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Entrevista do professor da PUC-SP Eugênio Trivinho concedida ao jornalista
Bruno de Pierro para o portal Brasilianas.org e o Blog do Luis Nassif (ano: 2012)

Estamos vendo surgir uma nova modalidade de capitalismo com as redes sociais,
segundo a qual as regras da comunicação não são mais ditadas pelo jornalismo.
Além dos fatos que costuma abordar e perseguir, a prática jornalística está às
voltas com o “sobrefato”, ou seja, a movimentação da sociedade dentro do espaço
cibernético, da qual a produção simbólica do jornalismo é dependente. A avaliação
é de Eugênio Trivinho, professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em
Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
SP) e assessor do CNPq, da CAPES e da FAPESP.

Considerado um dos principais nomes do estudo sobre a cibercultura, Trivinho
falou ao Brasilianas.org por duas horas sobre as transformações da comunicação
nas redes sociais e a defasagem do jornalismo para lidar com a nova ordem que
se impõe. Para o professor, o que acontece é um “destronamento do jornalismo
como instrumento de mediação simbólica da sociedade”, ao mesmo tempo que o
real é reportado sem a necessidade da edição, perdendo-se, assim, o monopólio
do jornalismo especializado.

Na conversa, Trivinho ainda explica o conceito de “glocalização”, em oposição à
globalização. Para ele, o termo “glocal” pode explicar melhor o cenário
estabelecido pela conexão da Internet, pois significa aquilo que une o global da
rede no local de acesso. Por fim, Trivinho fala sobre como o modo de produção do
saber na cibercultura tornou-se incompatível com os cânones da Ciência. Confira
abaixo as principais partes da entrevista. A íntegra está disponível,em PDF, abaixo
do post, ou pode ser acessada por aqui.

Brasilianas.org - Qual a concepção que o senhor tem pensado, nos últimos
anos, sobre as redes sociais na Internet?
Eugênio Trivinho - Em primeiro lugar, a questão da categoria: redes sociais é um
truísmo, uma expressão conceitual que acabou tendo bastante aceitação no
campo jornalístico, no senso comum e também no campo acadêmico, por um
descuido do hábito. Na realidade, o conceito é bastante pleonástico, porque não
há rede que não seja social. O adjetivo entra aí quase como um qualificador em
relação às redes, para redundar no óbvio. Superada essa questão do pleonasmo
interno - e não deveria ser assim -, deveria ser o conceito de “rede sócio-
tecnológica”. Esse é o conceito diferencial. Mas supondo que redes sociais são
aquelas, e especificamente aquelas que se incubam no ciberespaço, e,
articulando-se nele, emergem, trazem alguma coisa que nos faz pensar.

Sobretudo porque essas redes sociais tem dimensões, que tem sempre
preocupado teóricos de diversos campos do saber. Elas tem uma dimensão
claramente além do societário, da sociabilidade; tem uma função claramente
política; econômica; cultural, evidentemente; e moral. No campo político, as redes
sociais são uma espécie de epicentro articulatório de indivíduos que, a priori, são
isolados, para fazer renascer alguma forma de movimentação na sociedade. E na
sociedade pode ser dentro ou fora da rede. Essa forma de fazer política pode ser,
muitas vezes, tão forte e envolvente que é capaz de se mobilizar e se fazer
projeção contra o próprio aparato repressivo (cavalos, gás lacrimogêneo etc.).

Essas redes sociais tem um clara função econômica, de duas formas. Elas são
articuladoras de novas formas de empreendedorismo. As formas de
empreendedorismo que nasceram no ciberespaço, sinceramente, não estão
vinculadas a certos padrões capitalistas; muitas vezes são projetos de pessoas
que não vivem no mesmo local, cumprem determinadas funções, prestam
serviços, a partir de lugares remotos, e são projetos que não implicam a
contratação de mão de obra assalariada. E o fato de não haver contratação de
mão de obra assalariada implica na recusa de certos pressupostos capitalistas,
porque onde há emprego de mão de obra assalariada, há, evidentemente,
produção de riqueza não repartida. Essa produção da mais-valia, que se reparte,
na maior grandeza, para aquele que detém as condições de contratação, e a
menor grandeza para aquele que apenas vende sua força de trabalho, sua
competência cognitiva, sua habilidade profissional, a recusa e a ausência não
configura, portanto, a existência daquele fio condutor que sempre animou o
capitalismo, que foi a exploração de um ser humano por outro.

Mas, na verdade, podemos dizer que a exploração continua, mas de forma
mais sutil. As pessoas se cadastram, fornecem seus dados e viram massa
para as grandes empresas do ciberespaço.
Se se trata de um empreendimento vinculado à rede, em que o empreendedor
contratou a mão de obra de estagiários, por exemplo, e paga salário para cada
qual, com carteira assinada ou não, o lucro não é dividido entre pares e fica
concentrado para aplicação da reprodução do próprio negócio, para a contratação
de mais funcionários, para a ampliação de filiais. Se há esse esquema, há,
evidentemente, modus operandi capitalista no sentido mais clássico. Quando não
há, quando a prestação de serviço é feita por uma pessoa apenas, e ela não
emprega mão de obra assalariada, então não há, evidentemente, a configuração
da mais-valia. Porque tudo aquilo que é capital entrante é relacionado apenas à
posse de uma pessoa. Então não há mais-valia; o que há é o pró-labore.

É muito curioso que, em muitos modelos de empreendedorismo que nasceram
com o ciberespaço não há configuração clássica do capitalismo. Ao contrário, o
que existe são muitas práticas de empreendedorismo produtivistas, mas sob um
outro viés, que não implica necessariamente a contratação de funcionário que vão
ganhar menos devido ao salário, em prol de alguém que vai ganhar mais, porque é
o contratador. Na realidade, são formas compartilhadas de trabalho, cada qual
vivendo em bases remotas, nem sempre no mesmo país, e que acabam
perfazendo formas de prestação de serviços que implica, no final, a repartição
assemelhada dos lucros. Isso é uma realidade muito interessante, que só foi
possível com a emergência do ciberespaço.

A outra dimensão que as redes sociais trazem, essa sim mais sutíl e bastante
curiosa, é o fato de que diversas mega corporações, que portanto trabalham suas
marcas ao nível transnacional - e que muitas vezes são redes sociais, Facebook,
por exemplo - e que se valem do trabalho articulado de milhões, bilhões de
pessoas ao redor do mundo, consideradas como capital humano, e que aderem a
essa marca sem gastar um tostão. E justamente por isso valoram, semana a
semana, mês a mês, ano a ano, a marca.

Isso sim é a exploração de que falei.
É a exploração que não passa como exploração. É a exploração flexivel, sutil,
imperceptível, obliterada de uma marca, que se gerencia como marca, que acolhe
os consumidores - eles não precisam comprar nada no mercado.

Não entra o simbólico do dinheiro, certo?
Não entra, não há essa troca econômica, portanto parece que a troca não existe,
mas existe. Na realidade, esses que são acolhidos são justamente aqueles que
concordam em ter perfis, em ativar os nichos de rede para poder se relacionar com
pessoas etc. E o contexto dessas mega marcas, em termos da sua valoração no
mercado - o Facebook entrou recentemente no mercado de capitais -, com marcas
sendo vendidas por bilhões, por mais que haja sociabilidade livre, desinteressada
e distribuída, compartilhada, há negócio como qualquer outro, do ponto de vista da
economia de capitais. Então, a marca é acolhedora e aquele conjunto de milhões
de pessoas, que aderem a essa marca, e que agem sem pensar que estão no
terreno de um negócio, quanto mais pessoas houver para dar fomento e
sustentação à marca, mais investidores haverá e mais a marca será benquista
pelo capital de publicidade e que quer se vincular a ela. E, nesse caso, usuários de
redes, pela interatividade, são considerados como meros objetos sem que saibam.

O Flickr promove eventos em vários lugares para promover a sua marca e se vale,
evidentemente, da espontaneidade, da voluntariedade autonoma - pois ninguém é
coagido, todo mundo faz porque quer - das pessoas. O que se vê são pessoas que
fazem isso com prazer e com bastante consciência, pois sabem o que estão
fazendo, ninguém é manipulado. As pessoas vão até o evento, sabem que estão
num evento promocional e querem estar lá. São, portanto, corpos-propaganda,
corpos de indivíduos (sem questão de gênero, de credo, nem de faixa etária ou,
muitas vezes, salarial), que vão a esses eventos, tiram fotos, colocam nos seus
perfis, dizendo que estiveram lá. E não se incomodam por serem garotos e garotas
propaganda. Estamos vendo surgir uma nova modalidade de capitalismo com as
redes sociais, e que não deixa de ser perversa.




Estamos falando do âmbito individual, que se torna social. Mas falando do
jornalismo, vemos transformações interessantes na forma de produção da
notícia, colaboração etc. A cobertura jornalística tradicional tem sofrido
muito para acompanhar o que se difunde e divulga na rede. Dois casos mais
notórios dos últimos meses foram Pinheirinho, em São José dos Campos,
com vídeos, fotos e textos sendo gerado in loco por pessoas que não
praticam o jornalismo, e ainda assim foram fontes de notícia; e o outro, as
denúncias relacionadas a Carlos Cachoeira, com muitas informações
relevantes circulando apenas em blogs, e não na grande mídia.
A operação das redes sociais foi uma enorme surpresa para os usuários e
estudiosos do ciberespaço, uma grande surpresa histórica em termos de
fenomenologia social. Nos últimos dez anos, é o fato mais significativo do ponto de
vista de agrupamentos sociais tendentes à realizar alguma atividade conjunta, não
digo para a superação das condições vigentes do capitalismo, mas para expressar
insatisfação e para poder dizer que existem novas formas de subjetivação de
mundo, com pessoas vendo o mundo de uma outra maneira, articuladas por redes,
ocupando ruas, praças, elaborando novas formas de empreendimento e de criação
de riqueza e assim por diante. O que você coloca a respeito da questão do
jornalismo entra na dimensão cultural, e como dimensão cultural não devemos
entender apenas a relação com a arte, mas àquilo que se refere à produção
simbólica. E o jornalismo é uma produção simbólica, especializada e com
linguagem específica e que, portanto, envolve uma técnica. E é uma produção
simbólica para um consumo abstrato.

O jornalismo se faz para a leitura, para a visualidade. E a leitura é um consumo
abstrato; alguém fala consumo alucinatório. Não é o consumo de materiais, como
comer uma fruta ou de roupas, que são para vestir, ou um apartamento no qual se
habite. O consumo abstrato está proliferado, e quem o satisfaz, nessa demanda,
ou seja, quem satisfaz uma sociedade midiática, fundada no consumo abstrato, é a
produção simbólica.

O que ocorre com o jornalismo quando emergem as redes sociais? De fato, essa
surpresa provoca desafios à produção simbólica, especificamente a jornalística. E
os desafios ficam por conta, primeiro, da abordagem em tempo real. O jornalismo
que mais perdeu com as redes sociais, e sempre é o que mais perde, foi o
jornalismo impresso diário. Porque o semanal e o mensal tem condições de
assimilar mais material e fazer o que o jornalismo diário não pode fazer, o que o
jornalismo televisivo não pode fazer e o que o jornalismo de Internet não pode
fazer, pois eles são vocacionados ao tempo curto. Somente com o distanciamento,
provido pela regra do jornalismo semanal e mensal, é que há a possibilidade de se
agrupar o maior conjunto de dados e fazer o monitoramento, descartando várias
coisas que realmente não interessam e só ficando com alguma estrutura
interessante de fatos. E você os reporta, e a partir do momento em que ele vão se
apresentando, você pode espalhar um pouco mais as pautas e descartar algumas.
Então, numa entrevista, no primeiro dia, ela pode ser descartada no seguinte [dia],
porque os fatos ultrapassaram a palpitação, a validade dessa entrevista prevista
antes. Uma vez que você não precisa traduzir num produto, numa reportagem,
numa notícia, naquele dia o que está acontecendo, você tem a possibilidade de
flexibilizar o modo de compreensão do que está acontecendo.

Isso não é possível para quem está na linha de frente do jornalismo diário. É
possível que o jornalismo televisivo também tenha sido, e é, evidentemente, bem
prejudicado, porque ele precisa se organizar em dependência de determinados
horários. E a unidade, que antes era o “dia”, do jornalismo diário - já foi semanal -,
passou a ser para um conjunto de horas, quando houve a emergência do rádio e
também da televisão. Mas a medida dos fatos de hoje não é mais a medida nem
pelo dia, nem pela hora; é pelo minuto. O tempo real é um tempo sem medida, ele
se constrangeu muito para o efeito de abordagem de fatos. E a abordagem de
fatos é a regra básica que sustenta a produção jornalística. Ora, como concorrer
com o jornalismo impresso e o radiofônico, que ainda vive de “entradas”, e o
televisivo, que tem uma flexibilidade, mas nem tanto, pois já uma programação que
precisa ser honrada?

As redes sociais podem não produzir jornalismo, ensaísmo acadêmico, mas elas
inventaram uma nova linguagem, ultra ágil, e, ao mesmo tempo, seu espelhamento
é em tempo real. E aí envolve não somente uma sociabilidade, mas uma coisa que
diz respeito ao confronto com as autoridades, com o aparato repressivo, e assim
por diante. São pessoas altamente ativas, que fazem parte de certos grupos,
nunca são isoladas, e que respondem a uma voz e a um lugar de fala, e que,
portanto, precisa fazê-lo para reproduzir esse lugar de fala. E o fazem não por
dinheiro, mas exclusivamente pela partilha, pelo potencial e pelo empoderamento
do âmbito civil.

O jornalismo está agora em outro contexto, cujas regras não foram dadas por ele,
e diante de um fato que se coloca bastante curioso: o jornalismo, além dos fatos
que ele aborda e que ele persegue, está às voltas com o “sobrefato”, que é agora
o caso das redes sociais. O jornalismo, que sempre dependeu de determinadas
movimentações maquinais, tecnocráticas, uma parafernalha de hardwares
(satélites, televisores), agora tem a Internet. Mas o jornalismo não depende só da
parte da parafernalha da Internet, ele depende de uma movimentação interessante
e que é da sociedade, dentro do ciberespaço e do qual o jornalismo e sua
produção simbólica depende.

Assim, o jornalismo está defasado em relação ao seu próprio contexto de inserção,
exclusivamente relacionado ao modo de produção em tempo real. Ele precisa se
adequar, espargindo as suas redes para fontes que agora não estão, senão, no
universo das redes sociais.

Há o exemplo interessante do Huffington Post, com um modelo próprio de
jornalismo colaborativo, logística de informação. Falaremos cada vez menos
do jornalismo como dono da informação, portanto?
Na realidade, a questão é bastante complexa. Essa argumentação traz diversos
elementos para os quais a gente não tem uma resposta ainda. Os fatos não se
apresentaram de tal forma completos para nos dar uma interpretação com uma
resposta convincente a todos os elementos que você põe. Primeiro é preciso
considerar o que é jornalismo. Se jornalismo é o que determinadas empresas ou
projetos de empreendedorismo de produção simbólica fazem conforme o padrão
dominante, com uma linguagem aberta, universal e inteligível, e que possa,
portanto, ser útil como prestadora de serviço, possa elevar determinadas emoções,
possa até bancar determinados interesses da população, cobrar de autoridades,
fazer a mediação entre problemas sociais e a política etc. Se jornalismo é isso,
uma técnica profissional, dominada por profissionais, que são pagos para poder
exercer essa profissão, então nós estamos às voltas com a emergência de um
determinado fato, que é vultuoso, das redes sociais que operam em tempo real, e
operam produzindo, reportando-se ao real e fazendo chegar uma chuva de
informações diária para esse tipo de jornalismo que, em geral, tem quatro suportes
básicos: impresso, radiofônico, televisivo e o converso para a Internet,
aproveitando o potencial da interatividade.

