[1] Frei Miguel é surpreendido em seu quarto e levado para o Convento do Carmo após ter um caso com a Viscondessa de Viegas, cujo marido agora quer vingança. [2] O Cônego Oscar, líder da congregação, está furioso com Frei Miguel por causa de seu pecado e quebra de votos. [3] Frei Miguel sabe que foi provavelmente intrigado por Frei Álvaro, que agora pode tomar seu lugar como vigário da paróquia.
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Aventuras na estrada real o emboaba
1.
2. Bruno dos Anjos
O Emboaba
- Parte I -
Capa : Breno Pessoa dos Santos
Ilustrado por Daniel Lima
2007
3.
4. I – O Além-mar
Início de noite em Coimbra. As ruas estão praticamente desertas. O pior
do inverno já se foi, mas as pessoas ainda preferem o conforto dos seus
cobertores ou lareiras a se aventurarem pelas vielas estreitas da cidade. Cai
uma fina chuva e as águas do Mondego contribuem para acentuar a sensação
de frio. Estamos em fevereiro de 1705.
O silêncio é quebrado pelos sons dos cavalos e das rodas de madeira a
chiar no calçamento da velha cidade. A comitiva rompe as ruas, veloz, tendo à
frente um cavaleiro a galope e o coche vindo logo atrás - não é dos maiores,
pois as ruas de Coimbra exigem que não sejam largos, mas pode-se ver que é
um transporte de ricos, feito em pau Brasil, de cabine fechada e puxado por
dois cavalos. Dois outros cavaleiros vêm à retaguarda.
Chegam à pequena Igreja, no inicio da cidade alta. Encontram o templo
fechado. O primeiro cavaleiro salta de sua montaria e vai chamar à porta.
Frei Álvaro já se encontrava recolhido quando ouviu baterem. Vestiu
depressa a batina e foi ver do que se tratava. Julgou ser algo importante, dado
o horário e o frenesi com que batiam.
De dentro da igreja, perguntou:
“Quem é e o que queres?”.
“A Viscondessa de Viegas deseja confessar-se”.
“Mas a essa hora?”.
“É urgente, padre”.
“E ela não pode esperar até amanhã?”.
“Eu disse urgente, padre”.
“Vou preparar o confessionário”.
Quando as portas da Igreja se abriram, a Viscondessa desceu do coche,
auxiliada pelo condutor. Vestia-se à moda francesa; um belo vestido azul
marinho, a realçar suas formas roliças; saia balão armada com merinaque,
5. meio aberta expondo as rendas das anáguas; e salto alto. Deu com Frei Álvaro
no interior do templo.
“Onde está o Vigário?”.
“Frei Miguel já se recolheu”.
“Pois vá chamá-lo”.
“Não se preocupe Viscondessa, pode confessar-se a mim”.
“Eu exijo que traga-me Frei Miguel. Sou a Viscondessa de Viegas e meu
marido, o Visconde de Viegas, como bem o senhor sabe, é o maior benfeitor
desta paróquia e também conselheiro da corte do rei Dom Pedro II, portanto
não me venha com senões, padre. Vá chamar o vigário titular, imediatamente!”
A Viscondessa mostrou ao frade que sabia ser rude para realizar suas
vontades, apesar de fidalga. Sentindo-se bastante desprestigiado, frei Álvaro
foi chamar o vigário.
Considerado por seus pares ainda muito jovem (acabara de completar
trinta anos), frei Miguel, há seis emitira os votos para sempre e há quase dois
era o titular daquela pequena, porém importante paróquia. Importante, pois seu
rebanho era, em sua maioria, formado por aristocratas, estudantes da
universidade e outros estratos privilegiados da população de Coimbra, o que
significava dízimos certos e doações portentosas. Frei Álvaro, alguns anos
mais velho, era o primeiro auxiliar, condição com a qual não se conformava
apesar de aparentemente diligente. Atribuía o prestigio de frei Miguel à
proteção que o mesmo tinha do Cônego Oscar, líder da congregação na
província de Coimbra. Também não concordava com a forma como o pároco
gerenciava a renda do vicariato, pois julgava-se merecedor de valores maiores
do que lhe era reservado. Secretamente, mas sem pudores de qualquer ordem,
deseja e ambiciona o cargo maior. A cada vez que um membro da nobreza o
trata como serviçal e ao vigário reserva deferência, sente um misto de cólera e
indignação que lhe faz arder o peito e embrulhar-lhe as vísceras.
Frei Miguel dormia profundamente quando foi despertado.
“Mas o que houve Álvaro? Não disse que não queria ser chamado?”.
“A Viscondessa de Viegas está na igreja e exige ter a confissão assistida
pelo senhor”.
“Mas não é possível!” Após a exclamação, pensou, “o que essa maluca
quer a essa hora?”.
“Diga a ela que estarei pronto em poucos minutos”.
6. O confessionário, feito de madeira nobre, consistia de duas bancadas
separadas por uma grade, cujos acessos se davam em direções contrárias, o
que evitava o contato visual entre confessor e penitente até que se sentassem.
E ao fazê-lo, viam-se apenas pelos orifícios da armação. A viscondessa já se
encontrava acomodada quando chegou o vigário.
“Boa noite senhora Viscondessa. O que vos angustia o coração a essa
hora da noite?”.
“Não gosto que me chames assim. Chame-me de Antonia”. - Após
pequena pausa, continuou - “E a minha angústia, o senhor sabe exatamente
qual é”.
“Por favor, senhora Viscondessa...”.
“Não me chames de Viscondessa!” - Gritou.
Frei Álvaro já se retirando para a residência paroquial, ouviu o grito.
Intrigou-se. Conscientemente em pecado, retornou e acomodou-se onde
pudesse ouvir a calorosa confissão. Para seu lamento, após duas exclamações
mais sonoras porém não entendíveis da Viscondessa, a conversa tornou-se
inaudível.
No confessionário, a Viscondessa, aos sussurros:
“Chame-me de Antonia.”
“Escute-me Antonia, já é tarde, o Visconde deve estar em sua busca.”
“Ele sabe que eu estou aqui”.
“Santo Deus...”
“E há quatro de seus lacaios lá fora a me esperarem...”.
“A senhora os deixou lá fora neste frio?”.
“Não estou aqui para falar dos lacaios de meu marido”.
“A senhora não deveria ter vindo aqui a esta hora, tudo que o povo daqui
mais quer é um nobre ou um padre de quem possam falar. Tem que ter
cuidado viscondessa...”.
