O tema deste trabalho é a associação entre o Lúcifer do poema épico "Paraíso perdido" (1667), clássico da literatura mundial, e o mito de Prometeu. Explora-se as semelhanças arquetípicas entre estas duas figuras ambíguas; o simbolismo do fogo e sua relação com o surgimento da consciência; o desenvolvimento do ego e o sentimento de solidão e culpa que acompanha o afastamento do inconsciência; entre outros temas.
2. IRMÃOS DE FOGO
Introdução
O poema épico Paraíso Perdido, de Milton,
é uma obra essencial para o Cânone literário
Ocidental (Bloom, 2010)
Bloom (2010) inclui “as grandes tragédias de
Shakespeare, Canterbury Tales [Contos de
Cantuária] de Chaucer, a Divina Comédia de
Dante, a Torá, os Evangelhos, Dom Quixote de
Cervantes” e “os épicos de Homero” na lista de
obras canônicas (p. 42)
3. IRMÃOS DE FOGO
Introdução
Num ensaio literário clássico publicado em 1952, Werblowsky (2007)
utilizou conceitos da Psicologia Analítica para fazer uma comparação
entre Prometeu e Lúcifer / Satã de Paraíso Perdido:
(i) Consciência: é quem gere o pensamento e a vontade (Jung, 2000)
(ii) Projeção: processo automático de transferência de conteúdos
inconscientes para um objeto, seja no par amoroso ou em fenômenos da
natureza (Jung, 2000)
(iii) Inconsciente Coletivo: memória coletiva da espécie humana, é um
camada arcaica do inconsciente que é fonte de mitos, lendas, contos de
fada e religiões (Jung, 2000)
(iv) Arquétipos: imagens universais presentes no inconsciente coletivo, a
exemplo da mãe, do renascimento, da criança divina e do Trickster (Jung,
2000)
4. IRMÃOS DE FOGO
Introdução
Werblowsky (2007/1952) fala como Jung sempre insistiu em trazer à tona
o problema do Diabo e a sua conexão com a sombra, tanto na psicoterapia
quanto na pesquisa teórica
O arquétipo da “sombra” é o lado inferior e obscuro da personalidade
humana (Jung, 2000)
Os poetas e escritores românticos como Percy Bysshe Shelley (1792-1822)
e Lord Byron (1788-1824) foram os primeiros a fazer uma analogia entre
Lúcifer e Prometeu, porque os dois ofereceram uma resistência heroica à
ordem divina (Werblowsky, 2007/1952)
5. IRMÃOS DE FOGO
Prometeu
Prometeu (“premeditação”) era o sábio titã que criou a humanidade e
transmitiu-lhes a arquitetura, astronomia, matemática, navegação,
medicina, metalurgia e outros ofícios úteis
Zeus, soberano do Olimpo, se irritava com os homens devido ao seu
talento e poder crescente e queria exterminá-los; foram as súplicas de
Prometeu que impediram isso de acontecer
Prometeu um dia foi chamado para ser árbitro do sacrifício de um touro,
onde ia se decidir quais partes iriam ser reservadas para os homens e
para os deuses
Prometeu fez duas bolsas com a pele do animal e induz Zeus ao erro,
fazendo-o pegar a bolsa com ossos no lugar da bolsa com carne
6. IRMÃOS DE FOGO
Prometeu
Ao perceber que foi enganado por
Prometeu, Zeus o castiga privando os
humanos de fogo
Revoltado com a atitude de Zeus, Prometeu
entra furtivamente no Olimpo e com a
permissão de Atena rouba o fogo do Olimpo e
o entrega novamente aos homens
Zeus, indignado com Prometeu, o condena a
eternidade para o seu fígado ser devorado
durante o dia por um abutre e durante a noite
ser regenerado, tendo de enfrentar no processo
frio e geadas insuportáveis
7. IRMÃOS DE FOGO
Prometeu
Como punição extra, Zeus cria uma bela e malévola mulher chamada
Pandora e dá-lhe de presente para o seu irmão Epimeteu, cujo nome
significa “reflexão”
Prometeu deu um pote a Epimeteu onde tinha confinando todos os males
mortais e advertiu o irmão para nunca abri-lo
Pandora imprudentemente abriu o pote e dele saíram a Velhice,
Trabalho, Doença, Loucura, Vício, Paixão e atacam Pandora, Epimeteu e
depois infestaram toda raça humana
A última a sair da caixa é a elusiva Esperança, que convenceu a todos com
as suas mentiras a não cometerem suicídio coletivo
8. IRMÃOS DE FOGO
Prometeu
Na literatura, Prometeu é figura ambígua: ao