Se jornalismo, grosso modo, tem a ver com o modo de produção simbólica de
domínio por parte de certos profissionais que, portanto, tem relação com uma
linguagem específica, e que com certeza não é a linguagem que estou
empregando agora, nem dos escritos acadêmicos ou do senso comum - é uma
linguagem elaborada, aprendida -; se jornalismo é isso, então temos que
circunscrever qual o impacto que se opera aí. Na realidade, esse jornalismo se
defasou. E mesmo o jornalismo de rede precisa descobrir novas formas de
articulação noticiosa, que necessariamente não se faz por contrato de trabalho, às
vezes se dá por voluntariedade.

Aí já estamos caindo na segunda forma de jornalismo, que é como nós podemos
considerar o jornalismo de um modo mais aberto, ou seja, lato sensu. Jornalismo
pode ser considerado, diferente do que acabo de dizer, como um modo de reportar
o real e o social, o modo de reportar a vida. Com uma linguagem específica? Sim,
mas não precisa ser única. E reportar falo em recriar, pois muitas vezes o fato nem
existe. Às vezes é um factóide, criado pela própria notícia, e a notícia passa a ser
o próprio fato. E as pessoas vão ler a notícia como sendo o próprio fato. É preciso
deslocar a definição. E se jornalismo for reportar o real para outrem - a literatura
faz isso, a poesia faz isso, o teatro faz isso -, então ele é uma modalidade de
recriação desse real, para outrem, a partir de uma linguagem muito específica.
O modo como de constrói o texto e como se faz reportagem televisiva varia, mas já
não estamos no universo do empreendedorismo, empresarial. Estamos fora da
organização do capitalista da notícia. Estamos já no modo mais aberto, que pode
ser feito por qualquer pessoa. O que aconteceu recentemente no Pinheirinho, que
foi reportado por inúmeros celulares, inúmeras câmeras fotográficas, que se
transformaram em produtos de uma determinada vocação de testemunho. E falo
de produto não assalariado, produto colaborativo, e que se acabaram indo para
redações de jornais e para a rede, e muitas vezes o jornalista tem que ir para a
rede, para ter acesso a alguma coisa que não veio até ele.

Mas esse conteúdo já foi direto para a sociedade. O jornalismo foi abolido como
mediação simbólica, como escritura e re-escritura; as redes sociais fazem isso. O
que ocorre é um destronamento do jornalismo como instrumento de mediação
simbólica da sociedade e, ao mesmo tempo, uma forma de reportar o real, que
tinha sua força, primeiro na inexistência de edição e, segundo, na colocação a
público, de forma para compartilhamento, no momento em que o fato estava
praticamente acontecendo.

O que vimos também na Primavera Árabe e no Occupy Wall Street.
Na verdade, existe algo muito interessante, porque, se as redes sociais assim
compareceram, provocando um certo impacto, trazendo um certo desafio para o
jornalismo organizado, e ao mesmo tempo fora desse tipo de definição as redes
sociais também trouxeram algo muito interessante, que o fato de elas mesmas
serem a mediação simbólica para a sociedade, aí nós temos um fator muito
curioso, que entrelaça essas duas modalidades de definição. E são, grosso modo,
porque há várias formas definidas no jornalismo, a quebra do monopólio. Essa
negativa de partilhar, do jornalismo organizado, essa produção simbólica, é uma
forma de dizer “recusamos o monopólio da informação”, “recusamos a
possibilidade de edição, que já opera uma auto-censura, e faz os produtos irem à
população a partir de uma mediação reconstrutora, que pode ser uma maquiagem
a respeito do que, de fato, aconteceu”.

Então, o fato é bruto, sem mediação, exceto aquela das maquinárias e da vontade
típica das próprias redes sociais. Essa quebra de monopólio não pode ser
desconsiderada como um fato que já é conhecido, que vem acontecendo há pelo
menos desde a criação dos computadores pessoais, nos anos 1970, 1980. Essa
quebra de monopólio tem um fato novo: o fato agora é reportado por aqueles que o
fazem ou que estão muito próximos dele, e que, muitas vezes, não tem ligação
com as empresas jornalísticas mediadoras e simbólicas da sociedade. Se nós
considerarmos que jornalismo é produção simbólica de reportar o real, então
temos que considerar fora do cânone acadêmico, universitário, técnico, que o que
está acontecendo é um fato para o qual o jornalismo ainda não nasceu, ainda nem
se deu conta. E mostra o quanto ele está defasado; ele está vendo a proliferação
de fontes e não sabe o que faz com elas. O quanto ele está aturdido em relação a
isso que comparece como modo de produção simbólica espontânea, de redes
sociais comprometidas não somente politicamente, mas com o fato de que é
necessário produzir sobre o social, sobre a vida, algo que seja mais autêntico,
mais próximo do que são os fatos, do que o próprio jornalismo tem feito.

Esse é um fato muito interessante, porque envolve quebra de monopólio,
emergência de novos atores mediadores da sociedade, que estão trazendo uma
nova inflexão, fazendo-nos pensar de outra maneira sobre o que significa
autenticidade no reportar.

E também envolve a questão da auteridade, não? O índio reportando o índio;
o sindicato reportando o sindicato; o agricultor reportando o setor etc.
Exatamente, tem o identitário. É um falando dele mesmo, quando ele fala sobre
seu próprio contexto, sem mediações. Não é o historiador, não é o etnólogo, o
jornalista que foi fazer. Ao contrário, o próprio lugar de fala se colocando.
Quebram-se as mediações. No caso da mediação do jornalismo, é exclusivamente
a questão do monopólio da notícia. Mas não é o monopólio por parte de uma
empresa; falo de um monopólio por parte de uma técnica de produção do saber. É
esse monopólio que se perde, o monopólio do cânone, do especializado - o
jornalista como um especializado. Mas eu não se tudo o que se faz, como
produção simbólica das redes sociais, pode ser considerado como modalidade de
jornalismo só porque é uma modalidade de reportar o social.

Se tomarmos a Internet como o estado máximo, pelo menos até agora, do
que é o paradoxo e do que é a contradição, poderiamos dizer que a
importância dela, para a filosofia da ciência, é de mostrar a questão do não-
lógico, do indizível nesse ambiente cibernético. O senhor concorda?
Sem dúvida alguma. A Internet traz um modo de produção do saber que não é, de
alguma forma, compatível com aquele do cânone da ciência. O modo de produção
do saber das redes sociais, e mesmo antes da web, com os modens, é o fato de
que há quebra da linearidade, há uma emergência da aleatoriedade; o fato de você
ter, naquele site que você citou [o Huffington Post], de repetitividade de certas
expressões, e as pessoas não estão nem aí, esse é o modo aleatório de produção
do saber. Você pode encontrar isso em vários lugares a mesma matéria, ou em
meios diferentes, duplicadas em parte e continuadas a partir de um
desenvolvimento diferenciado do que foi feito no outro dia. E aí você tem acesso a
uma versão e depois você saber que existe uma outra versão mais desenvolvida, e
alguém pergunta: “mas você leu essa matéria?”, e você responde: “li, mas estava
relacionada à versão prévia”.

Esse tipo de produção do saber - e ao mesmo tempo comprometido com uma
visualidade, com apresentação despreocupada em relação à questão da
logicidade, em relação a não-repetitividade e aos cânones da lógica, da ontologia -
é o que acaba, no fundo, colocando para nós que estamos nos relacionando com
um fenômeno, cujos horizontes são tão abertos, e nós nem começamos a explorar,
e em relação ao qual nós sequer temos elementos epistemológicos herdados para
poder abordar. E eu falo de cátedra, pois eu pesquiso essas questões da
cibercultura, que é um nome que considero importante para ser cobertura para a
fase digital do capitalismo tardio. Quer dizer, eu tomo cibercultura como categoria
de época.

E quais as caracteristicas dessa categoria?
Tudo o que vem à tona nessa fase interativa do capitalismo, financeirizado e
midiático, eu tomo como objeto de apoderação, porque nos faz pensar o modo
inclusive de nós conhecermos o próprio mundo. Por exemplo, eu estou com meu
grupo muito interessado em estudar o híbrido. O híbrido é uma categoria terceira,
que se opera a partir da junção irreversível entre duas constitutivas. E essa
terceira não se reduz nem a uma, nem a outra. Por exemplo, o glocal, que não é
nem global, nem local, é uma terceira coisa. Quando se diz aldeia global, em
McLuhan, é algo presencial e circunscrito, e, ao mesmo tempo, global. Existe aí
um paradoxo, uma anti-tese.

Então você não trabalha com a ideia de globalização?
Trabalho com a glocalização. O glocal, para mim, é uma via de terceira grandeza,
é uma terceira fenomenologia, que já se realizou no planeta inteiro e que está para
além, e muito além, das localizações, das regionalidades e das globalizações e
globalidades. O glocal é aquilo que une o global da rede no local de acesso. Então,
quando você liga o seu celular, alguém liga e você atende, ou quando você abre
seu tablet e está conectado, e mesmo quando você liga a televisão, você está na
terceira grandeza, no contexto glocal. O que isso significa? Significa que você não
está nem no local, você está conectado em rede, e você não está nem na rede,
porque o seu corpo está no local. Você está no híbrido, no meio. E nós não
vivemos no meio.

É um paradoxo.
É um paradoxo, é a união entre uma coisa e a outra, sem que haja contradição. E
mesmo que sejam contraditórias, elas se mesclam. Só que o paradoxo ainda não é
o híbrido. O paradoxo ainda é a justaposição de coisas: é uma coisa e outra, e não
ou outra. O Ocidente não formulou episteme típica para compreender o híbrido,
nós não sabemos do que se trata.

Quando o senhor fala em Ocidente, é porque no Oriente há esse
conhecimento?
A microfísica ocidental, tipicamente acadêmica, que tem pelo menos 2600 anos.
Mas não sei outra cultura que pense no híbrido, por isso que falo apenas da
ocidental. Meu grupo também não sabe, e estamos preocupados com isso. Mas
então existem inúmeros fenômenos híbridos, e o glocal se manifesta como a rede
no local. Ela é pervasiva no sentido da mistura, de modo tal irreversível, mas de
modo tal que você não tem nem mídia locativa, nem mídia global. O que você tem
é uma mídia que glocaliza.
Ela une a dimensão do global, com notícia que vem de todos os lugares, que
perpassa o seu ponto de rede, e que chega no seu tablet, no seu rádio, televisão;
mas que uma vez que chega até você, porque somos mercado, chega se
entrelaçando com o local, e dele não se separa. De modo tal que o que vem da
China, do cinturão Norte da África, de Wall Street, nos Estados Unidos, é mais
íntimo para nós, quando chega em nossa tela, do que o que acontece na esquina.
Então, há um fenômeno muito curioso, que é o de distanciamento do que é
próximo e uma aproximação com o que é distante.

Isso funciona fora da cibercultura, isto é, quando vou a uma cidade pequena,
distante, e lá encontro uma lanchonete de rede de fast food famosa, o
logotipo de um posto de gasolina que também tem na minha cidade?
Esse é o glocal lato sensu, aberto. O glocal stricto sensu envolve a necessidade de
tecnologias digitais.

Mas há cem anos, quando alguém abria um jornal em New York e lia sobre a
China, isso já era glocal?
Não, porque o glocal envolve tempo real. E o jornalismo não é capaz de rede em
tempo real; o teatro não é capaz de rede em tempo real, assim como o cinema.
Você tem que ir lá e assistir a peça ou o filme. A indústria fonográfica não é capaz
de tempo real, ela produz o disco para você ouvir offline. Agora, a televisão é
capaz de tempo real, o rádio, o telégrafo, no final do século XIX (a primeira
máquina glocal), ou seja, a produção é em tempo real. Você produz
automaticamente e, em centésimos de segundos, o outro lado ouve. E isso agora
está proliferado; é quase como se a rede rara do telégrafo elétrico é hoje a regra
proliferada, desde o rádio amador até as redes sociais.

A Física também se interessa pelo estudo do imediato. Há alguma relação de
seu estudo com as abordagens da Física?
Não, com essa área não. Mas o fato é que o glocal stricto sensu é o que determina
o que é, hoje, a fase civilização midiática. Essa civilização não é uma sociedade,
mas sim um processo civilizatório que se dá com o uso de equipamentos
especificamente capazes de rede em tempo real. Quando nós falamos do celular,
dos tablets etc., nós falamos de máquinas capazes de perfazer um campo, que é o
campo de acesso, de retransmissão, de recebimento, campo marcado por fatos
comunicacionais, de interesse do nosso desejo (como consumidor, cidadão etc.),
campo este que eu chamo de contexto glocal. A proliferação no mundo inteiro de
contextos glocais articula a nossa história numa única categoria: a condição glocal
da existência, aquela na qual estamos, articulando, no dia-a-dia, o nosso fazer,
num processo civilizatório irreversível. Amanhã podem mudar as máquinas - a
televisão pode desaparecer e a Internet também -, mas o glocal, como invenção
técnica tende a perdurar.
Mesmo sem aparato técnico?
O aparato pode mudar. Ninguém sabia que podia haver o tablet e que o celular
podia congregar várias coisas. Mas o glocal, como lógica, como esquema
operativo de união entre o global da rede e o local veio para ficar.

Isso é uma evolução da ideia de espaço público também?
O espaço público, na história, por exemplo no século XVIII, com a emergência da
burguesia, já disse Habermas sobre isso, acabou ganhando uma nova dimensão,
foi reconfigurado com a emergência de tecnologias glocais. Ele se transformou e
se perdeu. Eu tenho um texto no qual eu divido a esfera pública do século XVIII em
três modalidades públicas. Não vou me lembrar mais, mas de toda forma existem
a esfera pública de sociabilidade e trocas; a esfera pública de venda, de troca
econômica; e a cena pública, que é a produção midiática no geral. Na esfera
pública de sociabilidade, das redes sociais, com compartilhamento de vídeos etc.,
não dá para fazer discussão alguma em 140 caracteres, ou seja, uma discussão
profunda.

A discussão é feita, como Habermas pensou, de forma presencial, que permite ao
outro intervir, permite ao outro ouvir, e ser ouvido. Em algumas listas de discussão,
é possível. O Skype, com aquelas possibilidades de abrir várias janelas, com
discussão em tempo real, com fusos horários diferentes, com um código válido
para todos, é possível, desde que não se esteja sob o tacape do tempo, e que os
interlocutores tenham tempo para ouvir. E nesse texto eu também testemunhei o
ocaso da esfera pública de discussão. A esfera pública é interessante, ela existe
em certos contextos, mas na rede eu sou cético. Nas condições glocais, a esfera
pública de discussão se perdeu.