Após um breve silêncio, frei Miguel olhou por entre as grades do
confessionário e viu que o assento estava vazio. Antes que pudesse pensar
qualquer coisa, surpreendeu-se com a Viscondessa invadindo seu reservado.
“Chame-me de devassa.”
Atracaram-se. Beijos voluptuosos. Lutaram para acomodarem-se
naquele minúsculo espaço. Após vencer com dificuldade a batina, a saia, o
merinaque, as anáguas, o espartilho e as calçolas, o frei tapou a boca da
madame e ali mesmo consumaram o ato.
7. A face de Frei Álvaro transpirava puro ódio. Sujo, devasso, pecador,
repetiam seus pensamentos. Como um sacerdote pode ser tão infame?! Algo
deve ser feito imediatamente, pensou. Retirou-se a tempo de não ser notado
pelo audacioso casal de amantes.
Pouco mais de uma hora após ter entrado, com um amplo sorriso de
satisfação estampado na face, a viscondessa de Viegas saía da igreja, para o
alívio dos seus acompanhantes, que àquela altura já tinham as pontas dos
dedos congeladas. O cocheiro apressou-se a lhe abrir a porta e auxiliá-la a
subir à condução. Então a fidalga disse, “agora estou leve novamente”. O
lacaio respondeu com um sorriso contido e embaraçado - admirado que estava,
pois ela jamais lhe dirigira uma palavra, antes. “É mesmo uma senhora mui
religiosa”, concluiu.
Pouco depois da meia-noite, frei Álvaro acordou um serviçal da paróquia
e mandou que lhe preparasse um coche. Disse-lhe que precisava realizar uma
extrema-unção. Quando, curioso, o servo quis saber quem era o enfermo, o
frade desconversou, deu a ordem para que fosse rápido e que tudo fizesse
com atenção e em silêncio para não acordar o pároco. Apesar de que aquele lá
– pensou – de certo está a roncar um sono profundo, pois nestes tempos
sombrios, os injustos dormem tranqüilamente. Saiu como queria, sem ser
notado.
Horas depois, outra pessoa foi dar às portas da igreja. Alguém com uma
missão urgente. Estava ali por ser discreto, capaz e obediente. Entrou na casa
paroquial sem dificuldade e conduziu-se na calada como se conhecedor do
caminho fosse. Em poucos minutos chegou às portas dos aposentos de frei
Miguel. Com cuidado, manuseou uma ferramenta pontiaguda para destrancar a
pesada fechadura tão discretamente como se a chave tivesse. Fechou logo a
porta. Deu dois passos em direção à cama.
Miguel realmente já dormia um sono profundo, mas mesmo se assim não
fosse, se estivesse levemente adormecido, não notaria aquele sorrateiro
invasor, useiro e vezeiro de andar sob as sombras e nas pontas dos pés.
Quando lhe ocorreu de despertar, não teve sequer tempo para dizer uma
palavra.
9. Ao abrir os olhos, percebeu que estava em um cômodo escuro, atirado
ao chão frio. A luz do sol entrava pela grade, formando feixes que pouco
iluminavam e nada aqueciam. A cabeça lhe doía aos píncaros. Não sem
esforço, levantou-se e conseguiu cambalear ate a grade por onde entravam os
raios.
A visão familiar o tranqüiliza. Reconheceu o pátio do Convento do
Carmo. Concluiu estar em uma de suas clausuras. Perguntou-se por que.
Encontrou a cama e de súbito adormeceu novamente.
Horas depois foi acordado por um noviço que não conhecia. Observou
que era um jovem de braços fortes e fisionomia sisuda, imaginou que fosse ele
quem o golpeara. “Acompanhe-me”, disse-lhe o moço sem rodeios. Frei Miguel
tentou conversar, mas não obteve atenção. Insistiu tanto que o rapaz lhe disse,
entre dentes, “Cônego Oscar quer lhe falar”.
Cônego Oscar era o vigário prior da congregação em Coimbra, conhecia
frei Miguel desde quando este era noviço. Havia sido seu professor no Colégio
do Carmo e responsável por sua ida a Roma e à terra santa e pelos seus
estudos na Universidade de Coimbra. Desta vez estava furioso com o pupilo.
“Mas o que aconteceu Cônego Oscar?”.
“Ora, eu esperava que vossa senhoria pudesse me explicar”.
“Em verdade de nada me lembro, apenas de um soco”.
“Conheces o Visconde de Viegas?”.
“Claro”.
“Melhor a esposa dele, imagino. Saiba que o Visconde colocou dezenas
de homens ao seu encalço. Quer-te vivo ou morto. Inteiro ou em partes”.
Um calafrio lhe desceu a espinha. Frei Miguel sabia bem que o visconde
era um dos homens mais ricos e influentes de Coimbra, fidalgo de primeiro
grau, possuía em sua cota de indicações vários dos melhores cargos públicos
da cidade, era amigo de pessoas influentes na corte e tinha sob seu comando
um destacamento inteiro das forças de segurança da cidade.
“A tua sorte é que sou muito bem informado, antes que todos os
soldados e mercenários da cidade saltassem de suas camas eu já havia
recebido a informação”.
“Aposto minha salvação que foi frei Álvaro que me intrigou com o
visconde. Não me admiro se vier a tomar meu lugar na paróquia”.
10. “Realmente, não se admire. O visconde é um dos maiores benfeitores da
Ordem. Não podemos nos indispor com ele. Quando acontecia com esposas
de mercadores, eu tinha como contornar, até naquela ocasião quando o senhor
se envolveu com a esposa de um sargento da guarda Real eu pude salvar-lhe,
agora fornicar com a esposa de um fidalgo poderoso como o visconde de
Viegas é de uma estupidez bárbara! E sem falar no pecado mortal que é violar
os sagrados votos de castidade e ainda consumar o adultério de uma mulher
que foi casada pela Santa Igreja! Especialmente quando o pecador não
demonstra nenhum traço de arrependimento cristão!”.
Miguel teve vontade de dizer que um dia esteve apaixonado pela
Viscondessa de Viegas e que se sentir assim não é tão mal como pensas, mas
claro não diria isso, não seria inteligente fazer o cônego ainda mais irado. Em
verdade, há muito tempo deixara de amar a viscondessa, desde que ela, como
uma louca, passou a procurá-lo em lugares e momentos inoportunos e por
vezes perigosos. Se dissesse ao cônego que a amou, na certa ele diria que
tinha gosto por mulheres bizarras. Já devia ter posto um fim naquele caso, mas
para ele a castidade há muito deixara de ser um voto fácil de ser cumprido e no
final das contas, aquela loucura proibida ainda mexia com ele. Bem que o
cônego Oscar poderia dizer-lhe, não te alertei que as fraquezas da carne ainda
seriam a tua perdição? Mas um religioso como ele jamais quebraria o segredo
da confissão, nem mesmo ao próprio confessor.
