores e exprimir-se na realidade externa à Pessoa, se ocupará, o primeiro capítulo, em apresentar os mecanismos que sufocam este movimento. Para tanto, uma breve explanação sobre o aperfeiçoamento do método que, iniciado com Descartes, atingirá seu ponto alto em Newton, em suas investigações das leis celestes, e mais tarde fará parte da produção industrial e de todas as Ciências Experimentais. Faz-se importante notar que o método, quanto mais minucioso, mais garantia dará sobre um acontecimento futuro, gerando uma sensação de previsibilidade: prever a localização dos corpos celestes e sua influência sobre a vida na Terra; prever a rentabilidade da produção industrial; prever as manifestações sociais; prever a própria psicologia humana. É neste ponto que o primeiro capítulo quer tocar: na transferência da noção de previsibilidade até as ciências do comportamento humano, destacando assim a
  • 8. 7 desvalorização da capacidade criativa da pessoa em prol de um conhecimento redutivo acerca das respostas biológicas às determinações da natureza. Em contrapartida, o segundo capítulo apresenta o processo de superação pessoal, o processo de personalização ante os determinismos mecanicistas que admitem a técnica, por si mesma, como um fim supremo. Este capítulo reflete o produto das experiências vividas por Mounier. Reflete a experiência do sentir-se encarnado num tempo e num espaço mediante a materialidade do seu corpo. Consequentemente a pessoa se afronta com a realidade, com o outro, da mesma forma como se comunica, expressando-se, exprimindo-se, saindo de si para afirmar- se e apreendendo a realidade para se consolidar como Pessoa. Apreender a realidade e transformá-la; agir sobre a natureza; produzir. As dimensões da ação da Pessoa devem englobar todo o seu ser e favorecer a realização pessoal. O problema dos mecanismos deterministas na concepção mounieriana de Pessoa surge como uma instigação à reflexão sobre a liberdade da pessoa. Somos livres ou nossas escolhas e nossas ações são determinadas pelos interesses de uma ideologia, de um sistema social ou econômico? A singularidade parece estar escassa uma vez que a propaganda tenta uniformizar os gostos. A crítica de Mounier se dirige contra as tendências filosóficas e econômicas que colocam a pessoa à margem de seus interesses. O terceiro e último capítulo apresentará a proposta mounieriana de uma revolução personalista e comunitária que, contrariando o marxismo e o capitalismo, que se apóiam numa doutrina centrada respectivamente no material e no capital, coloca as necessidades reais da pessoa como motor para uma economia da realização humana. Para esta pesquisa nos utilizamos do pensamento de Emmanuel Mounier expresso em algumas de suas obras, sendo a principal O Personalismo. Foi também
  • 9. 8 indispensável para a análise da mecanização das atividades humanas, o contato com algumas teorias da administração industrial, que colocaram o trabalho humano sob as exigências da máquina, do lucro e do material.
  • 10. 1. A CULTURA MECANICISTA Adotar a noção de Pessoa na perspectiva de Emmanuel Mounier, é entendê- la como um movimento dialético constante da interioridade espiritual que se manifesta criativamente na exterioridade, naquilo que nos é dado. A realidade exterior, bem como a própria natureza humana, apresentam-se como que matérias- prima para a atividade da Pessoa. Na medida em que transforma o meio, exprime- se; e na medida em que apreende a realidade, se re-abastece. Veremos, neste primeiro capítulo, o problema da mecanização dos sistemas que englobam o ser humano e o fascínio sobre a previsibilidade que a noção de mecânico favorece. Considerar o universo como máquina favoreceu prever o posicionamento dos corpos celeste e a influência destes sobre a vida na Terra; a indústria mecânica favoreceu prever a rentabilidade da produção; considerar as estatísticas sociais favorece a delineação de um plano de desenvolvimento. E o ser humano: pode ser assim considerado de forma a favorecer uma previsibilidade acerca de suas ações? 1.1. MECANICISMO E DETERMINISMO Frequente será, para elucidar a ideia deste primeiro capítulo, a ocorrência do termo determinismo nas suas diversas variações. Parece-nos ser inapropriada a utilização do verbo determinar quando nos referimos a ações humanas. Esquivamo-
  • 11. 10 nos ainda mais do termo, quando assumimos uma postura Personalista frente à questão. Falar de Pessoa sob esta perspectiva implica numa contraposição aos determinismos e supõe espontaneidade e criatividade das ações humanas. O personalismo repugna profundamente “[...] aparelhagens de pensamento e ação funcionando como automáticos distribuidores de soluções e instruções, obstáculo frente às investigações, seguro contra a inquietação, a dificuldade, o risco.”1 O personalismo repugna ainda a ideia de destinação já adotada na antiguidade, na qual o ser humano é apenas mais um elemento na natureza, sujeito às mesmas leis que aquela e possui um futuro já traçado pelas determinações naturais. As ações do ser humano, sob esta perspectiva, se limitam a reações consequentes dos estímulos provocados pelo meio em que vive. Abbagnano vincula o conceito determinismo ao mecanicismo que, segundo ele [...] é a tendência dominante da Ciência do séc. XIX, como também da Filosofia que se apóia nessa fase da ciência. O determinismo é a crença na extensão universal do mecanismo, isto é, na extensão do próprio mecanismo também ao homem.2 Trata-se de, no processo iluminista de racionalização do mundo, estender os mecanismo às próprias atividades do ser humano. Os modelos científicos, industriais e administrativos que surgiram como fruto dos métodos do conhecimento desenvolvidos de Descartes a Newton, serão o foco da crítica presente nesta pesquisa. Emmanuel Mounier sugerirá um conceito de Pessoa que afrontará a ciência e a filosofia mecanicista no processo de personalização, pois estas 1 MOUNIER, Emmanuel. O Personalismo. Lisboa: Livraria Morais Editora, 1964, p. 15. 2 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução Alfredo Bosi. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1999, p. 229.
  • 12. 11 descartam o cultivo de uma interioridade, considerando o ser humano como simples autômato, dependente de ordens e leis que orientem o seu agir. 1.1.1. Desenvolvimento da teoria mecanicista Num princípio de análise frente ao que está determinado, parece manifestar-se um ceticismo referente a abstrações: apenas o que está posto e somente isso exerce influência sobre o que o rodeia. Esta é a única manifestação existente: apenas o que aparece, o que é material e os fenômenos consequentes dessa presença material. Porém os deístas, defensores espiritualistas do mecanicismo, concordam em afirmar a existência de um Ser Superior que criou o universo e o pré-determinou, mediante leis naturais, a se manter e se organizar na sua existência.3 Todos os acontecimentos tornam-se previsíveis quando se conhece a lógica que constitui a natureza das coisas. René Descartes (1596-1650), defensor da teoria mecanicista, criou seu método para dirigir a razão e fazer com que as ciências desvendassem as leis que regem o universo. Como Pitágoras, sua intenção era associar as leis numéricas com as leis do mundo. Ao voltar seu olhar para a natureza, para o céu, para as estrelas, para a Lua, Descartes comovia-se com [...] certas leis que Deus de tal forma estabeleceu na natureza e das quais imprimiu tais noções em nossas almas, que, após muita reflexão, não é possível duvidarmos que elas não sejam exatamente observadas em tudo quanto existe ou se faz no mundo.4 3 Cf. Ibid., p. 223. 4 DESCARTES, René. Discurso sobre o método: Para bem dirigir a própria razão e procurar a verdade nas ciências. Tradução Márcio Pagliesi e Norberto de Paula Lima. 9. ed. São Paulo: Editora Hemus, 1995, p. 82.
  • 13. 12 A abordagem analógica do universo como uma gigantesca máquina oferecia-se para a ciência cartesiana como um mistério a ser desvendado. Esse anseio, já na antiguidade inquietava o pensamento de quem, atentamente, vislumbrava e se comovia com o comportamento dos céus. A própria filosofia surgiu em torno do assombro pelo cosmos. Ptolomeu (90-168), por exemplo, da escola de Alexandria, elaborou seu complexo sistema epicíclico dos astros celestes, concebendo o Universo geometricamente. Tal concepção permitiu a previsão da localização de planetas, da Lua em relação à Terra e contribuiu para a afirmação de teorias que estavam por surgir.5 1.2. A RACIONALIZAÇÃO DA FILOSOFIA Considerado o pai da filosofia moderna, René Descartes foi o grande propulsor para o desenvolvimento das Ciências Experimentais. Dissecar corpos de animais para minuciosamente descrever o funcionamento interno dos organismos vivos, o sistema respiratório, o sistema digestivo, nervoso, enfim, tudo detalhadamente, era uma das atividades nas quais se dedicava.6 Buscou-se tal minuciosidade ao estabelecer o princípio do conhecimento metódico da divisão da dificuldade a ser examinada.7 Em todo um sistema, deve ser levada em consideração cada uma das partes particularmente, assim como a função das suas particularidades. 5 Cf. SILVA, Luciano Pereira da. A astronomia de “Os Lusíadas”. Coimbra: Junta de investigação do Ultramar, 1972, p. 72. 6 Cf. DESCARTES, op. cit., p. 89. 7 Cf. ibid., p. 40.