O glocal foi apenas um exemplo [de hibridismo]. Dependendo do sentido é que se
dá o híbrido; o glocal é uma palavra que, no significante, é mais adequado, como
episteme, para abranger aquilo de que se trata. No Ocidente - estamos às voltas
com neologismos - você tem que produzir neologismos que captem o híbrido no
significante, e nem sempre é possível fazer isso, senão fica piegas. Por exemplo,
[a relação] público-privado. Você tem público no privado, privado no público - um
talk show é um exemplo, porque alguém que vai entrevistar um político, ele, a
figura pública, adentra ao estúdio, que é de uma empresa particular, mas que tem
platéia, e portanto é público; e tem câmeras, que já é a representação do público
externo, que pode ser ao vivo, ou não. Então, na realidade, é o produto de uma
empresa, que está concorrendo por audiência, como outra qualquer. Esse produto
vem como privado, mas num sinal que é público - pois se trata de concessão do
Estado -, e que vem para a casa dos particulares, um terreno privado. Então,
público no privado e privado no público, nós não temos uma palavra específica
para poder apreender isto.

Mas por que é necessário ter uma palavra, se já entendemos o significado
desse fenômeno?
[Dessa forma], nós vamos operar por categorias cartesianas, analíticas, ou seja,
separadas. Por isso que o Ocidente não está preparado para o híbrido, pois ele
não sabe, não tem palavras. Ele tem que operar com palavras ainda separadas.

Precisamos de novas palavras sintéticas, portanto.
A síntese, o sincretismo, a mestiçagem, a hibridação.

Ou seja, a palavra, por si só, dizendo o que ela é.
Exatamente. Por exemplo, eu vou tratar da junção do imaginário entre público e
privado, mas vou abordar a partir das categorias separadas, binárias, ainda. O
híbrido é, assim, a união do binário, de um modo tal que se perdem as partes, para
produzir uma terceira coisa. Mas eu não tenho uma palavra para dar conta disso;
então, eu preciso criar. Na China, há mais de 40 palavras para “neve”, de acordo
com a textura, com a cor. Na realidade, eu não posso falar “pubrivado”, fica piegas.
Não posso [simplesmente] pegar metade da palavra e juntar com outra. Mas glocal
pegou. Veio do espaço corporativo, depois foi incorporado pelas ciências
humanas.

Esse novo espaço está exigindo da própria ciência.
Estamos às voltas com uma fenomenologia diferenciada. A fenomenologia do
ciberespaço, das redes, e também rádio, televisão, enfim tudo o que se refere ao
glocal traz consigo uma série de desafios que são inexplicados. E o horizonte é
profundo, inesgotável, não vai terminar tão cedo. E nós precisamos dar conta, de
alguma forma, disso. E a área de comunicação é uma área privilegiada, porque é
com os fenômenos da comunicação que tudo isso tem mudado no social, mas, ao
mesmo tempo, a comunicação tem instrumentos que herdou (metodológicos e
epistemológicos) da sociologia, da antropologia, da ciência política, da história, da
filosofia, e, ainda assim, não está preparada para poder abarcar, com profundidade
e maior extensão, o fenômeno.

Será que não é porque a área da comunicação sempre se voltou para si
mesma?
Na realidade, a comunicação é partícipe e, ao mesmo tempo, receptáculo dessa
crise de paradigma, que começa em meados do século XX, com o final da
Segunda Guerra e a liberação de grandes forças tecnológicas, científicas e
econômicas. Liberação em termos de aceleração completa. Estamos vivendo,
agora, o estressamento dessa onda de longa duração. Ninguém aguenta mais
tanta aceleração, tanta vida articulada pela lógica da velocidade. Para tudo temos
que correr, qualquer produção. E nós somos julgados e avaliados em função da
produtividade que fazemos em menos tempo. O jornalismo diário, e o semanal
também, é uma loucura, porque você precisa dar conta do tacape do tempo.
Então, a partir dessa época [meados do século XX], ocorreu o que os historiadores
teóricos vem tratando como Ocaso da Modernidade e a emergência de alguma
coisa que se pode chamar de “pós”: pós-industrial, pós-moderno, e até falaram em
pós-capitalismo.
Aí começa uma sensação, desde o senso comum até a Ciência, passando por
outras formas de produção simbólica na sociedade, e a principal delas é a
jornalística, de que nós já não sabíamos mais nomear quê tipo de civilização era
aquela que estavamos vivendo. E essa quebra de paradigma vinha justamente
pelo fato de que já não se podia mais acreditar nas metanarrativas, nas utopias ou
grandes visões de mundo, porque foram elas que nos levaram à hecatombe. Foi o
liberalismo pelo capitalismo, foi o nazismo pelo Terceiro Reich, foi o comunismo
stalinista, pela burocracia soviética, que nos levaram a um beco sem saída: a
Segunda Guerra, que aplicou, para destruição, todos os recursos do século XVIII,
ou desenvolvidos, a partir dele, para emancipar o gênero humano do
obscurantismo, da miséria. A Razão, a Ciência e a Técnica foram barganhadas
para a destruição massificada, inclusive depois daquela bomba, vieram outras
ogivas, no ápice da Guerra Fria, capazes de destruir o planeta.

Alguma coisa tinha que parar esse filme, que era o conto da carochinha do
progresso tecnológico. A modernidade acabou se realizando pela sua sombra. Não
foi a modernidade prevista, da liberdade, da distribuição da riqueza.

Ela precisou tropeçar.
Na realidade, ela [a modernidade] tropeçou e não saiu do tropeço. Alguns
acreditam que se pode colocar a locomotiva no trilho; outros disseram que não há
mais condições, esse caminho não tem mais volta, e é impossível retomar os
ideais do século XVII, para corrigir um erro tão avassalador, que agora é
planetário. Antes havia um erro que era situado: o erro se torna na França, o erro
se torna em algum país da Europa. Agora, não. Agora ele é planetário, pois a
modernidade acabou racionalizando o mundo todo.

O ápice seria a crise de paradigmas pela qual passamos.
A crise de paradigmas vem daí, mas para isso muito contribuiu a comunicação.
Quando a televisão emergiu, ela emergiu capitaneando os meios de comunicação
que existiam, o jornalismo mudou, o jornalismo impresso começou a ter que
colocar fotos, a proliferar imagens, para concorrer com a televisão. Hoje a
televisão faz links com o ciberespaço, pois está subordinado a ele. Na realidade,
essa comunicação, enquanto área e campo do saber, ajudou a quebra de
paradigmas, porque ela espalhou aquelas imagens de corpos mortos, corpos
esquálidos, vítimas do nazismo, judeus, ciganos, negros, homossexuais,
deficientes físicos. Aquilo foi avassalador e nós ainda não conseguimos superar
aquilo. Naquela época, começou-se a espalhar a idéia de que toda utopia rimava
com barbárie, e não o contrário. Porque elas nos fizeram crer que elas, as ideias,
eram o melhor, que traziam a emancipação, que elas iam nos trazer um mundo
melhor, de liberdade. A felicidade estava no depois, e isso era somente possível se
houvesse revolução.
Houve, então, uma reversão completa. A metanarrativa, a grande visão de mundo,
na verdade, acabou por trazer o contrário, a destruição completa. Bom, mas elas
eram nossas salvações, elas nos davam os paradigmas para revolução, para
ciência... As ciências, cada qual no seu ramo, desenvolviam-se em função de uma
narrativa de emancipação, todas elas cooperavam para trazer luz, para que o ser
humano pudesse, através do conhecimento, da superação das doenças, da
superação da miséria, das superstições, a luz da ciência, a luz da Razão, para que
a humanidade pudesse prosperar em conjunto. As ciências trabalhavam em
função de uma metanarrativa; ou era o marxismo, ou era o liberalismo, ou o
humanismo. De repente, perdemos os referenciais primeiros. Cada ciência
começou a operar por conta própria, começou a olhar para dentro de si, e a se
desenvolver segundo um método, que é desenvolver-se em congressos
específicos. Uma não se comunica com a outra, e a idéia de interdisciplinaridade
começou a ser bastante artificial.

Mas hoje se fala muito em interdisciplinaridade, tanto em meio acadêmico,
quando no empresarial.
Fala-se muito...

Há autores, como Edgar Morin, que falam muito desse conceito. De fato, não
está ocorrendo?
É possível, desde que se faça o híbrido. Porque, na realidade, se você promove a
interdisciplinaridade com a ideia do “inter”, e não do “intra”, o “inter” significa
justaposição, então você faz uma interdisciplinaridade artificial. Você chama a
sociologia, a história, a antropologia a se encostarem na comunicação, e você
importa o método de uma, o conceito de outra. Isso ainda é interdisciplinaridade
falseada. A interdisciplinaridade autêntica, genuína, é aquela que realmente
mistura as coisas. E promove um conhecimento que já não se reconhece nem da
comunicação, nem da antropologia, nem da filosofia, nem das áreas conectadas.
O produto do trabalho já não se vincula à área a qual você pertence.

Mas isso não seria, aproveitando a expressão que foi utilizada recentemente,
uma utopia?
Não, é possível sim. Tanto é o fato que se você traz diversas contribuições, eu não
sei se o Edgar Morin faz filosofia, entende? Ele, de alguma forma, produziu um
outro conhecimento, que se trata da Complexidade, Conhecimento Complexo.
Para mim, é uma outra coisa; ele pode situar na sociologia, na filosofia, em todas
as áreas, mas se é de todas, é de nenhuma. De fato, é transdisciplinar. Mas é
curioso, eu leio Morin e eu não me convenço de que o que ele aborda é crível,
porque há misturas que somente um pensamento mais ponderado deveria,
evidentemente, perfazer. Eu creio que há forçações ali. Ele produz um
pensamento dito complexo, porque ele envolve dimensões diferentes da existência
humana que nunca tinham sido tão articuladas e, portanto, para dizer que o
conhecimento produzido, o conhecimento que devemos ter sobre essas
dimensões não pode ser mecanicista, não pode funcionalista, não pode ser
meramente empirista; ele deve absorver a carga de complexidade, tanto de cada
dimensão (biológica, econômica, psicologica etc.), quanto a complexidade das
misturas.

E, para isso, você tem que prover explicação muitas vezes com neologismos. Ele,
Morin, está no terreno do híbrido, do tecido, que já não é nem uma coisa, nem
outra - já é Pensamento Complexo. Eu acredito e aceito, mas não há explicação
sobre o fenômeno em si; aquilo é apenas uma explicação explorando as
dimensões complexas, viável como outra qualquer, mas como tal criada por uma
reflexão individual. Nós precisamos é explorar o híbrido e verificar outras formas
de narrativa, inclusive tomando esta como uma tentativa muito bem sucedida (a de
Edgar Morin). Agora, a comunicação é um pivô, ao mesmo tempo beneficiária da
crise de paradigma, porque quando ela, na verdade, vem com a televisão e a
comunicação se espalha como regra, tudo passa a ser comunicacional, o
marketing transforma política em mercadoria, surge o marketing pessoal. Um
monte de coisas para dizer o quanto a comunicação articula nossa existência. Nós
não acordamos sem nos preocupar com e-mails, já está no sangue.

É só verificar quando esquecemos o celular em casa.
É difícil não se sentir amputado, quantas vezes não voltamos [para casa para
buscar o aparelho]? Ninguém quer, mas quando ocorre uma oxidação de
Winchester, e sua vida está lá, pois vida é dados, você acha que perdeu alguma
coisa. Você leva para a assistência técnica, e o técnico diz que se salva só metade
dos dados.

Tem essa discussão sobre Nuvens, as Cloud Computing, em relação à
segurança de dados públicos e privados, à diminuição do hardware, a
abstração maior da tecnologia da informação.
O que se acredita, mas ainda pode acontecer algo com o grande computador que
armazena tudo isso. O fato é que a comunicação é muito mais do que um campo
de trabalho, um campo de saber e é muito mais do que o conjunto dos aparatos da
sociedade, muito mais do que a nossa intencionalidade de chegar ao outro e dizer
alguma coisa. Ela é, hoje, prótese invisível do inconsciente. Ela é hoje modus
vivendi. Muniz Sodré, professor da UFRJ, em um livro chamado Antropológica do
Espelho, diz que comunicação é bios, gera hábitos. Então, ela faz parte e se
beneficiou da quebra de paradigma, porque ela, a comunicação, desde os anos
1940, 1950, com a cibernética, acabou por se colocar como uma nova utopia. Ela
se serviu do vazio deixado pelas utopias políticas e filosóficas, econômicas e
religiosas, e ela se colocou como o novo religare, uma nova forma de articular a
vida das pessoas. Hoje é preciso ter pela atendente bancária que haja um
treinamento, de recursos humanos, para ela aprender a ter inteligencia emocional
na situação de estresse e, ao mesmo tempo, sorrir. Porque isso é comunicação da
marca, é comunicação da empresa.

Você fala, então, de comunicação do modo mais amplo possível, certo?
Comunicação textual, verbal, imagética, signica, não-verbal e assim pior diante. É
o associar-se, o vincular-se e o reportar-se, enfim, onde há contato há
comunicação, mesmo entre duas máquinas. Por exemplo, quando a gente está na
nossa máquina, e operamos o Google, quem responde é uma máquina para a sua.
Você é apenas o receptor de leitura; existe aí uma conectividade, da ordem da
comunicação, desde que o código partilhado seja um código que no seu terminal
seja legível para você. Muitas coisas que operam entre as máquinas nós não
compreendemos, mas que ocorrem para tornar a comunicação possível.

Mas como e consolida esse novo modo de vida, esse novo religare?
A comunicação se prevaleceu da crise de paradigma.

Mas há alguma perspectiva de quando isso pode ser novamente alterado, um
novo paradigma? Ou trata-se de algo definitivo, ou, pelo menos, sem
previsão para encerrar?
Definitivo é muito forçoso, pois não temos um compreensão para além da zona
observável, nem a curto prazo. As tendências concretas que vão formar o nosso
horizonte nem sempre são previsíveis, e as previsões são falíveis. Nós não
podemos dizer que são definitivas jamais. um dia mudarão, porque é um
movimento, vamos crer no movimento. O movimento da sociedade provoca
rearranjamentos, reajustes, e funciona como uma caixa de surpresas, mas não
necessariamente uma caixa de Pandora. E a história é marcada por oscilações,
altos e baixos, por zonas obscuras e, ao mesmo tempo, por grandes rompantes de
luminosidades, que reacendem esperanças.

