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AS CARROÇAS DE CINCO SOUS PARA A COMODIDADE DOS
BURGUESES: PARIS, SÃO PAULO E O DESAFIO HISTÓRICO DA
MOBILIDADE URBANA
Leandro Fraga Guimarães
Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade
Universidade de São Paulo
lfraga@uol.com.br
Jaciara Martins Fontes Cruz
UBS Escola de Negócios
jaciara.cruz@gmail.com
RESUMO
Paris e São Paulo são cidades com histórias de ocupação
marcadamente distintas. A partir de dados secundários, numa revisão
bibliográfica que buscou o confronto de visões de autores das áreas
de planejamento urbano e mobilidade, além de historiadores e
estudiosos da formação e desenvolvimento de sistemas de mobilidade
urbana, foi condensado o histórico em que as dificuldades da
mobilidade evoluíram em cada um desses grandes centros urbanos,
num estudo de caso abrangendo de seu aparecimento até o século
XX, período de profundas transformações nas duas cidades, embora
tenham ocorrido em sentidos substantivamente diversos. Nessa
perspectiva, foram reunidos argumentos para também caracterizar,
de forma geral, os desafios que a mobilidade urbana traz,
literalmente há milhares de anos, para a convivência nos espaços
restritos das grandes cidades. Muito ao contrário de ser um problema
recente, é desafio que permanece e se modifica, embora alguns de
seus elementos principais sejam incrivelmente perseverantes ao
longo da história. Para concluir, são comentadas algumas das
alternativas contemporâneas em uso, nas duas cidades, para melhor
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encaminhar o problema da mobilidade urbana, e também algumas
alternativas mais bem sucedidas do que se conhece como soluções
para este problema tão presente em todas as grandes cidades do
mundo.
Palavras-chave: Mobilidade urbana. Metrópoles. Crescimento urbano.
Transporte público. Transporte coletivo. Transporte individual. Paris. São
Paulo.
ABSTRACT
Paris and São Paulo cities are with markedly different histories of
occupation. Starting from secondary data, in a literature review that
sought the confrontation on visions of authors from the fields of
urban planning and mobility to historians and scholars of the
formation and development of urban mobility systems, this article has
condensed the history of how the difficulties of mobility evolved in
each of these major urban centers, in a case study comprehending
specially the twentieth century, a period of profound transformations
in the two cities, although having occurred in so substantially diverse
directions. In this perspective, were also gathered arguments to
characterize, in general, the challenges that urban mobility brings
literally from thousands of years, for the living in the restricted
spaces of the large cities. Quite unlike a recent problem, this is a
challenge that remains and changes, although some of its main
elements are incredibly persevering throughout history. To conclude,
some of the contemporary alternatives used in the two cities are
discussed, in order to better direct the issue of urban mobility, and
also some of the most successful alternatives that are recognized as
solutions to these problems so present in all major cities of the world.
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Key-words: Urban mobility. Metropolis. Urban growth. Public transport.
Collective transport. Private transport. Paris. São Paulo.
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1 INTRODUÇÃO
É comum que muitos dos habitantes de grandes cidades hoje se
sintam oprimidos pela agitação do dia a dia e sonhem com a mudança para
o interior, como uma forma de libertação. Na Idade Média, o ditado alemão
Stadtluft macht frei (algo como “o ar da cidade torna você livre”)
expressava o que a mudança contrária representava para o indivíduo que,
naquele tempo, via-se livre das obrigações feudais para um senhor de terra,
e sonhava com uma vida mais rica e com um futuro menos limitado. E não
é que as cidades do período fossem exatamente pequenas e
aconchegantes: Roma, na Itália; Bagdá, no Iraque; e Beijing (Pequim), na
China, são alguns exemplos daquelas que possuíram mais de um milhão de
habitantes em algum momento antes do Renascimento, dizem historiadores
especialistas – Morris (2010), Modelski (2000, 2003), Chandler (1987),
Chandler & Fox (1974).
Esses grandes aglomerados urbanos traziam e trazem enormes
desafios para a convivência cotidiana, sob os mais diversos aspectos. E a
mobilidade é um dos mais antigos e persistentes deles: para cumprir
percursos mais longos – ou cumprir quaisquer percursos com mais
comodidade e rapidez –, os cidadãos sempre recorreram a meios auxiliares
que, multiplicados, transformavam-se num problema novo. Liteiras,
cavalos, carroças, barcos, bicicletas, carros, motocicletas, bondes, trens,
teleféricos, ônibus, metrôs, helicópteros, e variações desses todos, e outros
mais; individuais ou coletivos, muitos são os meios que foram e são
utilizados pelas pessoas em sua busca pela melhor condição na mobilidade
cotidiana. Todos esses meios de transporte continuam em uso, com maior
ou menor intensidade, com novo formato ou no modelo original. Somados,
superlotam os espaços urbanos, poluem de muitas formas, provocam
contratempos, tomam áreas, promovem tumultos e ainda se envolvem em
acidentes.
Assim, nascidas para acomodar pessoas, as cidades se veem desde
sempre em grande dificuldade para receber essas tantas formas de
transporte que se aglomeram em seu interior. Haverá solução?
As Carroças de Cinco Sous para a Comodidade dos Burgueses
Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1, pp.130-163, Jan./Jun. 2013
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Neste trabalho serão descritos alguns aspectos do crescimento urbano de
Paris e São Paulo, contrastados por suas enormes distinções, embora, nos
dois casos, a problemática da mobilidade urbana estivesse sempre muito
presente – mas recebendo soluções marcadamente diferentes em cada uma
delas, na forma e no tempo, ao longo dos anos. Assim, serão examinadas
algumas das alternativas contemporâneas em uso nas duas cidades para
melhor encaminhar o problema da mobilidade urbana. Discutir-se-ão
também algumas alternativas do que se antevê, hoje, como possíveis
contribuições para este problema comum a todas as grandes cidades do
mundo.
É correto concluir que o esforço aplicado neste artigo não traz
soluções definitivas, nem seus autores pretendem isso. A expectativa é a de
trazer uma perspectiva histórica, lembrar que nem tudo o que se vê e vive
hoje é exatamente novo ou inédito, e contribuir para a discussão de um
assunto tão necessário quanto urgente; urgência que vem à lembrança,
todo dia, na aventura recorrente de enfrentar o deslocamento rotineiro
numa grande metrópole.
2 REFERENCIAL TEÓRICO
2.1 MOBILIDADE
As cidades de hoje são espaços com velocidades múltiplas (Ascher,
1995). Cada indivíduo se move com característica própria, dependendo das
alternativas que escolhe diariamente. Esta superposição constitui um
desafio para as nossas formas habituais de abordar o espaço (Lévy, 2000),
densificando o papel da mobilidade no cenário urbano. Algumas
transformações do mundo contemporâneo reforçam essa necessidade
(Lévy, 2000): os espaços aos quais as pessoas se sentem pertencer não são
mais somente territórios, mas também redes; o número de lugares
pertinentes para um dado indivíduo aumentou; a distinção entre mobilidade
cotidiana (rotina) e mobilidade rara (profissional ou lazer) torna-se cada vez
mais difícil; ao lado de destinos mais impositivos, uma grande quantidade
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de outros rumos, novos ou velhos, mais ou menos relevantes, se
apresentam.
A mobilidade, ainda segundo Lévy (2000), é “a relação social ligada à
mudança de lugar”. O pesquisador do Instituto de Estudos Políticos de Paris
utiliza essa definição de forma a expandir a mobilidade para além do mero
conceito de deslocamento físico, e também para eliminar dimensões
metafóricas do termo como “mobilidade social”, ou associando-o a
telecomunicações. Para esse autor, a mobilidade forma um sistema de
movimentos potenciais, que podemos observar sob a ótica de três
virtualidades: a mobilidade como possibilidade, como competência, ou como
capital.
A mobilidade como possibilidade pode ser analisada como
acessibilidade, isto é, a oferta de mobilidade por meio da oferta de
transporte. Observada como competência, busca-se a mobilidade efetiva, a
relação entre a que é oferecida e a que é realmente realizada. A
competência de mobilidade relaciona o deslocamento à necessidade de
posse de recursos financeiros para tal, e à constituição de uma rede de
lugares frequentados (casa, emprego e tantos outros), eles próprios
situados numa boa posição no espaço das acessibilidades. A fluidez nesses
espaços é essencial, para que o fomento de regiões autossuficientes não
seja uma forma de isolamento ou exclusão de uma população de baixa
renda. Finalmente, “o conjunto constituído pela possibilidade, pela
competência e pelas arbitragens que a segunda permite sobre a primeira
pode ser lido como um capital social, um bem que permite ao indivíduo
desdobrar melhor sua estratégia no interior da sociedade”. (Lévy, 2000,
pág.76)
Costa (2003) ressalta a relação entre a mobilidade, o
desenvolvimento econômico e a sustentabilidade socioambiental do
contexto urbano. Para esta autora, alguns aspectos são fundamentais em
um sistema de mobilidade sustentável: o equilíbrio entre diversos meios de
transporte motorizados e não motorizados; o uso eficiente dos recursos
energéticos pelo meio de transporte; o uso de tecnologia em toda a cadeia;
o planejamento sobre a demanda de transporte, como atuar sobre as
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distâncias físicas com adensamento de regiões, apresentar privilégios para
maior ocupação de automóveis e incentivar a substituição do deslocamento
por outras formas de comunicação; o planejamento sobre a oferta de
transporte, utilizando-a como forma de gerir o equilíbrio entre transporte
individual ou público, por exemplo, na avaliação de obras de rodovias; a
integração do sistema de transporte com o plano de ocupação e uso do solo
(configuração urbana).
3 ABORDAGEM METODOLÓGICA
Pela natureza deste estudo, foi necessário adotar um conjunto de
abordagens capaz de não apenas fornecer os elementos necessários para a
discussão tanto a respeito do crescimento urbano, quanto de seu impacto
crescente, como também analisar aquelas práticas ligadas à mobilidade
urbana, ainda que estas não estejam, algumas vezes, estabelecidas ou
descritas de maneira formal.
Assim, foi preciso pesquisar inicialmente na literatura disponível
sobre a evolução da mobilidade aqueles elementos propostos por alguns
dos autores mais referenciados sobre o tema, o que será descrito a seguir.
Na sequência do trabalho, foi construído um conjunto de elementos que, de
acordo com os autores identificados, seriam necessários para a adequação
do desenvolvimento da mobilidade nas duas cidades selecionadas.
Para confrontar os itens desse conjunto de requisitos com as
orientações práticas, a metodologia escolhida foi a do estudo de caso.
Segundo Yin (1999), o estudo de caso é preferido quando o tipo de questão
de pesquisa é da forma “como” e “por quê?”; também quando o controle
que o investigador tem sobre os eventos é muito reduzido; ou quando o
foco temporal está em fenômenos contemporâneos dentro do contexto de
vida real. Todas essas premissas estão presentes neste objeto de estudo.
Além dos instrumentos tradicionais para evidenciar a realidade que se
deseja estudar, a metodologia prevê a observação direta, a observação
participante e também o uso de artefatos físicos, mas esses instrumentos
não foram objeto deste trabalho.
Os três princípios recomendados por Yin (1999) para coleta de dados são:
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a) Usar múltiplas fontes de evidência
O uso de múltiplas fontes de evidência permite o desenvolvimento da
investigação em várias frentes, ou seja, investigar vários aspectos em
relação ao mesmo fenômeno. As conclusões e descobertas ficam mais
convincentes e apuradas, já que advêm de um conjunto de corroborações.
Além disso, os potenciais problemas de validade de constructo são
atendidos, pois os achados, nessas condições, são validados por várias
fontes de evidência. Essa é a justificativa para que seja feita a pesquisa
envolvendo não uma única empresa, o que poderia facilitar o trabalho de
coleta, mas tornaria o estudo menos consistente.
b) Construir, ao longo do estudo, uma base de dados
Yin (1999) ressalta que, embora num estudo de caso a separação
entre a base de dados e o relato não seja comumente encontrada, é
recomendado que essa separação aconteça, para garantir a confiabilidade
do estudo, já que os dados encontrados ao longo da pesquisa são
armazenados, possibilitando o acesso de outros investigadores no presente
e no futuro. Os registros podem se dar por meio de notas, documentos,
tabulações e narrativas (interpretações e descrições dos eventos
observados e registrados). Esse cuidado será tomado ao longo de todo o
trabalho.
c) Formar uma cadeia de evidências
Como lembra Yin (1999), construir uma cadeia de evidências consiste
em configurar o estudo de caso de tal modo que se consiga levar o leitor a
perceber a apresentação das evidências que legitimam este estudo, desde
as questões de pesquisa até as conclusões finais. Assim como em um
processo judicial, o relato do estudo de caso também deve assegurar que
cada evidência apresentada foi coletada na “cena do crime”. Também este
ponto será objeto de observação ao longo da execução desta pesquisa.
Além disso, Yin (1999) enfatiza que se deve deixar claro que outras
evidências não foram ignoradas e que aquelas apresentadas não estão
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maculadas por vieses; ou explicitar a eventual ocorrência desses vieses, o
que se procurou observar com rigor ao longo do trabalho.
Assim foram pesquisados dados de fontes secundárias que comporão
este estudo, na busca pelas mais confiáveis em cada caso.
4 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS PESQUISADOS
4.1 UM POUCO DA HISTÓRIA DE PARIS, ATÉ O SÉCULO XX
Lutécia era o nome do vilarejo que formaram os primeiros habitantes
das margens do rio Sena há cerca de 6.000 anos. Eles ocupavam, no
entanto, apenas uma fração do território atual da cidade de Paris: a
pequena vila em que viviam se limitava à Île de la Cité e à margem
esquerda do rio, próximo ao Jardim de Luxemburgo, como informa o site
oficial da França (France.fr, 2013). Houve, por óbvio, mudanças muito
relevantes ao longo desses tantos séculos.
Segundo o Instituto Nacional de Estatística e Estudos Econômicos
(INSEE, sigla em francês), a população de Paris cresceu de forma constante
ao longo dos séculos, a partir da Renascença, como mostra o gráfico 1.
Gráfico 1: Evolução da população de Paris (em mil habitantes)
Fonte: Elaboração dos autores, a partir de dados do INSEE (2013)
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A cidade passou por pelo menos duas grandes intervenções urbanas
ao longo de sua história, como informa Hussey (2011): a primeira, ao final
dos anos 1590, quando Henrique IV e seus conselheiros se ocuparam de
organizar sua reconstrução, arrasada que fora por décadas de guerras civil
e religiosa; a segunda, em meados do século XIX, quando Napoleão III
nomeia prefeito de Paris Georges-Eugène Haussmann, no ano de 1853, e
este dá início a quase 20 anos de obras profundas, na direção dos planos do
imperador sobre urbanismo, habitação e circulação de pessoas e
mercadorias.