“Vejo que não me adiantará em nada fazer minha defesa. Vossa
reverendíssima já me condenara. Então, o que pensas fazer? Vais me entregar
ao visconde, para que me esfole vivo? Denunciar-me ao Santo Ofício? Mandar-
me para o Brasil? Ou ainda, matar-me-ia o senhor mesmo, para que a Ordem
não sofresse as conseqüências dos meus pecados?”.
“Exatamente!”
“Matar-me-ia?”
“Mandar-te-ei ao Brasil.”
Cônego Oscar mandou que lhe trouxessem trajes civis. Disse-lhe que
não levasse sequer uma batina para não levantar suspeitas, afinal o visconde
possuía contatos importantes em Lisboa, especialmente no porto, de onde
partiam as frotas para o Brasil. O clérigo intuíra que o fidalgo não se satisfaria
apenas com o degredo, levaria frei Miguel ao Tribunal da Inquisição, para que
fosse torturado e morto. Deu-lhe algum dinheiro e o abençoou. Entregou-lhe
uma carta de recomendação destinada ao comissário geral do vicariato
11. carmelita da Bahia e providenciou para que toda a operação de fuga fosse feita
secretamente. Não deveriam chamar atenção, já que todas as saídas de
Coimbra àquela altura certamente estavam sendo vigiadas pelos homens do
visconde. Chamou o frei ao pátio e lhe mostrou o meio que usaria na fuga.
“Um coche funerário? Eu não vou viajar dentro de um caixão!”.
“Escuta bem, Miguel. Não demorará e o Visconde virá a minha procura,
ele não é nenhum ingênuo, logo irá deduzir que podes estar aqui. Apressa-te e
deita-te neste caixão ou poderás ter que usá-lo realmente como a definitiva
morada de seu corpo”.
Após os irrefutáveis argumentos de seu protetor, Frei Miguel deitou-se e
viu a porta do caixão ser fechada. Dois furos na madeira lhe garantiriam o ar
necessário para a viagem. O coche funerário partiu assim que a escuridão da
noite tomou por completo a cidade. Na condução, o mesmo noviço que o
buscara na clausura. Na saída da cidade, foram interpelados por guardas.
De dentro do caixão, Miguel tudo ouvia, atento e muito tenso. Um dos
guardas logo quis saber. “Aonde vai a essa hora, frade? Não achas um tanto
tarde para iniciar uma viagem?” O jovem noviço respondeu que levava o corpo
de um velho padre para ser enterrado em sua vila natal, nos arredores da
cidade do Porto. Desconfiado, o soldado ameaçou abrir o caixão, mas foi
repreendido por seu superior. “Não é necessário blasfemar!” Pediu benção e os
deixou partir.
Seguiram viagem margeando o rio Mondego, por entre as casas dos
humildes e dos comerciantes. Quando a última casa já estava ao longe, o
noviço bateu no caixão e frei Miguel pôde se levantar. O frade olhou pela janela
traseira do carro e pôde ver as luzes das tochas na Torre de Almedina sumirem
no horizonte da noite. Despediu-se da cidade onde havia sido feliz e partiu
rumo ao desconhecido. Chegariam a Lisboa em quatro dias.
12. 2. O Mar dos Homens
A náusea o fazia suar frio e lhe turvava a visão. Sentia-se totalmente
vazio, pois vomitara desde que a caravela deixou o porto de Lisboa, há cinco
horas. Ainda assim, Frei Miguel parecia ter em si sempre mais alguma coisa
para ser colocada para fora. Bílis, medo, merda. Havia vômito em suas roupas
e ao seu redor. Encontrava-se em um dos compartimentos do porão da
embarcação, encostado em um barril de azeite, pedindo a Deus que o mundo
balançasse um pouco menos. Transparecia pavor. Olhava ao redor e o que via
era homens rudes, sujos, criminosos, condenados e degredados de toda a
sorte. Jamais imaginara-se em um covil como aquele. Inevitável lembrar de seu
pai e irmãos.
Miguel nasceu em Aveiro, em uma família de marujos. Seu pai foi o
primeiro deles que se aventurou em travessias oceânicas, participou de
carreiras para as Índias e chegou a ganhar bom dinheiro. Morreu durante uma
destas travessias depois que a sua nau fora atacada por corsários. Como
navegava a serviço de sua Majestade e descendia de uma linhagem limpa,
sem mouros, cristãos novos ou processados pelo Tribunal da Inquisição, a
generosidade real providenciou que o caçula dos quatro irmãos fosse entregue
aos Carmelitas Calçados de Coimbra, para que fosse educado nas letras e
preparado para o sacerdócio. Os demais seguiram a carreira do pai e se
tornaram homens do mar. Desde que se graduara na Universidade não via a
mãe ou seus irmãos. Planejara fazer-lhes uma visita por algumas vezes, mas
foi sempre adiada por motivos diversos, grandes ou pequenos, verdadeiros ou
desculpas. Agora temia jamais vê-los novamente.
Desde que chegou ao Colégio do Carmo, ainda infante, despertou a
atenção de seus professores por sua perspicácia e pelo claro entendimento
que demonstrava acerca dos números e das operações aritméticas. Mostrou-se
ser um estudante aplicado e noviço dedicado aos deveres para com a Ordem e
a Igreja. O então Frade Oscar, diretor do convento, foi o responsável pelo
período que Frei Miguel passou em Roma no Colégio Pio Português, por sua
viagem à Terra Santa e por sua formação em Direito Canônico pela
Universidade de Coimbra.
13. Foi durante o período universitário que o jovem pôde refinar seu gosto
pelas artes e pelas letras. Seus contemporâneos e amigos na universidade
eram músicos, pintores e poetas que se reuniam em sarais e festas que se
tornaram célebres nas noites da cidade. Interessou-se também ainda por
astronomia, pela história de Portugal e chegou a ser iniciado nas filosofias
humanistas. Secretamente, leu escritos proibidos. Tornara-se, por assim dizer,
um intelectual e passara a questionar sua vocação. Conheceu mulheres,
poemas e pecados com os quais não sonhara. Passara a ver seus irmãos de
sangue como inferiores, bárbaros tão incultos quanto incapazes de serem
donos de seus destinos. Acabou por desenvolver crescente desprezo até
mesmo pela sua própria mãe. Era mesmo do vicariato, na parte alta de
Coimbra, que ele gostava. Sempre às voltas com gente sofisticada, viajada,
apreciadora das artes. E havia também as mulheres e seus desejos secretos
que somente um confessor poderia conhecer tão bem.