mesmo tempo que é valorizado por favorecer
os homens contra os deuses, Prometeu trouxe
ruína ao humano por desconectá-lo do divino
Frankenstein: ou o Prometeu Moderno de Mary
Shelley (1797-1851) é uma crítica romântica do
materialismo científico e sua busca egocêntrica
por aumento de conhecimento
A criatura de Frankenstein aprende a ler com
o Paraíso Perdido; o monstro, inclusive, se
compara com o Adão do livro, um “anjo
caído”
9. IRMÃOS DE FOGO
“Herói-Vilão”
No levantamento etimológico de Link (1998),
Satã deriva da palavra hebraica satan (ט(ןָ ,(ן ָשָּ ,(ןׂ ),
“adversário” e Lúcifer vem da expressão latina
luxem ferre, “portador da luz” (p. 25)
“Lúcifer” é originalmente usada, no Velho
Testamento, para identificar o planeta Vênus,
mas eventualmente “Satã” e “Lúcifer” viraram
termos intercambiáveis (Link, 1998)
No épico de Milton (2006), Lúcifer era o nome
original de Satã, caindo em desuso depois de
sua rebelião
10. IRMÃOS DE FOGO
“Herói-Vilão”
O Satanás de Milton é o herdeiro literário dos
grandes heróis-vilões de William Shakespeare,
a exemplo de Iago (Otelo, o Mouro de Veneza),
Edmundo (Rei Lear) e os protagonistas
homônimos de Hamlet e MacBeth (Bloom,
2010)
Em contrapartida Cristo e Deus, no épico de
Milton, são “personagens [...] empobrecidos”, o
último retratado como “pomposo, defensivo e
hipócrita” (Bloom, 2010, p. 222)
11. IRMÃOS DE FOGO
“Herói-Vilão”
Na Bíblia Hebraica Satã é um anjo
acusador, não tendo a mesmo status de
figura maligna suprema que assumiria
posteriormente na
teologia cristã (Bloom, 2008)
Jung (2003) também aponta essa evolução da
figura do Diabo na tradição cristã: da aparição
relativamente inócua dele no Velho
Testamento até chegar à doutrina do summum
malum, o princípio do mal, em contraposição à
Deus, o summum bonum
12. IRMÃOS DE FOGO
“Herói-Vilão”
O “soberbo e infeliz” Satã de Paraíso Perdido é um “usurpador muito
malsucedido”, cheio de remorso e desesperado por ter sido lançado dos
domínios da luz para a escuridão do Inferno (Bloom, 2012)
Milton faz de Satã um filho pródigo universal que paga o mais alto preço
por ser ele mesmo (Bloom, 2012)
Bloom (2008) também observa que o “trágico vilão de Paraíso Perdido”
tem um característica singular: apesar da identificação de anjos caídos
com diabos e demônios, eles conservam uma certa dignidade por ainda
serem anjos
13. IRMÃOS DE FOGO
Drama Familiar
O Satã do Novo Testamento foi moldado pela
ideia de Angra Mainyu ou Ahriman, o Espírito
do Mal zoroastrista (Bloom, 2008)
Nessa religião persa, o demônio Ahriman era
o irmão gêmeo de Deus (Ahura Mazda), uma
ideia que o cristianismo não herdou (Bloom,
2008)
Algumas tradições esotéricas retomam essa
concepção de um vínculo fraterno entre o mal
(Satã) e o bem (Cristo), o que seria um retorno
à visão de Zoroastro (Bloom, 2008)
14. IRMÃOS DE FOGO
Drama Familiar
No início de Paraíso perdido Deus proclama
que Cristo é seu único filho gerado, o que leva
Satã à rebelião por deixar de ser o favorito do
pai (Bloom, 2012)
De acordo de Jung (2011d), se Satanás e Cristo
são ambos filhos de Deus, isso os enquadra no
arquétipo dos irmãos inimigos
Ainda segundo Jung (2011d) há um outro par
de irmãos adversários na Bíblia, Caim e Abel;
o primeiro é rebelde e progressista (luciferino)
e o outro é o bom pastor
15. IRMÃOS DE FOGO
O Jardim do Éden
Nos capítulos 2 e 3 de Gênesis, o primeiro livro do Velho Testamento, é
descrita a história de Adão e Eva e a sua expulsão do jardim do Éden
Depois de criar a terra, os céus e os seres vivos, Deus plantou um jardim
no lado oriental do Éden e pôs ali o homem que tinha formado do pó da
terra (Adão)
No meio do jardim, entre as várias árvores que Deus fez brotar, estavam
a Árvore da Vida e a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal
Deus proíbe Adão de comer o fruto da Árvore do Conhecimento, pois no
dia que comesse morreria
16. IRMÃOS DE FOGO
O Jardim do Éden
Depois de Adão dar nome aos animais, Deus o