Mas muito antes, ainda no final do século XVI, Henrique IV lidara com
problemas muito graves em Paris. Naquela ocasião, a mobilidade era
dramaticamente prejudicada pelas condições cotidianas de vida:
Mesmo as mais prósperas ruas na parte central da cidade não eram mais
do que trilhas enlameadas e apenas os parisienses mais ricos conseguiam
atravessar a cidade, a cavalo ou em uma das poucas carruagens em
funcionamento, sem serem cobertos por esterco e excrementos. (Hussey,
2011, pág. 167)
Como melhorar a mobilidade? Ainda de acordo com Hussey (2011),
Nicolas Sauvage, um carpinteiro empreendedor havia criado, por volta de
1654, a carrosse, uma carruagem com vários assentos, que podia ser
alugada por várias pessoas ao mesmo tempo. Por volta de 1660, Paris
contava com mais de 20 destas, que podiam ser vistas na frente da Igreja
de Saint-Fiacre. O serviço, no entanto, era ainda desordenado, e as viagens
eram decididas a partir das necessidades combinadas de várias pessoas,
sem muitos critérios de valor e itinerário estabelecidos previamente.
Físico, matemático, filósofo e teólogo, Blaise Pascal é mundialmente
respeitado por sua obra extensa e relevante, além de lembrado por frases
marcantes, como a conhecida "nós conhecemos a verdade não só pela
razão, mas também pelo coração", que faz parte de seu último livro,
Pensées (Pascal, 2006). Quem lhe presta os respeitos hoje na Igreja de
Saint-Étienne-du-Mont, em Paris, onde está sepultado, pode não saber que,
entre suas muitas contribuições para a ciência e a filosofia, está também o
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lado técnico da criação do primeiro serviço de transporte público de que se
tem notícia.
Não que ele considerasse a mobilidade urbana um valor para si;
Pascal defendia firmemente, mesmo, era a opção de permanecer em casa:
“Descobri que toda a infelicidade humana resulta de um único fato; o fato
de que os homens não conseguem ficar quietos no próprio quarto”.
(Vanderbilt, 2009, pág. 6).
Ainda assim, possivelmente constatando que o restante de seus
concidadãos tinha maiores inquietudes que as próprias quanto ao mundo
exterior, juntou-se a empreendedores com título de nobreza, como o
marquês de Sourches, o marquês de Crenan e o duque de Rouanes, que era
também governador de Poitou, antiga província do oeste da França. Nessa
seleta companhia, conseguiu uma licença do rei Luís XIV para explorar rotas
de transporte de pessoas com carruagens de forma organizada. O rei, a
bem da verdade, concedeu-lhes mais que isso: outorgou-lhes um monopólio
real. Ou seja, se aparecessem competidores, os cavalos e os veículos do
oponente seriam confiscados. (Klaper, 1978)
A cidade contava com perto de 450.000 habitantes naquele período
(INSEE, 2013). O sistema, tratado formalmente como as Carrosses Publics
pour la Commodité des Bourgeois, ou as Carroças Públicas para a
Comodidade dos Burgueses, numa tradução literal, começou precisamente
em 18 de março de 1662, com sete veículos puxados por cavalos correndo
“da Porta Saint-Antoine até Luxemburgo” (Monmerqué, 1828). Cada
carruagem podia levar oito passageiros. Algumas fontes dizem que havia
três rotas, outras dizem que havia seis, e que uma delas era uma rota
circular.
Mas o fato é que as carosses à cinq sous, apelido que ganharam em
função da tarifa de base, não foram concebidas para a população como um
todo, e sim para “a comodidade dos burgueses”, como fica claro no
documento de outorga (Monmerqué, 1828). Muito por isso, foram até
populares no início, mas a novidade não durou muitos anos, porque não só
houve uma adesão inesperadamente elevada de “não burgueses” ao serviço
(embora, depois de algum tempo, o preço tivesse sido majorado de 5 para
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6 sous, de forma a inibir esta colateralidade), mas também porque Pascal
morreu no ano do início das operações, o que dificultou seu
desenvolvimento posterior.
Mas Pascal definiu, logo de início, os primeiros conceitos que iriam
nortear o serviço de transporte público coletivo até hoje. Em seu projeto, o
serviço adotou os seguintes critérios (Klaper, 1978):
 as carroças seguiriam o mesmo trajeto de um ponto a outro;
 as saídas obedeceriam a horários regulares, mesmo sem
passageiros;
 cada ocupante iria pagar apenas por seu lugar, independentemente
de quantos lugares ocupados nos carros houvesse;
 a rota ao redor de Paris seria dividida em cinco setores; a tarifa de
cinco sous (segundo Hussey (2011), o sous era uma unidade
monetária, 1/20 de uma livre, utilizada de 1667 até 1795, o nome é
uma versão francesa do termo latino libra) permitiria cruzar apenas
para mais um setor. Para além disso, deveria ser paga uma nova
tarifa;
 não seria aceito ouro como pagamento, a fim de evitar problemas na
manipulação e atrasos para fazer o troco.
O empreendimento ainda perdurou por 15 anos após a morte de Pascal.
Naquele mesmo ano, porém, restrições do Parlamento para que fosse usado
apenas pelas pessoas para as quais tinha sido autorizado (“para o conforto
dos burgueses”...) e o aumento da tarifa para seis sous foram
gradualmente tirando a popularidade do negócio, até ele ser extinto em
1677.
Paris só voltaria a ter um serviço de transporte público no início do
século XIX, como conta Hussey (2011). Em 1826, com a criação do ônibus
por Stanislas Baudry, na também francesa Nantes, é que o conceito de
transporte público seria retomado, ainda seguindo os mesmos critérios
definidos por Pascal. (Klaper, 1978)
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Em 1828, próprio Baudry fundou, em Paris, a Entreprise Générale des
Omnibus, para explorar o serviço de transporte coletivo na capital francesa.
Logo em seguida, seu filho iniciaria empreendimentos similares em Lyon e
Bordeaux. Em Paris eram “100 carruagens puxadas a cavalos, com 18 a 25
assentos. Na metade do reinado de Luís Felipe, essas carruagens estavam
transportando mais de dois milhões e meio de viajantes pela cidade inteira”.
(Hussey, 2011, pág. 284)
Abraham Brower havia estabelecido em 1827 a primeira linha de
transporte público em Nova York. Em 1829 a novidade chegaria a Londres
pelas mãos de George Shillibeer e, a partir daí, alcançaria rapidamente as
principais cidades da América, Europa e demais partes do mundo.
Em 1863, a inauguração da primeira linha de metrô, em Londres, viria
estabelecer novos paradigmas de qualidade no transporte público, como
também ressalta Hussey (2011).
O metrô de Londres era uma adaptação urbana da já conhecida
ferrovia. Porém, segregando-se o sistema em vias exclusivas, subterrâneas,
o metrô alcançava inédita eficiência em velocidade e volume de passageiros
transportados, liberando a superfície para o transporte individual ou para os
pedestres.
Nesse período, Paris ainda passava pela reforma radical de
Haussmann que moldou a cidade hoje admirada, como descreve o resumo
de Glaeser (2011):
O que surge à mente quando você pensa em Paris? Talvez um café com
leite no velho lugar favorito de Sartre, Les Deux Magots, após uma
caminhada pelo Boulevard Saint-Germain. Esta via, como o Boul’Mich
(Boulevard Saint-Michel), foi criada por Haussmann, entalhada em uma
confusão de ruas mais antigas. Se você prefere a caminhada que descrevi
ao longo dos Champs-Élysées, apreciando a vista do Arco do Triunfo,
estará novamente em território de Haussmann. A rua e o arco são
anteriores ao barão, mas ele planejou as praças que fornecem esta visão
tão ampla (...). Entre 1853 e 1870, o trabalho de Haussmann removeu
mais da metade dos edifícios de Paris. Glaeser (2011, pág. 133)
Feitas estas muitas mudanças, a cidade estava mais pronta para o
que seria chamado de Le Grand Siècle, de Luís XIV. Com o crescimento e a
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ascendência cultural e política da França, e de Paris em particular, muitas
novidades surgiriam.
Assim, após Londres, Paris inauguraria seu Métropolitain em 1900.
Porque tanto tempo depois? Além de as grandes transformações de
Haussmann exigirem atenção e recursos, houve longas discussões entre as
autoridades parisienses sobre o financiamento das obras do metrô, e
também porque o modelo de transporte ferroviário como um todo havia
sido adotado tardiamente na França, “em parte, em razão da instável vida
política em Paris, mas também por ser vista com desconfiança pelos
franceses, por ser uma invenção anglo-saxônica”. (Hussey, 2011, pág. 375)
Vencida essa inércia, no entanto, o metrô de Paris cresceu
rapidamente e foi recebido em uma cidade inteiramente renovada, em um
período histórico particularmente intenso.
4.2 UM POUCO DA HISTÓRIA DE SÃO PAULO, ATÉ O SÉCULO XX
O deslocamento diário em São Paulo é uma missão desafiadora a
cumprir. No cotidiano dos habitantes da cidade, a mobilidade é mais do que
possibilidade, competência ou capital. É também a busca improvável da
jornada tranquila, a diferença entre o bom humor (ansiado) ou o mau
humor (quase certo). Scaringella (2001) contextualiza o que chama de crise
de mobilidade urbana paulistana. Na configuração do uso e ocupação do
solo, convive-se com duas São Paulos distintas: uma “oficial”, e uma
completamente fora da lei, em que áreas são ocupadas por favelas
irregulares em velocidade e extensão assustadoras.
O sistema viário passou de picos de trânsito de 40 km em 1992 para
120 km em 1997, e em 2012 chegou a registrar recorde de 295 km de
congestionamento em dia chuvoso (segundo o site da CET, a Companhia de
Engenharia de Tráfego, órgão da prefeitura que tem o difícil papel de gerir a
malha viária da cidade). A “viscosidade” do sistema extrapola as regiões
centrais e estende-se até a periferia, e as soluções baseadas em semáforo,
multas, viadutos e restrições horárias estão longe de ser suficientes, bem
como as ciclovias restritas e precárias e o transporte público
sobrecarregado, que é um dos campeões de queixas do morador da cidade.
As Carroças de Cinco Sous para a Comodidade dos Burgueses
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Mas como tudo isso começou? Muito diferente da história de Paris, a
de São Paulo foi relativamente sem fatos muito impactantes até o século
XIX. Conta o site da prefeitura (www.prefeitura.sp.gov.br) que a povoação
de São Paulo de Piratininga surgiu em 25 de janeiro de 1554 com a
construção de um colégio jesuíta por doze padres, no alto de uma colina
entre os rios Anhangabaú e Tamanduateí. Esse colégio era destinado à
catequese dos índios que viviam na região do Planalto de Piratininga,
separados do litoral pela Serra do Mar. O nome São Paulo foi escolhido
porque o dia da fundação do colégio foi 25 de janeiro, mesmo dia em que a
Igreja Católica celebra a conversão do apóstolo Paulo de Tarso.
Ainda segundo o site oficial da prefeitura, o povoamento da região do
Pátio do Colégio teve início em 1560, quando o governador-geral do Brasil
Mem de Sá visitou a Capitania de São Vicente e ordenou a transferência da
população da Vila de Santo André da Borda do Campo (criada por Tomé de
Sousa em 1553) para os arredores do colégio, denominado Colégio de São
Paulo de Piratininga. O novo local era mais alto e adequado para se
protegerem dos ataques dos índios.
Se, por um lado, a capitania de São Paulo foi grande expoente na
partida de bandeiras, por outro, não estava entre as regiões de maior
importância econômica do país. Os territórios em que se encontraram as
minas com maiores quantidades de ouro e prata foram separados pela
coroa da capitania, para que aquela exercesse maior controle direto sobre a
região das Minas Gerais. A corrida para a região das minas enfraqueceu
ainda mais a capitania, que entre 1748 e 1765 esteve inclusive anexada ao
Rio de Janeiro. São Paulo seguia, assim, uma cidade pequena, quase um
vilarejo, cerca de 300 anos depois de fundada. (Marques, 1980)
É no início do século XIX, com o cultivo do café, que o estado de São
Paulo passa a desenvolver-se economicamente de forma expressiva. Nessa
mesma época, com o retorno da família real e da corte a Portugal, e a
permanência do príncipe D. Pedro Alcântara e Bragança no Brasil, a então
província de São Paulo volta ao cenário político pela nomeação de José
Bonifácio de Andrada e Silva, natural de Santos, como Ministro do Reino e
de Negócios Estrangeiros, além de principal conselheiro do príncipe (Fausto,
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1996). Em 1822, ano da Proclamação da República por D. Pedro I às
margens do rio paulista Ipiranga, a cidade contava 24.311 habitantes
(“classificados” em 12.032 brancos, 4.905 negros e 7.374 pardos), segundo
os Maços de População de São Paulo (Arquivo Público do Estado de São
Paulo, 2013), série de estudos censitários da província, ordenado pela
rainha D. Maria I a partir de 1797.
Com a abolição do sistema escravagista em 1850, o governo passa a
incentivar a imigração de europeus para compor a mão de obra das grandes
fazendas cafeeiras. Apenas considerando-se a imigração italiana, ela
começa em larga escala por volta de 1880; nos 10 anos seguintes, chegam
à província de São Paulo mais de 144 mil italianos, número que será de
impressionantes 430 mil na década de 1890 a 1900. Até a década de 1930,
o total será de quase um milhão de italianos (Lucena & Gusmão, 2006),
muitos dos quais fizeram da cidade de São Paulo sua nova moradia.
A segunda metade do século XIX foi, assim, um marco de
desenvolvimento do estado de São Paulo e de sua capital, com a construção
da ferrovia Santos-Jundiaí para escoamento da produção do café em 1867,
a inauguração da já grandiosa av. Paulista em 1891, do Viaduto do Chá em
1892, da linha de bondes Bom Retiro em 1900 e da Estação da Luz de trem,
já em 1901 (Monteiro, 2010), além de outras transformações marcantes,
com seus relevantes reflexos para a evolução da população urbana, como
mostra o gráfico 2, a seguir.
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Gráfico 2: Evolução da população de São Paulo (em mil habitantes)
Fonte: Elaboração dos autores, a partir de dados da Empresa de Tecnologia
da Informação e Comunicação do Município de São Paulo (Prodam)
São Paulo teve um final de século XIX agitado, como se vê. Os muitos
imigrantes mudaram bastante o panorama da cidade, que ainda mantinha
naquele momento, contudo, características muito distantes da metrópole
que surgiria nas décadas seguintes. Afinal, a cidade era, no raiar do século
XX, mais de três vezes menor do que o Rio de Janeiro; e quase 16 vezes
menor do que nossa outra personagem, Paris.