  • 14. 13 Corre-se aqui o risco de cair na infidelidade à filosofia cartesiana. Ela, embora conceba o mundo material como regido por leis mecânicas, julga ser livre o ser humano por possuir uma alma que controla a máquina do seu corpo.8 Todos os seres animados funcionam como máquinas e agem como autômatos, até mesmo o corpo humano. O que o distingue, no entanto, dos demais animais é justamente a presença de uma alma racional que controla esta máquina. Logo percebemos a origem da problemática que estará permeando nossa pesquisa. Durante a história, sutilmente se estenderá a noção moderna de funcionamento autômato do universo ao ser humano. O indivíduo, com o alvorecer da era industrial e do capitalismo, será considerado uma peça da engrenagem organizacional. A transferência da noção de automaticidade do universo para as ciências do comportamento humano parece se iniciar no ato de assumir o mecanicismo cartesiano munido de preconceito quanto à existência de uma res cogitans, uma interioridade da pessoa. Esse ceticismo, promovido pelo pensamento positivista, que apostou convictamente na racionalização da natureza e na implantação da cientificidade em todas as áreas do saber, visava a elevação de uma humanidade progressista e ordenada para o cume de sua evolução. 1.3. SOBRE AS LEIS NATURAIS Há quem considere que tudo o que se havia especulado até Isaac Newton acerca das forças do universo, foi apenas uma introdução.9 Embora seja 8 Cf. MONDIN, Battista. Curso de Filosofia: os filósofos do ocidente. 5. ed. Tradução Benôni Lemos. São Paulo: Edições Paulinas, 1981. v. 3. p. 71. 9 Cf. REALE, Giovanni. História da Filosofia: do humanismo a Descartes. São Paulo: Paulus, 2004. v. 3. p. 233.
  • 15. 14 praticamente contemporâneo a Descartes e tenha utilizado, em partes, do próprio método cartesiano10 , Newton particularizou seu trabalho em torno da física do universo, sendo, portanto, um dos grandes promotores da divisão entre Ciência e Filosofia. Sua ciência era composta de duas partes: deduzir leis mediante as observações dos fenômenos que se deixam revelar para depois induzi-las às dimensões que não alcançam nossos sentidos. Ou seja, toda a matéria, quando submetida às mesmas condições, deve se comportar da mesma forma, em todos os lugares por se submeterem às mesmas leis que estão também em todos os lugares.11 Vale destacar, para esta nossa pesquisa que, das regras por ele formuladas, na segunda delas, expressa o postulado da uniformidade da natureza. Seguindo o raciocínio newtoniano todas as leis que podemos deduzir mediante a experiência que nos é proporcionada, podem ser induzidas a todos os efeitos que tenham semelhantes causas.12 Aplica-se ao todo as leis observadas nas partes. A automaticidade que Descartes encontrou, mesmo nos corpos animados, mediante a certeza da cientificidade newtoniana, vai perscrutar a razão positivista e fazê-la tomar a Sociologia como Física Social. Assim como em todas as áreas do saber, o conhecimento só terá valor na medida em que configurar seu discurso nos limites do que é positivo. O próprio termo positivo faz tomar por verdadeiro apenas aquilo que está posto, que é observável e livre de hipóteses. É a ciência newtoniana levada ao seu extremo. Para o positivista, apenas o conhecimento que estiver sob os padrões da metodologia científica será o conhecimento verdadeiro. O exagero positivista coloca a própria filosofia em descrédito. Ela é apenas um estágio 10 Cf. ibid., p. 231. 11 Contanto que seja levada em consideração a primeira de suas regras: “Não se hão de admitir mais causas das coisas naturais do que as que sejam verdadeiras e ao mesmo tempo bastem para explicar os fenômenos de tudo.” (NEWTON, Sir Isaac. Princípios Matemáticos. Tradução Carlos Lopes de Mattos e Pablo Rubén Mariconda. 2. ed. São Paulo: Editora Abril, 1983, p. 18) 12 Cf. Ibid., loc. Cit.
  • 16. 15 intermediário entre o conhecimento mitológico e o conhecimento científico (ou positivo). A maturidade intelectual só é alcançada nesse último estágio, onde há maior rigor sobre aquilo que se conhece, ao contrário da Filosofia que, embora baseada na razão, permite a especulação livre.13 1.4. AS INDÚSTRIAS MECÂNICAS É nesse fascínio acerca da revolução científica que emerge o desenvolvimento industrial. O surgimento da indústria mecânica abre novos rumos para a forma de produção que até então se limitava ao domínio da arte monopolizada sobre o talento e a mística dos artesãos. É uma das marcas da transição entre feudalismo e capitalismo. A revolução industrial mudou radicalmente o modo de vida na Europa. E os entusiasmos se cristalizaram em torno da ideia de progresso humano e social irrefreável, já que, de agora em diante, possuíam-se os instrumentos para a solução de todos os problemas, para o pensamento da época, esses instrumentos eram, sobretudo, a ciência e suas aplicações na indústria [...]14 Começam a se formar os grandes centros próximos às indústrias, e o camponês, assim como o artesão, deixa seus trabalhos de subsistência, para estar sob o regulamento de uma organização corporativa. O trabalho do artesão e do camponês não estava antes sujeito ao cumprimento rígido de horários estabelecidos. Ambos tinham, ainda, acesso ao produto do seu trabalho. Estavam sob o seu domínio todas as fases da produção e a criatividade era sua auxiliar ao 13 Cf. REALE, Giovanne; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: do romantismo até os nossos dias. 6. ed. São Paulo: Paulus, 2003. v. 3. p. 298. 14 Ibid., p. 295.
  • 17. 16 dar forma à criação. Esse tipo de trabalho cede lugar à produção mecanizada e o ritmo da produção passa a ser determinado pela máquina. Essa transformação, que gerou e cresceu junto com o espírito capitalista de acúmulo de capital, fez pesar sobre o operário pesadas cargas horárias e muitas vezes em péssimas condições de segurança e com baixíssimos salários. Na indústria mecânica, cada trabalhador é responsável por uma etapa da produção, podendo trabalhar sem nem mesmo saber qual será o resultado final deste processo. Pedrinho Guareschi cita em sua obra a distinção que os romanos faziam entre estes dois modos de produção. O termo labor se refere à atividade que o trabalhador desempenha sobre sua própria propriedade resultando um produto do qual poderá usufruir, implicando um domínio sobre sua produção e a necessidade do exercício de sua criatividade.15 É o que acontece no caso do artesão, por exemplo, que se encarrega desde a busca pela matéria prima até a escolha das cores e da forma de seu trabalho. Para um outro modo de produção, Guareschi cita o termo tripalium, onde [...] a pessoa trabalha no que não é seu, o que a pessoa faz não fica para ela, não decide e nem participa do destino de sua produção. Quando a alienação o transforma em um robô, um autômato, um alienado mental. Ele é simples máquina produtora. Incorpora as relações e os movimentos da máquina, transformando-se, ele mesmo, em máquina. A sensibilidade humana e criadora, a iniciativa e a espontaneidade desaparecem.16 A crítica de Mounier focará justamente a produção frenética movida pela centralidade do rendimento. Para ele, toda a produção deve ser orientada pelo consumo, e o consumo por uma ética das necessidades reais da pessoa. Tudo começa e tudo termina na pessoa. 15 Cf. GUARESCHI, Pedrinho; RAMOS, Roberto. A máquina capitalista. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 33. 16 Ibid., loc. Cit.