Essa ordem de tornar tudo iluminado e visível pela comunicação, sob o
pretexto da transparência, da visibilidade, até certo ponto é positiva. Mas há
características não tão positivas assim.
Digamos que ela é o que é à sociedade. Como fato, a compreensão da
fenomenologia do fato da sociedade, da história presente, é assim. O [filósofo
Jean] Baudrillard foi um daqueles que disse que a nossa sociedade é da
transparência, da visualidade, de que tudo tem que vir à tona, o segredo tem que
ser profanado, tudo tem que ser transformado em imagem, em informação. Para
aonde se vai, tem que voltar com fotos, vídeos. Isso acaba colocando, como você
disse, em preocupação também para nós a questão: onde iremos parar? O que
realmente significa essa total transparência? Alguma forma de vida está sendo
colocada em baixo do tapete ou sendo excluída, porque se a sociedade é da
transparência, e é disso que se trata agora, não há mais segredo, o que é
impossível. Mas vamos supor que seja - segredos se guerra, de Estado -, tudo
vem à tona, manchando reputações; se tudo isso é a transparência, é porque a
sociedade da transparência já está excluindo novos horizontes ou outros
horizontes possíveis, porque esse tipo de sociedade acaba se implantando como
modelo que acaba excluindo as demais possibilidades. E todos os modelos
implantados trazem consigo a regra da falibilidade, todos eles se colocam como
não sendo a completude, o sistema perfeito, sempre há alguma zona, alguma
franja aberta, que diz respeito a uma ilogicidade e a uma desrazão, uma produção
de desigualdade.

Óbvio que traz uma preocupação, só precisamos saber como teorizar, porque, por
ora, toda a nossa cidadania acabou por se formar, nos últimos séculos, tendente a
fazer desaparecer todo tipo de segredo, para que saibamos e com eles possamos
lidar. Sequer segredos de Estado, porque se o Estado é sustentado por nós, então
como podem determinadas informações serem objeto de monopólio de uma casta
que se acha profissionalizada para poder ocupar os cargos da política, mesmo por
eleições, e então encobre, segreda, engaveta, porque acha que a população não
pode saber. Com que direito? São razões de Estado, por causa das guerras
possíveis, da concorrência internacional, então o segredo é estrategicamente,
muitas vezes, necessário. Mas se estamos caminhando para uma sociedade da
transparência completa, o que não acredito, mas se estamos caminhando para
deixar no horizonte esta utopia, o que é preocupante é o fato de haver, então, a
possibilidade - eu diria ilusória, imaginária - de ver instaurado, como sociedade, um
contexto humano de que a maior riqueza da vida é expurgada. Justamente o
segredo, o mistério.

Se se trata de jogar com o instrumento da transparenciação, com todos os
esquemas jornalísticos e máquinas, é jogar a transparência como máquina de
guerra contra tudo aquilo que marca, e vai marcar, aquela zona a partir da qual
você não sabe nada, que você não consegue identificar o que seja o que. E que é
o segredo, o obscuro, o não-dito, o indizível, o sublime, o mistério. No campo da
fenomenologia, você tem, aqui e agora, o campo da transcendência. A
transcendência está disponível para você; o seu campo próprio se dispõe de uma
transcendência que separa o que é cognoscível, de acordo com as categorias que
você domina, e com o conhecimento disponível na sua época, daquilo que você
não domina e não vai dominar nunca, porque o cérebro não está adaptado para
essa compreensão.

Houve um momento em que a ciência foi a grande desbravadora e chegou
mesmo a aniquilar saberes tradicionais, antigos, mas não reconhecidos pela
racionalidade, pela lógica. Podemos dizer que esse atual momento da
comunicação tem exatamente esse papel, essa função que a ciência teve?
Essa pergunta é perspicaz. A comunicação é um modus vivendi hoje, um habitus
social. Está em todos, não é o monopólio de uma empresa, de uma indústria, de
uma linha de produção simbólica ou de uma linguagem específica. A comunicação
é uma práxis. Nossa sociedade exige de todos competência comunicacional - não
estou falando da competência comunicativa de Habermas, mas da competência
comunicacional. Você tem que ser comunicativo, para ser bom profissional nas
metrópoles e cidades médias desenvolvidas você tem que se abrir para o jogo do
outro, abrir-se para a avaliação e julgamento alheios, frequentemente avaliam sua
qualidade, entrelaçada com competências comunicacionais. Nas entrevistas de
emprego, querem saber o quão flexível você é, o quão aberto você se entrega
para a linguagem do outro. E o quanto daquela linguagem você pode ser
manipulador ou não, e assim por diante.

Quando você diz que a comunicação pode estar substituindo, ou fazendo murchar
certos fenômenos que antes eram comuns, tradicionais, você tem razão. Por
exemplo, a comunicação, como práxis, no cotidiano que a civilização midiática
exige de nós o que eu chamo de dromoaptidão, que é a capacidade de ser veloz
com equipamentos de comunicação. Se você tem essa capacidade de ser veloz,
se você é um dromoapto, então você está conforme o que os valores existentes
pedem de você. Se você não está, isso pode comprometer inclusive sua
sobrevivência. Mas, no caso da comunicação, ela acabou não por fazer murchar a
ciência ou a racionalidade científica, porque o jornalismo é racional. Algumas
coberturas podem ser irracionais - o sujeito vai à guerra, e o jornalista vai, porque
precisa daquilo para a carreira, mas o fato de uma empresa concordar que ele vá é
seguridade zero, uma coisa meio Euclídes da Cunha. Então, na realidade, o
jornalismo, como produto, trabalha com a lógica, a racionalidade, como outra
ciência qualquer. Porém, vou dar um exemplo bem concreto contrário agora: estou
orientando várias pessoas, e no mestrado e no doutorado já me chegaram alunos
que não conseguem aprofundar. Não conseguem ter uma linguagem acadêmica,
científica aprofundada. Então eu diria que na civilização da comunicação, a
primeira vítima dela foi, primeiro, a profundidade e, em, segundo, a crítica, o senso
crítico.

A crítica que a civilização midiática promove é integrada, é uma crítica previsível;
faz parte, é aquilo que em direito se fala direito ao contradito. Já está no sistema.
Então o sujeito vai falar qualquer coisa, já está pressuposto que ele será ouvido, e
pode, evidentemente, não ser considerado. Mas há o direito ao contradito. É quase
como a esquerda e seus partidos políticos, que hoje se tornaram dóceis,
domesticáveis, porque acabaram adentrando no sistema do Estado e disputando
com os outros partidos do status quo o poder do Estado. E quando adentram no
Estado, para disputar o Estado, cumprindo as regras do jogo democrático, do jogo
do Estado burguês, é porque o potencial político deste partido já está
comprometido na base. Porque ele vai falar, fazer, proceder, protocolar etc. tudo o
que já é, dentro da própria regra que fabrica o status quo, contra o qual ele quer
lutar, e se debate muitas vezes de modo radical, mas não consegue, porque a
regra do jogo o domestica, dentro dos princípios que movem o próprio Estado de
Direito.

Por isso que muitos conhecimentos que se fazem na academia que não possuem
relação com partido político ou nenhum utopia são mais radicais, porque não
precisam e não tem necessidade de satisfazer ninguém, e cumprem o critério da
liberdade de expressão no seu mais alto nível. Coisa que um programa de
televisão não pode fazer, coisa que uma reportagem jornalística muitas vezes não
pode fazer e às vezes até uma peça de teatro não pode fazer, porque tem que dar
satisfação aos produtores.
Mas a ciência não faz o papel de grande narrativa social, que articula todos. Por
exemplo, o marxismo fez uma ideia assim: ele articulou várias pessoas em
inúmeras populações; o humanismo renascentista também.

Mas você tem também movimentos científicos que mobilizaram populações,
como a questão médica na saúde pública, o militarismo ligado à tecnologia.
Mas aí no caso são visões de mundo, opiniões, que articulam e tal, mas não se
pode dizer que é uma metanarrativa, uma grande visão de mundo, como o
anarquismo, o humanismo. De repente tudo isso caiu, e a comunicação vem, de
modo impessoal, porque não tem ninguém que fale por ela - é um fenômeno
autopoiético, ela se põe. Quando nós achamos que estamos sendo indivíduos
autônomos, fazendo aquilo que queremos, mal sabemos que estamos no jogo da
reprodução do próprio processo civilizatório, que não depende de nós. Amanhã
podemos morrer, e a estrutura permanece. A comunicação herda o espaço vazio
e, ao mesmo tempo coloca-se de modo impessoal normalizando as relações,
articulando corpos, empresas, lares, enfim, num planeta glocal. E ela, a
comunicação, como procedimento e técnica, acaba matando algumas coisas. A
própria comunicação em tempo real aboliu o planeta. Estamos passando por uma
mutação percepcional do espaço e nem sabemos onde isso vai dar.

A humanidade sempre viveu na superfície planetária relacionada a outras pessoas
no contexto presencial. Se queriamos, antes do século XX, encontrar alguém, ou
enviávamos um emissário, ou uma carta, enfim. Do velho mundo para o novo
mundo chegaram após 36 dias de caravelas; o que dirá, por exemplo, migrações
do norte da África, passando pelo Oriente, pelo Cáucaso, com grandes
embarcações de mercadores árabes, que faziam as trocas econômicas. Na
realidade, o que ocorre é que tinhamos que ir ao encontro da pessoa, tudo
presencialmente no território geográfico, sem as grandes construções de arranha-
céus, que vão nos fazendo reféns de um espaço em que o céu não aparece mais.
O que acontece é que, hoje, tudo isso foi deixado para trás, existe uma morte
simbólica em tudo o que era tradição nesse aspecto. A superfície planetária é
abolida e com isso todas as cidades, esquinas, ruas e praças simplesmente não
existem mais. Porque agora nós temos uma pessoa relacionada ao computador, a
outra relacionada a outro computador, e que estão em rede, com uma, por
exemplo, em São Paulo e a outra no Japão.

Em tempo real, centésimos de segundos, a pessoa A está no computador da
pessoa B, e esta B está em A. O que ocorre aqui é da mesma ordem daquilo que
ocorre no meu celular: o outro está aqui comigo, a auteridade é espectral, é puro
som (espectro sonoro). No chat, você é espectro textual; no blog, você é textual;
no Youtube, você é espectro videográfico. A comunicação espectral, o espaço está
morto, porque temos sinal de rede, que vai por satélite; a representação do global,
que é a rede, entra no equipamento, vai a você e vice-e-versa, mas cada pessoa
está num local diferente. E o fato de eu estar vinculado a uma máquina capaz de
rede, e estar interagindo com uma pessoa que é como se estivesse do meu lado -
mas não é, pois existe a mediação do aparato tecnológico planetário -, faz com
que isso não seja mais um local, a materialidade do planeta se perde, em prol da
comunicação espectral. Bem , mas aí já estamos numa outra esfera, do glocal. E
isso é a representação da hibridação numa coisa só, entre dois locais diversos,
com o sinal e a rede que perpassam tudo. E isso aqui é a fenomenologia do glocal.
A comunicação, que herdou o espaço esvaziado das metanarrativas, produziu
esse tipo de coisa - o religare, que tem a ver com religião. Na verdade você tem,
então, não só o religare referente à religião, mas também o religare de
comunicação no social. As redes sociais perfazem um religare técnico específico,
fundado no glocal.

Mas tudo isso ainda segundo uma ordem escriturística, na qual o registro
escrito ainda prevalece como legitimador dos discursos. O senhor
concorda?
Sim, a chamada veridicção: para existir eu tenho que aparecer no vídeo. Para eu
lidar com o existente e como presença, ou seja a garantia de que eu existo, e até
para a minha identidade e subjetividade. E não se trata só de e-mails, escritos. Por
exemplo, a foto no Flickr, do aniversário que você foi, comprovando que, de fato,
você esteve lá. A veridicção se dá pelo registro e da memória tecnológica externa.
Se eu quero saber se existiu, de fato, uma Segunda Guerra Mundial, eu vou até
meu arquivo e pego um vídeo documentário que trata daquilo. É a comprovação
de que o fato existiu, não porque ele existiu e está na memória de quem o viveu,
mas porque está na memória tecnológica.

E isso é um feito fenomenológico incrível: como é que uma invenção humana mata
o planeta? Veja bem, as duas pessoas falando, no exemplo que dei anteriormente,
precisariam de milhares de vidas para poder conhecer o que elas estão abolindo.
No caso cognitivo, acadêmico, o fenômeno é de outra ordem: a comunicação mata
determinados procedimentos e hábitos, por exemplo o habitus da leitura recorrente
e aprofundada. Queremos tudo imediato, tudo tem que ser mais rápido, não dá
para ler mais do que uma ou uma hora e meia; logo muda-se de livro. A pós-
graduação stricto sensu bate de frente hoje com os hábitos dos nossos novos
alunos. Eles entram em depressão, é muito comum, em crise de competência, de
identidade, porque elas querem a carreira acadêmica, querem evoluir e prosperar,
e de repente vê que não formou o hábito - porque a civilização midiática, junto com
a família, não possibilitou que ela tivesse dias, meses, anos fechada numa sala,
lendo sozinha, criando o hábito de encarar o mundo a partir do livro e escrevendo.

É uma habituação, sem interferências externas. O hábito que hoje está sendo
promovido não é mais compatível com pesquisas aprofundadas. O sistema escolar
e familiar anterior ao século XX, uma vez que não tinha todo esse entretenimento
das comunicações, era mais propenso a produzir determinado cenário de
isolamento, de reflexão mais individualizada, numa biblioteca, com silêncio, e as
pessoas acumulando livros na sua zona privada para poder ter autonomia de
leitura.

Cientistas do passado, com Einstein, produziram poucas obras - alguns até
um única apenas - mas com nível teórico e de aprofundamento
extraordinário.
Exatamente. É uma espécie de pesquisa científica sem consequencias. Mas o fato
é que hoje é vassalar, porque muitas vezes nós temos que exigir leituras,
aprofundamento e, em dois anos e meio, no mestrado, a pessoa não vai conseguir
formar o hábito. Quer dizer, ela não vai poder se abrir para a desconstrução de
hábitos que a trouxeram até aqui. É verídico, é autentico e legítimo que ela queira
fazer o mestrado e entrar na carreira acadêmica, muito bonita, por sinal, mas há
essa dificuldade incrível, porque o sistema escolar e a sociedade, digamos assim,
plugou essas pessoas em outros instrumentos, que não o livro. E forma inseridas e
incentivadas a ficar em situações diferentes de uma sala aconchegante para fazer
a leitura de um autor, e depois ir para outro, fazendo percursos. Elas foram
habituadas, no século XX inteiro, a ir ao cinema, ver televisão, estar entretidos com
jornalismo, e agora pulverizou tudo. Quando havia jornalismo impresso, jornalismo
radiofônico, até a primeira metade do século XX, alí você ainda tinha alguma coisa
de aprofundamento. A partir de meados do século XX, com a televisão, tudo
começou a ser feito muito fugaz, pois o tempo da televisão era muito fugaz. E aí o
rádio começou a ser assim também, o jornalismo reduziu suas matérias, de uma
página inteira para boxes. Assim, se por acaso não der para ler a página inteira,
você não precisa parar na metade, você pelo menos lê os boxes.

Muitos criticam esse tipo de análise, apontando como saudosista.
Mas é só para dizer que jornalismo é uma refração escalonada e criativa das
exigências de época. Se o mercado mudou, se as pessoas mudaram, se o público
mudou, e o imaginário é outro, e as pessoas querem agilidade, querem ler no café,
no metrô, ou 30 minutinho para ler a revista Veja, então o jornalismo tem que
produzir esse público. E ao produzir para esse público ele tem que mudar. Não é
melancólico, nem saudosista. Antigamente era possível porque as pessoas tinham
vários tempos - tempo de lazer, um tempo livre, mas hoje não. Hoje você sai do
seu trabalho, muitas vezes com hora extra nas costas, tem que pegar o metrô.
Chega em casa, dorme, ou vai responder e-mails, tem que fazer alguma pesquisa,
faz curso de línguas. Então, é uma dupla, tripla, quadrupla jornada.