4.3 SÃO PAULO E PARIS NO SÉCULO XX
O início do século XX em São Paulo foi marcado pelo desenvolvimento
do centro da cidade e pelo importante fluxo de imigrantes, não apenas os já
citados italianos, mas também árabes e japoneses, além de portugueses e
espanhóis, que trouxeram crescimento incomum e prosperidade à cidade.
Segundo Monteiro (2010), até o século XIX, a região urbana da cidade
concentrava-se ainda entre o triângulo formado pelos principais conventos
da província (atuais ruas Direita, XV de Novembro e São Bento). Na virada
para o século XX, a expansão dos limites urbanos e a ocupação do espaço
passam a tomar forma mais clara, com a concentração das indústrias nos
bairros do Brás e Lapa, a consolidação das comunidades italianas no bairro
do Bexiga, das comunidades japonesas na região da Liberdade, e os
palacetes dos grandes cafeicultores na Paulista. Uma cidade em intensa
construção.
Já Paris resplandecia na virada do século XX, ao mesmo tempo
secular, renovada e dinâmica; nas palavras de Stéphane Mallarmé, poeta e
testemunha ocular dessa transformação, “uma paisagem que assombra tão
intensamente quanto o ópio...”. (Hussey, 2011)
São muito raras as cidades que crescem de maneira uniforme. Mas,
como afirma Glaeser (2011, pág. 134), Paris “é um todo ordenado (...). É
óbvio que Paris não foi construída através do aumento gradual da
densidade, como recomendam os urbanistas tradicionais”. São Paulo
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também está longe disso. Mas Paris, ele continua, “é uniforme porque foi o
resultado planejado de um único mestre de obras, cujo soberano imperial
lhe deu carta branca” (Glaeser, 2011, pág. 134). São Paulo tem a
desuniformidade típica das cidades que se fizeram em poucas décadas,
embora, é verdade, ela exista há quase 500 anos.
Aí está uma marcante diferença entre Paris e São Paulo para este
estudo: enquanto a primeira cresceu quase que apenas em sua periferia, ao
longo do século XX, mantendo muito pouco alterado seu admirável desenho
central projetado por Haussmann, a segunda iniciou um ciclo de
crescimento visceral e de velocidade dificilmente comparáveis no século XX
aos de outras grandes cidades, como se pode ver no gráfico 3.
Gráfico 3: Evolução do tamanho da população – Índice (1900=100)
Fonte: Elaboração dos autores, a partir de dados do IBGE, INSEE, INEGI,
Indiaonline, Londononline e US Census Bureau
O gráfico 4, a seguir, mostra a evolução das populações de São Paulo
e Paris, apenas as cidades centrais, no século XX. Enquanto Paris perdeu
cerca de 20% de seus habitantes, São Paulo viu sua população multiplicar-
se mais de 40 vezes. São experiências de ocupação urbana radicalmente
diversas.
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Gráfico 4: Evolução comparada das populações de Paris e São Paulo
no século XX (apenas as cidades – em mil habitantes)
Fonte: Elaboração dos autores a partir de dados do IBGE e INSEE
Mas a população de Paris não cresceu de fato nesse período? Não na
cidade em si; cresceram as cidades periféricas, e de forma relevante. A
região metropolitana desenvolveu-se num arranjo singular, ao manter seu
desenho histórico central quase intocado e acomodar nas cidades vizinhas
os milhões de pessoas que vieram participar do desenvolvimento econômico
da capital da França durante o século XX.
A análise de Glaeser (2011) aponta aspectos interessantes desse processo:
A preservação da cidade pode exigir, de fato a destruição de parte dela. O
desejo moderno de preservar a Paris de Haussmann ajudou a transformar
a acessível Paris do passado em uma cidade-boutique que hoje só pode ser
apreciada pelos mais ricos. A história de Paris é repleta de grandes artistas
que viveram nela durante seus anos de privação e sem recursos no período
de formação, mas quais seriam os artistas pobres que poderiam viver no
centro de Paris nos dias de hoje? (Glaeser, 2011, pág. 245)
Ao contrário de Paris, São Paulo cresceu vertiginosamente nesse
período, como se viu. Mas também as cidades do entorno, particularmente
após o período de industrialização mais intenso, em meados do século XX
(embora a figura da “região metropolitana” tenha sido criada formalmente
apenas na década de 1970). Considerando essa visão ampliada das cidades,
as comparações entre Paris e São Paulo mudam, embora pouco, conforme
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se vê no gráfico 5: a grande Paris mais que triplica de tamanho nesse
período, mas a grande São Paulo cresce muitas dezenas de vezes.
Gráfico 5: Evolução comparada das populações de Paris e São Paulo
no século XX (regiões metropolitanas – em mil habitantes)
Fonte: Elaboração dos autores a partir de dados do IBGE e INSEE (os dados
de São Paulo para 1900 e 1920 referem-se apenas à cidade em si)
As dificuldades para acolher esse crescimento são evidentes, e os
desafios da mobilidade não são menores que em outras áreas.
A primeira vez que a palavra “congestionamento” aparece no acervo
do jornal O Estado de S.Paulo é na edição de sete de janeiro de 1901. Em
extenso artigo intitulado “As grandes invenções do século”, V. da Silva
Freire discorre sobre as muitas inovações surgidas e postas em prática ao
longo do século XIX, e alerta para o “congestionamento das cidades”,
tratando aqui do aumento acelerado da população urbana e dos desafios
que ele trazia. (O Estado de S.Paulo, 2013)
Ainda de acordo com o jornal, em 1918, o problema na Avenida da
Aclimação era o congestionamento eventual de animais de montaria (ou
“tropas”), que dificultavam a passagem das pessoas. Em 1927 o jornal
trata, pela primeira vez, de “congestionamento de trânsito”, mas no Rio de
Janeiro, onde os então cerca de 12.000 veículos automotores acomodavam-
se com dificuldade nas ruas do centro, em alguns horários.
Mas, em meados da década de 1920, já é possível observar nas principais
avenidas da cidade de São Paulo, concentrações do “Ford Bigode”, como
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ficou conhecido o modelo T da Ford no Brasil. Em 1936, é inaugurado o
Aeroporto de Congonhas, na época a quilômetros de distância do perímetro
urbano.
A cidade de Paris passou a primeira metade do século XX vivendo
uma efervescência cultural intensa, mas também lidando com duas guerras
mundiais, que abalaram parcial e temporariamente sua destacada
infraestrutura, e que fizeram o tamanho de sua população oscilar para
baixo.
Ambas as cidades chegaram ao final do século XX muito transformadas
em relação ao ponto de onde começaram. E é razoável concluir que a
mobilidade urbana tenha realidades muito diversas em cada uma delas,
particularmente na oferta de serviços coletivos de transporte, dados esses
contextos evolutivos tão distintos.
4.4 DILEMA DA MOBILIDADE: TRANSPORTE COLETIVO OU TRANSPORTE
INDIVIDUAL?
A mobilidade urbana é um desafio de muitas facetas, há séculos. Na
Roma antiga, o tráfego de carruagens era a tal ponto intenso que César
“declarou que, em um certo período durante o dia, carroças e carruagens
não podiam circular, ‘exceto para o transporte de materiais de construção
dos templos dos deuses ou outras importantes obras públicas ou para
retirar materiais de demolição’” (Vanderbilt, 2009, pág. 7). Com esse
procedimento, no entanto, sequestrou o sono de boa parte de seus
concidadãos, que não conseguiam dormir devido ao ruído provocado pelo
tráfego noturno. O poeta Juvenal escreveu que, naquele século II, havia
tanto barulho à noite em Roma que “nem um peixe conseguiria dormir”
(Vanderbilt, 2009, pág. 7).
Não era só por lá que a convivência com as alternativas de transporte
urbano era ruim: havia no Liber Albus, livro de regras vigentes em Londres
no século XV, uma especificamente dedicada a proibir um condutor de
“dirigir sua carroça mais rapidamente quando ela estiver descarregada do
que quando carregada”, sob pena de multa ou, em casos mais graves,
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prisão. Na mesma Londres, por volta de 1720, acidentes de trânsito
provocados por carruagens e carroças ”conduzidas furiosamente”
representavam a principal causa de morte na cidade. Ainda segundo
Vanderbilt (2009), na cidade de Nova York, em 1867, uma média de quatro
pessoas por semana morriam por incidentes com cavalos.
As bicicletas não representavam um problema menor:
Depois de um ou dois falsos inícios, a ‘explosão das bicicletas’ no fim do
século XIX causou um furor social. As bicicletas eram rápidas demais. Elas
ameaçavam os ciclistas de males estranhos, como kyphosis bicyclistarum,
ou ‘cifose do ciclista’. Elas assustavam os cavalos e provocavam acidentes.
Ciclistas e não ciclistas brigavam aos murros nas ruas. As cidades tentaram
banir as bicicletas. Elas foram banidas das ruas por não serem carruagens
e foram afastadas das calçadas por não serem pedestres. (Vanderbilt,
2009, pág. 8)
Os meios de transporte multiplicaram-se, e o fato é que, com tantas
alternativas que parecem mais eficientes e confortáveis, abandonou-se,
progressivamente, o meio mais antigo de locomoção: caminhando.
Caminhar é o elemento mais importante do sistema de transporte de
qualquer área urbana em praticamente qualquer lugar do mundo. É um
modo de transporte elementar, tornando ainda possível a utilização de
todos os demais modos, que requerem acesso a pé, como ônibus, trem,
metrô e automóveis.
é como descreve o estudo “Premissas para um plano de mobilidade
urbana”, lançado em 2012 pela ANTP (Associação Nacional de Transporte
Público) e pela SPTrans. Importante, sem dúvida, mas em queda, como
descreve Vanderbilt (2009): no final da década de 1960 mais da metade
das crianças norte-americanas ia para a escola a pé ou de bicicleta; esse
percentual, hoje, é de apenas 16%. Entre o final da década de 1970 e
meados dos anos 1990, o número de trajetos percorridos a pé pelas
pessoas, nos Estados Unidos, reduziu-se em quase 50%.
Este não é um fenômeno isoladamente norte-americano, não
obstante pareça mais grave por lá, uma vez que em São Paulo as
caminhadas seguem sendo responsáveis por cerca de 30% dos percursos
cotidianos para o trabalho ou a escola. Em busca de mais rapidez e
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comodidade, no entanto, os cidadãos em todo o mundo buscam opções
mais práticas e mais convenientes.
Mas, apesar dos esforços e grandes investimentos no transporte
coletivo, o transporte individual parece ser uma escolha preferencial do
cidadão, quase invariavelmente, e não é de hoje, como se viu
anteriormente.
Mas por que o transporte coletivo não é a primeira alternativa para
todos?
Um estudo elaborado pelo Centro de Dados de Transporte do
Ministério do Transporte da Austrália (Corpuz, 2007) dá pistas interessantes
sobre isso. Os dados indicam que o uso de transporte coletivo é mais viável
nas seguintes situações:
a) quando a capacidade ou arranjos de estacionamento são
problemáticos para o uso do carro;
b) se o veículo não estiver disponível ou acessível;
c) quando é mais barato.
Outros aspectos, como tempo de viagem, conveniência e
acessibilidade são importantes, mas parecem ser menos significativos em
comparação com os três primeiros fatores. Esse estudo repete resultados de
outros realizados na Europa e Estados Unidos, também citados no trabalho.
Tempo de viagem e custo, tudo parece apontar, são fatores cruciais na
escolha do meio de transporte. Ou seja, transporte coletivo só é uma
alternativa ao individual se este último for, de alguma forma, inviável, diz a
maioria das pessoas.
Glaeser (2011) lembra que uma das dificuldades com o transporte
coletivo é que, quase sempre, o tempo de percurso é maior:
O problema (...) é o tempo envolvido para chegar até a parada de ônibus
ou estação de metrô, esperar o próximo veículo e ir até o destino final a
partir do ponto de descida. Este tempo alcança, em média,
independentemente da distância da viagem, 20 minutos para ônibus e
metrô. Mesmo antes de o ônibus chegar a percorrer a distância até a
próxima parada, os usuários já utilizaram o mesmo tempo que muitos dos
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que se deslocaram de carro gastam para fazer a viagem toda. (Glaeser,
2011, pág. 166)
Ele trata de números médios nos Estados Unidos, mas esta realidade
não é muito diversa em grandes cidades como São Paulo.
Isso fica agravado quando se considera, como lembra ainda Glaeser (2011),
que São Paulo tem opções ainda incipientes em alternativas para o
transporte individual motorizado, como uma rede de metrô com cobertura
aquém do necessário, do mesmo modo que a maioria das metrópoles dos
países em desenvolvimento.
Veja-se uma comparação entre os serviços de metrô de Paris e São
Paulo. A tabela 1 contém alguns dados úteis para entender o que se passa.
Tabela 1: Comparação das redes de metrô de Paris e São Paulo -
2013
Fonte: Elaboração dos autores, a partir de dados da RATP e da Secretaria
de Transportes Municipais de São Paulo
A rede de Paris é três vezes mais extensa, o que significa que oferece
uma cobertura muito mais completa da cidade. O tráfego total diário de
passageiros não é muito diferente entre as duas, embora cerca de 20%
maior em Paris. Mas a densidade média de passageiros, ou seja, quantos
passageiros passam por cada estação, ou por cada quilômetro de linha do
metrô, é muito maior na capital paulista do que na francesa. Ou seja, além
de cobertura menor – o que significa menor conveniência e mais tempo nas
caminhadas até as estações ou até o destino final –, os paulistanos têm
menos conforto no uso do metrô, pela grande densidade no uso das linhas e
estações (chegando a mais de quatro vezes superior, na comparação com
Paris). Como consequência, o metrô de Paris consegue ser uma alternativa
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cotidiana para o equivalente a quase 36% dos habitantes de sua região
metropolitana; em São Paulo, esse número é aproximadamente a metade.
As consequências desta escassez de boas alternativas são graves
para uma cidade assim, em que ocorre, de forma aguda, o que destaca o
mesmo Glaeser (2011, pág. 127): “Enquanto o século XIX viu várias
inovações nos transportes, a cidade do século XX foi dominada por uma
única: o motor a combustão interna”. Em função dessa baixa conveniência
trazida pelo transporte coletivo em São Paulo, e do aumento gradual no
poder aquisitivo das pessoas, o transporte individual motorizado cresce com
rapidez. Mas também em função do custo.
Um estudo da ANTP realizado em 2008 (ANTP, 2013) mostrava que,
na capital paulista, o custo total com ônibus em uma viagem urbana de sete
quilômetros é de R$ 2,30, com moto é de R$ 1,43 e, com automóvel, de R$
6,26 (gasolina) e R$ 5,39 (álcool). Isso acontece, entre outras razões, em
função do preço dos combustíveis. Em fins de maio de 2013, um litro de
gasolina em São Paulo custava cerca de € 0,93, comparado com € 1,660 na
França. Esta diferença de cerca de 40% ajuda a explicar uma face dessa
realidade paulistana.