  • 18. 17 1.4.1. Cientificidade nas organizações Com o lema positivista de Ordem e Progresso, a necessidade de elaborar manuais que orientem o desenvolvimento da produção industrial torna-se indispensável. A sensação é de que a humanidade conquistou todos os instrumentos necessários para progredir na realização humana. Assim como estabelecido por Newton, há uma necessidade de uniformização para que se induzam certezas nos resultados a serem obtidos. Os Princípios de administração científica, publicados por Frederick Winslow Taylor (1856-1915) buscaram fazer da empresa um objeto de aplicação das teorias científicas, sendo uma das ideias centrais, a racionalização do trabalho, ou seja, a divisão das funções para os operários. A febre positivista invade a organização administrativa também na teoria industrial. Tanto para o taylorismo quanto para a administração tradicional, propagada por Henri Fayol (1841-1925), os interesses individuais devem ser subordinados ao interesse administrativo. Assemelhando-se teoricamente a uma sociedade fechada e originariamente contratualista, se distingue de tal por findar-se na lucratividade, ou seja, no interesse de uns poucos. Taylor levanta severa crítica ao incentivo da administração aos seus empregados e à iniciativa dos empregados em relação aos interesses da administração. Chris Argurys cita, em sua obra Personalidade e Organização, quatro princípios de controle administrativo adotados pela estrutura tradicional de organização. São os seguintes: 1) O homem é um animal racional que se empenha em obter, economicamente, lucros máximos. Daí se depreende que se deve pagar ao empregado de acordo com o que ele produz; 2) O homem é um indivíduo isolado, para efeito de cálculo de seu salário. Não é afetado (ou, pelo menos, não deveria ser) por normas e pressões do
  • 19. 18 grupo de trabalho; 3) O homem, como a máquina, pode ser tratado de uma maneira padronizada. Se bem que reconhecidas as diferenças individuais, presume-se que há apenas “um modo ótimo” de realizar o serviço, de tal forma que as variações no método de trabalho podem e devem ser eliminadas; 4) O homem, como as máquinas, para trabalhar precisa ser estimulado pela direção. As máquinas são acionadas pela eletricidade, o homem, pelo dinheiro.17 Fayol começa a impor a idéia de que o administrador empresarial deve considerar analogicamente tudo o que está sob suas responsabilidades na organização: o mesmo cuidado e consideração que se prestam às máquinas devem ser estendidos ao material humano do qual dispõe. 1.5. CIÊNCIA COMO STATUS A Física, a partir de Isaac Newton, se tornou o centro das atenções intelectuais da modernidade. O fascínio diante da precisão com a qual a Física media o universo estimulou profissionais de todos os segmentos a aplicarem a racionalização científica mesmo às ciências propriamente humanas. Na transição entre o século XIX e XX, brota o anseio de desvincular a Psicologia da Filosofia, para que tivesse o status de ciência. John B. Watson (1878-1958), que é considerado pai do behaviorismo [...] postulando então o comportamento como objeto da psicologia, dava a esta ciência a consistência que os psicólogos da época vinham buscando. Um objeto observável, mensurável, que podia ser reproduzido em diferentes condições e em diferentes sujeitos. Essas características eram importantes para que a psicologia alcançasse o 17 ARGURYS, Chris. Personalidade e Organização. Rio de Janeiro: Editora Renes, 1969, p. 135.
  • 20. 19 status de ciência, rompendo definitivamente com a sua tradição filosófica.18 Burrhus Frederic Skinner (1904-1990) foi um continuador do trabalho de Watson, desenvolvendo assim a ciência do comportamento, que segue uma constante observável chamada estímulo-resposta. Tendo por objeto o comportamento humano analisável, inicia-se uma busca quanto à origem do comportamento, as motivações e as finalidades do mesmo, tornando o ser humano algo inteiramente palpável. Vale lembrar que as análises dessas correntes sempre surgiram confinadas em laboratórios, desconsiderando a vida interior e comunitária da pessoa, mas valorizando exclusivamente os movimentos involuntários ou autômatos produzidos por estímulos externos. Ainda lembramos que o behaviorismo teve por base experimentos com animais não humanos, como a análise da salivação canina de Pavlov e o “aprendizado” do camundongo na busca por água, estimulada por Skinner. A Psicologia, nestes moldes, busca seguir os mesmos preceitos newtonianos de uniformidade sob um rigor positivista, onde apenas o que está evidenciado pelos nossos sentidos é digno de ser investigado cientificamente. Os estímulos para a resposta involuntária são os mais variados. Para os apologistas das determinações naturais sobre os seres humanos, “A terra é a mãe de todos nós... A mensagem da natureza quer ser obedecida.”19 Emmanuel Mounier ainda cita Ruskin, defensor de que a primeira virtude do ser humano “consiste no conhecimento da nossa natureza inferior, e na submissão às leis da natureza superior.”20 18 BOCK, Ana M. Bahia. Psicologias: uma introdução ao estudo de psicologia. 1. ed. São Paulo: Editora saraiva, 1988, p. 38. 19 MOUNIER, Emmanuel. Sombras de Medo Sobre o Século XX. Tradução Salústio de Figueiredo. Rio de Janeiro: Agir Editora, 1958, p. 68. 20 Ibid., loc. Cit.
  • 21. 20 O behaviorismo traz consigo o risco de desqualificar o ser humano de sua singularidade. Os indivíduos teriam os mesmos comportamentos quando submetidos a situações similares. A uniformização do processo de construção de personalidade parece colaborar com o próprio capitalismo e seu primado da produção. Com o crescimento das técnicas de marketing, busca-se criar gostos similares, expondo as pessoas às mesmas imagens que produzam um efeito definido, como a necessidade de consumir determinado produto. Tudo parece culminar no sistema capitalista. A noção mesma de mecanicidade, automatismo, foi um fator que corroborou para o nascimento e desenvolvimento do capitalismo: a racionalização dos métodos científicos, a começar por Descartes, Galileu, Bacon, Newton... a implantação destes métodos na indústria, na administração e, com Augusto Comte, até nas Ciências Humanas e Sociais, afetou diretamente a visão sobre o ser humano e seu modo de agir, acabando por enquadrar o seu próprio comportamento nos moldes da ciência.
  • 22. 2. EMMANUEL MOUNIER E O PROCESSO DE PERSONALIZAÇÃO Emmanuel Mounier nasceu em Grenoble, na França, no dia 1º de abril de 1905. O trabalho por ele desenvolvido foi fortemente marcado pelas experiências vividas no seio familiar. Viveu com sua modesta família até os dezessete anos de idade e foi neste período que desenvolveu sua capacidade de meditação e reflexão acerca da vida. Em seus escritos, Mounier traz recordações da maneira como a vida o ensinou a reagir diante de situações imprevistas, isso sempre para lembrar a característica criadora da pessoa humana. Lutando contra pensamentos deterministas que estendiam seus mecanismos para as ações propriamente humanas, defendeu a imprevisibilidade da natureza de seu agir.21 Desde criança, Mounier tinha um encantamento pelo encontrar-se com outras pessoas e assim descreve o efeito que tais ocasiões o proporcionavam: Encontrar pessoas, isto era o que eu esperava da vida... e bem sentia o que isto queria dizer: encontrar o sofrimento. Criança, de doze aos vinte anos, sonhava como todas as crianças, à noite antes do sono, ou nas estradas, quando a gente se enche de ar, de futuro, destas canções interiores. Ora, era sempre no sofrimento, lembro-me muito bem, um acidente, uma doença, um luto, que eu imaginava o encontro. Isto não diminuía de modo algum a juventude, o frescor; ao contrário, parecia-me que não podia figurar a alegria senão através da participação no sofrimento. Não se tratava absolutamente de histórias de cavalaria; não encontrava o gosto do real senão neste círculo e circunstâncias.22 21 Cf. SEVERINO, Antonio Joaquim. Pessoa e Existência: iniciação ao personalismo de Emmanuel Mounier. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1983, p. 1. 22 MOUNIER, apud Ibid., loc. Cit.
  • 23. 22 Os laços entre Emmanuel Mounier e sua família eram muito fortes. A família, sendo fortemente religiosa, foi a promotora de sua fé cristã que permeou toda a sua obra iluminando os fatos e dando sentido aos mesmos, potencializando sua sensibilidade. Influenciado pelas familiares sugestões que queriam mantê-lo no lugar de origem por mais tempo, dedicou-se ao estudo da medicina. Assim descreve como o ambiente familiar, querendo apenas o seu bem, voltou-se contra seus próprios anseios: Aconteceu, então, já nos últimos anos do Liceu, que minhas virtudes viraram-se contra mim. Não acusarei os meus. Devo-lhes muito num plano infinitamente superior e de outra ordem. Mas gosto de unir a afeição viva à clarividência calma. Estas pressões familiares teriam sido rapidamente dobradas diante de uma vontade firmemente declarada. Mas, você vê, meu desejo dobrava pelo escrúpulo (ir a Paris, pensão cara etc.). Deixei uma visão de médico de campo captar-me o ânimo generoso.23 Sentindo-se desgostoso já nos exames vestibulares para a Faculdade de Ciências, seu desespero acerca do futuro que estava construindo para si o levou a desejar morrer a estudar medicina. E foi num retiro espiritual que tomou posse de sua verdadeira vocação e a assumiu com garra. Tal disposição levou até mesmo sua família a apoiá-lo. Assim iniciava, na sua terra natal, os estudos em filosofia, com a pretensão também à vida religiosa.24 Os quatro anos do curso de filosofia (1924-1927) passaram ligeiramente para o jovem Mounier, pois dedicara-se com gosto ao saber filosófico. Obteve o Diploma de Estudos Superiores de Filosofia mediante sua dissertação intitulada O conflito do antropocentrismo e do teocentrismo na filosofia de Descartes.25 23 Ibid., p. 2. 24 Cf. ibid., p. 3. 25 Cf. Ibid., loc. Cit.
