1) Uma tese de doutorado mostra que os problemas sociais no Brasil se agravaram nos últimos 15 anos, à medida que o país adotou políticas econômicas liberais.
2) A Constituição de 1988 criou novos direitos sociais, mas atualmente há uma tendência a reduzir esses direitos a "mínimos sociais" focalizados nos mais pobres.
3) O enfrentamento da questão social está condicionado ao crescimento econômico. A estagnação desde 1980 limitou as políticas sociais universais e
1. Universidade Estadual de Campinas – 23 de abril a 6 de maio de 2007
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Tese de doutorado mostra o agravamento dos problemas sociais no Brasil nos últimos 15 anos
Da ‘Constituição Cidadã’ aos mínimos sociais Foto: Dário Crispim Foto: Antoninho Perri
LUIZ SUGIMOTO terial e com uma economia pouco
sugimoto@reitoria.unicamp.br dinâmica”.
E é num cenário de crise, com in-
romulgada em 1988, a flação alta e dificuldades econômi-
P “Constituição Cidadã” con-
sagrou direitos sociais im-
portantes conquistados até então,
cas de toda natureza, que o refor-
mismo democrático perde força e
abre espaço para o novo liberalis-
criou outros tantos e projetou uma mo, que se vende como alternati-
sociedade mais justa e civilizada. va redentora para inserir um país
Quase 20 anos depois, a tendência periférico na economia global.
é de que a população brasileira te-
nha seus direitos reduzidos a cer- Fazer o quê? – Depois que a pro-
tos “mínimos sociais”, através de messa revela-se falsa e os própri-
programas voltados a pontos es- os ideólogos do projeto liberal as-
pecíficos, como o atendimento aos sumem que o país encontra difi-
mais pobres. culdades para retomar o cresci-
“Há um processo de adequação mento e, portanto, para investir no
da questão social à ordem econômi- enfrentamento dos problemas da
O professor Denis Maracci Gimenez:
ca liberal, onde a ló- população, qual é a agenda social “O enfrentamento da questão social
Estagnação gica do necessário é possível? “Progressivamente é fica condicionado a um país sem
econômica substituída pela ló-
gica do possível”,
aquela focalizada no atendimen-
to aos mais pobres entre os po-
progresso material”
teve início na afirma o professor bres”, responde Denis Gimenez.
década de 80 Denis Maracci Gi- De acordo com o professor, num ‘Efeitos sociais
menez, do Instituto
de Economia (IE) da Unicamp. Gi-
contexto de estagnação, os direitos
sociais inscritos na Carta de 1988, indesejáveis’
menez detalha este cenário de re- e particularmente as políticas uni-
gressão social em tese de doutora- versais, consideradas dispendio- O professor Denis Gimenez chama a
do intitulada A questão social e os limi- sas, vão sendo mitigadas em tro- atenção para o fato de que o processo de
tes do projeto liberal no Brasil. ca de políticas pontuais, baratas e avanço do projeto liberal não é
exclusividade do Brasil. A partir do
A pesquisa de 300 páginas, ori- sobretudo flexíveis – podendo ser Consenso de Washington e da ação
entada pelo professor Carlos A- implantadas e retiradas quando determinada dos organismos internacionais
lonso Barbosa de Oliveira, do Cen- convier, sem o amparo constituci- como o Fundo Monetário Internacional
tro de Estudos Sindicais e de Eco- onal. “No fundo, é um processo de (FMI), Banco Mundial e Organização
nomia do Trabalho (Cesit), abor- adequação da política social à no- Mundial do Comércio (OMC), a América
da o período de estagnação econô- va ordem econômica”. Latina transformou-se ao longo dos anos 90
mica que vem desde 1980 e, dentro No mercado de trabalho, confor- no principal laboratório para a
deste recorte no tempo, os últimos me diz Gimenez, com o baixo cres- implementação de reformas liberais no
15 anos do projeto liberal, que se cimento, ocorrem movimentos re- mundo.