Até porque o preço do combustível não afeta apenas as decisões
cotidianas sobre que meio de transporte utilizar naquele dia. Glaeser (2011,
pág. 176) explica que, em um estudo realizado por ele e Matthew Kahn em
mais de 70 cidades no mundo, “quando os países passam de baixos
impostos sobre a gasolina para altos impostos sobre a gasolina, a densidade
dos empreendimentos aumenta em mais de 40%. A propriedade de
veículos, evidentemente, também cai”.
O custo, portanto, determina muito de como a mobilidade se dará,
como demonstrado retrospectivamente. O mesmo Glaeser (2011) observa
que, ao longo da história,
nas áreas do mundo densamente povoadas (...) os cavalos foram uma
alternativa de transporte da elite. A manutenção de um animal tão grande
para o transporte pessoal estava muito além do alcance da maioria dos
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agricultores comuns ou dos moradores da cidade. (Glaeser, 2011, pág.
166)
O acesso aos carros, no entanto, é cada vez mais fácil hoje,
mundialmente. Os dados sobre a produção mundial de automóveis e
utilitários leves, mostrados no gráfico 6, dão a dimensão desse crescimento
que, segundo a Organisation Internationale des Constructeurs
d’Automobiles (OICA), acontece especialmente nas nações em
desenvolvimento.
Gráfico 6: Produção mundial de carros (em mil unidades)
Fonte: Elaboração dos autores a partir de dados da OICA (2013)
Cervero (1998) destaca que o sistema coletivo de transporte vem
perdendo público para o carro, por diversas razões, entre as quais o fato de
que o uso do automóvel está, na maior parte das cidades, “maciçamente
subprecificado”.
Para o grupo mais abastado, claro, nunca faltam alternativas: São
Paulo conta, hoje, com a terceira maior frota de helicópteros do mundo, e
mais de 300 helipontos espalham-se pela cidade (Vanderbilt, 2009),
embora, evidentemente, esta não seja exatamente uma alternativa de
alcance popular para quem quer deslocar-se pela cidade. Mas o carro, que
no início do século era uma opção apenas para a elite, transformou-se
numa possibilidade para grande parte da população, mesmo em países em
desenvolvimento.
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As restrições forçadas de circulação também colaboram para essa
seleção de modos de locomover-se. São Paulo adotou em 1997 o rodízio de
placas de carros, que retira 20% da frota de automóveis das áreas centrais
nos dias úteis, de forma alternada, nos horários de pico, com efeitos
relevantes na poluição, mas decrescentes em relação à fluidez do tráfego,
como constata o estudo da ANTP (2013). Cingapura (1975), Londres (2004)
e Estocolmo (2006) são exemplos de cidades que adotaram o pedágio
urbano como solução e são citadas num estudo do IPEA (IPEA, 2011) que
trata desse tema e indica que uma eventual implantação gradual do sistema
para São Paulo seria vantajosa. Mas o próprio estudo ressalta que essa
adoção precisa ser concomitante com a ampliação da oferta de transporte
coletivo de maior qualidade.
A soma de combustível a preço baixo com uma indústria de
automóveis e motocicletas desenvolvendo-se intensamente no mundo, e o
acesso a esses meios individuais de transporte motorizado espalhando-se
com rapidez – pelo aumento de opções de baixo custo e ampliação das
alternativas de financiamento – parece atentar permanentemente contra o
transporte coletivo em metrópoles situadas em países em desenvolvimento,
como é o caso de São Paulo.
Mas e a bicicleta, não seria uma alternativa de transporte individual
barata, além do baixo impacto urbano? Sem dúvida, embora os dados
históricos já comentados informem que é preciso cuidado para que elas
possam transformar-se numa alternativa de fato viável para um grupo
relevante de pessoas, sem trazer colateralidades indesejáveis em sua
convivência com os veículos motorizados e os pedestres. Em grandes
cidades, parece sensato reservar para elas seu espaço próprio (ciclovias e
ciclofaixas) nas vias onde os veículos motorizados trafegam a velocidades
mais altas, como indica o estudo da ANTP (2013).
Paris foi além de fixar caminhos: seu Vélib, um sistema de
bikesharing que cobre boa parte da cidade, teve grande êxito. O estudo da
ANTP (2013) explica o modelo:
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O conceito central desse sistema é fornecer acesso gratuito ou a preços
acessíveis para bicicletas para trajetos de curta distância, em áreas
urbanas, como uma alternativa ao transporte motorizado, reduzindo,
assim, os congestionamentos, ruído e poluição do ar. Em maio de 2011,
havia 136 programas em 165 cidades com bikesharing ao redor do mundo,
envolvendo uma frota estimada de cerca de 240 mil bicicletas. Lançado em
2008, o programa público de bicicletas de Hangzhou, na China, é o maior
sistema de compartilhamento de bicicletas do mundo, com
aproximadamente 61 mil bicicletas e mais de 2.400 estações, e é seguido
pelo “Vélib”, em Paris, que abrange cerca de 20.000 bicicletas e 1.450
estações de bicicleta. Os países com o maior número de sistemas são a
França (29), Espanha (25), China (19), Itália (19) e Alemanha (5).
Recentemente a cidade de São Paulo aderiu à modalidade de
compartilhamento de bicicletas, embora ainda de forma modesta. (ANTP,
2013)
O Vélib aparece como mais uma alternativa de transporte na cidade
de Paris, integrado com metrô, ônibus, automóveis, motocicletas e tantos
outros. Envolve não apenas as preocupações com a mobilidade, mas
também as perspectivas de benefícios ambientais, tratando a bicicleta como
uma alternativa importante nesse processo, conectando-a de fato com os
outros modais de transporte, desafogando seu uso e oferecendo uma
alternativa a mais para os usuários.
Paris aparece regularmente em qualquer lista de cidades com melhor
sistema coletivo de transporte, como a do site Inhabitat (2013), ligado ao
Boston Architectural College; São Paulo ainda está longe de conseguir isso.
Qual o segredo do sistema de Paris? Não há um único.
As cidades têm diferenças estruturais muito relevantes. E algumas
delas seriam, em teoria, até favoráveis a São Paulo, como o adensamento,
por exemplo, que favorece a viabilização de sistemas coletivos de
transporte. o gráfico 7 mostra como a densidade demográfica na capital
paulista é cerca de oito vezes a da capital francesa.
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Gráfico 7: Paris e São Paulo: densidades demográficas (hab/km²)
Fonte: Elaboração dos autores a partir de dados do IBGE e da EMTA (2012)
Mas, porque o sistema de transporte coletivo é muito menos eficiente
em São Paulo do que em Paris, o uso do transporte individual motorizado é
a opção eleita por quase o dobro das pessoas na primeira do que na
segunda cidade, como mostra o gráfico 8. É onde está uma das mais
marcantes diferenças entre as duas cidades aqui comparadas.
Gráfico 8: Deslocamento cotidiano nas regiões metropolitanas –
meio utilizado
Fonte: Elaboração doa autores, a partir de dados da EMTA (2012) e ANTP
(2012). (“Carro”: incluído no total “Motorizado”)
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Esse contraste repete-se nos ônibus. A frota de São Paulo é mais de
três vezes maior que a de Paris, mas com um grande número de médios e
pequenos veículos, que também não contribuem para maior eficiência do
sistema.
Gráfico 9: Paris e São Paulo – frota de ônibus
Fonte: Elaboração dos autores com dados da RATP (2013) e ANTP (2012)
E a importância do serviço de ônibus para São Paulo fica patente
quando se observa o que mostra o gráfico 10.
Gráfico 10: Paris e São Paulo: ônibus – número diário de viagens
Fonte: Elaboração dos autores, dados da RATP (2013) e ANTP (2012)
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A dependência do transporte sobre pneus na capital paulista é,
certamente, um dos fatores que mais amplificam os problemas cotidianos
de mobilidade, especialmente porque há poucas faixas de fato restritas para
a circulação desses veículos, o que reduz consideravelmente sua velocidade
e eficiência.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os problemas relacionados à mobilidade urbana são muito mais
antigos e persistentes do que muitos imaginam, como se procurou
exemplificar neste trabalho.
Cervero (1998) afirma que “rápida urbanização sempre fere” o
transporte coletivo. É tarefa de alta complexidade fazer com que o sistema
de transporte acompanhe adequadamente as muitas mudanças de
necessidade que ocorrem ao longo desse processo. São Paulo é uma vitrine
particularmente rica desse fenômeno. O crescimento extraordinário no
espaço de poucas décadas, ao longo do século XX, fez com que a cidade
mudasse radicalmente de perfil e, com isso, suas necessidades de
ajustamento das alternativas de mobilidade urbana. A demora em adotar –
e depois a lentidão em ampliar – o transporte sobre trilhos, o mais indicado
para transportar volumes maciços de pessoas, como também lembra
Cervero (1998), impuseram à cidade um cenário de múltiplos gargalos,
dificuldades de integração e baixa qualidade no serviço de transporte
coletivo. Com esforço de planejamento, aplicação de tecnologia no
monitoramento e gestão do fluxo, investimento em modernização dos
equipamentos e algumas medidas de restrição ao uso do automóvel, como
demonstra o estudo da ANTP (2013), esse cenário está mudando, embora
haja ainda muito que fazer.
Jackson & Cameron (1983) descreveram em seu trabalho que as
soluções inovadoras de transporte pelo mundo apontaram o “estilo
europeu” de sistemas integrados como a única alternativa viável, não
apenas para as metrópoles, mas também para as cidades médias: aplicação
correta dos modais e integração inteligente entre eles.
Leandro Fraga Guimarães; Jaciara Martins Fontes Cruz
Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1,pp.130-163,Jan./Jun. 2013
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A situação de Paris é um bom exemplo disso, como se viu, embora o
complexo sistema da cidade também esteja em constante evolução. A partir
da experiência pioneira de Pascal, muitas ações de impacto foram tomadas
ao longo do tempo. Seu mais que centenário Métropolitain é uma referência
em cobertura, bem como em estética, pelo cuidado na arquitetura das
estações, como lembra Hussey (2011) – embora os grandes subsídios
também pesem no modelo, como descreve o relatório da EMTA (2012). O
singular processo de evolução populacional de Paris foi, ao mesmo tempo,
causa e consequência de seu complexo sistema de transporte, como
destaca Glaeser (2011).
A questão da mobilidade, portanto, vai muito além do ir e vir diário.
Cervero (1998) e Glaeser (2011) destacam a relevância dos sistemas de
mobilidade urbana para o desenvolvimento mais saudável das cidades, sua
ocupação mais racional e adequada para os cidadãos. O contraste entre
uma cidade que quase não cresceu em seu núcleo central no século XX
(Paris) e uma que se multiplicou dezenas de vezes em apenas 100 anos
(São Paulo) teve o objetivo de mostrar como exemplos tão extremos podem
ilustrar alguns dos múltiplos desafios da mobilidade urbana.
Afinal, um desejo permanente em toda metrópole é o de que se
construa um sistema capaz oferecer alternativas de qualidade, eficientes e
com custos compatíveis para servir às necessidades de mobilidade da
maioria de sua população. Não apenas para a “comodidade dos burgueses”,
como ditava Luís XIV.
REFERÊNCIAS
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em 12 de abril de 2013, de
http://www.antp.org.br/_5dotSystem/download/dcmDocument/2013/03/
06/ABB0D95F-D337-4FF5-9627-F8D3878A9404.pdf.
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Mobilidade Urbana Paris e SP

  • 1. Profuturo: Programa de Estudos do Futuro Editor científico: James Terence Coulter Wright Avaliação: Doublé Blind Review pelo SEER/OJS Revisão: Gramatical, normativa e de formatação Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1, pp.130-163, Jan./Jun. 2013 130 AS CARROÇAS DE CINCO SOUS PARA A COMODIDADE DOS BURGUESES: PARIS, SÃO PAULO E O DESAFIO HISTÓRICO DA MOBILIDADE URBANA Leandro Fraga Guimarães Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade Universidade de São Paulo lfraga@uol.com.br Jaciara Martins Fontes Cruz UBS Escola de Negócios jaciara.cruz@gmail.com RESUMO Paris e São Paulo são cidades com histórias de ocupação marcadamente distintas. A partir de dados secundários, numa revisão bibliográfica que buscou o confronto de visões de autores das áreas de planejamento urbano e mobilidade, além de historiadores e estudiosos da formação e desenvolvimento de sistemas de mobilidade urbana, foi condensado o histórico em que as dificuldades da mobilidade evoluíram em cada um desses grandes centros urbanos, num estudo de caso abrangendo de seu aparecimento até o século XX, período de profundas transformações nas duas cidades, embora tenham ocorrido em sentidos substantivamente diversos. Nessa perspectiva, foram reunidos argumentos para também caracterizar, de forma geral, os desafios que a mobilidade urbana traz, literalmente há milhares de anos, para a convivência nos espaços restritos das grandes cidades. Muito ao contrário de ser um problema recente, é desafio que permanece e se modifica, embora alguns de seus elementos principais sejam incrivelmente perseverantes ao longo da história. Para concluir, são comentadas algumas das alternativas contemporâneas em uso, nas duas cidades, para melhor
  • 2. Profuturo: Programa de Estudos do Futuro Editor científico: James Terence Coulter Wright Avaliação: Doublé Blind Review pelo SEER/OJS Revisão: Gramatical, normativa e de formatação Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1,pp.130-163,Jan./Jun. 2013 131 encaminhar o problema da mobilidade urbana, e também algumas alternativas mais bem sucedidas do que se conhece como soluções para este problema tão presente em todas as grandes cidades do mundo. Palavras-chave: Mobilidade urbana. Metrópoles. Crescimento urbano. Transporte público. Transporte coletivo. Transporte individual. Paris. São Paulo. ABSTRACT Paris and São Paulo cities are with markedly different histories of occupation. Starting from secondary data, in a literature review that sought the confrontation on visions of authors from the fields of urban planning and mobility to historians and scholars of the formation and development of urban mobility systems, this article has condensed the history of how the difficulties of mobility evolved in each of these major urban centers, in a case study comprehending specially the twentieth century, a period of profound transformations in the two cities, although having occurred in so substantially diverse directions. In this perspective, were also gathered arguments to characterize, in general, the challenges that urban mobility brings literally from thousands of years, for the living in the restricted spaces of the large cities. Quite unlike a recent problem, this is a challenge that remains and changes, although some of its main elements are incredibly persevering throughout history. To conclude, some of the contemporary alternatives used in the two cities are discussed, in order to better direct the issue of urban mobility, and also some of the most successful alternatives that are recognized as solutions to these problems so present in all major cities of the world.
  • 3. Profuturo: Programa de Estudos do Futuro Editor científico: James Terence Coulter Wright Avaliação: Doublé Blind Review pelo SEER/OJS Revisão: Gramatical, normativa e de formatação Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1, pp.130-163, Jan./Jun. 2013 132 Key-words: Urban mobility. Metropolis. Urban growth. Public transport. Collective transport. Private transport. Paris. São Paulo.