  • 24. 23 Logo no ano seguinte, mediante a obtenção de uma bolsa de doutoramento de três anos, ingressa na Sorbonne, mas não se adapta àquele meio. Sua principal indignação nos remete às conseqüências de sua formação infanto-juvenil em Grenoble. Não admitia a forma sistemática com a qual agiam os jovens da Sobornne. Segundo Mounier, eles estavam a considerar suas carreiras como “[...] um mecanismo a montar-se metodicamente até um ponto fixo”.26 Contudo, mantém- se firme e, incentivado por seu amigo Jean Lacroix, se debruça sobre o tema da personalidade.27 Em 1932, é lançado o primeiro número da revista Esprit, idealizada por Mounier, com a colaboração de seus amigos Georges Izard, Déleage, Jean Lacroix, Nicolas Berdiaeff, Denis de Rougemont e René Biot. “Esprit, como movimento nasceu das exigências de uma nova geração, inconformada com o estado das coisas e com a atitude que diante dele tomava a velha geração.”28 O engajamento de Mounier frente ao propósito da Esprit, o tornou alvo de severas críticas associadas a movimentos revolucionários. Aconteceu por perder amizades significativas para ele por não hesitar em seu compromisso com a verdade. Por diversas vezes, no período da Segunda Guerra Mundial, foi preso por seu ideal de afrontar-se amorosamente ao que está posto. A experiência da prisão gerou escritos sobre o caráter e a fragilidade humanos, levando seu pensamento a configurar-se com o existencialismo. Neste mesmo período, a revista teve dificuldades de manter- se incensurável.29 26 Ibid.,. p. 4. 27 Cf. Ibid., loc. Cit. 28 Ibid., p. 5. 29 Cf. ibid., p. 5-6.
  • 25. 24 Após o período de guerra, Mounier viaja pelo mundo inteiro para reorganizar e animar os grupos ligados ao movimento.30 Em 1950, com seus 45 anos de idade, Mounier falece de um colapso cardíaco. 2.1. A PESSOA HUMANA: UM SER ENCARNADO Diferente de todas as demais criaturas presentes no mundo, o ser humano é um ser encarnado, feito matéria corpórea em meio ao mundo material. Eis os traços da filosofia cartesiana, na qual se debruçava Mounier no término de seu curso filosófico. Apoiado na consciência (res cogitans) da materialidade (res extensa) é que a pessoa a transforma e se transcendentaliza. A encarnação distingue a pessoa dos demais seres por fazer supor duas dimensões, dois movimentos que se unificam em favor da construção de um “universo pessoal”31 . Os sentimentos vivenciados pela pessoa são na sua natureza experiências no próprio corpo, na matéria, que somente mediante o espírito poderão assumir um papel com valor significativo. Emmanuel Mounier defende que O homem é corpo exactamente como é espírito, é integralmente “corpo” e é integralmente “espírito”. Dos seus mais primários instintos, comer, reproduzir-se, é capaz de passar a artes subtis: a culinária, a arte de amar.32 30 Cf. ibid., p. 7. 31 Por universo pessoal Mounier designa todas as facetas que constituem o ser pessoa. Desde os fatores hereditários que possam condicionar o agir até os sentimentos mais íntimos provindos das relações pessoais e com o meio. Também se considere a capacidade criadora do ser humano, sua criatividade, espontaneidade, liberdade e o significado que tudo isso vai adquirindo no seu interior. 32 MOUNIER, 1964, p. 36.
  • 26. 25 Fazer com que esses instintos transcendam para uma dimensão significante é uma ação permitida exclusivamente ao ser humano. Por ser a espécie humana também um elemento natural, está sim sujeita às leis da natureza que oferecem, nada mais “[...] que um feixe infinitamente complicado de determinações, das quais não chegamos mesmo a saber se, para além dos sistemas que formulamos para assegurar a nossa marcha, serão redutíveis a uma unidade lógica.”33 No entanto, como bem distingue Marx, mesmo sendo um ser natural, é um ser natural humano: o único que tem consciência destas determinações que a natureza lhe impõe.34 Desta forma “[...] o homem singulariza-se por uma dupla capacidade de romper com a natureza. Só ele conhece esse universo que o absorve e só ele o pode transformar, ele, o menos armado e o menos poderoso dos grandes animais.”35 Encarnada na realidade natural, a Pessoa não é o mais maravilhoso dos objetos que encontramos na natureza. Isso por não poder se definir pessoa como objeto que, como uma pedra, apenas sofre as conseqüências das forças que sobre ela se cruzam. A encarnação supõe algo além da passividade da matéria. Supõe atividade. Não uma atividade instintiva, resposta a estímulos externos e laboratoriais (como defendiam os behavioristas), mas que descentralize a pessoa de si e imprima o seu universo pessoal na realidade objetiva. Há uma interação consciente por parte do ser humano com a sua natureza.36 Sendo a pessoa um ser encarnado, elimina-se a possibilidade de defini-la como se define um objeto. Emmanuel Mounier afirma que cada pessoa Tem do seu corpo um sentimento único, de que não posso participar; mas posso observar de fora esse corpo, examinar as suas 33 Ibid., p. 38. 34 Cf. ibid., p. 39. 35 Ibid., p. 40. 36 Cf. ibid., p. 78.
  • 27. 26 disposições, manifestações hereditárias, formas, doenças, numa palavra, tratá-lo como se tratam matérias do saber fisiológico, médico, etc. Se é funcionário, terá um regulamento de funcionário, uma psicologia de funcionário, que podem ser estudados no seu caso, embora se não identifiquem com ele, com ele todo na sua realidade compreensiva.37 Uma vez que assim a consideramos temo-la integralmente como algo não material e integralmente como material. Nessa composição evidencia-se uma interioridade processadora de todos os acontecimentos externos captados pelos sentidos do corpo humano, o qual se configura, na sua natureza, com a exterioridade para apreendê-la e transformá-la mediante seu espírito. 2.2. MOVIMENTO DE PERSONALIZAÇÃO: DIALÉTICA DA INTERIORIDADE E OBJETIVIDADE “A existência pessoal permanece sempre entre um movimento de exteriorização e um movimento de interiorização que lhe são essenciais e que podem, quer fixá-la, quer dissipá-la.”38 É mediante a dialética que existe entre interioridade e objetividade que se vai constituindo um ser pessoal. Em O Personalismo, obra de base para esta pesquisa, encontramos, na primeira parte, a divisão em capítulos das estruturas do universo pessoal. Todas essas menções ao movimento de personalização estão a especificar a maneira de se dar da dialética entre interiorização e exteriorização. O primeiro capítulo é intitulado existência incorporada; no segundo temos a comunicação; no terceiro a conversão íntima; no quarto o afrontamento e no quinto, liberdade com condições. Note-se que não são 37 Ibid., p. 16. 38 Ibid., p. 90.
  • 28. 27 etapas sucessivas, mas são implicações necessárias que partem de uma consciência do estar situado e do ser-para-o-outro. 2.2.1. O perigo da interiorização Existe um pensamento e existe um espaço onde ele se manifesta: existe, logo, o ser humano. Não exclusivamente pensamento (espírito) e nem exclusivamente matéria (corpo). Este ser humano, consciente de si e de tudo que o cerca, pode, num momento de introspecção, recolher-se na sua interioridade, correndo o risco de encontrar neste movimento um doce refúgio, uma fuga das ameaças externas. Mounier alerta que Na doce intimidade destas experiências, encontramos uma como que plenitude, o sentimento duma intimidade que não é simples. Exprime a alegria de reencontrar as fontes interiores e de aí nos refrescarmos. Mas esta experiência é muitas vezes amolecida pelo gosto duma vida vegetativa, fechada e bem rodeada, semelhante à que vive o feto no seio da mãe, ou a criança nos seus braços, magicamente isolada e protegida de qualquer contacto.39 O que buscar então na intimidade pessoal? A procura de quê vale o risco de esconder-me do mundo na minha interioridade? Certamente não é o encontro de uma explicação sistematizada do sentido do “ser Pessoa” que moverá esta busca. “A pessoa não é „uma coisa‟ que se pode encontrar no fundo das análises, ou uma combinação definível de aspectos.”40 Por não ser determinado por limites compreensíveis à nossa razão sistematizante, quase que se perde o centro da liberdade ali presente. A este centro da liberdade, Mounier o trata como um segredo 39 Ibid., p. 81. 40 Ibid., p. 80.