Agora tudo parecia tão longe e sem sentido ou serventia. Humanismo,
vinhos finos, livros, sonhos, não havia nada além do forte cheiro de azeite
misturado ao odor de seu próprio vômito e do maldito balançar do mar. A noite
demorou a chegar e passou como um sofrimento. A nau enfrentou chuvas e
ondas tempestuosas. Mal dormiu uma hora, contados todos os momentos que
julgou tê-lo feito. Mas a manhã trouxe certa calmaria. Aventurou-se pela
primeira vez ao convés.
O céu estava nublado. Caia uma garoa fina e fria. Pelo menos as roupas
que Cônego Oscar conseguira eram boas, o casaco de pele grossa o protegia
do frio e da umidade. Viajava na menor embarcação da frota, uma caravela
redonda de quatro mastros, 50 toneladas de capacidade e pouco mais que
trinta metros de comprimento; foi o único lugar que conseguira. As pessoas
fugiam para o Brasil e de si mesmas aos montes, pensou. Outras seis
embarcações compunham a frota, duas naus de 300 toneladas, dois galeões
de guerra e mais outras duas caravelas menores. O frade podia avistá-las bem
pequenas no horizonte, um galeão podia ser visto a estibordo. Observando a
caravela em que viajava, percebeu que os passageiros mais potentados
viajavam no castelo da popa, enquanto o comando da tripulação ocupava o da
proa. Os pobres, grumetes e condenados viajavam no porão do navio, assim
como os ratos e o azeite.
Frei Miguel, como cada um dos passageiros dos porões, tinha direito a
um litro e meio de água e outro de vinho por dia. Tanto a comida quanto o
14. vinho que lhe serviam era uma droga, segundo seu paladar. Conhecia as mais
finas iguarias das culinárias portuguesa e européia, e ali a única coisa que
comia era uma espécie de ração preparada com arroz de péssima qualidade e
pedaços de carne salgada, ambos tão duros quanto pedras. Diariamente
também ganhava três biscoitos. E como sentia saudade de um vinho do Porto!.
Para dormir cada um se arranjava como possível. Deitados lado a lado no chão
do segundo pavimento, privacidade era palavra desconhecida e não raro se
misturavam ao balanço das ondas. Nos primeiros dias chegou a pensar
seriamente em comprar um lugar nos castelos dos privilegiados com o dinheiro
que lhe restava - pouco mais de dois mil réis, em moedas de quatro cruzados1
e algumas patacas2: havia gastado quase o mesmo valor para conseguir
embarcar às pressas quando a caravela já iniciara os primeiros movimentos.
Porém ao avaliar que não sabia que tipo de situação lhe aguardava no Brasil,
decidiu-se por poupar aquela miséria, que era como via os valores que lhe
haviam sido dados por Cônego Oscar.
Evitava os assuntos religiosos; receoso de ter descoberta sua condição
de presbítero. Ainda que respeitasse as horas canônicas, procurava sempre
orar em silêncio e de maneira breve. Na mocidade, quando noviço, eram estes
os momentos mais importantes de seu dia, perseguia com fervor o contato
iluminado com Deus e acreditava que um dia elevar-se-ia em espírito a ponto
de ouvir a voz do Pai. Adulto, seu coração perdeu parte desta esperança e com
o passar dos anos, diante do Deus silente, passou a rezar e celebrar missas de
modo como que corriqueiro, sem absorver-se, por obrigação e sem resquícios
da vocação que um dia creu ser a sua. Quando deu por si já cometia pecados
ditos graves sem se corar.
Havia muitos grumetes a bordo, mas não faltava trabalho a ninguém.
Não demorou para que Miguel passasse a ser requisitado para serviços
diversos, como carregar cabos das velas, limpar convés e distribuir comida.
Logo os marujos perceberam que o frei não era homem para trabalhos brutos -
era fraco e desatento para a lida no mar. Ainda assim, em geral, os homens
gostavam dele. Talvez pela conversa diferente - falava de coisas distantes e
engraçadas. Fez certa amizade com um grumete franzino, alojado no mesmo
compartimento, nascido e criado em Lisboa, filho de um casal de lacaios de
gente muito fina. Seu nome o frei ignorava, e assim como todos os outros que
1
Moeda de ouro; cada cruzado equivale 400 réis.
2
Moeda de prata de aproximadamente 320 réis.
15. conheciam o rapaz, pois o faziam apenas pelo apelido pejorativo, Pocabosta.
Era um sujeito ansioso, de tiques em excesso que vivia falando de lendas
sobre montanhas de ouro em um tal sertão das minas dos cataguá.
“Por acaso achas mesmo que exista nesse lugar uma montanha inteira
de ouro?”
“Uma não, senhor Miguel, várias.”
O Frei tomava o rapaz por um ingênuo, ainda mais com um apelido
daqueles. O pior – pensava – era que bastava colocar os olhos na criatura para
entender exatamente o porquê da zombeteira. Fraco, ingênuo, submisso e feio,
vive olhando para o chão e aparenta incessante pressa, mas solidário, uma
virtude cara naquele porão. Os outros marujos, mais fortes ou de maior
patente, abusavam da fragilidade do coitado: berros, intimidações, ameaças,
pontapés, um cardápio variado para atender à sede de violência e ao gosto
pela subjugação daqueles brutos. O frei, apesar de aparentemente frágil,
possuía um traço que intrigava aqueles homens - falava bem como um fidalgo,
sabia ler igualmente bem e já demonstrara ser mestre em contas. Que tipo de
degredado era aquele afinal? Podia ser tudo, um nobre amaldiçoado ou
excomungado, um oficial desertor, um padre ou feiticeiro. Era melhor ser amigo
que se indispor com ele, calculavam.
Nos porões do navio, o frei estimava que viajassem cerca de sessenta
pessoas e nos castelos da proa e popa, acreditava que estariam umas vinte,
entre tripulantes, militares, fidalgos e mulheres. Bom, as mulheres eram um
problema naquela caravela, ou melhor, a falta delas. Nos porões não havia
mais que dez. A desigual proporção era um tormento para os homens e
principalmente para elas. Só deixavam de ser estupradas se passassem a ser
protegidas por um homem ou quando passavam a cobrar dinheiro, fumo ou
vinho pelos coitos sucessivos. Não raro uma mulher se amancebava com dois
ou mais marujos, por proteção. Nos castelos, imaginava o frei, devia haver
várias fidalgas de pele alva, rechonchudas, cheirando a perfume de Paris. A
viagem estava programada para durar cinco semanas ou talvez seis se tudo
corresse bem.