  • 4. Leandro Fraga Guimarães; Jaciara Martins Fontes Cruz Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1,pp.130-163,Jan./Jun. 2013 133 1 INTRODUÇÃO É comum que muitos dos habitantes de grandes cidades hoje se sintam oprimidos pela agitação do dia a dia e sonhem com a mudança para o interior, como uma forma de libertação. Na Idade Média, o ditado alemão Stadtluft macht frei (algo como “o ar da cidade torna você livre”) expressava o que a mudança contrária representava para o indivíduo que, naquele tempo, via-se livre das obrigações feudais para um senhor de terra, e sonhava com uma vida mais rica e com um futuro menos limitado. E não é que as cidades do período fossem exatamente pequenas e aconchegantes: Roma, na Itália; Bagdá, no Iraque; e Beijing (Pequim), na China, são alguns exemplos daquelas que possuíram mais de um milhão de habitantes em algum momento antes do Renascimento, dizem historiadores especialistas – Morris (2010), Modelski (2000, 2003), Chandler (1987), Chandler & Fox (1974). Esses grandes aglomerados urbanos traziam e trazem enormes desafios para a convivência cotidiana, sob os mais diversos aspectos. E a mobilidade é um dos mais antigos e persistentes deles: para cumprir percursos mais longos – ou cumprir quaisquer percursos com mais comodidade e rapidez –, os cidadãos sempre recorreram a meios auxiliares que, multiplicados, transformavam-se num problema novo. Liteiras, cavalos, carroças, barcos, bicicletas, carros, motocicletas, bondes, trens, teleféricos, ônibus, metrôs, helicópteros, e variações desses todos, e outros mais; individuais ou coletivos, muitos são os meios que foram e são utilizados pelas pessoas em sua busca pela melhor condição na mobilidade cotidiana. Todos esses meios de transporte continuam em uso, com maior ou menor intensidade, com novo formato ou no modelo original. Somados, superlotam os espaços urbanos, poluem de muitas formas, provocam contratempos, tomam áreas, promovem tumultos e ainda se envolvem em acidentes. Assim, nascidas para acomodar pessoas, as cidades se veem desde sempre em grande dificuldade para receber essas tantas formas de transporte que se aglomeram em seu interior. Haverá solução?
  • 5. As Carroças de Cinco Sous para a Comodidade dos Burgueses Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1, pp.130-163, Jan./Jun. 2013 134 Neste trabalho serão descritos alguns aspectos do crescimento urbano de Paris e São Paulo, contrastados por suas enormes distinções, embora, nos dois casos, a problemática da mobilidade urbana estivesse sempre muito presente – mas recebendo soluções marcadamente diferentes em cada uma delas, na forma e no tempo, ao longo dos anos. Assim, serão examinadas algumas das alternativas contemporâneas em uso nas duas cidades para melhor encaminhar o problema da mobilidade urbana. Discutir-se-ão também algumas alternativas do que se antevê, hoje, como possíveis contribuições para este problema comum a todas as grandes cidades do mundo. É correto concluir que o esforço aplicado neste artigo não traz soluções definitivas, nem seus autores pretendem isso. A expectativa é a de trazer uma perspectiva histórica, lembrar que nem tudo o que se vê e vive hoje é exatamente novo ou inédito, e contribuir para a discussão de um assunto tão necessário quanto urgente; urgência que vem à lembrança, todo dia, na aventura recorrente de enfrentar o deslocamento rotineiro numa grande metrópole. 2 REFERENCIAL TEÓRICO 2.1 MOBILIDADE As cidades de hoje são espaços com velocidades múltiplas (Ascher, 1995). Cada indivíduo se move com característica própria, dependendo das alternativas que escolhe diariamente. Esta superposição constitui um desafio para as nossas formas habituais de abordar o espaço (Lévy, 2000), densificando o papel da mobilidade no cenário urbano. Algumas transformações do mundo contemporâneo reforçam essa necessidade (Lévy, 2000): os espaços aos quais as pessoas se sentem pertencer não são mais somente territórios, mas também redes; o número de lugares pertinentes para um dado indivíduo aumentou; a distinção entre mobilidade cotidiana (rotina) e mobilidade rara (profissional ou lazer) torna-se cada vez mais difícil; ao lado de destinos mais impositivos, uma grande quantidade
  • 6. Leandro Fraga Guimarães; Jaciara Martins Fontes Cruz Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1,pp.130-163,Jan./Jun. 2013 135 de outros rumos, novos ou velhos, mais ou menos relevantes, se apresentam. A mobilidade, ainda segundo Lévy (2000), é “a relação social ligada à mudança de lugar”. O pesquisador do Instituto de Estudos Políticos de Paris utiliza essa definição de forma a expandir a mobilidade para além do mero conceito de deslocamento físico, e também para eliminar dimensões metafóricas do termo como “mobilidade social”, ou associando-o a telecomunicações. Para esse autor, a mobilidade forma um sistema de movimentos potenciais, que podemos observar sob a ótica de três virtualidades: a mobilidade como possibilidade, como competência, ou como capital. A mobilidade como possibilidade pode ser analisada como acessibilidade, isto é, a oferta de mobilidade por meio da oferta de transporte. Observada como competência, busca-se a mobilidade efetiva, a relação entre a que é oferecida e a que é realmente realizada. A competência de mobilidade relaciona o deslocamento à necessidade de posse de recursos financeiros para tal, e à constituição de uma rede de lugares frequentados (casa, emprego e tantos outros), eles próprios situados numa boa posição no espaço das acessibilidades. A fluidez nesses espaços é essencial, para que o fomento de regiões autossuficientes não seja uma forma de isolamento ou exclusão de uma população de baixa renda. Finalmente, “o conjunto constituído pela possibilidade, pela competência e pelas arbitragens que a segunda permite sobre a primeira pode ser lido como um capital social, um bem que permite ao indivíduo desdobrar melhor sua estratégia no interior da sociedade”. (Lévy, 2000, pág.76) Costa (2003) ressalta a relação entre a mobilidade, o desenvolvimento econômico e a sustentabilidade socioambiental do contexto urbano. Para esta autora, alguns aspectos são fundamentais em um sistema de mobilidade sustentável: o equilíbrio entre diversos meios de transporte motorizados e não motorizados; o uso eficiente dos recursos energéticos pelo meio de transporte; o uso de tecnologia em toda a cadeia; o planejamento sobre a demanda de transporte, como atuar sobre as
  • 7. As Carroças de Cinco Sous para a Comodidade dos Burgueses Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1, pp.130-163, Jan./Jun. 2013 136 distâncias físicas com adensamento de regiões, apresentar privilégios para maior ocupação de automóveis e incentivar a substituição do deslocamento por outras formas de comunicação; o planejamento sobre a oferta de transporte, utilizando-a como forma de gerir o equilíbrio entre transporte individual ou público, por exemplo, na avaliação de obras de rodovias; a integração do sistema de transporte com o plano de ocupação e uso do solo (configuração urbana). 3 ABORDAGEM METODOLÓGICA Pela natureza deste estudo, foi necessário adotar um conjunto de abordagens capaz de não apenas fornecer os elementos necessários para a discussão tanto a respeito do crescimento urbano, quanto de seu impacto crescente, como também analisar aquelas práticas ligadas à mobilidade urbana, ainda que estas não estejam, algumas vezes, estabelecidas ou descritas de maneira formal. Assim, foi preciso pesquisar inicialmente na literatura disponível sobre a evolução da mobilidade aqueles elementos propostos por alguns dos autores mais referenciados sobre o tema, o que será descrito a seguir. Na sequência do trabalho, foi construído um conjunto de elementos que, de acordo com os autores identificados, seriam necessários para a adequação do desenvolvimento da mobilidade nas duas cidades selecionadas. Para confrontar os itens desse conjunto de requisitos com as orientações práticas, a metodologia escolhida foi a do estudo de caso. Segundo Yin (1999), o estudo de caso é preferido quando o tipo de questão de pesquisa é da forma “como” e “por quê?”; também quando o controle que o investigador tem sobre os eventos é muito reduzido; ou quando o foco temporal está em fenômenos contemporâneos dentro do contexto de vida real. Todas essas premissas estão presentes neste objeto de estudo. Além dos instrumentos tradicionais para evidenciar a realidade que se deseja estudar, a metodologia prevê a observação direta, a observação participante e também o uso de artefatos físicos, mas esses instrumentos não foram objeto deste trabalho. Os três princípios recomendados por Yin (1999) para coleta de dados são:
  • 8. Leandro Fraga Guimarães; Jaciara Martins Fontes Cruz Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1,pp.130-163,Jan./Jun. 2013 137 a) Usar múltiplas fontes de evidência O uso de múltiplas fontes de evidência permite o desenvolvimento da investigação em várias frentes, ou seja, investigar vários aspectos em relação ao mesmo fenômeno. As conclusões e descobertas ficam mais convincentes e apuradas, já que advêm de um conjunto de corroborações. Além disso, os potenciais problemas de validade de constructo são atendidos, pois os achados, nessas condições, são validados por várias fontes de evidência. Essa é a justificativa para que seja feita a pesquisa envolvendo não uma única empresa, o que poderia facilitar o trabalho de coleta, mas tornaria o estudo menos consistente. b) Construir, ao longo do estudo, uma base de dados Yin (1999) ressalta que, embora num estudo de caso a separação entre a base de dados e o relato não seja comumente encontrada, é recomendado que essa separação aconteça, para garantir a confiabilidade do estudo, já que os dados encontrados ao longo da pesquisa são armazenados, possibilitando o acesso de outros investigadores no presente e no futuro. Os registros podem se dar por meio de notas, documentos, tabulações e narrativas (interpretações e descrições dos eventos observados e registrados). Esse cuidado será tomado ao longo de todo o trabalho. c) Formar uma cadeia de evidências Como lembra Yin (1999), construir uma cadeia de evidências consiste em configurar o estudo de caso de tal modo que se consiga levar o leitor a perceber a apresentação das evidências que legitimam este estudo, desde as questões de pesquisa até as conclusões finais. Assim como em um processo judicial, o relato do estudo de caso também deve assegurar que cada evidência apresentada foi coletada na “cena do crime”. Também este ponto será objeto de observação ao longo da execução desta pesquisa. Além disso, Yin (1999) enfatiza que se deve deixar claro que outras evidências não foram ignoradas e que aquelas apresentadas não estão
  • 9. As Carroças de Cinco Sous para a Comodidade dos Burgueses Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1, pp.130-163, Jan./Jun. 2013 138 maculadas por vieses; ou explicitar a eventual ocorrência desses vieses, o que se procurou observar com rigor ao longo do trabalho. Assim foram pesquisados dados de fontes secundárias que comporão este estudo, na busca pelas mais confiáveis em cada caso. 4 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS PESQUISADOS 4.1 UM POUCO DA HISTÓRIA DE PARIS, ATÉ O SÉCULO XX Lutécia era o nome do vilarejo que formaram os primeiros habitantes das margens do rio Sena há cerca de 6.000 anos. Eles ocupavam, no entanto, apenas uma fração do território atual da cidade de Paris: a pequena vila em que viviam se limitava à Île de la Cité e à margem esquerda do rio, próximo ao Jardim de Luxemburgo, como informa o site oficial da França (France.fr, 2013). Houve, por óbvio, mudanças muito relevantes ao longo desses tantos séculos. Segundo o Instituto Nacional de Estatística e Estudos Econômicos (INSEE, sigla em francês), a população de Paris cresceu de forma constante ao longo dos séculos, a partir da Renascença, como mostra o gráfico 1. Gráfico 1: Evolução da população de Paris (em mil habitantes) Fonte: Elaboração dos autores, a partir de dados do INSEE (2013)
  • 10. Leandro Fraga Guimarães; Jaciara Martins Fontes Cruz Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1,pp.130-163,Jan./Jun. 2013 139 A cidade passou por pelo menos duas grandes intervenções urbanas ao longo de sua história, como informa Hussey (2011): a primeira, ao final dos anos 1590, quando Henrique IV e seus conselheiros se ocuparam de organizar sua reconstrução, arrasada que fora por décadas de guerras civil e religiosa; a segunda, em meados do século XIX, quando Napoleão III nomeia prefeito de Paris Georges-Eugène Haussmann, no ano de 1853, e este dá início a quase 20 anos de obras profundas, na direção dos planos do imperador sobre urbanismo, habitação e circulação de pessoas e mercadorias. Mas muito antes, ainda no final do século XVI, Henrique IV lidara com problemas muito graves em Paris. Naquela ocasião, a mobilidade era dramaticamente prejudicada pelas condições cotidianas de vida: Mesmo as mais prósperas ruas na parte central da cidade não eram mais do que trilhas enlameadas e apenas os parisienses mais ricos conseguiam atravessar a cidade, a cavalo ou em uma das poucas carruagens em funcionamento, sem serem cobertos por esterco e excrementos. (Hussey, 2011, pág. 167) Como melhorar a mobilidade? Ainda de acordo com Hussey (2011), Nicolas Sauvage, um carpinteiro empreendedor havia criado, por volta de 1654, a carrosse, uma carruagem com vários assentos, que podia ser alugada por várias pessoas ao mesmo tempo. Por volta de 1660, Paris contava com mais de 20 destas, que podiam ser vistas na frente da Igreja de Saint-Fiacre. O serviço, no entanto, era ainda desordenado, e as viagens eram decididas a partir das necessidades combinadas de várias pessoas, sem muitos critérios de valor e itinerário estabelecidos previamente. Físico, matemático, filósofo e teólogo, Blaise Pascal é mundialmente respeitado por sua obra extensa e relevante, além de lembrado por frases marcantes, como a conhecida "nós conhecemos a verdade não só pela razão, mas também pelo coração", que faz parte de seu último livro, Pensées (Pascal, 2006). Quem lhe presta os respeitos hoje na Igreja de Saint-Étienne-du-Mont, em Paris, onde está sepultado, pode não saber que, entre suas muitas contribuições para a ciência e a filosofia, está também o