impôs no país mediante a promes- gressivos de toda ordem, como o Esta a tríade de instituições difusoras do
sa de retomada do crescimento desemprego em massa, a redução novo liberalismo, que exerce pressão
direta sobre os países para a abertura
econômico. dos assalariados com carteira as- financeira, a abertura comercial, a
“A promessa de redenção não se sinada, a precarização das condi- adequação da política cambial, a redução
confirmou. Ao contrário, a estag- ções de trabalho e a expansão do do papel do Estado na Economia, a
nação econômica se aprofundou trabalho informal. “Diferente- reforma fiscal, as privatizações, as
com Fernando Collor, nos dois mente dos anos 80, é um processo desregulamentações, entre outros pontos
mandatos de Fernando Henrique de desestruturação brutal do mer- do receituário, encontrou terreno fértil para
e no primeiro governo Lula. Na dé- cado de trabalho”. suas propostas redentoras no continente
cada de 1990, o país cresceu menos Na opinião do autor da tese, não estagnado.
que na anterior (‘a década perdi- pode haver dúvida quanto ao pri- “Esta agenda chegou ao Brasil
da’) e o padrão se mantém pareci- meiro limite para o enfrentamento tardiamente, até pelos impasses que
do na década presente. Assim, o da questão social: é o baixo cresci- vivemos em meio ao processo de
enfrentamento da questão social mento econômico. O quadro publi- redemocrarização”, explica Gimenez. E
um dos argumentos dos conservadores,
fica condicionado a um país sem cado nesta página mostra que a ren- segundo o professor, é que não voltamos a
progresso material. Eu analiso da per capita no Brasil ficou prati- crescer porque as reformas não se
este quadro como regressivo”, en- camente estagnada no período de completaram. “Ocorre que, nos últimos 15
fatiza Denis Gimenez. 1980 a 2003. “Considerando o dólar anos, as reformas fundamentais foram
Antes de seguir em sua análise, em paridade de compra constante, feitas e a realidade é o baixo crescimento, a
o professor esclarece que a tese de ela aumentou de 6.775 para 7.200 estagnação, a regressão produtiva”.
regressão econômica e social, no dólares, em 23 anos, mesmo com a Denis Gimenez destaca que depois de
caso, possui um componente di- população crescendo menos”. anos de resultados nada satisfatórios na
nâmico. “A questão que se coloca é: Denis Gimenez afirma que au- região, o FMI e o Banco Mundial
regressão em relação a quê? Em mentar esta renda per capita é uma passaram a tratar os aspectos regressivos
termos econômicos, no conjunto, premissa, pois a considera relati- do projeto liberal como “efeitos sociais
indesejáveis”. “Dizem que se trata de
obviamente há uma regressão em vamente pequena para um proje- efeitos ‘temporários’, que desaparecerão
relação ao avanço que outros pa-
íses conseguiram e à nossa posição Renda per capita em países selecionados, 1970-2003 to social mais avançado no Brasil.
“Esta renda em 2003 é inferior à da
conforme as reformas liberais forem sendo
introduzidas. Na verdade, a despeito do
no mundo no final dos anos 70. Em (US$ em paridade de poder de compra constantes de 2000) África do Sul, da Argentina e do ritmo ou intensidade das reformas nos
termos sociais, temos que conside- Chile, muitas vezes inferior à de vários países, tais efeitos têm se mostrado
rar que estamos progressivamen- Países 1970 1980 1990 2000 2003 Cingapura, e perdia também para permanentes”.
te nos distanciando daquilo que se- a da Coréia do Sul, que em 1980, O pesquisador informa que nos próprios
ria desejável para uma sociedade para espanto de muitos, tinha ren- documentos dos organismos
razoavelmente civilizada em ter- África do Sul 6.451,9 7.578,1 7.714,6 8.226,1 8.836,4 da inferior à nossa”. internacionais, preconiza-se a necessidade
mos da garantia de bem-estar so- Argentina 9.820,7 10.921,0 8.195,2 11.332,0 10.170,0 Para utilizar outro parâmetro, de produzir um ajustamento “com face
cial”, pondera. o professor informa que o Brasil humana”, o que significa proteger os
Brasil 4.025,7 6.775,6 6.831,1 7.193,6 7.204,9 segmentos mais vulneráveis dos efeitos
O pesquisador insiste que fala de gasta 7,9% do PIB com a saúde, se-
Cingapura 6.838,0 13.032,0 19.466,0 29.434,0 26.999,0 sociais indesejáveis do ajuste econômico.