Muitos praticavam sodomia. Jovens garotos eram abusados sexualmente
na madrugada. Homens se deitavam com outros homens abertamente, a
despeito da rígida disciplina militar e religiosa das viagens marítimas. O
capelão nunca pisava nos porões, mas nos convés, fazia sermões
ameaçadores e duros. Muitos daqueles homens eram atormentados pela culpa
16. e apesar de toda brutalidade às vezes pareciam frágeis pelo medo de se verem
condenados outra vez, agora não ao degredo ou a prisão, mas ao Inferno. Os
assassinatos, os furtos e as tentativas de motins eram reprimidos duramente,
mas os pecados e os crimes da carne eram tolerados ou, em certa medida,
ignorados. Casos de homossexualismo ou sodomia, quando ocorriam em terra
e principalmente quando se tornavam escandalosos, eram sempre punidos
exemplarmente, sendo previstas inclusive a tortura e a morte na fogueira.
Entretanto, no mar as coisas eram diferentes. A bordo daquele porão, em
poucos dias mais nada escandalizava.
Na segunda semana passaram a navegar em águas calmas, mas a
tranqüilidade era só aparente. Com o tempo corrido no mar e com as situações
de higiene cada vez mais deploráveis, logo começaram a aparecer as doenças.
Escorbuto, mal de Holanda, febres hemorrágicas, gripe. Improvisaram uma
enfermaria fortificada pelos galões de vinho.
O cirurgião-barbeiro era um prático do Açores, chamado Figueiredo.
Devia ter uns sessenta anos e quase nenhum cabelo, a não ser o da barba
branca. Nos primeiros dias, quase não aparecia nos porões. Agora, sua
presença era constante, realizando seguidas sangrias ou ministrando seus
estranhos remédios. Além dos enfermos, havia os feridos. Não raro, algum
acidente no convés resultava em amputação ou morte. Estava sempre com o
avental imundo por sangue e até mesmo sua barba adquirira coloração
avermelhada. Os doentes sempre ofereciam vinho em gratidão ao velho
médico, que por essa razão, estava sempre bêbado. A sorte dele e de seus
pacientes é que encontrou um assistente muito eficiente e inteligente, frei
Miguel. Este trabalhava como um verdadeiro faz tudo, fazia às vezes de
enfermeiro e até mesmo de médico, quando o titular encontrava-se apagado
em algum canto.
Nos últimos dias, Miguel havia percebido que a porção de comida que
todos recebiam diariamente vinha sofrendo sistemática redução, executada aos
poucos, é verdade, mas àquela altura muitos já reclamavam. Não era difícil
para qualquer um perceber que com a tripulação insatisfeita as coisas naquele
porão tendiam a ficar ainda piores.
No vigésimo dia da viagem, os marujos trouxeram Pocabosta, esvaindo-
se em sangue, à improvisada enfermaria. Uma espécie de gancho de ferro
atravessara sua tíbia. O coitado estava aos gritos e o pontiagudo ainda
encravado em sua carne.
17. “Há quanto tempo isso aconteceu?” – Quis saber Figueiredo, bêbado.
“Não sabemos bem. Ele ficou gritando por muito tempo até que
déssemos atenção. Você sabe, essa bosta grita à toa... quando o vi, a poça de
sangue já era grande”.
“O que podemos fazer?” – Quis saber um preocupado Miguel.
“Precisamos de um machado”. - Respondeu Figueiredo. “Não dá para
arrancar o gancho, ele já perdeu muito sangue. Já fiz o garrote, mas ainda
assim se demorarmos a agir toda sua carne vai apodrecer e ele não dura mais
que algumas horas”. Disse isso sem cerimônia, bem na frente do ferido em
desespero e dor.
Alguém trouxe o machado. Pocabosta quando viu o instrumento na mão
de Figueiredo, quase desmaiou. O médico-barbeiro mandou que
providenciassem aguardente de uva para o agonizante e para si próprio. Miguel
tapou a boca do infeliz com uma bola de couro e, pôde ver o desespero nos
seus olhos. Olhou para o velho cirurgião a tentar equilibrar o machado com as
duas mãos trêmulas pelo álcool e temeu pela vida do pobre grumete. Tomou
dele a arma.
Curiosos aglomeraram-se em volta da mesa. Miguel com o machado
suspenso em frente ao rosto, por um segundo descrê do que está para fazer.
Então olha ao seu redor. Todos parecem ansiosos. Figueiredo toma um gole da
aguardente. Pocabosta não cessa de tentar gritar, ainda que tenha os gritos
abafados pelo couro em sua boca. Dois homens fortes penam para deixá-lo
imóvel. Em silêncio, Miguel ora. Pede a Deus que esteja certo. Respira fundo.
18.
19. Miguel ergue o machado sobre sua cabeça. Desfere o golpe. Pocabosta urra
em silêncio. Chora. Imediatamente, Figueiredo lhe mete um lenço molhado no
nariz. O grumete perde a consciência. Então lhe retiram o couro da boca e o
procedimento da sutura é iniciado pelo cirurgião bêbado.
Minutos depois, o médico e Miguel dividiam uma garrafa de vinho.
“Você foi muito bem, rapaz. Salvou o infeliz. Como eu poderia imaginar
que ia me surgir um caso como esse? Justo hoje!”
“O que era no lenço?”
“Láudano de Sydenham, coisa de ópio. Conheci por um médico inglês.
Santo remédio”.
Parecia mesmo ser, pois naquele momento, Pocabosta não mais gritava.
Dormia um sono um tanto agitado, às vezes se debatia, ás vezes grunhia sons
estranhos, mas diante do que vivera encontrava-se em relativa paz. Aos olhos
de Miguel, Figueiredo era um homem interessante e sagaz. Ocorreu-lhe então
questionar o que o fizera abraçar aquela vida errante por mares distantes e
porões infectos.
“E o senhor Figueiredo? O que faz aqui?”
“Sou sócio do açúcar que vamos trazer no regresso”.
“Tens família?”.
“Claro, o que pensas que sou? Não me diga que um sujeito que fala tão
bem quanto o senhor me tem como feiticeiro!” Soltou estrondosa gargalhada.
“Somente queria entender porque o senhor, nessa idade, deixou o
Açores para se meter nesta merda”.
“No inicio foi o dinheiro. O açúcar já enriqueceu muito homem no Brasil e
em Portugal. Mas depois de quatro ou cinco viagens, nunca mais consegui
fixar-me em terra outra vez. Já vivi muito, mais do que mereço, foi tempo
suficiente para conhecer todo tipo de vício; dinheiro, sexo, jogo. O meu acho
que é esse balançar do mar, misturado ao cheiro de sangue e ao gosto de
vinho”.