Não há o momento para parar de vez, porque a sociedade exige de você
multifuncionalidade e ao mesmo tempo inteligência emocional para o estresse.
Você tem que ser ultra ágil, sem dar a você uma garantia de seguridade, para que
você trate transtorno obsessivo compulsivo, depressão, LER, histerias e assim por
diante. Você que cuide das suas patologias,”vá a um analista e está aqui o seu
salário”. Se formos explorar tudo aquilo que a sociedade nos coloca de exigência,
e ao mesmo tempo não dá contrapartida, que deve ser paga por você, através de
planos, clubes, viagens de lazer. A cobrança é coletiva, mas as soluções são
individualizadas.
Entrevista Eugênio Trivinho redes sociais

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  • 1. Entrevista do professor da PUC-SP Eugênio Trivinho concedida ao jornalista Bruno de Pierro para o portal Brasilianas.org e o Blog do Luis Nassif (ano: 2012) Estamos vendo surgir uma nova modalidade de capitalismo com as redes sociais, segundo a qual as regras da comunicação não são mais ditadas pelo jornalismo. Além dos fatos que costuma abordar e perseguir, a prática jornalística está às voltas com o “sobrefato”, ou seja, a movimentação da sociedade dentro do espaço cibernético, da qual a produção simbólica do jornalismo é dependente. A avaliação é de Eugênio Trivinho, professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC- SP) e assessor do CNPq, da CAPES e da FAPESP. Considerado um dos principais nomes do estudo sobre a cibercultura, Trivinho falou ao Brasilianas.org por duas horas sobre as transformações da comunicação nas redes sociais e a defasagem do jornalismo para lidar com a nova ordem que se impõe. Para o professor, o que acontece é um “destronamento do jornalismo como instrumento de mediação simbólica da sociedade”, ao mesmo tempo que o real é reportado sem a necessidade da edição, perdendo-se, assim, o monopólio do jornalismo especializado. Na conversa, Trivinho ainda explica o conceito de “glocalização”, em oposição à globalização. Para ele, o termo “glocal” pode explicar melhor o cenário estabelecido pela conexão da Internet, pois significa aquilo que une o global da rede no local de acesso. Por fim, Trivinho fala sobre como o modo de produção do saber na cibercultura tornou-se incompatível com os cânones da Ciência. Confira abaixo as principais partes da entrevista. A íntegra está disponível,em PDF, abaixo do post, ou pode ser acessada por aqui. Brasilianas.org - Qual a concepção que o senhor tem pensado, nos últimos anos, sobre as redes sociais na Internet? Eugênio Trivinho - Em primeiro lugar, a questão da categoria: redes sociais é um truísmo, uma expressão conceitual que acabou tendo bastante aceitação no campo jornalístico, no senso comum e também no campo acadêmico, por um descuido do hábito. Na realidade, o conceito é bastante pleonástico, porque não há rede que não seja social. O adjetivo entra aí quase como um qualificador em relação às redes, para redundar no óbvio. Superada essa questão do pleonasmo interno - e não deveria ser assim -, deveria ser o conceito de “rede sócio- tecnológica”. Esse é o conceito diferencial. Mas supondo que redes sociais são aquelas, e especificamente aquelas que se incubam no ciberespaço, e,
  • 2. articulando-se nele, emergem, trazem alguma coisa que nos faz pensar. Sobretudo porque essas redes sociais tem dimensões, que tem sempre preocupado teóricos de diversos campos do saber. Elas tem uma dimensão claramente além do societário, da sociabilidade; tem uma função claramente política; econômica; cultural, evidentemente; e moral. No campo político, as redes sociais são uma espécie de epicentro articulatório de indivíduos que, a priori, são isolados, para fazer renascer alguma forma de movimentação na sociedade. E na sociedade pode ser dentro ou fora da rede. Essa forma de fazer política pode ser, muitas vezes, tão forte e envolvente que é capaz de se mobilizar e se fazer projeção contra o próprio aparato repressivo (cavalos, gás lacrimogêneo etc.). Essas redes sociais tem um clara função econômica, de duas formas. Elas são articuladoras de novas formas de empreendedorismo. As formas de empreendedorismo que nasceram no ciberespaço, sinceramente, não estão vinculadas a certos padrões capitalistas; muitas vezes são projetos de pessoas que não vivem no mesmo local, cumprem determinadas funções, prestam serviços, a partir de lugares remotos, e são projetos que não implicam a contratação de mão de obra assalariada. E o fato de não haver contratação de mão de obra assalariada implica na recusa de certos pressupostos capitalistas, porque onde há emprego de mão de obra assalariada, há, evidentemente, produção de riqueza não repartida. Essa produção da mais-valia, que se reparte, na maior grandeza, para aquele que detém as condições de contratação, e a menor grandeza para aquele que apenas vende sua força de trabalho, sua competência cognitiva, sua habilidade profissional, a recusa e a ausência não configura, portanto, a existência daquele fio condutor que sempre animou o capitalismo, que foi a exploração de um ser humano por outro. Mas, na verdade, podemos dizer que a exploração continua, mas de forma mais sutil. As pessoas se cadastram, fornecem seus dados e viram massa para as grandes empresas do ciberespaço. Se se trata de um empreendimento vinculado à rede, em que o empreendedor contratou a mão de obra de estagiários, por exemplo, e paga salário para cada qual, com carteira assinada ou não, o lucro não é dividido entre pares e fica concentrado para aplicação da reprodução do próprio negócio, para a contratação de mais funcionários, para a ampliação de filiais. Se há esse esquema, há, evidentemente, modus operandi capitalista no sentido mais clássico. Quando não há, quando a prestação de serviço é feita por uma pessoa apenas, e ela não emprega mão de obra assalariada, então não há, evidentemente, a configuração da mais-valia. Porque tudo aquilo que é capital entrante é relacionado apenas à posse de uma pessoa. Então não há mais-valia; o que há é o pró-labore. É muito curioso que, em muitos modelos de empreendedorismo que nasceram com o ciberespaço não há configuração clássica do capitalismo. Ao contrário, o que existe são muitas práticas de empreendedorismo produtivistas, mas sob um
  • 3. outro viés, que não implica necessariamente a contratação de funcionário que vão ganhar menos devido ao salário, em prol de alguém que vai ganhar mais, porque é o contratador. Na realidade, são formas compartilhadas de trabalho, cada qual vivendo em bases remotas, nem sempre no mesmo país, e que acabam perfazendo formas de prestação de serviços que implica, no final, a repartição assemelhada dos lucros. Isso é uma realidade muito interessante, que só foi possível com a emergência do ciberespaço. A outra dimensão que as redes sociais trazem, essa sim mais sutíl e bastante curiosa, é o fato de que diversas mega corporações, que portanto trabalham suas marcas ao nível transnacional - e que muitas vezes são redes sociais, Facebook, por exemplo - e que se valem do trabalho articulado de milhões, bilhões de pessoas ao redor do mundo, consideradas como capital humano, e que aderem a essa marca sem gastar um tostão. E justamente por isso valoram, semana a semana, mês a mês, ano a ano, a marca. Isso sim é a exploração de que falei. É a exploração que não passa como exploração. É a exploração flexivel, sutil, imperceptível, obliterada de uma marca, que se gerencia como marca, que acolhe os consumidores - eles não precisam comprar nada no mercado. Não entra o simbólico do dinheiro, certo? Não entra, não há essa troca econômica, portanto parece que a troca não existe, mas existe. Na realidade, esses que são acolhidos são justamente aqueles que concordam em ter perfis, em ativar os nichos de rede para poder se relacionar com pessoas etc. E o contexto dessas mega marcas, em termos da sua valoração no mercado - o Facebook entrou recentemente no mercado de capitais -, com marcas sendo vendidas por bilhões, por mais que haja sociabilidade livre, desinteressada e distribuída, compartilhada, há negócio como qualquer outro, do ponto de vista da economia de capitais. Então, a marca é acolhedora e aquele conjunto de milhões de pessoas, que aderem a essa marca, e que agem sem pensar que estão no terreno de um negócio, quanto mais pessoas houver para dar fomento e sustentação à marca, mais investidores haverá e mais a marca será benquista pelo capital de publicidade e que quer se vincular a ela. E, nesse caso, usuários de redes, pela interatividade, são considerados como meros objetos sem que saibam. O Flickr promove eventos em vários lugares para promover a sua marca e se vale, evidentemente, da espontaneidade, da voluntariedade autonoma - pois ninguém é coagido, todo mundo faz porque quer - das pessoas. O que se vê são pessoas que fazem isso com prazer e com bastante consciência, pois sabem o que estão fazendo, ninguém é manipulado. As pessoas vão até o evento, sabem que estão num evento promocional e querem estar lá. São, portanto, corpos-propaganda, corpos de indivíduos (sem questão de gênero, de credo, nem de faixa etária ou, muitas vezes, salarial), que vão a esses eventos, tiram fotos, colocam nos seus perfis, dizendo que estiveram lá. E não se incomodam por serem garotos e garotas
  • 4. propaganda. Estamos vendo surgir uma nova modalidade de capitalismo com as redes sociais, e que não deixa de ser perversa. Estamos falando do âmbito individual, que se torna social. Mas falando do jornalismo, vemos transformações interessantes na forma de produção da notícia, colaboração etc. A cobertura jornalística tradicional tem sofrido muito para acompanhar o que se difunde e divulga na rede. Dois casos mais notórios dos últimos meses foram Pinheirinho, em São José dos Campos, com vídeos, fotos e textos sendo gerado in loco por pessoas que não praticam o jornalismo, e ainda assim foram fontes de notícia; e o outro, as denúncias relacionadas a Carlos Cachoeira, com muitas informações relevantes circulando apenas em blogs, e não na grande mídia. A operação das redes sociais foi uma enorme surpresa para os usuários e estudiosos do ciberespaço, uma grande surpresa histórica em termos de fenomenologia social. Nos últimos dez anos, é o fato mais significativo do ponto de vista de agrupamentos sociais tendentes à realizar alguma atividade conjunta, não digo para a superação das condições vigentes do capitalismo, mas para expressar insatisfação e para poder dizer que existem novas formas de subjetivação de mundo, com pessoas vendo o mundo de uma outra maneira, articuladas por redes, ocupando ruas, praças, elaborando novas formas de empreendimento e de criação de riqueza e assim por diante. O que você coloca a respeito da questão do jornalismo entra na dimensão cultural, e como dimensão cultural não devemos entender apenas a relação com a arte, mas àquilo que se refere à produção simbólica. E o jornalismo é uma produção simbólica, especializada e com linguagem específica e que, portanto, envolve uma técnica. E é uma produção simbólica para um consumo abstrato. O jornalismo se faz para a leitura, para a visualidade. E a leitura é um consumo abstrato; alguém fala consumo alucinatório. Não é o consumo de materiais, como comer uma fruta ou de roupas, que são para vestir, ou um apartamento no qual se habite. O consumo abstrato está proliferado, e quem o satisfaz, nessa demanda, ou seja, quem satisfaz uma sociedade midiática, fundada no consumo abstrato, é a produção simbólica. O que ocorre com o jornalismo quando emergem as redes sociais? De fato, essa surpresa provoca desafios à produção simbólica, especificamente a jornalística. E os desafios ficam por conta, primeiro, da abordagem em tempo real. O jornalismo que mais perdeu com as redes sociais, e sempre é o que mais perde, foi o jornalismo impresso diário. Porque o semanal e o mensal tem condições de assimilar mais material e fazer o que o jornalismo diário não pode fazer, o que o jornalismo televisivo não pode fazer e o que o jornalismo de Internet não pode fazer, pois eles são vocacionados ao tempo curto. Somente com o distanciamento,
  • 5. provido pela regra do jornalismo semanal e mensal, é que há a possibilidade de se agrupar o maior conjunto de dados e fazer o monitoramento, descartando várias coisas que realmente não interessam e só ficando com alguma estrutura interessante de fatos. E você os reporta, e a partir do momento em que ele vão se apresentando, você pode espalhar um pouco mais as pautas e descartar algumas. Então, numa entrevista, no primeiro dia, ela pode ser descartada no seguinte [dia], porque os fatos ultrapassaram a palpitação, a validade dessa entrevista prevista antes. Uma vez que você não precisa traduzir num produto, numa reportagem, numa notícia, naquele dia o que está acontecendo, você tem a possibilidade de flexibilizar o modo de compreensão do que está acontecendo. Isso não é possível para quem está na linha de frente do jornalismo diário. É possível que o jornalismo televisivo também tenha sido, e é, evidentemente, bem prejudicado, porque ele precisa se organizar em dependência de determinados horários. E a unidade, que antes era o “dia”, do jornalismo diário - já foi semanal -, passou a ser para um conjunto de horas, quando houve a emergência do rádio e também da televisão. Mas a medida dos fatos de hoje não é mais a medida nem pelo dia, nem pela hora; é pelo minuto. O tempo real é um tempo sem medida, ele se constrangeu muito para o efeito de abordagem de fatos. E a abordagem de fatos é a regra básica que sustenta a produção jornalística. Ora, como concorrer com o jornalismo impresso e o radiofônico, que ainda vive de “entradas”, e o televisivo, que tem uma flexibilidade, mas nem tanto, pois já uma programação que precisa ser honrada? As redes sociais podem não produzir jornalismo, ensaísmo acadêmico, mas elas inventaram uma nova linguagem, ultra ágil, e, ao mesmo tempo, seu espelhamento é em tempo real. E aí envolve não somente uma sociabilidade, mas uma coisa que diz respeito ao confronto com as autoridades, com o aparato repressivo, e assim por diante. São pessoas altamente ativas, que fazem parte de certos grupos, nunca são isoladas, e que respondem a uma voz e a um lugar de fala, e que, portanto, precisa fazê-lo para reproduzir esse lugar de fala. E o fazem não por dinheiro, mas exclusivamente pela partilha, pelo potencial e pelo empoderamento do âmbito civil. O jornalismo está agora em outro contexto, cujas regras não foram dadas por ele, e diante de um fato que se coloca bastante curioso: o jornalismo, além dos fatos que ele aborda e que ele persegue, está às voltas com o “sobrefato”, que é agora o caso das redes sociais. O jornalismo, que sempre dependeu de determinadas movimentações maquinais, tecnocráticas, uma parafernalha de hardwares (satélites, televisores), agora tem a Internet. Mas o jornalismo não depende só da parte da parafernalha da Internet, ele depende de uma movimentação interessante e que é da sociedade, dentro do ciberespaço e do qual o jornalismo e sua produção simbólica depende. Assim, o jornalismo está defasado em relação ao seu próprio contexto de inserção,