fez cair num sono profundo para tirar uma
costela dele e fazer a mulher – Eva – mãe da
humanidade, a quem acompanharia o homem
A serpente, a mais astuta dos animais do
campo, seduziu Eva e a convence a provar o
fruto proibido para “abrir os olhos” e ser
versada no bem e o mal
Eva ofereceu o fruto à Adão e depois de o
comerem, perceberam que estavam nus e se
cobriram com folhas de figueira
17. IRMÃOS DE FOGO
O Jardim do Éden
Ao ouvir Deus se aproximar no jardim, Adão e Eva se escondem com
medo entre as árvores; ao perguntar o motivo, Deus percebe a vergonha
deles de estarem nus e descobre que comeram o fruto proibido
À partir daí Deus institui a hostilidade entre homem e mulher e sua
linhagem, e o domínio do masculino sobre o feminino
Deus também diz que o homem ira se nutrir com o pão produzido com “o
suor do teu rosto” por “todos os dias de tua vida”
Deus expulsou o homem do Éden e colocou querubins diante do jardim
para guardar o caminho até a árvore da vida, cujo fruto dá vida eterna
18. IRMÃOS DE FOGO
Hermenêutica
Quanto à interpretação da Bíblia, Robertson (1994) advoga um ponto de
vista diferente dos seguintes:
(i) Um fundamentalismo religioso que ignora fatos históricos conhecidos
(ii) Uma rejeição da Bíblia via uma lógica materialista / racionalista que
não pode comprovar literalidade da Bíblia como documento histórico
Robertson (1994) cita como exemplo o Livro do Apocalipse, que trata de
uma mudança de estado de consciência coletivo usando a mesma
linguagem simbólica dos sonhos, visões, mitos e contos de fada
19. IRMÃOS DE FOGO
“Psicologismo”
Essa hermenêutica do texto bíblico não
significa cair no “psicologismo”, que é dar
explicações racionalistas no intuito de
desvalorizar questões metafísicas, o que
seria um preconceito tipicamente ocidental
(Jung, 2011c)
Jung (2011a) não nega nem menospreza uma
“ordem transcendental das coisas”, apenas não
acha que está em condições para dar uma
explicação racional para elas, pois são fatos
que estão fora do campo científico
20. IRMÃOS DE FOGO
Amplificação
Jung (2005) advoga o método da “amplificação”, que é fazer uma análise
comparativa de imagens oníricas mediante a associação delas com
símbolos da mitologia, religião, folclore e história da arte, com o objetivo
de tornar o conteúdo do sonho “acessível à interpretação” (p. 351)
Há alguns paralelos entre o mito de Prometeu e o livro de Gênesis:
(i) uma ato de subversão que afasta a humanidade da ordem divina
(ii) a conscientização e as dores psíquicas que ela traz, pela realização que
o homem tem de suas limitações e pela imposição de regras morais e
éticas
(iii) um afastamento da eternidade e da animalidade da inconsciência
(iv) o vínculo entre a consciência e o processo civilizatório
21. IRMÃOS DE FOGO
Amplificação
O fogo, elemento central no mito de Prometeu,
era símbolo da consciência e do pensamento na
Grécia Antiga (Werblowsky, 2007/1952)
O fogo transforma o homo sapiens em homo
faber, coroando-o no mestre do mundo, a custo
de uma desunião com o mundo interno e o com
mundo externo (Werblowsky, 2007/1952)
O aumento da consciência traz tanto a inflação
do ego e o aumento do sentimento de culpa, e a
sensação de solidão que persegue a consciência
(Werblowsky, 2007/1952)
22. IRMÃOS DE FOGO
Amplificação
Há também uma analogia entre o fogo e a
libido, considerada por Jung (2011e) como
energia psíquica revestida de, mas não limitada
à, sexualidade
No monoteísmo judaico-cristão a libido pode
ser tanto “divina” como “demoníaca”: uma
força em prol da consciência ou metáfora para
a paixão e a sexualidade (Jung, 2011e)
Satanás simboliza o componente animal do
homem e também representa o instinto sexual
(Jung, 2011e)
23. IRMÃOS DE FOGO
Amplificação
tentador adj.s.m. (sXV) s.m. 2 fig. o diabo
tentar v. (sXIII) 1 empregar meios para conseguir
(algo); 4 t.d. pôr experiência; provar, testar 6 t.d.
despertar vontade (em alguém) para fazer algo t.d.