20. 3. Calmaria podre
A cada seis horas aproximadamente, Pocabosta volta a gritar. É o tempo
que dura a ação da droga. Então Miguel traz o lenço e o entorpece.
Imediatamente cessam-se os gritos e têm início os delírios. Não fala coisa com
coisa. Mas sempre as montanhas de ouro. Em uma oportunidade agarrou o
braço do frei e balbuciou:
“Eu sei que você me salvou. Quando eu tiver minha montanha de ouro
lhe darei uma pepita de 20 oitavas. Pode me cobrar”.
Miguel riu e não deu muita bola para o assunto.
Porém a maneira insistente com que o grumete repetia aquela história
desde que o conhecera acabou por atiçar sua curiosidade. Quis saber do
médico.
“É verdade, meu caro. Eu mesmo já presenciei caravelas repletas de
ouro chegando a Lisboa. Mas é tudo feito com discrição, El Rey não quer que
todo o reino se mude para o Brasil”.
“Mas será mesmo tão abundante quando dizem estes incultos?”.
“Acredito que sim. Do contrário não seria tratado pelo governo real como
boatos sem sentido”.
Miguel já havia percebido que o velho não se referia com muita
deferência quando se tratava do Rei. Sentia no discurso de Figueiredo sempre
uma pitada de ironia que beirava a insolência. Resolveu perguntar.
“O senhor está a fugir de alguma condenação?”.
“Todo mundo aqui de certa forma, está condenado ou em fuga, ou
ambos!” – Depois de soltar suas costumeiras gargalhadas, indagou: “Você não,
jovem Miguel?”.
O frade sorriu assentindo. Figueiredo continuou:
“Mas de minha condenação, não posso fugir. Sou condenado onde quer
que eu esteja”.
“Qual é o seu crime?”
“Sou um descrente”.– Fez uma pausa, como se refletisse. “Certa vez, em
um domingo, eu estava em minha casa, havia acabado de voltar das Índias há
poucos dias. Tinha sido uma travessia assustadora. A pior de toda a minha
vida. Os cálculos das provisões foram feitos em erro, faltou alimento e todo o
tipo de víveres para a tripulação. Vi homens comer ratos, mordê-los ainda
21. vivos, com ira e satisfação. Os mais fracos morreram de fome e os mais
insanos alimentaram-se deles. De volta à minha terra, queriam que eu fosse à
missa... que rezasse... pedisse por perdão, entregasse meu dízimo. Às favas
com o criador. Às favas com o Rei. Porque só há a febre e mais nada.”
Com o passar dos dias, a redução de comida não se estabilizara, havia
um clima de insatisfação latente no porão. Até a temida palavra motim era
ouvida. Homens acusados de sedição foram chicoteados para que todos
tomassem a punição como exemplo. O capelão se mostrava cada vez mais
irado nos sermões do convés e comandava ele próprio os açoites corretivos.
Sua figura por si só já inspirava medo. Carrancudo, desdentado e um tanto
corcunda. Um animal, segundo Miguel. Certa vez, ele chegou a tomar o chicote
das mãos do militar que castigava ao seu mando um suspeito de furto de rapé
e desferiu duas chibatadas ele mesmo para exemplificar como queria a
intensidade da pena. Ainda assim, sempre que um doente ou ferido sentia o
frio da ante-sala da morte logo pedia a presença do capelão, que apesar dos
pedidos desesperados, nunca se dignava a descer aos porões. Nas cerimônias
fúnebres, abençoava aos mortos, encomendava lhes a alma e ao seu sinal, os
cadáveres eram despejados ao mar. Em quarenta e cinco dias de viagem, já
havia acontecido seis destes rituais, Miguel achava muito, Figueiredo pouco;
somente marujos da ralé ou passageiros dos porões, nenhum tripulante do
comando ou gente dos castelos.
Miguel havia notado que nos últimos dias o cirurgião-barbeiro vinha
gradativamente reduzindo a dose de ópio que ministrava ao Pocabosta, o que
o deixava insano. Gritos primais ecoavam pelos porões quando lhe era negada
a droga. Miguel quis saber de Figueiredo se a razão do racionamento era
material.
“Não se preocupe meu jovem, há bastante ópio para todos nessa
caravela”.
“Então porque não alivias a dor deste infeliz?”.
“Se não cortarmos agora, ele não larga nunca mais esta merda. Vai por
mim, sei do que falo”.
Figueiredo não esperou que Miguel se virasse e sacou o frasco que
continha o láudano, molhou o lenço e inalou com vontade. Dobrou os joelhos e
tombou para frente, apagado.
22. Uma hora depois suava litros. O frade, preocupado, aproximou-se para
lhe secar a careca. O velho balbuciava alguma coisa, mas Miguel não podia
entender.
Pocabosta estava mais calmo, e ainda que reclamasse da dor, os gritos
foram interrompidos; ou porque ela diminuíra ou porque perdera a voz. Naquele
momento, a principal preocupação de Miguel era o médico, achava que se lhe
acontecesse alguma coisa, a vida daqueles pobres infelizes e a sua própria
correriam ainda mais riscos, afinal, bem ou mal, aquele velho conhecia as
técnicas rudimentares que aprendera sabe-se lá onde. As sangrias, os
sanguessugas, as suturas, fazia tudo razoavelmente, especialmente quando
estava sóbrio.
Desta vez, quando o frei se agachou para enxugar o suor do velho
médico, ainda delirante e estendido no chão, teve o braço agarrado.
Bruscamente, Figueiredo trouxe o rosto de Miguel para perto de sua boca.
“O capitão deste navio é um imbecil. Vai faltar comida. Não há o
suficiente para todos”.
“O senhor sabe bem o que está dizendo?”.
“E o pior eu ainda nem disse”.
E logo desmaiou. Agora foi Miguel quem o agarrou pelo braço e lhe
sacudiu o corpo, tentando despertá-lo novamente. Desistiu. Largou-o
desmaiado no chão e se levantou intrigado. Estaria o velho delirando e
achando que está naquela viagem para as Índias onde este fato realmente
aconteceu ou estava mesmo receoso que isso se repetisse naquela travessia?
Não era a primeira vez que chamava o capitão de imbecil. Depois de horas,
Figueiredo pôs-se de pé outra vez.
“Acho que errei na preparação do láudano... ópio demais. Minha cabeça
vai explodir. Quanto tempo estive fora?”.