  • 11. As Carroças de Cinco Sous para a Comodidade dos Burgueses Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1, pp.130-163, Jan./Jun. 2013 140 lado técnico da criação do primeiro serviço de transporte público de que se tem notícia. Não que ele considerasse a mobilidade urbana um valor para si; Pascal defendia firmemente, mesmo, era a opção de permanecer em casa: “Descobri que toda a infelicidade humana resulta de um único fato; o fato de que os homens não conseguem ficar quietos no próprio quarto”. (Vanderbilt, 2009, pág. 6). Ainda assim, possivelmente constatando que o restante de seus concidadãos tinha maiores inquietudes que as próprias quanto ao mundo exterior, juntou-se a empreendedores com título de nobreza, como o marquês de Sourches, o marquês de Crenan e o duque de Rouanes, que era também governador de Poitou, antiga província do oeste da França. Nessa seleta companhia, conseguiu uma licença do rei Luís XIV para explorar rotas de transporte de pessoas com carruagens de forma organizada. O rei, a bem da verdade, concedeu-lhes mais que isso: outorgou-lhes um monopólio real. Ou seja, se aparecessem competidores, os cavalos e os veículos do oponente seriam confiscados. (Klaper, 1978) A cidade contava com perto de 450.000 habitantes naquele período (INSEE, 2013). O sistema, tratado formalmente como as Carrosses Publics pour la Commodité des Bourgeois, ou as Carroças Públicas para a Comodidade dos Burgueses, numa tradução literal, começou precisamente em 18 de março de 1662, com sete veículos puxados por cavalos correndo “da Porta Saint-Antoine até Luxemburgo” (Monmerqué, 1828). Cada carruagem podia levar oito passageiros. Algumas fontes dizem que havia três rotas, outras dizem que havia seis, e que uma delas era uma rota circular. Mas o fato é que as carosses à cinq sous, apelido que ganharam em função da tarifa de base, não foram concebidas para a população como um todo, e sim para “a comodidade dos burgueses”, como fica claro no documento de outorga (Monmerqué, 1828). Muito por isso, foram até populares no início, mas a novidade não durou muitos anos, porque não só houve uma adesão inesperadamente elevada de “não burgueses” ao serviço (embora, depois de algum tempo, o preço tivesse sido majorado de 5 para
  • 12. Leandro Fraga Guimarães; Jaciara Martins Fontes Cruz Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1,pp.130-163,Jan./Jun. 2013 141 6 sous, de forma a inibir esta colateralidade), mas também porque Pascal morreu no ano do início das operações, o que dificultou seu desenvolvimento posterior. Mas Pascal definiu, logo de início, os primeiros conceitos que iriam nortear o serviço de transporte público coletivo até hoje. Em seu projeto, o serviço adotou os seguintes critérios (Klaper, 1978):  as carroças seguiriam o mesmo trajeto de um ponto a outro;  as saídas obedeceriam a horários regulares, mesmo sem passageiros;  cada ocupante iria pagar apenas por seu lugar, independentemente de quantos lugares ocupados nos carros houvesse;  a rota ao redor de Paris seria dividida em cinco setores; a tarifa de cinco sous (segundo Hussey (2011), o sous era uma unidade monetária, 1/20 de uma livre, utilizada de 1667 até 1795, o nome é uma versão francesa do termo latino libra) permitiria cruzar apenas para mais um setor. Para além disso, deveria ser paga uma nova tarifa;  não seria aceito ouro como pagamento, a fim de evitar problemas na manipulação e atrasos para fazer o troco. O empreendimento ainda perdurou por 15 anos após a morte de Pascal. Naquele mesmo ano, porém, restrições do Parlamento para que fosse usado apenas pelas pessoas para as quais tinha sido autorizado (“para o conforto dos burgueses”...) e o aumento da tarifa para seis sous foram gradualmente tirando a popularidade do negócio, até ele ser extinto em 1677. Paris só voltaria a ter um serviço de transporte público no início do século XIX, como conta Hussey (2011). Em 1826, com a criação do ônibus por Stanislas Baudry, na também francesa Nantes, é que o conceito de transporte público seria retomado, ainda seguindo os mesmos critérios definidos por Pascal. (Klaper, 1978)
  • 13. As Carroças de Cinco Sous para a Comodidade dos Burgueses Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1, pp.130-163, Jan./Jun. 2013 142 Em 1828, próprio Baudry fundou, em Paris, a Entreprise Générale des Omnibus, para explorar o serviço de transporte coletivo na capital francesa. Logo em seguida, seu filho iniciaria empreendimentos similares em Lyon e Bordeaux. Em Paris eram “100 carruagens puxadas a cavalos, com 18 a 25 assentos. Na metade do reinado de Luís Felipe, essas carruagens estavam transportando mais de dois milhões e meio de viajantes pela cidade inteira”. (Hussey, 2011, pág. 284) Abraham Brower havia estabelecido em 1827 a primeira linha de transporte público em Nova York. Em 1829 a novidade chegaria a Londres pelas mãos de George Shillibeer e, a partir daí, alcançaria rapidamente as principais cidades da América, Europa e demais partes do mundo. Em 1863, a inauguração da primeira linha de metrô, em Londres, viria estabelecer novos paradigmas de qualidade no transporte público, como também ressalta Hussey (2011). O metrô de Londres era uma adaptação urbana da já conhecida ferrovia. Porém, segregando-se o sistema em vias exclusivas, subterrâneas, o metrô alcançava inédita eficiência em velocidade e volume de passageiros transportados, liberando a superfície para o transporte individual ou para os pedestres. Nesse período, Paris ainda passava pela reforma radical de Haussmann que moldou a cidade hoje admirada, como descreve o resumo de Glaeser (2011): O que surge à mente quando você pensa em Paris? Talvez um café com leite no velho lugar favorito de Sartre, Les Deux Magots, após uma caminhada pelo Boulevard Saint-Germain. Esta via, como o Boul’Mich (Boulevard Saint-Michel), foi criada por Haussmann, entalhada em uma confusão de ruas mais antigas. Se você prefere a caminhada que descrevi ao longo dos Champs-Élysées, apreciando a vista do Arco do Triunfo, estará novamente em território de Haussmann. A rua e o arco são anteriores ao barão, mas ele planejou as praças que fornecem esta visão tão ampla (...). Entre 1853 e 1870, o trabalho de Haussmann removeu mais da metade dos edifícios de Paris. Glaeser (2011, pág. 133) Feitas estas muitas mudanças, a cidade estava mais pronta para o que seria chamado de Le Grand Siècle, de Luís XIV. Com o crescimento e a
  • 14. Leandro Fraga Guimarães; Jaciara Martins Fontes Cruz Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1,pp.130-163,Jan./Jun. 2013 143 ascendência cultural e política da França, e de Paris em particular, muitas novidades surgiriam. Assim, após Londres, Paris inauguraria seu Métropolitain em 1900. Porque tanto tempo depois? Além de as grandes transformações de Haussmann exigirem atenção e recursos, houve longas discussões entre as autoridades parisienses sobre o financiamento das obras do metrô, e também porque o modelo de transporte ferroviário como um todo havia sido adotado tardiamente na França, “em parte, em razão da instável vida política em Paris, mas também por ser vista com desconfiança pelos franceses, por ser uma invenção anglo-saxônica”. (Hussey, 2011, pág. 375) Vencida essa inércia, no entanto, o metrô de Paris cresceu rapidamente e foi recebido em uma cidade inteiramente renovada, em um período histórico particularmente intenso. 4.2 UM POUCO DA HISTÓRIA DE SÃO PAULO, ATÉ O SÉCULO XX O deslocamento diário em São Paulo é uma missão desafiadora a cumprir. No cotidiano dos habitantes da cidade, a mobilidade é mais do que possibilidade, competência ou capital. É também a busca improvável da jornada tranquila, a diferença entre o bom humor (ansiado) ou o mau humor (quase certo). Scaringella (2001) contextualiza o que chama de crise de mobilidade urbana paulistana. Na configuração do uso e ocupação do solo, convive-se com duas São Paulos distintas: uma “oficial”, e uma completamente fora da lei, em que áreas são ocupadas por favelas irregulares em velocidade e extensão assustadoras. O sistema viário passou de picos de trânsito de 40 km em 1992 para 120 km em 1997, e em 2012 chegou a registrar recorde de 295 km de congestionamento em dia chuvoso (segundo o site da CET, a Companhia de Engenharia de Tráfego, órgão da prefeitura que tem o difícil papel de gerir a malha viária da cidade). A “viscosidade” do sistema extrapola as regiões centrais e estende-se até a periferia, e as soluções baseadas em semáforo, multas, viadutos e restrições horárias estão longe de ser suficientes, bem como as ciclovias restritas e precárias e o transporte público sobrecarregado, que é um dos campeões de queixas do morador da cidade.
  • 15. As Carroças de Cinco Sous para a Comodidade dos Burgueses Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1, pp.130-163, Jan./Jun. 2013 144 Mas como tudo isso começou? Muito diferente da história de Paris, a de São Paulo foi relativamente sem fatos muito impactantes até o século XIX. Conta o site da prefeitura (www.prefeitura.sp.gov.br) que a povoação de São Paulo de Piratininga surgiu em 25 de janeiro de 1554 com a construção de um colégio jesuíta por doze padres, no alto de uma colina entre os rios Anhangabaú e Tamanduateí. Esse colégio era destinado à catequese dos índios que viviam na região do Planalto de Piratininga, separados do litoral pela Serra do Mar. O nome São Paulo foi escolhido porque o dia da fundação do colégio foi 25 de janeiro, mesmo dia em que a Igreja Católica celebra a conversão do apóstolo Paulo de Tarso. Ainda segundo o site oficial da prefeitura, o povoamento da região do Pátio do Colégio teve início em 1560, quando o governador-geral do Brasil Mem de Sá visitou a Capitania de São Vicente e ordenou a transferência da população da Vila de Santo André da Borda do Campo (criada por Tomé de Sousa em 1553) para os arredores do colégio, denominado Colégio de São Paulo de Piratininga. O novo local era mais alto e adequado para se protegerem dos ataques dos índios. Se, por um lado, a capitania de São Paulo foi grande expoente na partida de bandeiras, por outro, não estava entre as regiões de maior importância econômica do país. Os territórios em que se encontraram as minas com maiores quantidades de ouro e prata foram separados pela coroa da capitania, para que aquela exercesse maior controle direto sobre a região das Minas Gerais. A corrida para a região das minas enfraqueceu ainda mais a capitania, que entre 1748 e 1765 esteve inclusive anexada ao Rio de Janeiro. São Paulo seguia, assim, uma cidade pequena, quase um vilarejo, cerca de 300 anos depois de fundada. (Marques, 1980) É no início do século XIX, com o cultivo do café, que o estado de São Paulo passa a desenvolver-se economicamente de forma expressiva. Nessa mesma época, com o retorno da família real e da corte a Portugal, e a permanência do príncipe D. Pedro Alcântara e Bragança no Brasil, a então província de São Paulo volta ao cenário político pela nomeação de José Bonifácio de Andrada e Silva, natural de Santos, como Ministro do Reino e de Negócios Estrangeiros, além de principal conselheiro do príncipe (Fausto,
  • 16. Leandro Fraga Guimarães; Jaciara Martins Fontes Cruz Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1,pp.130-163,Jan./Jun. 2013 145 1996). Em 1822, ano da Proclamação da República por D. Pedro I às margens do rio paulista Ipiranga, a cidade contava 24.311 habitantes (“classificados” em 12.032 brancos, 4.905 negros e 7.374 pardos), segundo os Maços de População de São Paulo (Arquivo Público do Estado de São Paulo, 2013), série de estudos censitários da província, ordenado pela rainha D. Maria I a partir de 1797. Com a abolição do sistema escravagista em 1850, o governo passa a incentivar a imigração de europeus para compor a mão de obra das grandes fazendas cafeeiras. Apenas considerando-se a imigração italiana, ela começa em larga escala por volta de 1880; nos 10 anos seguintes, chegam à província de São Paulo mais de 144 mil italianos, número que será de impressionantes 430 mil na década de 1890 a 1900. Até a década de 1930, o total será de quase um milhão de italianos (Lucena & Gusmão, 2006), muitos dos quais fizeram da cidade de São Paulo sua nova moradia. A segunda metade do século XIX foi, assim, um marco de desenvolvimento do estado de São Paulo e de sua capital, com a construção da ferrovia Santos-Jundiaí para escoamento da produção do café em 1867, a inauguração da já grandiosa av. Paulista em 1891, do Viaduto do Chá em 1892, da linha de bondes Bom Retiro em 1900 e da Estação da Luz de trem, já em 1901 (Monteiro, 2010), além de outras transformações marcantes, com seus relevantes reflexos para a evolução da população urbana, como mostra o gráfico 2, a seguir.
  • 17. As Carroças de Cinco Sous para a Comodidade dos Burgueses Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1, pp.130-163, Jan./Jun. 2013 146 Gráfico 2: Evolução da população de São Paulo (em mil habitantes) Fonte: Elaboração dos autores, a partir de dados da Empresa de Tecnologia da Informação e Comunicação do Município de São Paulo (Prodam) São Paulo teve um final de século XIX agitado, como se vê. Os muitos imigrantes mudaram bastante o panorama da cidade, que ainda mantinha naquele momento, contudo, características muito distantes da metrópole que surgiria nas décadas seguintes. Afinal, a cidade era, no raiar do século XX, mais de três vezes menor do que o Rio de Janeiro; e quase 16 vezes menor do que nossa outra personagem, Paris. 4.3 SÃO PAULO E PARIS NO SÉCULO XX O início do século XX em São Paulo foi marcado pelo desenvolvimento do centro da cidade e pelo importante fluxo de imigrantes, não apenas os já citados italianos, mas também árabes e japoneses, além de portugueses e espanhóis, que trouxeram crescimento incomum e prosperidade à cidade. Segundo Monteiro (2010), até o século XIX, a região urbana da cidade concentrava-se ainda entre o triângulo formado pelos principais conventos da província (atuais ruas Direita, XV de Novembro e São Bento). Na virada para o século XX, a expansão dos limites urbanos e a ocupação do espaço passam a tomar forma mais clara, com a concentração das indústrias nos bairros do Brás e Lapa, a consolidação das comunidades italianas no bairro do Bexiga, das comunidades japonesas na região da Liberdade, e os palacetes dos grandes cafeicultores na Paulista. Uma cidade em intensa construção. Já Paris resplandecia na virada do século XX, ao mesmo tempo secular, renovada e dinâmica; nas palavras de Stéphane Mallarmé, poeta e testemunha ocular dessa transformação, “uma paisagem que assombra tão intensamente quanto o ópio...”. (Hussey, 2011) São muito raras as cidades que crescem de maneira uniforme. Mas, como afirma Glaeser (2011, pág. 134), Paris “é um todo ordenado (...). É óbvio que Paris não foi construída através do aumento gradual da densidade, como recomendam os urbanistas tradicionais”. São Paulo
  • 18. Leandro Fraga Guimarães; Jaciara Martins Fontes Cruz Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1,pp.130-163,Jan./Jun. 2013 147 também está longe disso. Mas Paris, ele continua, “é uniforme porque foi o resultado planejado de um único mestre de obras, cujo soberano imperial lhe deu carta branca” (Glaeser, 2011, pág. 134). São Paulo tem a desuniformidade típica das cidades que se fizeram em poucas décadas, embora, é verdade, ela exista há quase 500 anos. Aí está uma marcante diferença entre Paris e São Paulo para este estudo: enquanto a primeira cresceu quase que apenas em sua periferia, ao longo do século XX, mantendo muito pouco alterado seu admirável desenho central projetado por Haussmann, a segunda iniciou um ciclo de crescimento visceral e de velocidade dificilmente comparáveis no século XX aos de outras grandes cidades, como se pode ver no gráfico 3. Gráfico 3: Evolução do tamanho da população – Índice (1900=100) Fonte: Elaboração dos autores, a partir de dados do IBGE, INSEE, INEGI, Indiaonline, Londononline e US Census Bureau O gráfico 4, a seguir, mostra a evolução das populações de São Paulo e Paris, apenas as cidades centrais, no século XX. Enquanto Paris perdeu cerca de 20% de seus habitantes, São Paulo viu sua população multiplicar- se mais de 40 vezes. São experiências de ocupação urbana radicalmente diversas.