  • 29. 28 pessoal, singular, intocável, uno e indivisível, “[...] onde a exaltação criadora e a vida mística têm raízes.”41 2.2.2. O perigo da exteriorização Mounier contrapõe ao intimista outro modo de estar no mundo afirmando que existem também As pessoas completamente viradas para fora, para a exibição, não têm segredos, não têm densidade, nem nada por detrás delas. Leem-se como um livro aberto, e depressa se esgotam. Não têm a experiência desta profunda distância, ignoram o „respeito pelo segredo‟, pelo seu ou pelo dos outros.42 Quanto ao ambiente onde o ser humano está encarnado e seu pensar consciente se manifesta, é necessário que haja uma capacidade de romper com as dependências deste meio para que floresça a vida pessoal na intimidade daquele segredo acima citado. Tanto a interiorização quanto o ato de exteriorizar-se podem ser fugas quando exclusivamente valorizados. “O importante não é a fuga, mas a concentração, a conversão de forças. A Pessoa só recua para depois saltar melhor.”43 Mounier define como “homem do divertimento” aquele que se confunde com o mundo objetivo. Esquecendo-se de si [...] vive como que expulso de si próprio, confundido com o tumulto exterior: assim o homem prisioneiro de seus apetites, funções, hábitos, relações, dum mundo que o distrai. Vida imediata, sem 41 Ibid., loc. Cit. 42 Ibid., loc. Cit. 43 Ibid., p. 78.
  • 30. 29 memória, sem projectos, sem domínio, e que é a própria definição de exterioridade, ou, à escala humana, de vulgaridade.44 A Pessoa Humana é um ser encarnado. Uma intimidade complexa e abstrata, centro da interioridade humana, rica em prazeres espirituais, onde estão todos os segredos que orientam o viver, encarnada num elemento material, num corpo humano. Mediante o corpo a interioridade se contextualiza na realidade material e se defronta com ela. A existência está compreendida entre dois pólos: ser e ter. A realização do ser ignora o mundo exterior e os riscos que ele comporta, mergulhando no segredo da intimidade e se deliciando nas suas doçuras. A realização do ter se concretiza quando não se consegue distinguir o ser humano do meio onde está ele inserido. Existir implica ser e ter espaço, pois “sem ter, a existência não se agarra, perde-se nos objetos.”45 Logo, a realização da pessoa está entre ser e ter. O fato de possuir equilibra a dialética entre exterioridade e interioridade. É necessário ter um espaço para afrontar. O choque entre o ser e o ter, entre a íntima suavidade e aquilo que se opõe aos gostos particulares é um importante fator para a constituição do Universo Pessoal. 2.3. O AFRONTAMENTO Uma das principais características da pessoa segundo Mounier, é a sua capacidade de se expor, de exprimir-se, de fazer face, de ser rosto. Desta forma resgata a palavra grega que mais se aproxima de sua concepção acerca da pessoa. Prósopon designa “[...] aquele que olha de frente, que afronta”.46 Faz-se pertinente 44 Ibid., loc. Cit. 45 Ibid., p. 85. 46 Ibid., p. 93.
  • 31. 30 lembrar um aspecto da biografia de Mounier que parece estimular o seu pensamento quanto ao fazer face frente ao outro. Como citado na sua biografia, já na infância ele se sentia atraído pelo encontro com pessoas. Este encontro favorecia conhecer universos paralelos ao seu, que funcionavam dependentes uns dos outros, mas com interioridades singulares, formada por experiências particulares. Diante do outro, posso adquirir conhecimento como posso também ensinar. “O mundo dos outros não é um jardim de delícias. É permanente provocação à luta, à adaptação, incita- nos a ir mais além.”47 É uma troca de experiências. E essa dialética só se estabelece quando disponho de minha vida interior, de meus conhecimentos que, por vezes, se conflitarão com o pensamento do que está à minha frente. Existir é dizer sim, é aceitar, é aderir. Mas se for aceitando sempre, se não recusar e nunca me recusar, deixo-me submergir. Existir é também e muitas vezes saber dizer não, protestar, desligar-se.48 Num mundo onde tudo parece se formar e evoluir sem um controle, onde o próprio indivíduo não é soberano de sua liberdade e de seu modo de ser, coagido a orientar-se por determinações externas, onde “Cada um de nós é, necessariamente, ou um tirano, ou um escravo”, é impossível não surgir um inquietamento interior que suplica por originalidade de vida, que suplica por querer exprimir-se conforme o que se passa na intimidade do ser. Mounier justifica o surgimento das diversas filosofias do protesto com o fato de que O indivíduo se sente cada vez menos senhor do seu meio, que, por seu lado, se desenvolve e organiza fora da sua alçada, a uma velocidade cada vez maior; as máquinas, as massas, os poderes, a administração, o universo e suas forças apresentam-se-lhe cada vez 47 Ibid., 56. 48 Ibid., p. 95.
  • 32. 31 mais como uma generalização da ameaça, enquanto ele procurava nelas uma generalização da protecção.49 Viver controlado por uma ideologia ou conduzir a vida orientada por normas ditatoriais fere a liberdade humana e sufoca a singularidade. No personalismo a violência até se justifica quando se trava uma luta entre a ação e a regra, a vida e a morte. É a pessoa manifestando seu anseio de exprimir-se, querendo libertar-se da normatividade uniformizante, para fazer-se notar como única, insubstituível. 2.4. A COMUNICABILIDADE DA PESSOA Encarnar-se na materialidade do mundo exige da pessoa uma dialética entre a realidade objetiva e a interioridade. Como já dissemos, tal dialética é fundamental no processo de personalização. Afrontar-se, exprimir-se, imprimir a personalidade na exterioridade exige uma habilidade comunicativa que possibilite o crescimento humano como pessoa na sua generalidade (quando se trata de um afrontar-se com outra pessoa) e o desenvolvimento do meio (quando o afrontamento ocorre com as estruturas do mundo material). O personalismo levanta-se contra a noção individualista crescente no meio burguês, onde o ser humano, segundo Mounier, passou a ser encarado abstratamente, [...] sem vínculos nem comunidades naturais, deus supremo no centro duma liberdade sem direção nem medida, sempre pronto a olhar os outros com desconfiança, cálculo ou reivindicações.50 49 Ibid., p. 96. 50 Ibid., p. 56.
  • 33. 32 Quando o personalismo se afronta com o individualismo é para fazer notar o risco de atrofiamento da personalidade que este abarca. Uma individualidade existe apenas para si, centrada na busca de satisfação no próprio indivíduo, algo impensável para o personalista que encontra no protesto contra o fora-de-si combustível para o espírito crítico-criativo. É necessário sim o ato do recolhimento, pois O movimento de interiorização constituído pelo „indivíduo‟ contribui para assegurar a nossa forma. No entanto, a pessoa só cresce na medida em que sem cessar se purifica do individuo que nela está. Não o conseguirá virando toda a atenção sobre si própria, mas, pelo contrário, tornando-se disponível, e por isso mesmo mais transparente a si própria e aos outros. Tudo se passa como se nos tornássemos então, quando já não estamos „ocupados conosco‟, „cheios de nós‟, então, e então somente, prontos para os outros, entrados em graça.51 Assegurar a forma singular intrínseca em cada Pessoa exige um ato de defesa. Defender-se e estar pronto para o outro não deixam de ser atitudes dependentes da comunicabilidade: como defender as estruturas do meu Universo Interior sem apresentá-lo? Comunicar os aspectos constituintes de minha personalidade equivale a exprimi-la de minha interioridade. Como dissemos, as características do processo de personalização se complementam e, por vezes, se confundem. A comunicação, por exemplo, é um ato de manifestação da Pessoa que não se dá exclusivamente mediante a fala, mas pelo próprio processo criativo que ela desenvolve na sua transformação do mundo. Assim sendo, a comunicabilidade se configura com a ação da pessoa no mundo. 51 Ibid., p. 58.