  • 6. exclusivamente relacionado ao modo de produção em tempo real. Ele precisa se adequar, espargindo as suas redes para fontes que agora não estão, senão, no universo das redes sociais. Há o exemplo interessante do Huffington Post, com um modelo próprio de jornalismo colaborativo, logística de informação. Falaremos cada vez menos do jornalismo como dono da informação, portanto? Na realidade, a questão é bastante complexa. Essa argumentação traz diversos elementos para os quais a gente não tem uma resposta ainda. Os fatos não se apresentaram de tal forma completos para nos dar uma interpretação com uma resposta convincente a todos os elementos que você põe. Primeiro é preciso considerar o que é jornalismo. Se jornalismo é o que determinadas empresas ou projetos de empreendedorismo de produção simbólica fazem conforme o padrão dominante, com uma linguagem aberta, universal e inteligível, e que possa, portanto, ser útil como prestadora de serviço, possa elevar determinadas emoções, possa até bancar determinados interesses da população, cobrar de autoridades, fazer a mediação entre problemas sociais e a política etc. Se jornalismo é isso, uma técnica profissional, dominada por profissionais, que são pagos para poder exercer essa profissão, então nós estamos às voltas com a emergência de um determinado fato, que é vultuoso, das redes sociais que operam em tempo real, e operam produzindo, reportando-se ao real e fazendo chegar uma chuva de informações diária para esse tipo de jornalismo que, em geral, tem quatro suportes básicos: impresso, radiofônico, televisivo e o converso para a Internet, aproveitando o potencial da interatividade. Se jornalismo, grosso modo, tem a ver com o modo de produção simbólica de domínio por parte de certos profissionais que, portanto, tem relação com uma linguagem específica, e que com certeza não é a linguagem que estou empregando agora, nem dos escritos acadêmicos ou do senso comum - é uma linguagem elaborada, aprendida -; se jornalismo é isso, então temos que circunscrever qual o impacto que se opera aí. Na realidade, esse jornalismo se defasou. E mesmo o jornalismo de rede precisa descobrir novas formas de articulação noticiosa, que necessariamente não se faz por contrato de trabalho, às vezes se dá por voluntariedade. Aí já estamos caindo na segunda forma de jornalismo, que é como nós podemos considerar o jornalismo de um modo mais aberto, ou seja, lato sensu. Jornalismo pode ser considerado, diferente do que acabo de dizer, como um modo de reportar o real e o social, o modo de reportar a vida. Com uma linguagem específica? Sim, mas não precisa ser única. E reportar falo em recriar, pois muitas vezes o fato nem existe. Às vezes é um factóide, criado pela própria notícia, e a notícia passa a ser o próprio fato. E as pessoas vão ler a notícia como sendo o próprio fato. É preciso deslocar a definição. E se jornalismo for reportar o real para outrem - a literatura faz isso, a poesia faz isso, o teatro faz isso -, então ele é uma modalidade de recriação desse real, para outrem, a partir de uma linguagem muito específica.
  • 7. O modo como de constrói o texto e como se faz reportagem televisiva varia, mas já não estamos no universo do empreendedorismo, empresarial. Estamos fora da organização do capitalista da notícia. Estamos já no modo mais aberto, que pode ser feito por qualquer pessoa. O que aconteceu recentemente no Pinheirinho, que foi reportado por inúmeros celulares, inúmeras câmeras fotográficas, que se transformaram em produtos de uma determinada vocação de testemunho. E falo de produto não assalariado, produto colaborativo, e que se acabaram indo para redações de jornais e para a rede, e muitas vezes o jornalista tem que ir para a rede, para ter acesso a alguma coisa que não veio até ele. Mas esse conteúdo já foi direto para a sociedade. O jornalismo foi abolido como mediação simbólica, como escritura e re-escritura; as redes sociais fazem isso. O que ocorre é um destronamento do jornalismo como instrumento de mediação simbólica da sociedade e, ao mesmo tempo, uma forma de reportar o real, que tinha sua força, primeiro na inexistência de edição e, segundo, na colocação a público, de forma para compartilhamento, no momento em que o fato estava praticamente acontecendo. O que vimos também na Primavera Árabe e no Occupy Wall Street. Na verdade, existe algo muito interessante, porque, se as redes sociais assim compareceram, provocando um certo impacto, trazendo um certo desafio para o jornalismo organizado, e ao mesmo tempo fora desse tipo de definição as redes sociais também trouxeram algo muito interessante, que o fato de elas mesmas serem a mediação simbólica para a sociedade, aí nós temos um fator muito curioso, que entrelaça essas duas modalidades de definição. E são, grosso modo, porque há várias formas definidas no jornalismo, a quebra do monopólio. Essa negativa de partilhar, do jornalismo organizado, essa produção simbólica, é uma forma de dizer “recusamos o monopólio da informação”, “recusamos a possibilidade de edição, que já opera uma auto-censura, e faz os produtos irem à população a partir de uma mediação reconstrutora, que pode ser uma maquiagem a respeito do que, de fato, aconteceu”. Então, o fato é bruto, sem mediação, exceto aquela das maquinárias e da vontade típica das próprias redes sociais. Essa quebra de monopólio não pode ser desconsiderada como um fato que já é conhecido, que vem acontecendo há pelo menos desde a criação dos computadores pessoais, nos anos 1970, 1980. Essa quebra de monopólio tem um fato novo: o fato agora é reportado por aqueles que o fazem ou que estão muito próximos dele, e que, muitas vezes, não tem ligação com as empresas jornalísticas mediadoras e simbólicas da sociedade. Se nós considerarmos que jornalismo é produção simbólica de reportar o real, então temos que considerar fora do cânone acadêmico, universitário, técnico, que o que está acontecendo é um fato para o qual o jornalismo ainda não nasceu, ainda nem se deu conta. E mostra o quanto ele está defasado; ele está vendo a proliferação de fontes e não sabe o que faz com elas. O quanto ele está aturdido em relação a
  • 8. isso que comparece como modo de produção simbólica espontânea, de redes sociais comprometidas não somente politicamente, mas com o fato de que é necessário produzir sobre o social, sobre a vida, algo que seja mais autêntico, mais próximo do que são os fatos, do que o próprio jornalismo tem feito. Esse é um fato muito interessante, porque envolve quebra de monopólio, emergência de novos atores mediadores da sociedade, que estão trazendo uma nova inflexão, fazendo-nos pensar de outra maneira sobre o que significa autenticidade no reportar. E também envolve a questão da auteridade, não? O índio reportando o índio; o sindicato reportando o sindicato; o agricultor reportando o setor etc. Exatamente, tem o identitário. É um falando dele mesmo, quando ele fala sobre seu próprio contexto, sem mediações. Não é o historiador, não é o etnólogo, o jornalista que foi fazer. Ao contrário, o próprio lugar de fala se colocando. Quebram-se as mediações. No caso da mediação do jornalismo, é exclusivamente a questão do monopólio da notícia. Mas não é o monopólio por parte de uma empresa; falo de um monopólio por parte de uma técnica de produção do saber. É esse monopólio que se perde, o monopólio do cânone, do especializado - o jornalista como um especializado. Mas eu não se tudo o que se faz, como produção simbólica das redes sociais, pode ser considerado como modalidade de jornalismo só porque é uma modalidade de reportar o social. Se tomarmos a Internet como o estado máximo, pelo menos até agora, do que é o paradoxo e do que é a contradição, poderiamos dizer que a importância dela, para a filosofia da ciência, é de mostrar a questão do não- lógico, do indizível nesse ambiente cibernético. O senhor concorda? Sem dúvida alguma. A Internet traz um modo de produção do saber que não é, de alguma forma, compatível com aquele do cânone da ciência. O modo de produção do saber das redes sociais, e mesmo antes da web, com os modens, é o fato de que há quebra da linearidade, há uma emergência da aleatoriedade; o fato de você ter, naquele site que você citou [o Huffington Post], de repetitividade de certas expressões, e as pessoas não estão nem aí, esse é o modo aleatório de produção do saber. Você pode encontrar isso em vários lugares a mesma matéria, ou em meios diferentes, duplicadas em parte e continuadas a partir de um desenvolvimento diferenciado do que foi feito no outro dia. E aí você tem acesso a uma versão e depois você saber que existe uma outra versão mais desenvolvida, e alguém pergunta: “mas você leu essa matéria?”, e você responde: “li, mas estava relacionada à versão prévia”. Esse tipo de produção do saber - e ao mesmo tempo comprometido com uma visualidade, com apresentação despreocupada em relação à questão da logicidade, em relação a não-repetitividade e aos cânones da lógica, da ontologia - é o que acaba, no fundo, colocando para nós que estamos nos relacionando com um fenômeno, cujos horizontes são tão abertos, e nós nem começamos a explorar,
  • 9. e em relação ao qual nós sequer temos elementos epistemológicos herdados para poder abordar. E eu falo de cátedra, pois eu pesquiso essas questões da cibercultura, que é um nome que considero importante para ser cobertura para a fase digital do capitalismo tardio. Quer dizer, eu tomo cibercultura como categoria de época. E quais as caracteristicas dessa categoria? Tudo o que vem à tona nessa fase interativa do capitalismo, financeirizado e midiático, eu tomo como objeto de apoderação, porque nos faz pensar o modo inclusive de nós conhecermos o próprio mundo. Por exemplo, eu estou com meu grupo muito interessado em estudar o híbrido. O híbrido é uma categoria terceira, que se opera a partir da junção irreversível entre duas constitutivas. E essa terceira não se reduz nem a uma, nem a outra. Por exemplo, o glocal, que não é nem global, nem local, é uma terceira coisa. Quando se diz aldeia global, em McLuhan, é algo presencial e circunscrito, e, ao mesmo tempo, global. Existe aí um paradoxo, uma anti-tese. Então você não trabalha com a ideia de globalização? Trabalho com a glocalização. O glocal, para mim, é uma via de terceira grandeza, é uma terceira fenomenologia, que já se realizou no planeta inteiro e que está para além, e muito além, das localizações, das regionalidades e das globalizações e globalidades. O glocal é aquilo que une o global da rede no local de acesso. Então, quando você liga o seu celular, alguém liga e você atende, ou quando você abre seu tablet e está conectado, e mesmo quando você liga a televisão, você está na terceira grandeza, no contexto glocal. O que isso significa? Significa que você não está nem no local, você está conectado em rede, e você não está nem na rede, porque o seu corpo está no local. Você está no híbrido, no meio. E nós não vivemos no meio. É um paradoxo. É um paradoxo, é a união entre uma coisa e a outra, sem que haja contradição. E mesmo que sejam contraditórias, elas se mesclam. Só que o paradoxo ainda não é o híbrido. O paradoxo ainda é a justaposição de coisas: é uma coisa e outra, e não ou outra. O Ocidente não formulou episteme típica para compreender o híbrido, nós não sabemos do que se trata. Quando o senhor fala em Ocidente, é porque no Oriente há esse conhecimento? A microfísica ocidental, tipicamente acadêmica, que tem pelo menos 2600 anos. Mas não sei outra cultura que pense no híbrido, por isso que falo apenas da ocidental. Meu grupo também não sabe, e estamos preocupados com isso. Mas então existem inúmeros fenômenos híbridos, e o glocal se manifesta como a rede no local. Ela é pervasiva no sentido da mistura, de modo tal irreversível, mas de modo tal que você não tem nem mídia locativa, nem mídia global. O que você tem é uma mídia que glocaliza.
  • 10. Ela une a dimensão do global, com notícia que vem de todos os lugares, que perpassa o seu ponto de rede, e que chega no seu tablet, no seu rádio, televisão; mas que uma vez que chega até você, porque somos mercado, chega se entrelaçando com o local, e dele não se separa. De modo tal que o que vem da China, do cinturão Norte da África, de Wall Street, nos Estados Unidos, é mais íntimo para nós, quando chega em nossa tela, do que o que acontece na esquina. Então, há um fenômeno muito curioso, que é o de distanciamento do que é próximo e uma aproximação com o que é distante. Isso funciona fora da cibercultura, isto é, quando vou a uma cidade pequena, distante, e lá encontro uma lanchonete de rede de fast food famosa, o logotipo de um posto de gasolina que também tem na minha cidade? Esse é o glocal lato sensu, aberto. O glocal stricto sensu envolve a necessidade de tecnologias digitais. Mas há cem anos, quando alguém abria um jornal em New York e lia sobre a China, isso já era glocal? Não, porque o glocal envolve tempo real. E o jornalismo não é capaz de rede em tempo real; o teatro não é capaz de rede em tempo real, assim como o cinema. Você tem que ir lá e assistir a peça ou o filme. A indústria fonográfica não é capaz de tempo real, ela produz o disco para você ouvir offline. Agora, a televisão é capaz de tempo real, o rádio, o telégrafo, no final do século XIX (a primeira máquina glocal), ou seja, a produção é em tempo real. Você produz automaticamente e, em centésimos de segundos, o outro lado ouve. E isso agora está proliferado; é quase como se a rede rara do telégrafo elétrico é hoje a regra proliferada, desde o rádio amador até as redes sociais. A Física também se interessa pelo estudo do imediato. Há alguma relação de seu estudo com as abordagens da Física? Não, com essa área não. Mas o fato é que o glocal stricto sensu é o que determina o que é, hoje, a fase civilização midiática. Essa civilização não é uma sociedade, mas sim um processo civilizatório que se dá com o uso de equipamentos especificamente capazes de rede em tempo real. Quando nós falamos do celular, dos tablets etc., nós falamos de máquinas capazes de perfazer um campo, que é o campo de acesso, de retransmissão, de recebimento, campo marcado por fatos comunicacionais, de interesse do nosso desejo (como consumidor, cidadão etc.), campo este que eu chamo de contexto glocal. A proliferação no mundo inteiro de contextos glocais articula a nossa história numa única categoria: a condição glocal da existência, aquela na qual estamos, articulando, no dia-a-dia, o nosso fazer, num processo civilizatório irreversível. Amanhã podem mudar as máquinas - a televisão pode desaparecer e a Internet também -, mas o glocal, como invenção técnica tende a perdurar.
  • 11. Mesmo sem aparato técnico? O aparato pode mudar. Ninguém sabia que podia haver o tablet e que o celular podia congregar várias coisas. Mas o glocal, como lógica, como esquema operativo de união entre o global da rede e o local veio para ficar. Isso é uma evolução da ideia de espaço público também? O espaço público, na história, por exemplo no século XVIII, com a emergência da burguesia, já disse Habermas sobre isso, acabou ganhando uma nova dimensão, foi reconfigurado com a emergência de tecnologias glocais. Ele se transformou e se perdeu. Eu tenho um texto no qual eu divido a esfera pública do século XVIII em três modalidades públicas. Não vou me lembrar mais, mas de toda forma existem a esfera pública de sociabilidade e trocas; a esfera pública de venda, de troca econômica; e a cena pública, que é a produção midiática no geral. Na esfera pública de sociabilidade, das redes sociais, com compartilhamento de vídeos etc., não dá para fazer discussão alguma em 140 caracteres, ou seja, uma discussão profunda. A discussão é feita, como Habermas pensou, de forma presencial, que permite ao outro intervir, permite ao outro ouvir, e ser ouvido. Em algumas listas de discussão, é possível. O Skype, com aquelas possibilidades de abrir várias janelas, com discussão em tempo real, com fusos horários diferentes, com um código válido para todos, é possível, desde que não se esteja sob o tacape do tempo, e que os interlocutores tenham tempo para ouvir. E nesse texto eu também testemunhei o ocaso da esfera pública de discussão. A esfera pública é interessante, ela existe em certos contextos, mas na rede eu sou cético. Nas condições glocais, a esfera pública de discussão se perdeu. O glocal foi apenas um exemplo [de hibridismo]. Dependendo do sentido é que se dá o híbrido; o glocal é uma palavra que, no significante, é mais adequado, como episteme, para abranger aquilo de que se trata. No Ocidente - estamos às voltas com neologismos - você tem que produzir neologismos que captem o híbrido no significante, e nem sempre é possível fazer isso, senão fica piegas. Por exemplo, [a relação] público-privado. Você tem público no privado, privado no público - um talk show é um exemplo, porque alguém que vai entrevistar um político, ele, a figura pública, adentra ao estúdio, que é de uma empresa particular, mas que tem platéia, e portanto é público; e tem câmeras, que já é a representação do público externo, que pode ser ao vivo, ou não. Então, na realidade, é o produto de uma empresa, que está concorrendo por audiência, como outra qualquer. Esse produto vem como privado, mas num sinal que é público - pois se trata de concessão do Estado -, e que vem para a casa dos particulares, um terreno privado. Então, público no privado e privado no público, nós não temos uma palavra específica para poder apreender isto. Mas por que é necessário ter uma palavra, se já entendemos o significado desse fenômeno?