  • 19. As Carroças de Cinco Sous para a Comodidade dos Burgueses Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1, pp.130-163, Jan./Jun. 2013 148 Gráfico 4: Evolução comparada das populações de Paris e São Paulo no século XX (apenas as cidades – em mil habitantes) Fonte: Elaboração dos autores a partir de dados do IBGE e INSEE Mas a população de Paris não cresceu de fato nesse período? Não na cidade em si; cresceram as cidades periféricas, e de forma relevante. A região metropolitana desenvolveu-se num arranjo singular, ao manter seu desenho histórico central quase intocado e acomodar nas cidades vizinhas os milhões de pessoas que vieram participar do desenvolvimento econômico da capital da França durante o século XX. A análise de Glaeser (2011) aponta aspectos interessantes desse processo: A preservação da cidade pode exigir, de fato a destruição de parte dela. O desejo moderno de preservar a Paris de Haussmann ajudou a transformar a acessível Paris do passado em uma cidade-boutique que hoje só pode ser apreciada pelos mais ricos. A história de Paris é repleta de grandes artistas que viveram nela durante seus anos de privação e sem recursos no período de formação, mas quais seriam os artistas pobres que poderiam viver no centro de Paris nos dias de hoje? (Glaeser, 2011, pág. 245) Ao contrário de Paris, São Paulo cresceu vertiginosamente nesse período, como se viu. Mas também as cidades do entorno, particularmente após o período de industrialização mais intenso, em meados do século XX (embora a figura da “região metropolitana” tenha sido criada formalmente apenas na década de 1970). Considerando essa visão ampliada das cidades, as comparações entre Paris e São Paulo mudam, embora pouco, conforme
  • 20. Leandro Fraga Guimarães; Jaciara Martins Fontes Cruz Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1,pp.130-163,Jan./Jun. 2013 149 se vê no gráfico 5: a grande Paris mais que triplica de tamanho nesse período, mas a grande São Paulo cresce muitas dezenas de vezes. Gráfico 5: Evolução comparada das populações de Paris e São Paulo no século XX (regiões metropolitanas – em mil habitantes) Fonte: Elaboração dos autores a partir de dados do IBGE e INSEE (os dados de São Paulo para 1900 e 1920 referem-se apenas à cidade em si) As dificuldades para acolher esse crescimento são evidentes, e os desafios da mobilidade não são menores que em outras áreas. A primeira vez que a palavra “congestionamento” aparece no acervo do jornal O Estado de S.Paulo é na edição de sete de janeiro de 1901. Em extenso artigo intitulado “As grandes invenções do século”, V. da Silva Freire discorre sobre as muitas inovações surgidas e postas em prática ao longo do século XIX, e alerta para o “congestionamento das cidades”, tratando aqui do aumento acelerado da população urbana e dos desafios que ele trazia. (O Estado de S.Paulo, 2013) Ainda de acordo com o jornal, em 1918, o problema na Avenida da Aclimação era o congestionamento eventual de animais de montaria (ou “tropas”), que dificultavam a passagem das pessoas. Em 1927 o jornal trata, pela primeira vez, de “congestionamento de trânsito”, mas no Rio de Janeiro, onde os então cerca de 12.000 veículos automotores acomodavam- se com dificuldade nas ruas do centro, em alguns horários. Mas, em meados da década de 1920, já é possível observar nas principais avenidas da cidade de São Paulo, concentrações do “Ford Bigode”, como
  • 21. As Carroças de Cinco Sous para a Comodidade dos Burgueses Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1, pp.130-163, Jan./Jun. 2013 150 ficou conhecido o modelo T da Ford no Brasil. Em 1936, é inaugurado o Aeroporto de Congonhas, na época a quilômetros de distância do perímetro urbano. A cidade de Paris passou a primeira metade do século XX vivendo uma efervescência cultural intensa, mas também lidando com duas guerras mundiais, que abalaram parcial e temporariamente sua destacada infraestrutura, e que fizeram o tamanho de sua população oscilar para baixo. Ambas as cidades chegaram ao final do século XX muito transformadas em relação ao ponto de onde começaram. E é razoável concluir que a mobilidade urbana tenha realidades muito diversas em cada uma delas, particularmente na oferta de serviços coletivos de transporte, dados esses contextos evolutivos tão distintos. 4.4 DILEMA DA MOBILIDADE: TRANSPORTE COLETIVO OU TRANSPORTE INDIVIDUAL? A mobilidade urbana é um desafio de muitas facetas, há séculos. Na Roma antiga, o tráfego de carruagens era a tal ponto intenso que César “declarou que, em um certo período durante o dia, carroças e carruagens não podiam circular, ‘exceto para o transporte de materiais de construção dos templos dos deuses ou outras importantes obras públicas ou para retirar materiais de demolição’” (Vanderbilt, 2009, pág. 7). Com esse procedimento, no entanto, sequestrou o sono de boa parte de seus concidadãos, que não conseguiam dormir devido ao ruído provocado pelo tráfego noturno. O poeta Juvenal escreveu que, naquele século II, havia tanto barulho à noite em Roma que “nem um peixe conseguiria dormir” (Vanderbilt, 2009, pág. 7). Não era só por lá que a convivência com as alternativas de transporte urbano era ruim: havia no Liber Albus, livro de regras vigentes em Londres no século XV, uma especificamente dedicada a proibir um condutor de “dirigir sua carroça mais rapidamente quando ela estiver descarregada do que quando carregada”, sob pena de multa ou, em casos mais graves,
  • 22. Leandro Fraga Guimarães; Jaciara Martins Fontes Cruz Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1,pp.130-163,Jan./Jun. 2013 151 prisão. Na mesma Londres, por volta de 1720, acidentes de trânsito provocados por carruagens e carroças ”conduzidas furiosamente” representavam a principal causa de morte na cidade. Ainda segundo Vanderbilt (2009), na cidade de Nova York, em 1867, uma média de quatro pessoas por semana morriam por incidentes com cavalos. As bicicletas não representavam um problema menor: Depois de um ou dois falsos inícios, a ‘explosão das bicicletas’ no fim do século XIX causou um furor social. As bicicletas eram rápidas demais. Elas ameaçavam os ciclistas de males estranhos, como kyphosis bicyclistarum, ou ‘cifose do ciclista’. Elas assustavam os cavalos e provocavam acidentes. Ciclistas e não ciclistas brigavam aos murros nas ruas. As cidades tentaram banir as bicicletas. Elas foram banidas das ruas por não serem carruagens e foram afastadas das calçadas por não serem pedestres. (Vanderbilt, 2009, pág. 8) Os meios de transporte multiplicaram-se, e o fato é que, com tantas alternativas que parecem mais eficientes e confortáveis, abandonou-se, progressivamente, o meio mais antigo de locomoção: caminhando. Caminhar é o elemento mais importante do sistema de transporte de qualquer área urbana em praticamente qualquer lugar do mundo. É um modo de transporte elementar, tornando ainda possível a utilização de todos os demais modos, que requerem acesso a pé, como ônibus, trem, metrô e automóveis. é como descreve o estudo “Premissas para um plano de mobilidade urbana”, lançado em 2012 pela ANTP (Associação Nacional de Transporte Público) e pela SPTrans. Importante, sem dúvida, mas em queda, como descreve Vanderbilt (2009): no final da década de 1960 mais da metade das crianças norte-americanas ia para a escola a pé ou de bicicleta; esse percentual, hoje, é de apenas 16%. Entre o final da década de 1970 e meados dos anos 1990, o número de trajetos percorridos a pé pelas pessoas, nos Estados Unidos, reduziu-se em quase 50%. Este não é um fenômeno isoladamente norte-americano, não obstante pareça mais grave por lá, uma vez que em São Paulo as caminhadas seguem sendo responsáveis por cerca de 30% dos percursos cotidianos para o trabalho ou a escola. Em busca de mais rapidez e
  • 23. As Carroças de Cinco Sous para a Comodidade dos Burgueses Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1, pp.130-163, Jan./Jun. 2013 152 comodidade, no entanto, os cidadãos em todo o mundo buscam opções mais práticas e mais convenientes. Mas, apesar dos esforços e grandes investimentos no transporte coletivo, o transporte individual parece ser uma escolha preferencial do cidadão, quase invariavelmente, e não é de hoje, como se viu anteriormente. Mas por que o transporte coletivo não é a primeira alternativa para todos? Um estudo elaborado pelo Centro de Dados de Transporte do Ministério do Transporte da Austrália (Corpuz, 2007) dá pistas interessantes sobre isso. Os dados indicam que o uso de transporte coletivo é mais viável nas seguintes situações: a) quando a capacidade ou arranjos de estacionamento são problemáticos para o uso do carro; b) se o veículo não estiver disponível ou acessível; c) quando é mais barato. Outros aspectos, como tempo de viagem, conveniência e acessibilidade são importantes, mas parecem ser menos significativos em comparação com os três primeiros fatores. Esse estudo repete resultados de outros realizados na Europa e Estados Unidos, também citados no trabalho. Tempo de viagem e custo, tudo parece apontar, são fatores cruciais na escolha do meio de transporte. Ou seja, transporte coletivo só é uma alternativa ao individual se este último for, de alguma forma, inviável, diz a maioria das pessoas. Glaeser (2011) lembra que uma das dificuldades com o transporte coletivo é que, quase sempre, o tempo de percurso é maior: O problema (...) é o tempo envolvido para chegar até a parada de ônibus ou estação de metrô, esperar o próximo veículo e ir até o destino final a partir do ponto de descida. Este tempo alcança, em média, independentemente da distância da viagem, 20 minutos para ônibus e metrô. Mesmo antes de o ônibus chegar a percorrer a distância até a próxima parada, os usuários já utilizaram o mesmo tempo que muitos dos
  • 24. Leandro Fraga Guimarães; Jaciara Martins Fontes Cruz Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1,pp.130-163,Jan./Jun. 2013 153 que se deslocaram de carro gastam para fazer a viagem toda. (Glaeser, 2011, pág. 166) Ele trata de números médios nos Estados Unidos, mas esta realidade não é muito diversa em grandes cidades como São Paulo. Isso fica agravado quando se considera, como lembra ainda Glaeser (2011), que São Paulo tem opções ainda incipientes em alternativas para o transporte individual motorizado, como uma rede de metrô com cobertura aquém do necessário, do mesmo modo que a maioria das metrópoles dos países em desenvolvimento. Veja-se uma comparação entre os serviços de metrô de Paris e São Paulo. A tabela 1 contém alguns dados úteis para entender o que se passa. Tabela 1: Comparação das redes de metrô de Paris e São Paulo - 2013 Fonte: Elaboração dos autores, a partir de dados da RATP e da Secretaria de Transportes Municipais de São Paulo A rede de Paris é três vezes mais extensa, o que significa que oferece uma cobertura muito mais completa da cidade. O tráfego total diário de passageiros não é muito diferente entre as duas, embora cerca de 20% maior em Paris. Mas a densidade média de passageiros, ou seja, quantos passageiros passam por cada estação, ou por cada quilômetro de linha do metrô, é muito maior na capital paulista do que na francesa. Ou seja, além de cobertura menor – o que significa menor conveniência e mais tempo nas caminhadas até as estações ou até o destino final –, os paulistanos têm menos conforto no uso do metrô, pela grande densidade no uso das linhas e estações (chegando a mais de quatro vezes superior, na comparação com Paris). Como consequência, o metrô de Paris consegue ser uma alternativa
  • 25. As Carroças de Cinco Sous para a Comodidade dos Burgueses Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1, pp.130-163, Jan./Jun. 2013 154 cotidiana para o equivalente a quase 36% dos habitantes de sua região metropolitana; em São Paulo, esse número é aproximadamente a metade. As consequências desta escassez de boas alternativas são graves para uma cidade assim, em que ocorre, de forma aguda, o que destaca o mesmo Glaeser (2011, pág. 127): “Enquanto o século XIX viu várias inovações nos transportes, a cidade do século XX foi dominada por uma única: o motor a combustão interna”. Em função dessa baixa conveniência trazida pelo transporte coletivo em São Paulo, e do aumento gradual no poder aquisitivo das pessoas, o transporte individual motorizado cresce com rapidez. Mas também em função do custo. Um estudo da ANTP realizado em 2008 (ANTP, 2013) mostrava que, na capital paulista, o custo total com ônibus em uma viagem urbana de sete quilômetros é de R$ 2,30, com moto é de R$ 1,43 e, com automóvel, de R$ 6,26 (gasolina) e R$ 5,39 (álcool). Isso acontece, entre outras razões, em função do preço dos combustíveis. Em fins de maio de 2013, um litro de gasolina em São Paulo custava cerca de € 0,93, comparado com € 1,660 na França. Esta diferença de cerca de 40% ajuda a explicar uma face dessa realidade paulistana. Até porque o preço do combustível não afeta apenas as decisões cotidianas sobre que meio de transporte utilizar naquele dia. Glaeser (2011, pág. 176) explica que, em um estudo realizado por ele e Matthew Kahn em mais de 70 cidades no mundo, “quando os países passam de baixos impostos sobre a gasolina para altos impostos sobre a gasolina, a densidade dos empreendimentos aumenta em mais de 40%. A propriedade de veículos, evidentemente, também cai”. O custo, portanto, determina muito de como a mobilidade se dará, como demonstrado retrospectivamente. O mesmo Glaeser (2011) observa que, ao longo da história, nas áreas do mundo densamente povoadas (...) os cavalos foram uma alternativa de transporte da elite. A manutenção de um animal tão grande para o transporte pessoal estava muito além do alcance da maioria dos
  • 26. Leandro Fraga Guimarães; Jaciara Martins Fontes Cruz Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1,pp.130-163,Jan./Jun. 2013 155 agricultores comuns ou dos moradores da cidade. (Glaeser, 2011, pág. 166) O acesso aos carros, no entanto, é cada vez mais fácil hoje, mundialmente. Os dados sobre a produção mundial de automóveis e utilitários leves, mostrados no gráfico 6, dão a dimensão desse crescimento que, segundo a Organisation Internationale des Constructeurs d’Automobiles (OICA), acontece especialmente nas nações em desenvolvimento. Gráfico 6: Produção mundial de carros (em mil unidades) Fonte: Elaboração dos autores a partir de dados da OICA (2013) Cervero (1998) destaca que o sistema coletivo de transporte vem perdendo público para o carro, por diversas razões, entre as quais o fato de que o uso do automóvel está, na maior parte das cidades, “maciçamente subprecificado”. Para o grupo mais abastado, claro, nunca faltam alternativas: São Paulo conta, hoje, com a terceira maior frota de helicópteros do mundo, e mais de 300 helipontos espalham-se pela cidade (Vanderbilt, 2009), embora, evidentemente, esta não seja exatamente uma alternativa de alcance popular para quem quer deslocar-se pela cidade. Mas o carro, que no início do século era uma opção apenas para a elite, transformou-se numa possibilidade para grande parte da população, mesmo em países em desenvolvimento.