processos regressivos no conjunto gundo dados do Banco Mundial. “O Banco Mundial, por exemplo,
e em relação àquilo que é desejável Chile 6.156,8 6.675,1 7.119,9 11.430,0 12.141,0 Este índice é maior que o da Coréia reconhece ‘ser fundamental a assistência
para a sociedade brasileira. “Lem- China 499,77 749,2 1.671,9 4.001,8 4.969,6 do Sul (5%), da Espanha (7,6%) e do aos mais pobres como forma de reduzir as
bro-me nesse ponto do notável Reino Unido (7,7%) e igual ao do Ja- resistências às reformas e, ao mesmo
Celso Furtado, quando disse que, Coréia do Sul 2.551,89 4.496,5 9.592,8 15.702,0 17.597,0 pão. “Isto leva os conservadores e tempo, evitar instabilidade política em
talvez, nunca estivemos tão longe EUA 17.321,48 21.606,0 27.097,0 34.365,0 34.875,0 os partidários dos juros altos e do jovens democracias’”.
da sociedade que desejamos”. Índia 1.154,59 1.348,3 1.898,4 2.643,9 2.990,1 superávit primário a alegarem Gimenez observa que vai se
que já gastamos bastante em saú- conformando, assim, o projeto de mínimos
Heranças – Segundo Gimenez, Indonésia 1.272,85 2.083,6 2.918,5 3.771,9 4.122,1 de; o problema é que os recursos se- sociais. “Trata-se de um processo
no período de industrialização en- Japão 11.391,38 15.520,0 21.703,0 23.971,0 24.037,0 riam mal gastos”. silencioso e difuso de compatibilização dos
tre 1930 e 1980, o Brasil chegou de No entanto, quando os 7,9% do interesses dos muito ricos (em geral
México 5.126,52 7.271,1 6.864,0 8.082,1 7.938,2 rentistas, que vivem do setor financeiro e
fato a ser a oitava economia do PIB são transformados em gasto das benesses da política econômica, dos
mundo, com uma indústria com- per capita em saúde, chega-se a algo juros altos e da dilapidação do Estado) com
plexa, uma sociedade de massa e a próximo dos 200 dólares por pes- a assistência precária aos muitos pobres,
economia mais dinâmica do mun- população sofrendo de carências de reformas democratizantes capa- soa. Por este critério, o gasto do Ja- por meio de políticas sociais focalizadas, e
do. Nesse período, apesar do cará- materiais múltiplas, na educação, zes de responder às críticas dirigidas pão é 12 vezes superior ao nosso e num quadro de regressão da classe
ter conservador do processo de saúde, habitação, saneamento”, antes ao regime militar. 137 vezes superior ao de Uganda, média”, escreve no final de sua tese.
modernização do país, o dinamis- avalia. Sob este espírito foi escrita a “Cons- um país pobre cujo percentual do E conclui: “É isto o que está desenhado.
mo da economia e o crescimento da Não tendo enfrentado grande tituição Cidadã”, estruturando o or- PIB destinado à saúde é quase o A Constituição Cidadã não foi pensada
renda permitiram a melhoria sig- parte dos problemas sociais ao çamento da seguridade social e avan- mesmo que o do Brasil. para esta nova ordem, tampouco um
nificativa das condições de vida da longo do processo de industrializa- çando em outras áreas sensíveis ao “A pergunta é: como expandir o projeto social mais avançado pode ser. Ao
população. ção e de crescimento acelerado, o enfrentamento da questão social no gasto em saúde sem crescer? O contrário do que é propagado aos quatro
“Mesmo com tal avanço, ao final país não poderia fazê-lo quando país. “O fato de a Carta ter sido in- mesmo raciocínio vale para ou- ventos pelo artesanato liberal-conservador
local, em consonância com as vozes
do período de industrialização, a entrava numa fase de estagnação serida num país com uma economia tras áreas da política social, como doutorais de fora, não são os direitos
questão social era gravíssima. econômica na década de 80. No en- estagnada é um problema: ela é a educação, e ainda para outras constitucionais e de cidadania que
Olhando para o país nos anos 80, tanto, vivia-se a luta pela redemo- uma grande vitória das forças pro- áreas das políticas públicas, como emperram a economia, mas a ordem
vejo um número de pobres incom- cratização, sob a bandeira do res- gressistas, mas também explicita a infra-estrutura. Isso deixa claro econômica liberal que tem se mostrado
patível com o grau de desenvolvi- gate da dívida social, com intensos os limites para um projeto social que nosso primeiro limite é a eco- estranha ao desenvolvimento do país e a
mento econômico atingido, com a debates em torno de um conjunto mais avançado sem progresso ma- nomia”, reitera Gimenez. uma sociedade mais civilizada”.