  • 12. [Dessa forma], nós vamos operar por categorias cartesianas, analíticas, ou seja, separadas. Por isso que o Ocidente não está preparado para o híbrido, pois ele não sabe, não tem palavras. Ele tem que operar com palavras ainda separadas. Precisamos de novas palavras sintéticas, portanto. A síntese, o sincretismo, a mestiçagem, a hibridação. Ou seja, a palavra, por si só, dizendo o que ela é. Exatamente. Por exemplo, eu vou tratar da junção do imaginário entre público e privado, mas vou abordar a partir das categorias separadas, binárias, ainda. O híbrido é, assim, a união do binário, de um modo tal que se perdem as partes, para produzir uma terceira coisa. Mas eu não tenho uma palavra para dar conta disso; então, eu preciso criar. Na China, há mais de 40 palavras para “neve”, de acordo com a textura, com a cor. Na realidade, eu não posso falar “pubrivado”, fica piegas. Não posso [simplesmente] pegar metade da palavra e juntar com outra. Mas glocal pegou. Veio do espaço corporativo, depois foi incorporado pelas ciências humanas. Esse novo espaço está exigindo da própria ciência. Estamos às voltas com uma fenomenologia diferenciada. A fenomenologia do ciberespaço, das redes, e também rádio, televisão, enfim tudo o que se refere ao glocal traz consigo uma série de desafios que são inexplicados. E o horizonte é profundo, inesgotável, não vai terminar tão cedo. E nós precisamos dar conta, de alguma forma, disso. E a área de comunicação é uma área privilegiada, porque é com os fenômenos da comunicação que tudo isso tem mudado no social, mas, ao mesmo tempo, a comunicação tem instrumentos que herdou (metodológicos e epistemológicos) da sociologia, da antropologia, da ciência política, da história, da filosofia, e, ainda assim, não está preparada para poder abarcar, com profundidade e maior extensão, o fenômeno. Será que não é porque a área da comunicação sempre se voltou para si mesma? Na realidade, a comunicação é partícipe e, ao mesmo tempo, receptáculo dessa crise de paradigma, que começa em meados do século XX, com o final da Segunda Guerra e a liberação de grandes forças tecnológicas, científicas e econômicas. Liberação em termos de aceleração completa. Estamos vivendo, agora, o estressamento dessa onda de longa duração. Ninguém aguenta mais tanta aceleração, tanta vida articulada pela lógica da velocidade. Para tudo temos que correr, qualquer produção. E nós somos julgados e avaliados em função da produtividade que fazemos em menos tempo. O jornalismo diário, e o semanal também, é uma loucura, porque você precisa dar conta do tacape do tempo. Então, a partir dessa época [meados do século XX], ocorreu o que os historiadores teóricos vem tratando como Ocaso da Modernidade e a emergência de alguma coisa que se pode chamar de “pós”: pós-industrial, pós-moderno, e até falaram em pós-capitalismo.
  • 13. Aí começa uma sensação, desde o senso comum até a Ciência, passando por outras formas de produção simbólica na sociedade, e a principal delas é a jornalística, de que nós já não sabíamos mais nomear quê tipo de civilização era aquela que estavamos vivendo. E essa quebra de paradigma vinha justamente pelo fato de que já não se podia mais acreditar nas metanarrativas, nas utopias ou grandes visões de mundo, porque foram elas que nos levaram à hecatombe. Foi o liberalismo pelo capitalismo, foi o nazismo pelo Terceiro Reich, foi o comunismo stalinista, pela burocracia soviética, que nos levaram a um beco sem saída: a Segunda Guerra, que aplicou, para destruição, todos os recursos do século XVIII, ou desenvolvidos, a partir dele, para emancipar o gênero humano do obscurantismo, da miséria. A Razão, a Ciência e a Técnica foram barganhadas para a destruição massificada, inclusive depois daquela bomba, vieram outras ogivas, no ápice da Guerra Fria, capazes de destruir o planeta. Alguma coisa tinha que parar esse filme, que era o conto da carochinha do progresso tecnológico. A modernidade acabou se realizando pela sua sombra. Não foi a modernidade prevista, da liberdade, da distribuição da riqueza. Ela precisou tropeçar. Na realidade, ela [a modernidade] tropeçou e não saiu do tropeço. Alguns acreditam que se pode colocar a locomotiva no trilho; outros disseram que não há mais condições, esse caminho não tem mais volta, e é impossível retomar os ideais do século XVII, para corrigir um erro tão avassalador, que agora é planetário. Antes havia um erro que era situado: o erro se torna na França, o erro se torna em algum país da Europa. Agora, não. Agora ele é planetário, pois a modernidade acabou racionalizando o mundo todo. O ápice seria a crise de paradigmas pela qual passamos. A crise de paradigmas vem daí, mas para isso muito contribuiu a comunicação. Quando a televisão emergiu, ela emergiu capitaneando os meios de comunicação que existiam, o jornalismo mudou, o jornalismo impresso começou a ter que colocar fotos, a proliferar imagens, para concorrer com a televisão. Hoje a televisão faz links com o ciberespaço, pois está subordinado a ele. Na realidade, essa comunicação, enquanto área e campo do saber, ajudou a quebra de paradigmas, porque ela espalhou aquelas imagens de corpos mortos, corpos esquálidos, vítimas do nazismo, judeus, ciganos, negros, homossexuais, deficientes físicos. Aquilo foi avassalador e nós ainda não conseguimos superar aquilo. Naquela época, começou-se a espalhar a idéia de que toda utopia rimava com barbárie, e não o contrário. Porque elas nos fizeram crer que elas, as ideias, eram o melhor, que traziam a emancipação, que elas iam nos trazer um mundo melhor, de liberdade. A felicidade estava no depois, e isso era somente possível se houvesse revolução.
  • 14. Houve, então, uma reversão completa. A metanarrativa, a grande visão de mundo, na verdade, acabou por trazer o contrário, a destruição completa. Bom, mas elas eram nossas salvações, elas nos davam os paradigmas para revolução, para ciência... As ciências, cada qual no seu ramo, desenvolviam-se em função de uma narrativa de emancipação, todas elas cooperavam para trazer luz, para que o ser humano pudesse, através do conhecimento, da superação das doenças, da superação da miséria, das superstições, a luz da ciência, a luz da Razão, para que a humanidade pudesse prosperar em conjunto. As ciências trabalhavam em função de uma metanarrativa; ou era o marxismo, ou era o liberalismo, ou o humanismo. De repente, perdemos os referenciais primeiros. Cada ciência começou a operar por conta própria, começou a olhar para dentro de si, e a se desenvolver segundo um método, que é desenvolver-se em congressos específicos. Uma não se comunica com a outra, e a idéia de interdisciplinaridade começou a ser bastante artificial. Mas hoje se fala muito em interdisciplinaridade, tanto em meio acadêmico, quando no empresarial. Fala-se muito... Há autores, como Edgar Morin, que falam muito desse conceito. De fato, não está ocorrendo? É possível, desde que se faça o híbrido. Porque, na realidade, se você promove a interdisciplinaridade com a ideia do “inter”, e não do “intra”, o “inter” significa justaposição, então você faz uma interdisciplinaridade artificial. Você chama a sociologia, a história, a antropologia a se encostarem na comunicação, e você importa o método de uma, o conceito de outra. Isso ainda é interdisciplinaridade falseada. A interdisciplinaridade autêntica, genuína, é aquela que realmente mistura as coisas. E promove um conhecimento que já não se reconhece nem da comunicação, nem da antropologia, nem da filosofia, nem das áreas conectadas. O produto do trabalho já não se vincula à área a qual você pertence. Mas isso não seria, aproveitando a expressão que foi utilizada recentemente, uma utopia? Não, é possível sim. Tanto é o fato que se você traz diversas contribuições, eu não sei se o Edgar Morin faz filosofia, entende? Ele, de alguma forma, produziu um outro conhecimento, que se trata da Complexidade, Conhecimento Complexo. Para mim, é uma outra coisa; ele pode situar na sociologia, na filosofia, em todas as áreas, mas se é de todas, é de nenhuma. De fato, é transdisciplinar. Mas é curioso, eu leio Morin e eu não me convenço de que o que ele aborda é crível, porque há misturas que somente um pensamento mais ponderado deveria, evidentemente, perfazer. Eu creio que há forçações ali. Ele produz um pensamento dito complexo, porque ele envolve dimensões diferentes da existência humana que nunca tinham sido tão articuladas e, portanto, para dizer que o conhecimento produzido, o conhecimento que devemos ter sobre essas dimensões não pode ser mecanicista, não pode funcionalista, não pode ser
  • 15. meramente empirista; ele deve absorver a carga de complexidade, tanto de cada dimensão (biológica, econômica, psicologica etc.), quanto a complexidade das misturas. E, para isso, você tem que prover explicação muitas vezes com neologismos. Ele, Morin, está no terreno do híbrido, do tecido, que já não é nem uma coisa, nem outra - já é Pensamento Complexo. Eu acredito e aceito, mas não há explicação sobre o fenômeno em si; aquilo é apenas uma explicação explorando as dimensões complexas, viável como outra qualquer, mas como tal criada por uma reflexão individual. Nós precisamos é explorar o híbrido e verificar outras formas de narrativa, inclusive tomando esta como uma tentativa muito bem sucedida (a de Edgar Morin). Agora, a comunicação é um pivô, ao mesmo tempo beneficiária da crise de paradigma, porque quando ela, na verdade, vem com a televisão e a comunicação se espalha como regra, tudo passa a ser comunicacional, o marketing transforma política em mercadoria, surge o marketing pessoal. Um monte de coisas para dizer o quanto a comunicação articula nossa existência. Nós não acordamos sem nos preocupar com e-mails, já está no sangue. É só verificar quando esquecemos o celular em casa. É difícil não se sentir amputado, quantas vezes não voltamos [para casa para buscar o aparelho]? Ninguém quer, mas quando ocorre uma oxidação de Winchester, e sua vida está lá, pois vida é dados, você acha que perdeu alguma coisa. Você leva para a assistência técnica, e o técnico diz que se salva só metade dos dados. Tem essa discussão sobre Nuvens, as Cloud Computing, em relação à segurança de dados públicos e privados, à diminuição do hardware, a abstração maior da tecnologia da informação. O que se acredita, mas ainda pode acontecer algo com o grande computador que armazena tudo isso. O fato é que a comunicação é muito mais do que um campo de trabalho, um campo de saber e é muito mais do que o conjunto dos aparatos da sociedade, muito mais do que a nossa intencionalidade de chegar ao outro e dizer alguma coisa. Ela é, hoje, prótese invisível do inconsciente. Ela é hoje modus vivendi. Muniz Sodré, professor da UFRJ, em um livro chamado Antropológica do Espelho, diz que comunicação é bios, gera hábitos. Então, ela faz parte e se beneficiou da quebra de paradigma, porque ela, a comunicação, desde os anos 1940, 1950, com a cibernética, acabou por se colocar como uma nova utopia. Ela se serviu do vazio deixado pelas utopias políticas e filosóficas, econômicas e religiosas, e ela se colocou como o novo religare, uma nova forma de articular a vida das pessoas. Hoje é preciso ter pela atendente bancária que haja um treinamento, de recursos humanos, para ela aprender a ter inteligencia emocional na situação de estresse e, ao mesmo tempo, sorrir. Porque isso é comunicação da marca, é comunicação da empresa. Você fala, então, de comunicação do modo mais amplo possível, certo?
  • 16. Comunicação textual, verbal, imagética, signica, não-verbal e assim pior diante. É o associar-se, o vincular-se e o reportar-se, enfim, onde há contato há comunicação, mesmo entre duas máquinas. Por exemplo, quando a gente está na nossa máquina, e operamos o Google, quem responde é uma máquina para a sua. Você é apenas o receptor de leitura; existe aí uma conectividade, da ordem da comunicação, desde que o código partilhado seja um código que no seu terminal seja legível para você. Muitas coisas que operam entre as máquinas nós não compreendemos, mas que ocorrem para tornar a comunicação possível. Mas como e consolida esse novo modo de vida, esse novo religare? A comunicação se prevaleceu da crise de paradigma. Mas há alguma perspectiva de quando isso pode ser novamente alterado, um novo paradigma? Ou trata-se de algo definitivo, ou, pelo menos, sem previsão para encerrar? Definitivo é muito forçoso, pois não temos um compreensão para além da zona observável, nem a curto prazo. As tendências concretas que vão formar o nosso horizonte nem sempre são previsíveis, e as previsões são falíveis. Nós não podemos dizer que são definitivas jamais. um dia mudarão, porque é um movimento, vamos crer no movimento. O movimento da sociedade provoca rearranjamentos, reajustes, e funciona como uma caixa de surpresas, mas não necessariamente uma caixa de Pandora. E a história é marcada por oscilações, altos e baixos, por zonas obscuras e, ao mesmo tempo, por grandes rompantes de luminosidades, que reacendem esperanças. Essa ordem de tornar tudo iluminado e visível pela comunicação, sob o pretexto da transparência, da visibilidade, até certo ponto é positiva. Mas há características não tão positivas assim. Digamos que ela é o que é à sociedade. Como fato, a compreensão da fenomenologia do fato da sociedade, da história presente, é assim. O [filósofo Jean] Baudrillard foi um daqueles que disse que a nossa sociedade é da transparência, da visualidade, de que tudo tem que vir à tona, o segredo tem que ser profanado, tudo tem que ser transformado em imagem, em informação. Para aonde se vai, tem que voltar com fotos, vídeos. Isso acaba colocando, como você disse, em preocupação também para nós a questão: onde iremos parar? O que realmente significa essa total transparência? Alguma forma de vida está sendo colocada em baixo do tapete ou sendo excluída, porque se a sociedade é da transparência, e é disso que se trata agora, não há mais segredo, o que é impossível. Mas vamos supor que seja - segredos se guerra, de Estado -, tudo vem à tona, manchando reputações; se tudo isso é a transparência, é porque a sociedade da transparência já está excluindo novos horizontes ou outros horizontes possíveis, porque esse tipo de sociedade acaba se implantando como modelo que acaba excluindo as demais possibilidades. E todos os modelos implantados trazem consigo a regra da falibilidade, todos eles se colocam como não sendo a completude, o sistema perfeito, sempre há alguma zona, alguma