  • 27. As Carroças de Cinco Sous para a Comodidade dos Burgueses Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1, pp.130-163, Jan./Jun. 2013 156 As restrições forçadas de circulação também colaboram para essa seleção de modos de locomover-se. São Paulo adotou em 1997 o rodízio de placas de carros, que retira 20% da frota de automóveis das áreas centrais nos dias úteis, de forma alternada, nos horários de pico, com efeitos relevantes na poluição, mas decrescentes em relação à fluidez do tráfego, como constata o estudo da ANTP (2013). Cingapura (1975), Londres (2004) e Estocolmo (2006) são exemplos de cidades que adotaram o pedágio urbano como solução e são citadas num estudo do IPEA (IPEA, 2011) que trata desse tema e indica que uma eventual implantação gradual do sistema para São Paulo seria vantajosa. Mas o próprio estudo ressalta que essa adoção precisa ser concomitante com a ampliação da oferta de transporte coletivo de maior qualidade. A soma de combustível a preço baixo com uma indústria de automóveis e motocicletas desenvolvendo-se intensamente no mundo, e o acesso a esses meios individuais de transporte motorizado espalhando-se com rapidez – pelo aumento de opções de baixo custo e ampliação das alternativas de financiamento – parece atentar permanentemente contra o transporte coletivo em metrópoles situadas em países em desenvolvimento, como é o caso de São Paulo. Mas e a bicicleta, não seria uma alternativa de transporte individual barata, além do baixo impacto urbano? Sem dúvida, embora os dados históricos já comentados informem que é preciso cuidado para que elas possam transformar-se numa alternativa de fato viável para um grupo relevante de pessoas, sem trazer colateralidades indesejáveis em sua convivência com os veículos motorizados e os pedestres. Em grandes cidades, parece sensato reservar para elas seu espaço próprio (ciclovias e ciclofaixas) nas vias onde os veículos motorizados trafegam a velocidades mais altas, como indica o estudo da ANTP (2013). Paris foi além de fixar caminhos: seu Vélib, um sistema de bikesharing que cobre boa parte da cidade, teve grande êxito. O estudo da ANTP (2013) explica o modelo:
  • 28. Leandro Fraga Guimarães; Jaciara Martins Fontes Cruz Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1,pp.130-163,Jan./Jun. 2013 157 O conceito central desse sistema é fornecer acesso gratuito ou a preços acessíveis para bicicletas para trajetos de curta distância, em áreas urbanas, como uma alternativa ao transporte motorizado, reduzindo, assim, os congestionamentos, ruído e poluição do ar. Em maio de 2011, havia 136 programas em 165 cidades com bikesharing ao redor do mundo, envolvendo uma frota estimada de cerca de 240 mil bicicletas. Lançado em 2008, o programa público de bicicletas de Hangzhou, na China, é o maior sistema de compartilhamento de bicicletas do mundo, com aproximadamente 61 mil bicicletas e mais de 2.400 estações, e é seguido pelo “Vélib”, em Paris, que abrange cerca de 20.000 bicicletas e 1.450 estações de bicicleta. Os países com o maior número de sistemas são a França (29), Espanha (25), China (19), Itália (19) e Alemanha (5). Recentemente a cidade de São Paulo aderiu à modalidade de compartilhamento de bicicletas, embora ainda de forma modesta. (ANTP, 2013) O Vélib aparece como mais uma alternativa de transporte na cidade de Paris, integrado com metrô, ônibus, automóveis, motocicletas e tantos outros. Envolve não apenas as preocupações com a mobilidade, mas também as perspectivas de benefícios ambientais, tratando a bicicleta como uma alternativa importante nesse processo, conectando-a de fato com os outros modais de transporte, desafogando seu uso e oferecendo uma alternativa a mais para os usuários. Paris aparece regularmente em qualquer lista de cidades com melhor sistema coletivo de transporte, como a do site Inhabitat (2013), ligado ao Boston Architectural College; São Paulo ainda está longe de conseguir isso. Qual o segredo do sistema de Paris? Não há um único. As cidades têm diferenças estruturais muito relevantes. E algumas delas seriam, em teoria, até favoráveis a São Paulo, como o adensamento, por exemplo, que favorece a viabilização de sistemas coletivos de transporte. o gráfico 7 mostra como a densidade demográfica na capital paulista é cerca de oito vezes a da capital francesa.
  • 29. As Carroças de Cinco Sous para a Comodidade dos Burgueses Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1, pp.130-163, Jan./Jun. 2013 158 Gráfico 7: Paris e São Paulo: densidades demográficas (hab/km²) Fonte: Elaboração dos autores a partir de dados do IBGE e da EMTA (2012) Mas, porque o sistema de transporte coletivo é muito menos eficiente em São Paulo do que em Paris, o uso do transporte individual motorizado é a opção eleita por quase o dobro das pessoas na primeira do que na segunda cidade, como mostra o gráfico 8. É onde está uma das mais marcantes diferenças entre as duas cidades aqui comparadas. Gráfico 8: Deslocamento cotidiano nas regiões metropolitanas – meio utilizado Fonte: Elaboração doa autores, a partir de dados da EMTA (2012) e ANTP (2012). (“Carro”: incluído no total “Motorizado”)
  • 30. Leandro Fraga Guimarães; Jaciara Martins Fontes Cruz Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1,pp.130-163,Jan./Jun. 2013 159 Esse contraste repete-se nos ônibus. A frota de São Paulo é mais de três vezes maior que a de Paris, mas com um grande número de médios e pequenos veículos, que também não contribuem para maior eficiência do sistema. Gráfico 9: Paris e São Paulo – frota de ônibus Fonte: Elaboração dos autores com dados da RATP (2013) e ANTP (2012) E a importância do serviço de ônibus para São Paulo fica patente quando se observa o que mostra o gráfico 10. Gráfico 10: Paris e São Paulo: ônibus – número diário de viagens Fonte: Elaboração dos autores, dados da RATP (2013) e ANTP (2012)
  • 31. As Carroças de Cinco Sous para a Comodidade dos Burgueses Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1, pp.130-163, Jan./Jun. 2013 160 A dependência do transporte sobre pneus na capital paulista é, certamente, um dos fatores que mais amplificam os problemas cotidianos de mobilidade, especialmente porque há poucas faixas de fato restritas para a circulação desses veículos, o que reduz consideravelmente sua velocidade e eficiência. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os problemas relacionados à mobilidade urbana são muito mais antigos e persistentes do que muitos imaginam, como se procurou exemplificar neste trabalho. Cervero (1998) afirma que “rápida urbanização sempre fere” o transporte coletivo. É tarefa de alta complexidade fazer com que o sistema de transporte acompanhe adequadamente as muitas mudanças de necessidade que ocorrem ao longo desse processo. São Paulo é uma vitrine particularmente rica desse fenômeno. O crescimento extraordinário no espaço de poucas décadas, ao longo do século XX, fez com que a cidade mudasse radicalmente de perfil e, com isso, suas necessidades de ajustamento das alternativas de mobilidade urbana. A demora em adotar – e depois a lentidão em ampliar – o transporte sobre trilhos, o mais indicado para transportar volumes maciços de pessoas, como também lembra Cervero (1998), impuseram à cidade um cenário de múltiplos gargalos, dificuldades de integração e baixa qualidade no serviço de transporte coletivo. Com esforço de planejamento, aplicação de tecnologia no monitoramento e gestão do fluxo, investimento em modernização dos equipamentos e algumas medidas de restrição ao uso do automóvel, como demonstra o estudo da ANTP (2013), esse cenário está mudando, embora haja ainda muito que fazer. Jackson & Cameron (1983) descreveram em seu trabalho que as soluções inovadoras de transporte pelo mundo apontaram o “estilo europeu” de sistemas integrados como a única alternativa viável, não apenas para as metrópoles, mas também para as cidades médias: aplicação correta dos modais e integração inteligente entre eles.
  • 32. Leandro Fraga Guimarães; Jaciara Martins Fontes Cruz Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1,pp.130-163,Jan./Jun. 2013 161 A situação de Paris é um bom exemplo disso, como se viu, embora o complexo sistema da cidade também esteja em constante evolução. A partir da experiência pioneira de Pascal, muitas ações de impacto foram tomadas ao longo do tempo. Seu mais que centenário Métropolitain é uma referência em cobertura, bem como em estética, pelo cuidado na arquitetura das estações, como lembra Hussey (2011) – embora os grandes subsídios também pesem no modelo, como descreve o relatório da EMTA (2012). O singular processo de evolução populacional de Paris foi, ao mesmo tempo, causa e consequência de seu complexo sistema de transporte, como destaca Glaeser (2011). A questão da mobilidade, portanto, vai muito além do ir e vir diário. Cervero (1998) e Glaeser (2011) destacam a relevância dos sistemas de mobilidade urbana para o desenvolvimento mais saudável das cidades, sua ocupação mais racional e adequada para os cidadãos. O contraste entre uma cidade que quase não cresceu em seu núcleo central no século XX (Paris) e uma que se multiplicou dezenas de vezes em apenas 100 anos (São Paulo) teve o objetivo de mostrar como exemplos tão extremos podem ilustrar alguns dos múltiplos desafios da mobilidade urbana. Afinal, um desejo permanente em toda metrópole é o de que se construa um sistema capaz oferecer alternativas de qualidade, eficientes e com custos compatíveis para servir às necessidades de mobilidade da maioria de sua população. Não apenas para a “comodidade dos burgueses”, como ditava Luís XIV. REFERÊNCIAS ANTP (2013). Premissas para um plano de mobilidade urbana. Recuperado em 12 de abril de 2013, de http://www.antp.org.br/_5dotSystem/download/dcmDocument/2013/03/ 06/ABB0D95F-D337-4FF5-9627-F8D3878A9404.pdf. Arquivo Público do Estado de São Paulo. Maços de população de São Paulo. Recuperado em 22 de maio de 2013, de http://www.arquivoestado.sp.gov.br/viver/recenseando.php Ascher, F. (1995). Métapolis ou l’avenir des villes. Paris: Odile Jacob.
  • 33. As Carroças de Cinco Sous para a Comodidade dos Burgueses Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1, pp.130-163, Jan./Jun. 2013 162 Cervero, R. (1998). The transit metropolis: a global inquiry. Washington D.C.: Island Press. Chandler, T. (1987). Four thousand years of urban growth: an historical census. Lewiston, NY: The Edwin Mellen Press. Chandler, T. & Fox, G. (1974). 3000 years of urban growth. New York, NY: Academic Press. Corpuz, G. (2007). Analysis of peak hour travel using the Sydney household travel survey data papers from the 30th Australasian Transport Research Forum. Gold Coast: ATRF. Costa, M. S. (2003). Mobilidade urbana sustentável: um estudo comparativo e as bases de um sistema de gestão para o Brasil e Portugal. Dissertação de Mestrado, Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo, São Carlos, São Paulo, Brasil. EMTA Barometer. (2012). Recuperado em 07 de maio de 2013, de Http://www.emta.com. Fausto, B. (1996). História do Brasil. São Paulo: Edusp. France.fr. (2013). Recuperado em 05 de maio de 2013, de www.france.fr. Glaeser, E. Os Centros Urbanos. Rio de Janeiro, RJ, Elsevier, 2011 Hussey, A. A história secreta de Paris. Barueri, SP: Amarilys, 2011. Inhabitat (2013). Recuperado em 05 de maio de 2013, de http://inhabitat.com/transportation-tuesday-top-10-cities-for-public-transit/. Institut National de la Statistique et des Études Économiques – INSEE. (2013). Recuperado em 05 de maio de 2013 de www.isee.fr Ipea (2011). Recuperado em 10 de maio de 2013 de www.ipea.gov.br Jackson, P. & Cameron, J. R. (1983). System development. Cachan FRANCE, Lavoisier, 1983. Klaper, C. Golden Age of Buses. London , Routledge & Kegan Paul, 1978 Lévy, J. (2000). Les nouveaux espaces de la mobilité. Paris: Presses Universitaires de France. Lucena, C. T. & GUSMÃO, L. M. M (Orgs.). (2006). Discutindo identidades. São Paulo: Humanitas. Marques, M. E. de A. (1980). Província de São Paulo. São Paulo: Itatiaia.
  • 34. Leandro Fraga Guimarães; Jaciara Martins Fontes Cruz Future Studies Research Journal ISSN 2175-5825 São Paulo,v.5, n.1,pp.130-163,Jan./Jun. 2013 163 Modelski, G. (2000, 2003). World cities: –3000 to 2000, Washington, DC: Faros. Monmerqué, L. J. N. (1828). Les carroces à cinq sols, ou les omnibus du dix-spetième siécle. Paris: Imprimerie de Firmin Didot. Monteiro, P. R. (2010). São Paulo no centro das marginais: a imagem paulistana refletida nos Rios Pinheiros e Tietê. Tese de Doutorado, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil. Morris, I. (2010). Why the west rules – for now: the patterns of history, and what they reveal about the future, New York: Farrar, Straus and Giroux. Nazzari, M. (2001). O desaparecimento do dote: mulheres, famílias e mudança social em São Paulo, Brasil, 1600-1900. (L. L. de Oliveira, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras. O Estado de S.Paulo. (2013). Recuperado em 10 de maio de 2013 de www.estadao.com.br Organisation Internationale des Constructeurs d’Automobiles – OICA. (2013). Recuperado em 20 de abril de 2013, de http://www.oica.net. Pascal, B. Pascal’s pensées. (2006). Recuperado em 02 de abril de 2013, de http://www.gutenberg.org/files/18269/18269-h/18269-h.htm. RATP (2013) Recuperado em 18 de abril de 2013 de http://www.ratp.fr/ Scaringella, R. S. (2001). A crise da mobilidade urbana em São Paulo. São Paulo em Perspectiva, 15(1),. Vanderbilt, T. (2009). Por que dirigimos assim? Rio de Janeiro: Campus. Yin, Robert. (1999). Case study research: design and methods (2 ed.). (1999). Newbury Park, CA: Sage.