“Umas quatro horas, eu calculo”.
Quando foi indagado sobre o que dissera enquanto estava drogado,
tentou pestanejar, mas diante da insistência de Miguel, Figueiredo o chamou a
um canto e quase murmurando se abriu.
“O estúpido do capitão encheu o navio de gente e azeite a ponto de
ultrapassar a tonelagem racional para uma embarcação deste porte. Por isso
estamos tão vagarosos. O senhor não notou que há tempos não vemos as
outras naus ou os galeões da frota? Se demorarmos mais que uma semana
para chegarmos às ilhas estaremos perdidos”.
23. “Santo Deus. E o que ainda falta contar-me?”.
“Se achas que isso não é o bastante, espere até ver esta gente faminta”.
“Mas o senhor disse que ainda havia algo pior por contar”.
“Maldita droga que some com minha consciência, mas não cala minha
boca!”.
Fez uma pausa, sorveu um bom gole de vinho. Abaixou mais ainda o tom
de voz.
“O capelão está morto. Estava fazendo sua refeição noturna quando não
mais que de repente tombou a cara sobre o prato. O capitão mandou que
enchesse o cadáver de óleos essenciais3 para que ele tivesse tempo de pensar
em uma solução. Tenho eu certeza que a única coisa que ele consegue pensar
é em esconder o ocorrido de todos até que cheguemos às ilhas. Lá, ele
acredita que poderá negociar alguns barris de azeite, deixar os doentes e ainda
encontrar um novo capelão. Acontece que pelo que me dizem os pilotos, com
tanto peso, vamos demorar mais de uma semana, talvez duas, para chegarmos
às ilhas. E como a estupidez do capitão não o deixa enxergar um palmo à
frente daquele seu nariz de filho da puta, ele ainda hesita em começar a
despejar parte do azeite ao mar... aposto todo o meu ópio, que em sua conta,
era melhor despejar parte das pessoas, pois elas já pagaram no embarque ou
com seu trabalho e o azeite ele só recebe pelo que entrega.”
Miguel tomou a garrafa de vinho da mão do médico e serviu-se de um
belo trago.
“Os doentes não melhoram, de nada valem aqueles seus chás, elixires
ou suas drogas, esse ambiente infecto e úmido é o que vai nos matar. Caga-se
e mija-se em qualquer canto, nem se dão ao trabalho de subir ao convés e
despejar seus excrementos. E o sol? Há quanto tempo não se vê o sol! Tem
sempre uma nuvem negra em cima desta maldita barca!”.
“É preciso que se tome uma atitude. O capitão Nunes Almeida vai nos
levar à destruição”.
“Estás a me sugerir um motim?”.
“O Capitão Arrais Belmonte é um homem inteligente e sensato, pode
tranqüilamente assumir o comando. E tu és um homem popular por aqui,
atendes aos doentes, ajudas os feridos, todos lhe estimam, até os mais
odiosos. Podes liderá-los”.
3
Óleos vegetais usados para retardar o processo de decomposição dos cadáveres; pratica conhecida por
embalsamar.
24. “O senhor não sabe o que está dizendo”.
“Imagine quando as pessoas souberem que navegam sem capelão.
Primeiro, será um impacto, provavelmente a maioria tomará conhecimento
quando assistirem a uma cerimônia fúnebre sem que um padre encomende a
alma. Oh! Posso imaginar o pandemônio. Depois virá a sensação de
desproteção, condenados a morrer sem poderem se confessar e sem direito a
um funeral cristão. Aí então é que chega a pior parte da história. Eles
percebem que nada mais têm a perder e que não há mais lei que os sacie ou
os amedronte. Bem vindo ao inferno, meu caro”.
“Existe outra saída”.
“Uma merda, Miguel! Uma maldita merda! Eu não quero morrer num
naufrágio!”.
Concomitantemente olharam ao redor e percebem que a discussão já
despertava certa atenção. Voltaram aos cochichos.
“Não sou homem de contendas, não me encantam as guerras, mas lhe
digo que tenho a solução, ou melhor, eu sou a solução”.
Então Miguel contou-lhe toda a sua história e o motivo que o fazia viajar
escondido entre os desafortunados. Após rir sem reservas por minutos, a ponto
de chamar a atenção de todos, Figueiredo murmurou aos ouvidos do Frei:
“Então o tal altruísta Miguel, enfermeiro dos condenados, cristão exemplar,
capaz de doar suas energias pelo restabelecimento do próximo sem nada
cobrar, não passa de um padre fornicador. A vida é mesmo muito irônica, não
acha?”.
Figueiredo contou a história de Miguel ao Capitão Nunes Almeida, porém
não sem antes assuntar se o marinheiro possuía algum vinculo com o visconde
de Viegas ou se sabia se o mesmo havia colocado recompensa pelo frei. Em
verdade, o capitão conhecia o fidalgo, mas nutria por ele grande antipatia, o
que soava puro ressentimento ao médico. Saberia depois que certa vez o
visconde financiara uma de suas travessias e ficara com boa parte dos lucros,
amparado nas arbitragens de seções do tribunal ultramarino, presidida por fiéis
amigos.
Ofereceu ao médico um legitimo vinho do porto de célebre safra e propôs
um brinde.
“Àquele que fez do nobre visconde de Viegas, o maior corno do reino”. E
caíram na gargalhada.
25. Horas depois, quando o capitão surgiu no porão, de imediato houve um
silêncio quase completo. A autoridade estava ladeada por uma comitiva de
marinheiros armados. Trazia nas mãos o crucifixo e a batina do capelão morto.
26. O capitão dirigiu-se a Miguel, lhe passou às mãos a imagem e a túnica e
respeitosamente pediu por benção. A cena comoveu a muitos, particularmente
aos enfermos, que ao perceberem a simbologia do gesto encheram o ambiente
de gritos de “viva” e “santo”. Pocabosta até mesmo se esqueceu da dor e foi
aos saltos tocar o frei antes que este subisse ao convés.
Se entre os passageiros havia dúvidas a respeito da legitimidade do novo
capelão, estas logo se dissiparam diante da missa em perfeito latim que frei
Miguel ministrou pela graça da alma de seu antecessor. Em seguida à
cerimônia de despejo do cadáver, todos voltaram ao trabalho.
