1. DOMINGO SEM CACHORRO
Para Bob Fernandes e Ana Kaplan
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Um dia vou contar numa crônica a lenta agonia do meu gato amazonense
quando tive de me separar dele para viver em São Paulo. Agora a história é
outra: um cachorro ...
Um cão de raça, com pedigree, como se diz. Forte, belo, musculoso, de
pelagem castanha, focinho altivo e dentes perfeitos. Um príncipe de quatro
patas.
Uma corrente de aço amarrava-o a um poste, enquanto o dono comprava
brioches numa das boas padarias de São Paulo.
Gania como um louco. Às vezes parecia chorar de dor, saudade, solidão ou
desamparo. Rodeava o poste no sentido horário, até imobilizar-se com a
coleira curta; depois repetia os movimentos no outro sentido, e a coleira
encurtava-se do mesmo jeito. Era um trabalho de cão que lembrava o mito de
Sísifo: dar voltas e mais voltas em redor de si mesmo, e para nada.
Dava dó. E o dono demorava, inebriado por brioches ou algum croissant,
quem sabe uma tarte au citron1. Então os transeuntes se apresentaram.
Paravam perto do poste, admiravam a beleza do animal e se condoíam com o
sofrimento alheio. Alguém se revoltou com tamanha insensibilidade do dono.
Uma mulher se agachou, murmurou palavras ternas ao pobre bicho,
acariciou-o com dedos cheios de anéis. Esse gesto comoveu o mundo. E
acalmou o cachorro. Dedos e mãos não faltaram para fazer carícias, e eram
tantos que a cabeça e o corpo do animal foram cobertos por membros
humanos. A solidariedade, que é também um atributo da humanidade, nem
sempre tarda, quase nunca falha.
Enfim, ele apareceu na porta da padaria. É natural que o cão tenha sido o
primeiro a farejar a presença de seu dono; os transeuntes abriram-lhe
passagem, e o reencontro foi um alvoroço, uma festa diurna.
"Ele é mimado", disse o dono, como se falasse de um filho.
O pelourinho foi banido e o poste readquiriu sua função de poste. Solto e livre
como um verdadeiro cidadão, o cachorro saltou de alegria, encheu a manhã
de esperança; depois, ele e outros bichos foram o centro da conversa.
É uma dádiva não se falar de política num domingo ensolarado. Quem não se
toca com a visão de ipês frondosos, cujas copas floridas dão sentido à nossa
vida? Mas nada resiste ao sol do meio-dia, nem mesmo um assunto tão
ameno como os nossos bichinhos. As vozes amolecem, as sombras
abreviam-se e somem, a fome impacienta: é hora de pensar no almoço, na
torta de limão e no café com brioche.
A calçada ficou quase deserta. Um homem a poucos metros do poste
permaneceu na mesma posição. É um negro desempregado. Nesse domingo
de Ramos ele é também um mendigo. O animal roubou-lhe a atenção, mas
não desfez seus gestos. Sentado e com a mão espalmada, o homem pede
uma moeda ou restos de comida. Murmura, envergonhado, que tem seis
filhos.
1 Torta de limão, em francês.
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Já vimos essa cena, já ouvimos mil vezes essa ladainha. Não é um velho,
mas aparenta cento e cinquenta anos. Daqui a um século continuará ali,
humilde e teatral: coadjuvante de um espetáculo grandioso.
Outro dia, bem cedo, passei pela calçada da padaria e lá estava o homem.
Uma roda de curiosos o observava. Sentado no mesmo lugar, mãos e braços
caídos.
Desde quando?Continuei meu passeio fútil. E perguntei a mim mesmo, com
curiosidade, por onde andaria aquele belo cachorro.
(HATOUM, Milton. Um solitário à espreita: crônicas. São Paulo: Editora
Reviravolta, 2014, p. 129-130.)