  • 34. 33 2.5. AS DIMENSÕES DA AÇÃO A pessoa desabrocha mediante a ação. Designando a ação como uma maneira de exprimir-se no universo e de manifestar-se na existência, Emmanuel Mounier a caracteriza mediante quatro finalidades: “A pessoa deve transformar a realidade exterior, autoconstruir-se, aproximar as pessoas entre si e aumentar o universo dos valores.”52 A primeira destas dimensões que queremos tratar é a econômica. A ação econômica pode expressar-se no verbo fazer, que consiste na ação de transformar, dominar e organizar a realidade exterior.53 “Atinge toda a esfera em que entram em jogo forças naturais e determinismos. É o campo das ciências aplicadas, da indústria e da técnica e sua medida é a eficácia.”54 Severino ainda comenta que esta ação econômica não deve estar desvinculada das demais dimensões da ação, que a vincularão a uma finalidade suprema, superando a pura eficácia tecnicista, pois que “o homem não se satisfaz apenas pelo fabricar e organizar. A própria fabricação exige, para sua realização mais perfeita, uma superação desta febre de produção.”55 A segunda das finalidades da ação, sendo a transformação do próprio agente, expressa-se da melhor forma com o verbo agir. “É a zona da ação ética e sua medida está na autenticidade.”56 Esta é a ação que orientará a ação econômica para uma finalidade suprema, sendo complementar àquela. Não nos cabe defini-la como em oposição à técnica produtivista, mas orientadora para a realização pessoal do “homo-faber” que deve manter sua autenticidade, sem deixar ser tratado como peça de máquina, como algo administrável. 52 SEVERINO, 1983, p. 106. 53 Cf. Ibid., loc. Cit. 54 Ibid., loc. Cit. 55 Ibid., p. 107. 56 Ibid., loc. Cit.
  • 35. 34 A ação contemplativa, visa atingir a perfeição e a universalidade dos valores. A atividade da pessoa deve dirigir-se à exploração destes, enriquecendo, além do agente, a humanidade toda. “Tal dimensão contemplativa não se refere apenas a um cultivo da inteligência do homem, mas ao preparo do homem integral e nem se isola, como se fosse uma ação privilegiada da atividade coletiva, pois é „aspiração a um reino de valores invadindo e desenvolvendo toda atividade humana‟.57 Nesta ação a pessoa busca descobrir conhecimentos e ideais que sejam de apreço comum a toda humanidade, “[...] aperfeiçoando-os cada vez mais e distribuindo-os o mais vastamente possível entre os homens.”58 Respondendo às “profundas coordenadas da existência pessoal”59 , a ação compreendida nestas três dimensões acima citadas, deve ter por finalidade a aproximação das pessoas, [...] pois a pessoa sendo primitivamente abertura aos outros, a comunicação, a reciprocidade das consciências assim como a solidariedade dos destinos, exigem que no plano básico da ação, a dimensão comunitária tenha sua expressão ôntica. „Pois não há ação válida senão aquela em que cada consciência particular, ainda que em retiro, amadureça através da consciência total e do drama inteiro de sua época.‟60 Assim Mounier valoriza a vida comunitária, de abertura aos outros, de comunicação, de afrontamento, que tem por objetivo um ponto comum: a realização humana, tanto nas suas singularidades como na generalidade. 57 Ibid., p. 108. 58 Ibid., loc. Cit. 59 Ibid., loc. Cit. 60 Ibid., p. 109.
  • 36. 35 2.6. PESSOA E COMUNIDADE Como já se fez notar, a Pessoa, para Emmanuel Mounier, se opõe ao conceito de indivíduo. A individualidade tende a criar uma abstração do ser humano de forma a desvinculá-lo de toda a realidade na qual está encarnado. Como sinônimos para individualizar, citemos numerar, quantificar. Desconsideram-se assim, todas as forças culturais, biológicas, genéticas e sociais que contribuíram para a formação daquele ser humano. A Pessoa é encarnação, e sua encarnação promove a dialética do desabrochar pessoal, porque favorece o choque, o afrontamento com o diferente, a atividade e a passividade. Daí a reflexão sobre uma relação pessimista entre os seres humanos, onde se defende uma natureza egoísta do querer impor-se sobre os outros. Evitam-se olhares detentores de minha liberdade e o isolamento ou a tirania são as saídas para tal. No entanto, quando Mounier se refere à encarnação e à dialética dela resultante, necessariamente envolve o outro como suporte ao movimento de exteriorização. “A primeira preocupação do personalismo é descentrar o indivíduo para colocá-lo nas largas perspectivas abertas pela pessoa.”61 Ou seja, as possibilidades oriundas da descentralização do indivíduo em direção ao outro, multiplicam-se. Note-se quão indispensável o valor que Mounier atribui à comunidade para a efetivação de uma personalidade intocável, exclusiva, incomunicável, formada por si mesma, enfim, livre. Nenhuma singularidade pode ser repetida, justamente pelo fato de que o conjunto das experiências com o mundo e com os outros é único. 61 MOUNIER, 1964, p. 58.
  • 37. 36 Se para autores como Heidegger e Sartre o outro só se manifesta como risco à minha liberdade, para Mounier o sentido de uma relação comunitária é criar possibilidades. O primeiro acto da pessoa deve ser, pois, a criação com outros duma sociedade de pessoas, cujas estruturas, costumes, sentimentos e até instituições estejam marcados pela sua natureza de pessoas: sociedade de que apenas começamos a entrever e a esboçar os costumes.62 Ao falarmos então de revolução personalista, devemos acrescentar a dimensão comunitária que ela deve envolver. Sonhar uma comunidade com objetivos comuns, parte da contemplação pessoal dos ideais valores universais encontrados na própria natureza humana. Permanece a dialética da ação contemplativa das pessoas que norteia a apropriação de valores universais com a inserção na comunidade, onde acontece o afrontamento das vontades. A personalização, no entanto, não encontra espaço numa comunidade massificada, nem devemos entender por contemplação de valores universais uma tentativa de massificação. Tais valores não estarão a favor de uma seletividade, mas do gênero humano. Citando O admirável Mundo Novo, de Huxley, Mounier exemplifica uma sociedade massificada, robotizada, determinada por intencionalidades singulares de médicos e psicólogos. Embora todas as ações sejam, ali, condicionadas para uma finalidade única, tal finalidade, por não encontrar-se na natureza humana, não pôde ser contemplada por todos, mas planejada por poucos. Huxley constrói em sua obra “[...] a antítese dum universo pessoal, exactamente porque tudo está regulado, nada se cria, nada corre aí o risco 62 Ibid., p. 60-61.
  • 38. 37 duma liberdade responsável. Faz da humanidade uma imensa e perfeita casa de bonecas.”63 63 Ibid., p. 16-17.
  • 39. 3. A LIBERDADE NAS CONDIÇÕES TOTAIS DA PESSOA Expostos os dois capítulos anteriores, cabe-nos agora, investigar um plano de afrontamento, pensado e vivido por Emmanuel Mounier, à massificação dos povos e à uniformização das personalidades. O plano se desenvolve sob a consciência de uma liberdade intrínseca à Pessoa que evoca uma participação de sua mais intocável interioridade na direção do viver pessoal e comunitário. O plano da liberdade aqui se discute pela necessidade de buscarmos a natureza das ações do ser humano. Quando a ação é fruto de uma inspiração reflexiva a respeito da capacidade humana de transformar o que é dado, a pessoa encontra-se livre das coerções sobre sua atividade, apta para reagir a qualquer elemento que ameace os valores humanos. 3.1 A PESSOA COMO SUPERAÇÃO DA NATUREZA A encarnação da Pessoa é a condição pela qual a liberdade se manifesta, mas também se limita. Nesses termos O Personalismo, em seu quinto capítulo, desenvolve o título Liberdade com condições. Por vezes assistimos a justificações criminais fundadas na hereditariedade ou mesmo numa filosofia pessimista quanto à natureza humana. Em contrapartida, como seres racionais, sabemos da graça que nos é dada do conhecimento do bem e do mal. A ideia de bem e a ideia de mal nos são universais, bem como o desejo pelo
  • 40. 39 bem e a repulsa pelo mal. O fator da herança genética exemplifica a determinação natural, a sobreposição de uma força herdada que pode ser lapidada e tornar-se uma preciosa pedra, ou manifestada na sua mais bruta naturalidade, que por vezes fere a dignidade. Trabalhamos, muitas vezes, em planos diferentes ao falar da participação humana na co-criação do universo. Se considerarmos o plano do macro-cosmo, da grande máquina que é o universo, objeto de análise das forças por Newton percebidas, sentiremos a angústia da qual trataram muitos existencialistas que se viam jogados no mundo. Sob esta perspectiva, o ser humano, mesmo consciente de si, se pensa exclusivamente como matéria sujeitando-se, assim, às determinações das leis naturais tanto quanto a necessidade do movimento de translação da Lua em torno da Terra. A humanidade toda se equipara a uma minúscula parte da engrenagem da grande máquina. Colocando-se na dimensão macro-cósmica, o ser humano se percebe contingente, substituível, infinitamente inferior ao universo e às forças que o organizam. Porém quando estas forças alcançam o plano humano, ali e somente ali deixam a característica meramente funcional para adquirirem um sentido próprio, que faz nascer um universo particular tão imenso quanto o universo fora situado. “A liberdade não se ganha contra os determinismos naturais, conquista-se por cima deles, mas com eles.”64 Analisa Severino que: A transcendentalidade do homem sobre a natureza na qual está originariamente inserido vem de sua capacidade distintiva de só ele conhecê-la e transformá-la, de sua exclusiva capacidade de amor, de liberdade, capacidade de superar o rígido determinismo que regula a natureza.65 64 Ibid., p. 51. 65 SEVERINO, 1983, p. 54.