10 procurar conhecer; sondar, tatear
tentativa s.f. (1619) ato ou efeito de tentar;
tentação 1 ação que tem por fim pôr em execução
um projeto ou uma ideia 2 teste experimental;
ensaio, prova
Investigando os diferentes sentidos da palavra
“tentar” e seus termos associados é uma forma
de revelar o impulso prometéico do diabo
24. IRMÃOS DE FOGO
Considerações Finais
O “êxito estético” do Satã de Paraíso Perdido é
nas palavras de Bloom (2012) um “quebra-
cabeças moral” (p. 123)
Uma possível explicação para isso é a negação
de Milton do dualismo (Bloom, 2012), o que
implica que Lúcifer não é total escuridão e
nem o Deus é inteiramente luz
O processo de unificar os contrários, de fazer
uma ponte entre o consciente e a inconsciência
é chamado por Jung (1989) de “função
transcendente” (p. 72)
25. IRMÃOS DE FOGO
Considerações Finais
Jung (2005) salienta a dificuldade de lidar com a sombra, a parte inferior
da personalidade do sujeito que precisa ser integrada
Na concepção de Jung (2005) a sombra também tem um aspecto coletivo,
identificada como o arquétipo do inimigo perpétuo, a fonte do mal
O Lúcifer de Paraíso Perdido não é o Satã do Novo Testamento, imagem
da maldade absoluta: o maior dos anjos caídos é poderoso, mas pode ser
derrotado; é rebelde, porém saudoso do lar divino; é heroico, mas se
revela em certos momentos frágil e vulnerável
O antidualismo de John Milton resignifica o espaço simbólico ocupado
por Lúcifer no drama cósmico da Criação; assim como a sombra, quando
integrada, amplia a consciência, o reconhecimento que o anjo caído tem
um importante papel a cumprir relativiza o seu poder negativo
26. IRMÃOS DE FOGO
Referências Bibliográficas
• Bíblia de Jerusalém. (2002). São Paulo: Paulus.
• Bloom, H. (2008). Anjos caídos. Rio de Janeiro: Objetiva.
• Bloom, H. (2010). O cânone ocidental. Rio de Janeiro: Objetiva.
• Bloom, H. (2012). Abaixo as verdades sagradas: poesia e crença desde a
Bíblia até nossos dias. São Paulo: Companhia das Letras.
• Hinds, A. (Produtor), & Francis, F. (Diretor). (1964). O monstro de
Frankenstein [Filme]. Reino Unido: Hammer Horror Productions.
• Graves, R. (2008). O grande livro dos mitos gregos. São Paulo: Ediouro.
• Houaiss, A., & Villar, M. S. (2009). Dicionário Houaiss da língua
portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva.
• Jung, C. G. (1989). Psicologia do inconsciente. Petrópolis, RJ: Vozes.
27. IRMÃOS DE FOGO
Referências Bibliográficas
• Jung, C. G. (2000). Os arquétipos e o inconsciente coletivo (2º ed.).
Petrópolis, RJ: Vozes.
• Jung, C. G. (2003). Escritos diversos. Petrópolis, RJ: Vozes.
• Jung, C. G. (2005). Memória sonhos reflexões. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira. 23º reimpressão.
• Jung, C. G. (2011). A vida simbólica: Vol. 1 (5º ed.). Petrópolis, RJ:
Vozes.
• Jung, C. G. (2011). Estudos alquímicos (2º ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.
• Jung, C. G. (2011). Interpretação psicológica do Dogma da Trindade (8º
ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.
28. IRMÃOS DE FOGO
Referências Bibliográficas
• Jung, C. G. (2011). Símbolos da transformação: análise dos prelúdios de
uma esquizofrenia (7º ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.
• Link, L. (1998). O Diabo: a máscara sem rosto. São Paulo: Companhia
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• Milton, J. (2006). Paraíso perdido (3º ed.). Cotovia: Lisboa.
• Robertson, R. (1994). Introdução ao apocalipse: uma interpretação
Junguiana. São Paulo: Cultrix.
• Shelley, M. (2013). Frankenstein. Porto Alegre: L&PM.
• Werblowsky, R. J. Z. (2007). Lucifer and Prometheus. New York:
Routledge. (Original publicado em 1952).