  • 17. franja aberta, que diz respeito a uma ilogicidade e a uma desrazão, uma produção de desigualdade. Óbvio que traz uma preocupação, só precisamos saber como teorizar, porque, por ora, toda a nossa cidadania acabou por se formar, nos últimos séculos, tendente a fazer desaparecer todo tipo de segredo, para que saibamos e com eles possamos lidar. Sequer segredos de Estado, porque se o Estado é sustentado por nós, então como podem determinadas informações serem objeto de monopólio de uma casta que se acha profissionalizada para poder ocupar os cargos da política, mesmo por eleições, e então encobre, segreda, engaveta, porque acha que a população não pode saber. Com que direito? São razões de Estado, por causa das guerras possíveis, da concorrência internacional, então o segredo é estrategicamente, muitas vezes, necessário. Mas se estamos caminhando para uma sociedade da transparência completa, o que não acredito, mas se estamos caminhando para deixar no horizonte esta utopia, o que é preocupante é o fato de haver, então, a possibilidade - eu diria ilusória, imaginária - de ver instaurado, como sociedade, um contexto humano de que a maior riqueza da vida é expurgada. Justamente o segredo, o mistério. Se se trata de jogar com o instrumento da transparenciação, com todos os esquemas jornalísticos e máquinas, é jogar a transparência como máquina de guerra contra tudo aquilo que marca, e vai marcar, aquela zona a partir da qual você não sabe nada, que você não consegue identificar o que seja o que. E que é o segredo, o obscuro, o não-dito, o indizível, o sublime, o mistério. No campo da fenomenologia, você tem, aqui e agora, o campo da transcendência. A transcendência está disponível para você; o seu campo próprio se dispõe de uma transcendência que separa o que é cognoscível, de acordo com as categorias que você domina, e com o conhecimento disponível na sua época, daquilo que você não domina e não vai dominar nunca, porque o cérebro não está adaptado para essa compreensão. Houve um momento em que a ciência foi a grande desbravadora e chegou mesmo a aniquilar saberes tradicionais, antigos, mas não reconhecidos pela racionalidade, pela lógica. Podemos dizer que esse atual momento da comunicação tem exatamente esse papel, essa função que a ciência teve? Essa pergunta é perspicaz. A comunicação é um modus vivendi hoje, um habitus social. Está em todos, não é o monopólio de uma empresa, de uma indústria, de uma linha de produção simbólica ou de uma linguagem específica. A comunicação é uma práxis. Nossa sociedade exige de todos competência comunicacional - não estou falando da competência comunicativa de Habermas, mas da competência comunicacional. Você tem que ser comunicativo, para ser bom profissional nas metrópoles e cidades médias desenvolvidas você tem que se abrir para o jogo do outro, abrir-se para a avaliação e julgamento alheios, frequentemente avaliam sua qualidade, entrelaçada com competências comunicacionais. Nas entrevistas de emprego, querem saber o quão flexível você é, o quão aberto você se entrega
  • 18. para a linguagem do outro. E o quanto daquela linguagem você pode ser manipulador ou não, e assim por diante. Quando você diz que a comunicação pode estar substituindo, ou fazendo murchar certos fenômenos que antes eram comuns, tradicionais, você tem razão. Por exemplo, a comunicação, como práxis, no cotidiano que a civilização midiática exige de nós o que eu chamo de dromoaptidão, que é a capacidade de ser veloz com equipamentos de comunicação. Se você tem essa capacidade de ser veloz, se você é um dromoapto, então você está conforme o que os valores existentes pedem de você. Se você não está, isso pode comprometer inclusive sua sobrevivência. Mas, no caso da comunicação, ela acabou não por fazer murchar a ciência ou a racionalidade científica, porque o jornalismo é racional. Algumas coberturas podem ser irracionais - o sujeito vai à guerra, e o jornalista vai, porque precisa daquilo para a carreira, mas o fato de uma empresa concordar que ele vá é seguridade zero, uma coisa meio Euclídes da Cunha. Então, na realidade, o jornalismo, como produto, trabalha com a lógica, a racionalidade, como outra ciência qualquer. Porém, vou dar um exemplo bem concreto contrário agora: estou orientando várias pessoas, e no mestrado e no doutorado já me chegaram alunos que não conseguem aprofundar. Não conseguem ter uma linguagem acadêmica, científica aprofundada. Então eu diria que na civilização da comunicação, a primeira vítima dela foi, primeiro, a profundidade e, em, segundo, a crítica, o senso crítico. A crítica que a civilização midiática promove é integrada, é uma crítica previsível; faz parte, é aquilo que em direito se fala direito ao contradito. Já está no sistema. Então o sujeito vai falar qualquer coisa, já está pressuposto que ele será ouvido, e pode, evidentemente, não ser considerado. Mas há o direito ao contradito. É quase como a esquerda e seus partidos políticos, que hoje se tornaram dóceis, domesticáveis, porque acabaram adentrando no sistema do Estado e disputando com os outros partidos do status quo o poder do Estado. E quando adentram no Estado, para disputar o Estado, cumprindo as regras do jogo democrático, do jogo do Estado burguês, é porque o potencial político deste partido já está comprometido na base. Porque ele vai falar, fazer, proceder, protocolar etc. tudo o que já é, dentro da própria regra que fabrica o status quo, contra o qual ele quer lutar, e se debate muitas vezes de modo radical, mas não consegue, porque a regra do jogo o domestica, dentro dos princípios que movem o próprio Estado de Direito. Por isso que muitos conhecimentos que se fazem na academia que não possuem relação com partido político ou nenhum utopia são mais radicais, porque não precisam e não tem necessidade de satisfazer ninguém, e cumprem o critério da liberdade de expressão no seu mais alto nível. Coisa que um programa de televisão não pode fazer, coisa que uma reportagem jornalística muitas vezes não pode fazer e às vezes até uma peça de teatro não pode fazer, porque tem que dar satisfação aos produtores.
  • 19. Mas a ciência não faz o papel de grande narrativa social, que articula todos. Por exemplo, o marxismo fez uma ideia assim: ele articulou várias pessoas em inúmeras populações; o humanismo renascentista também. Mas você tem também movimentos científicos que mobilizaram populações, como a questão médica na saúde pública, o militarismo ligado à tecnologia. Mas aí no caso são visões de mundo, opiniões, que articulam e tal, mas não se pode dizer que é uma metanarrativa, uma grande visão de mundo, como o anarquismo, o humanismo. De repente tudo isso caiu, e a comunicação vem, de modo impessoal, porque não tem ninguém que fale por ela - é um fenômeno autopoiético, ela se põe. Quando nós achamos que estamos sendo indivíduos autônomos, fazendo aquilo que queremos, mal sabemos que estamos no jogo da reprodução do próprio processo civilizatório, que não depende de nós. Amanhã podemos morrer, e a estrutura permanece. A comunicação herda o espaço vazio e, ao mesmo tempo coloca-se de modo impessoal normalizando as relações, articulando corpos, empresas, lares, enfim, num planeta glocal. E ela, a comunicação, como procedimento e técnica, acaba matando algumas coisas. A própria comunicação em tempo real aboliu o planeta. Estamos passando por uma mutação percepcional do espaço e nem sabemos onde isso vai dar. A humanidade sempre viveu na superfície planetária relacionada a outras pessoas no contexto presencial. Se queriamos, antes do século XX, encontrar alguém, ou enviávamos um emissário, ou uma carta, enfim. Do velho mundo para o novo mundo chegaram após 36 dias de caravelas; o que dirá, por exemplo, migrações do norte da África, passando pelo Oriente, pelo Cáucaso, com grandes embarcações de mercadores árabes, que faziam as trocas econômicas. Na realidade, o que ocorre é que tinhamos que ir ao encontro da pessoa, tudo presencialmente no território geográfico, sem as grandes construções de arranha- céus, que vão nos fazendo reféns de um espaço em que o céu não aparece mais. O que acontece é que, hoje, tudo isso foi deixado para trás, existe uma morte simbólica em tudo o que era tradição nesse aspecto. A superfície planetária é abolida e com isso todas as cidades, esquinas, ruas e praças simplesmente não existem mais. Porque agora nós temos uma pessoa relacionada ao computador, a outra relacionada a outro computador, e que estão em rede, com uma, por exemplo, em São Paulo e a outra no Japão. Em tempo real, centésimos de segundos, a pessoa A está no computador da pessoa B, e esta B está em A. O que ocorre aqui é da mesma ordem daquilo que ocorre no meu celular: o outro está aqui comigo, a auteridade é espectral, é puro som (espectro sonoro). No chat, você é espectro textual; no blog, você é textual; no Youtube, você é espectro videográfico. A comunicação espectral, o espaço está morto, porque temos sinal de rede, que vai por satélite; a representação do global, que é a rede, entra no equipamento, vai a você e vice-e-versa, mas cada pessoa está num local diferente. E o fato de eu estar vinculado a uma máquina capaz de
  • 20. rede, e estar interagindo com uma pessoa que é como se estivesse do meu lado - mas não é, pois existe a mediação do aparato tecnológico planetário -, faz com que isso não seja mais um local, a materialidade do planeta se perde, em prol da comunicação espectral. Bem , mas aí já estamos numa outra esfera, do glocal. E isso é a representação da hibridação numa coisa só, entre dois locais diversos, com o sinal e a rede que perpassam tudo. E isso aqui é a fenomenologia do glocal. A comunicação, que herdou o espaço esvaziado das metanarrativas, produziu esse tipo de coisa - o religare, que tem a ver com religião. Na verdade você tem, então, não só o religare referente à religião, mas também o religare de comunicação no social. As redes sociais perfazem um religare técnico específico, fundado no glocal. Mas tudo isso ainda segundo uma ordem escriturística, na qual o registro escrito ainda prevalece como legitimador dos discursos. O senhor concorda? Sim, a chamada veridicção: para existir eu tenho que aparecer no vídeo. Para eu lidar com o existente e como presença, ou seja a garantia de que eu existo, e até para a minha identidade e subjetividade. E não se trata só de e-mails, escritos. Por exemplo, a foto no Flickr, do aniversário que você foi, comprovando que, de fato, você esteve lá. A veridicção se dá pelo registro e da memória tecnológica externa. Se eu quero saber se existiu, de fato, uma Segunda Guerra Mundial, eu vou até meu arquivo e pego um vídeo documentário que trata daquilo. É a comprovação de que o fato existiu, não porque ele existiu e está na memória de quem o viveu, mas porque está na memória tecnológica. E isso é um feito fenomenológico incrível: como é que uma invenção humana mata o planeta? Veja bem, as duas pessoas falando, no exemplo que dei anteriormente, precisariam de milhares de vidas para poder conhecer o que elas estão abolindo. No caso cognitivo, acadêmico, o fenômeno é de outra ordem: a comunicação mata determinados procedimentos e hábitos, por exemplo o habitus da leitura recorrente e aprofundada. Queremos tudo imediato, tudo tem que ser mais rápido, não dá para ler mais do que uma ou uma hora e meia; logo muda-se de livro. A pós- graduação stricto sensu bate de frente hoje com os hábitos dos nossos novos alunos. Eles entram em depressão, é muito comum, em crise de competência, de identidade, porque elas querem a carreira acadêmica, querem evoluir e prosperar, e de repente vê que não formou o hábito - porque a civilização midiática, junto com a família, não possibilitou que ela tivesse dias, meses, anos fechada numa sala, lendo sozinha, criando o hábito de encarar o mundo a partir do livro e escrevendo. É uma habituação, sem interferências externas. O hábito que hoje está sendo promovido não é mais compatível com pesquisas aprofundadas. O sistema escolar e familiar anterior ao século XX, uma vez que não tinha todo esse entretenimento das comunicações, era mais propenso a produzir determinado cenário de isolamento, de reflexão mais individualizada, numa biblioteca, com silêncio, e as pessoas acumulando livros na sua zona privada para poder ter autonomia de
  • 21. leitura. Cientistas do passado, com Einstein, produziram poucas obras - alguns até um única apenas - mas com nível teórico e de aprofundamento extraordinário. Exatamente. É uma espécie de pesquisa científica sem consequencias. Mas o fato é que hoje é vassalar, porque muitas vezes nós temos que exigir leituras, aprofundamento e, em dois anos e meio, no mestrado, a pessoa não vai conseguir formar o hábito. Quer dizer, ela não vai poder se abrir para a desconstrução de hábitos que a trouxeram até aqui. É verídico, é autentico e legítimo que ela queira fazer o mestrado e entrar na carreira acadêmica, muito bonita, por sinal, mas há essa dificuldade incrível, porque o sistema escolar e a sociedade, digamos assim, plugou essas pessoas em outros instrumentos, que não o livro. E forma inseridas e incentivadas a ficar em situações diferentes de uma sala aconchegante para fazer a leitura de um autor, e depois ir para outro, fazendo percursos. Elas foram habituadas, no século XX inteiro, a ir ao cinema, ver televisão, estar entretidos com jornalismo, e agora pulverizou tudo. Quando havia jornalismo impresso, jornalismo radiofônico, até a primeira metade do século XX, alí você ainda tinha alguma coisa de aprofundamento. A partir de meados do século XX, com a televisão, tudo começou a ser feito muito fugaz, pois o tempo da televisão era muito fugaz. E aí o rádio começou a ser assim também, o jornalismo reduziu suas matérias, de uma página inteira para boxes. Assim, se por acaso não der para ler a página inteira, você não precisa parar na metade, você pelo menos lê os boxes. Muitos criticam esse tipo de análise, apontando como saudosista. Mas é só para dizer que jornalismo é uma refração escalonada e criativa das exigências de época. Se o mercado mudou, se as pessoas mudaram, se o público mudou, e o imaginário é outro, e as pessoas querem agilidade, querem ler no café, no metrô, ou 30 minutinho para ler a revista Veja, então o jornalismo tem que produzir esse público. E ao produzir para esse público ele tem que mudar. Não é melancólico, nem saudosista. Antigamente era possível porque as pessoas tinham vários tempos - tempo de lazer, um tempo livre, mas hoje não. Hoje você sai do seu trabalho, muitas vezes com hora extra nas costas, tem que pegar o metrô. Chega em casa, dorme, ou vai responder e-mails, tem que fazer alguma pesquisa, faz curso de línguas. Então, é uma dupla, tripla, quadrupla jornada. Não há o momento para parar de vez, porque a sociedade exige de você multifuncionalidade e ao mesmo tempo inteligência emocional para o estresse. Você tem que ser ultra ágil, sem dar a você uma garantia de seguridade, para que você trate transtorno obsessivo compulsivo, depressão, LER, histerias e assim por diante. Você que cuide das suas patologias,”vá a um analista e está aqui o seu salário”. Se formos explorar tudo aquilo que a sociedade nos coloca de exigência, e ao mesmo tempo não dá contrapartida, que deve ser paga por você, através de planos, clubes, viagens de lazer. A cobrança é coletiva, mas as soluções são individualizadas.