  • 41. 40 A Pessoa é situada nos discursos teológicos como co-criadora do universo. A esta capacidade de superar o regulamento da natureza é que se deve a distinção privilegiada do ser humano em relação às demais criaturas. Podem ser adotadas possibilidades inovadoras, que transcendam a monotonia do nascer, crescer, reproduzir, envelhecer e morrer, como também possibilidades catastróficas à própria sustentabilidade da vida humana. Essas opostas aplicabilidades da atividade, uma com objetivo de superar a natureza e outra objetivando um maior poder de destruição, se evidenciam durante a guerra. Desde a origem, o progresso técnico foi mais rápido no armamento de guerra do que em qualquer outro setor. [...] As duas guerras mundiais, se não provocaram, imprimiram à motorização das estradas, à aviação, às radiocomunicações, uma subida em flecha. Aliás, a última dá o tom para as navegações interplanetárias e abre a idade atômica.66 Aventuras antes impensáveis ao ser humano, como voar, ir à Lua, dominar a eletricidade, estão no nosso dia-a-dia. Possibilidades que emergiram diante de limitações frente a uma necessidade de se impor como nação (no caso da guerra) ou como pessoa frente às limitações impostas pela natureza. Eis os pontos (apropriação do evoluir humano ou expropriação do outro) entre os quais se situa a liberdade da pessoa condicionada pela sua encarnação. 3.2 A PESSOA COMO SUPERAÇÃO DAS ESTRUTURAS Pessoa é rompimento, é afrontamento. Não é um elemento simplesmente passivo a ordens de planos maiores, como estruturas sociais, econômicas, 66 MOUNIER, 1958, p. 61-62.
  • 42. 41 científicas, etc... Sendo ela componente das estruturas, deve respeitar as leis benéficas ao conjunto e lutar sempre pela participação ativa nas decisões dos caminhos a trilhar, visando um planejamento consciente do ser pessoa e das necessidades que esta condição abrange. Segue uma exposição das estruturas econômicas que se confrontavam no contexto de Mounier. Assim elencamos alguns pontos de sua proposta personalista ante as lacunas deixadas tanto pelo capitalismo como pelo socialismo. 3.2.1. Estrutura Comunista O marxismo, que serviu também de aporte teórico para as denúncias de Mounier acerca da sociedade burguesa67 , defende que a igualdade deve reinar entre a humanidade. É um grito de protesto que defende a participação dos trabalhadores na rentabilidade de seu trabalho. “O que Mounier viu no materialismo marxista, foi um desejo de encarnação, de presença, de necessidade de comunhão com o universo.”68 Esse anseio aí presente, de que todos participassem dos frutos do trabalho, é o que ele define como encarnação, situar-se, fazer frente, criar comunidade participativa. No entanto, a luta de classes que abominaria a divisão social entre os mais e menos favorecidos, se orientaria por um princípio individualista de satisfação dos desejos materiais, e não das necessidades reais da pessoa. O socialismo deve purificar-se dessa base materialista e voltar-se para a socialização dos frutos do trabalho, tendo como centro do sistema e da revolução a pessoa humana. 67 Cf. LACROIX, Jean. et al. Presença de Mounier. Tradução Maria Lúcia Moreira. São Paulo: Duas Cidades, 1969, p. 88. 68 Ibid., loc. Cit.
  • 43. 42 A tentativa de concretizar o pensamento de Marx na implantação do comunismo em alguns países, feriu, pois, a liberdade da Pessoa. O propósito da igualdade deixou o plano material e assumiu um caráter uniformizante, de forma que todos devessem pensar e agir de forma igualitária. Assemelhou-se mais ao Admirável Mundo Novo de Huxley, do que a uma sociedade de Pessoas. Aliás, ser é também afirmar-se. Qualquer organização, qualquer técnica, qualquer teoria que negue à pessoa a vocação fundamental da opção responsável ou diminua a sua concretização, mesmo quando acompanhada de mil e uma seduções, é veneno mais perigoso do que o desespero.69 Todo regime e partido políticos, bem como toda religião deve conceder aos seus afiliados liberdade de expressão. Assim se enriquece todo grupo na multiplicidade, valorizando cada elemento singular de forma que este, estando no grupo, não se perca no grupo. 3.2.2. Estrutura Capitalista O capitalismo, sistema conseqüente da revolução industrial que permitiu uma produção material em larga escala, assim como um sistema de produção das necessidades pessoais, tem por finalidade, como o próprio nome já diz, o capital, o lucro. A industrialização, colaborando com a noção de progresso, fez a humanidade descobrir a potencialidade transformadora da sua razão. As máquinas a vapor, a energia elétrica, os meios de transporte mais eficientes que os de tração animal, as indústrias com a racionalização do trabalho se demonstrando mais eficientes que o trabalho de um artesão, trouxeram ao mundo a sensação de que o homem estava 69 MOUNIER, 1964, p. 102.
  • 44. 43 próximo do auge de sua evolução. No entanto, a evolução foi unilateral. Como acima mencionamos, esta é apenas uma das dimensões da ação do ser humano, a qual Emmanuel Mounier chama de ação econômica. É a ação do fazer, da técnica, cuja medida é a eficácia. Os burgueses industriários tiveram grande participação no desenvolvimento da noção de transformação, de dominação e de organização da realidade exterior. Transformar, de maneira organizada, tudo que a natureza dispõe em benefícios para a humanidade: eis a primeira grande propulsão para o avanço da técnica. O problema se estabeleceu quando esse motor de transformação deixou de ter um fim benéfico para a humanidade em favor de um acúmulo de capital, que distinguiria uns poucos ricos dominadores da técnica e do poder, de muitos outros pobres fornecedores de mão de obra. O personalismo propõe uma revolução espiritual que não esteja desvinculada da política e da economia. “As estruturas do capitalismo devem ser destruídas em prol de uma organização socialista da produção e do consumo.”70 É uma das características centrais na economia personalista: o anticapitalismo, juntamente com o socialismo renovado, centrado nas necessidades originais da pessoa. O que entra em jogo ainda no processo de industrialização é o comportamento do ser humano diante do mundo técnico. Não foram poucas vezes que trabalhadores invadiram as fábricas e destruíram as máquinas. “Não se tratava então de uma indiferença ou de uma incapacidade de adaptação: surtiram em operários de escol e de ideias socialmente progressistas.”71 Não era, como hoje se diz, o fato de as máquinas tomarem o lugar de milhares de homens na indústria que gerava a revolta dos trabalhadores. A crise foi mais de ordem psicológica diante da mudança: 70 Ibid., p. 103. 71 MOUNIER, 1958, p.49.
  • 45. 44 Com afastar o patrão do camarada, substituíam uma estrutura paternalista, mas humana, da empresa, por uma disciplina impessoal e desumana: o regulamento da oficina, o contrato de trabalho unilateral, que o operário era obrigado a aceitar, e dava margem a numerosos abusos, notadamente a multas que comiam às vezes uma parte importante do salário.72 Os operários sentiam-se escravos do sistema. A máquina lhes era familiar, mas a forma como sua utilização era empregada, tirava a liberdade de quem a manejava. “A introdução da racionalização, com os seus ritmos excessivos, a mecanização do trabalho, a uniformidade; em tudo isto o operário se sentia mais escravo do que nunca, o „membro vivo de um mecanismo morto‟.”73 Para o personalismo, o sistema capitalista é “[...] objeto de um duplo julgamento crítico de ordem técnica e moral.” O capitalismo se disfarça com uma falsa liberdade. Todos têm praticamente os mesmo direitos e os mesmos deveres. Mas é na desigualdade, consequente do acúmulo, que se estabelece uma desordem mascarada. O princípio capitalista que “[...] deixa a liberdade evoluir fora de qualquer disciplina, abre a porta a todos os determinismos do mal „onde os mais fortes despojam e oprimem os mais fracos‟.”74 O primado da produção, sendo um dos pilares que sustentam o capitalismo (assim como o otimismo liberal, o lucro e o dinheiro citados por Georges Ngango)75 , torna- se o consagrador da sujeição do homem à economia. A economia se torna um sistema fechado, com suas próprias regras, e o homem deve a ele submeter seu modo de vida e seus princípios. Não há mais coisas desde então para ele: há apenas mercadorias; 72 Ibid., loc, Cit. 73 Ibid., loc. Cit. 74 LACROIX, 1969, p. 107. 75 Cf. Ibid., loc. Cit.
  • 46. 45 não mais necessidades, mas apenas um mercado; não mais valores amados, mas apenas preços.76 Como parte deste sistema o ser humano é impulsionado a viver como autômato, perde sua liberdade e sua originalidade. Seus gostos são definidos pela propaganda, sua vida orientada pelo dinheiro que buscará satisfazer aqueles gostos; seu trabalho terá por finalidade a aquisição dos bens que lhe informaram serem necessários para uma vida melhor. O ser humano é um joguete na economia que tem por primazia o lucro, a produção de necessidades e a produção de bens que as satisfaçam. 3.3. REVOLUÇÃO PERSONALISTA E COMUNITÁRIA Diante desta constatação, não basta uma revolução social como propõe o socialismo da luta de classes. A humanidade tem a interioridade manchada por uma ideologia individualista consumista. São anos do reinado capitalista onde se desenvolveram técnicas de coerção sobre a personalidade, uniformizando-a de forma a sufocá-la, tornando previsíveis os desejos pessoais, aniquilando a capacidade de encontrar no âmago da pessoa as verdadeiras necessidades. Se extinguíssemos a divisão das classes e o proletariado tivesse nas mãos o poder, ou mesmo se extinguíssemos o poder governamental, sendo cada um senhor de si, cairíamos nas mesmas perdições exploradoras que hoje encontramos. Quereríamos ser senhores de outros que consideraríamos mais fracos. Ciente dos perigos que a revolução socialista poderia ocasionar, Mounier propõe antes uma revolução personalista e comunitária, que põe a pessoa no centro das motivações econômicas. 76 Ibid., loc. Cit.
  • 47. 46 Uma economia personalista regula [...] o lucro pelo serviço prestado à produção, a produção, pelo consumo e o consumo por uma ética das necessidades humanas reintegradas na perspectiva total da pessoa. A pessoa é a peça principal da estrutura e deve fazer sentir sua primazia em toda a organização econômica.77 Vemos como se complementam as transformações sociais com a conversão íntima pessoal. A implantação de uma economia personalista pode confundir-se com uma sociedade socialista. Porém as bases para transformação são diferentes: para o personalismo as necessidades e a satisfação da pessoa dirigem a revolução; para o marxismo a base material, do desfrutar igualmente dos bens da produção. É necessária antes uma revolução pessoal, que conscientize a todos das reais necessidades da pessoa, por isso também comunitária. É indispensável uma ética das necessidades. Trata-se de uma ética individual que admite uma certa pobreza como norma econômica ideal da pessoa. „Por pobreza entendemos [...] a desconfiança do apego às coisas materiais, um gosto de simplicidade, um estado de disponibilidade e de liberdade que não exclui nem a magnificência, nem a generosidade, nem mesmo um importante movimento de riquezas, se for um movimento preservado da avareza‟.”78 A compreensão desta pobreza dará ritmo à produção, que será coordenada mediante as necessidades reais das pessoas dos consumidores. 3.3.1. Para uma psicologia personalista A criatividade do ser humano emerge quando o consideramos um todo espiritual e material. As discussões atuais sobre a dualidade cérebro-mente tentam 77 Ibid., p. 109. 78 Ibid., p. 110.
  • 48. 47 colocar em xeque a capacidade de transcendência, impondo ao ser humano funções exclusivamente de ordem biológicas: assim, sentimentos e crenças não passam de reações químicas que acontecem no cérebro. Pierre Tap escreve que um psicólogo personalista não deve descartar a característica espiritual de imprevisibilidade da pessoa, simplesmente enquadrando- a nos uniformes métodos exigidos pela cientificidade da psicologia.79 “A psicologia, como toda ciência, pretende ser determinista; o personalismo, por seu lado, considera que os atos da pessoa são livres, ou antes, que a pessoa em ato se liberta.”80 O personalismo se manifesta contra as correntes da psicologia que se posicionam acerca dos comportamentos exclusivamente mediante a análise observável dos mesmos. Os behavioristas defendem que o ser humano age conforme as obrigações que lhe são impostas pelo meio. O personalismo aposta na interação da pessoa com o meio: este oferece os subsídios para a atividade criativa da pessoa. Logo, não há determinismos que possibilitem a previsão de uma conduta de vida da pessoa. O que existe é a possibilidade de apoiar-se neles (que sim, existem) para construir-se enquanto pessoa. Uma ética das necessidades, como a proposta por Mounier, envolve toda uma reflexão sobre a condição humana. Guiar-se pelas necessidades reais da pessoa é colocar toda a humanidade sob um mesmo plano existencial que favoreça encontrar o outro como um outro-eu, que compartilha das mesmas necessidades, que são também as minhas. Assim forma-se a comunidade personalista da luta por uma finalidade comum. 79 Cf. ibid., p. 95. 80 Ibid., loc. Cit.
  • 49. CONSIDERAÇÕES FINAIS A Pessoa é movimento: é ação e é contemplação. enquanto existirem seres humanos, haverá também a possibilidade de transformação e significação do mundo. Mesmo mergulhados num complexo emaranhado de ideais, de sistematizações, de determinismos que tentam falar por si, no movimento eles sustentam a propulsão para, na superfície, encontrarmos ar e voltarmos a respirar. São eles a base para a personalização. O vácuo só nos permite contemplá-lo, enquanto que as estruturas materiais, econômicas, sociais nas quais estamos encarnados, nos permitem, além de contemplar, exercer a criatividade, agir sobre elas, transformá-las. A atividade transformadora, no entanto, não bastando por si, deve ser um meio para atingirmos a realização humana. Quando a atividade aliena o indivíduo, desencadeia, como vimos, num socialismo materialista ou num capitalismo individualista. A ação deve transformar o meio de forma a adaptá-lo às necessidades reais da Pessoa, o que não faz, exclusivamente, o material e, da mesma forma, o capital. Por esta razão este trabalho apresentou a revolução proposta por Mounier que tem por base a Pessoa e a comunidade. A revolução necessita de uma conscientização da liberdade e das necessidades reais da pessoa. Logo, entende-se a dupla dimensão desta transformação: a pessoal (onde deve-se admitir uma certa pobreza ideal da pessoa para querer somente o necessário) e a comunitária (onde encontram-se as liberdades, definindo os seus limites).
  • 50. 49 Encontramos nesta proposta uma tentativa de reaproximar o ser humano de sua essência. Assim como Mounier, não adotamos uma pretensão utópica de uma revolução personalista a nível de humanidade, mas a nível de Pessoa, a partir da base de todo o pensamento mounieriano.
  • 51. REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução Alfredo Bosi. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1999. ARGURYS, Chris. Personalidade e Organização. Rio de Janeiro: Editora Renes, 1969. BOCK, Ana M. Bahia. Psicologias: uma introdução ao estudo de psicologia. 1. ed. São Paulo: Editora saraiva, 1988. DESCARTES, René. Discurso sobre o método: Para bem dirigir a própria razão e procurar a verdade nas ciências. Tradução Márcio Pagliesi e Norberto de Paula Lima. São Paulo: Editora Hemus, 1995. LACROIX, Jean. et al. Presença de Mounier. Tradução Maria Lúcia Moreira. São Paulo: Duas Cidades, 1969. GUARESCHI, Pedrinho; RAMOS, Roberto. A máquina capitalista. Petrópolis: Vozes, 1988. MONDIN, Battista. Curso de Filosofia: os filósofos do ocidente. 5. ed. Tradução Benôni Lemos. São Paulo: Edições Paulinas, 1981. MOUNIER, Emmanuel. O Personalismo. Lisboa: Livraria Morais Editora, 1960. ____. Sombras de Medo Sobre o Século XX. Tradução Salústio de Figueiredo. Rio de Janeiro: Agir Editora, 1958. REALE, Giovanne; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: do romantismo até os nossos dias. 6. ed. São Paulo: Paulus, 2003. v. 3.
  • 52. 51 SEVERINO, Antonio Joaquim. Pessoa e Existência: iniciação ao personalismo de Emmanuel Mounier. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1983. SILVA, Luciano Pereira da. A astronomia de “Os Lusíadas”. Coimbra: Junta de investigação do Ultramar, 1972.