Mais próximo à tripulação e ao seu comando, não demorou muitas horas
para que o frade percebesse que todos navegavam sob nítida tensão,
principalmente os pilotos e o capitão arrais, que sempre nervosos discutiam por
qualquer tolice. Consultavam os instrumentos a todo instante e cambavam as
velas na esperança de roubar o vento pelo outro bordo, o que obrigava os
marujos a um balé perigoso para escapar do brusco retorno da verga que
compõe a base do mastro. Mas a caravela continuava, nas palavras de
Figueiredo, à velocidade de uma velha doente. Enquanto o capitão Almeida
praguejava contra a ausência dos ventos, o restante da tripulação praguejava
contra ele, pelas costas.
Miguel instalou-se no castelo da popa, na cabine privativa que antes era
ocupada pelo velho capelão. Suas novas acomodações de dois metros de
comprimento, com direito a uma arca para pertences e um catre poderiam ser
qualificadas de luxuosas, comparando-as às anteriores. Havia mais três
câmaras duplas no castelo da popa, em cada uma delas viajava um casal e
uma dupla de mucamas. Na proa, o Capitão se acomodava na câmara oficial, e
outros oito marinheiros, inclusive o arrais e o barbeiro, ocupavam outras duas
maiores.
À noite, Frei Miguel foi convidado a se juntar ao comando da tripulação e
participar da ceia na cabine do Capitão. Estavam presentes, além do anfitrião,
o Capitão arrais, o barbeiro-cirurgião e os dois funcionários da burocracia real,
que viajavam com as mulheres recentemente desposadas para assumirem
ambos, importantes cargos na administração colonial do Brasil. Havia na
câmara oficial, além de uma confortável cama, uma mesa para refeições e uma
estante com escrivaninha repleta de livros, praticamente consumidos pela
maresia e pela umidade, há muito não folheados ou abertos. Sobre a mesa,
27. além do lampadário a óleo, uma porção de pasteis, um belo bacalhau assado,
vinhos, grão de bico, frutas secas e outras iguarias em farturas inimagináveis
nos porões. No cardápio das conversas, um assunto era o destaque, a tal
calmaria podre que os havia deixado ora inertes, ora desorientados.
“Costumam dizer por ai que navegar é preciso, mas quem o diz é porque,
em verdade, nunca navegou”. – Comentou o Capitão. Frei Miguel leu no rosto
do arrais seu total desacordo com a opinião do superior. O sujeito enche a
barca de peso, comete diversas infrações de navegação e ainda culpa os
instrumentos e os pilotos? Era o que se podia perceber na reação silenciosa do
piloto ao comentário. O capitão gostava de muito falar e de pouco ouvir.
Acreditava na possibilidade de se chegar às Ilhas do Cabo Verde nos próximos
três dias. Somente os funcionários reais, tidos pelos outros como otimistas
demais e com conhecimentos de navegação de menos, confiavam na
expectativa do Capitão Almeida. Quando, duas horas depois, estava já de volta
aos seus aposentos, frei Miguel já tinha, ele próprio, um conceito formado a
respeito do capitão. “Este é mesmo um imbecil”.
Um novo dia começou com o sol brilhando imponente, sem nuvens no
céu, o que dava ao mar uma tonalidade de azul que eles antes ainda não
haviam visto na viagem. No horizonte, não se podia ver onde terminava o mar
e onde começava o céu. As mulheres e suas mucamas tomavam sol à
varanda; os marujos, sem a chuva, pareciam mais animados e dispostos; até o
arrais ameaçou sorrir quando conseguiu pegar uma boa corrente de vento. No
final da tarde, o capitão era o grande vitorioso, pois se os próximos dias fossem
tão bons quanto estava sendo o corrente, chegariam às ilhas conforme ele
havia previsto. E assim se deu. Chegou a comentar com Miguel: “Parece que
aquele maldito capelão era o peso que nos travava”. Quarenta e oito horas
depois aportavam em Santiago.
A estadia na ilha durou três dias. O capitão conseguiu negociar a bom
preço parte de seu azeite, reabastecer a embarcação de víveres de toda
qualidade e ainda deixar por lá todos os enfermos e passageiros que em sua
opinião eram estorvos. Pocabosta acabou por ser deixado para trás, fora
considerado sem serventia agora que estava amputado. Muito chorou e
implorou para que lhe deixassem seguir viagem. O frei viu quando o infeliz foi
arrancado à força da barca e despejado feito coisa no cais do porto.
Inconformado, o pobre grumete ficou a gritar enquanto ainda podia avistar a
28. caravela. “Preciso seguir!” “Maldito capitão filho da puta!” “Meu ouro!” “Preciso
ver a montanha!” De nada adiantou o primeiro arroubo de ira de sua vida, ficou
mesmo sozinho com seus impropérios e seu desespero.
A partir da estratégica parada em Santiago, o clima na caravela melhorou
e mudou radicalmente o panorama. A proliferação das doenças fora estancada
e até os acidentes de trabalho diminuíram drasticamente. O humor mudou
entre os pilotos e os demais marujos, o que fez com que as brigas tornassem-
se raras. De vento em popa e bem mais leve, o navio agora cruzava o atlântico
com velocidade mais que satisfatória. Correram mais duas semanas até que,
em uma manhã quente, o frei percebeu uma mancha negra no horizonte azul.
Ele ainda não sabia, mas era a primeira vez que avistava a baía de todos os
santos.
30. Assim que adentraram à baía, a tripulação e os passageiros, dos mais
pobres aos mais ricos, expressaram algum tipo de excitação. Muitos gritaram
vivas, outros brindaram seus copos de vinho e os mais religiosos louvaram a
graça rezando de joelhos. Frei Miguel ficou deslumbrado desde o primeiro
instante que colocou os olhos naquelas paragens, lembravam-lhe o Tejo, mas
ainda mais colorido e vibrante. Impressionou-lhe profundamente a beleza da
ilha de Itaparica. A cidade, bem guarnecida pelos os fortes que cobrem toda a
área construída, desponta à beira mar e sobre a colina. À medida que se
aproximam do porto, mais intenso torna-se o tráfego de barcas de todo o tipo e
tamanho.
Souberam ao aportar que o restante da frota chegara uma semana antes
e que, desde então, os demais capitães se divertiam, caçoando do Nunes de
Almeida, o mais lento dos homens do mar.
Vestido com a batina que herdara de seu antecessor e tendo às mãos
mínima bagagem, acrescida por alguns livros religiosos, presentes do
desastroso capitão, Miguel despediu-se da tripulação, destituiu-se do posto de
capelão e partiu por entre a multidão que circulava pelo cais.
Seus passos indecisos e olhar vacilante denunciavam desorientação.
Muitas pessoas o interpelavam, oferecendo todo o tipo de serviço ou
mercadoria.
“A bença, padre. Precisa que leve suas coisa?” Era um negrinho
descalço e sem camisa com um tampão de tecido no olho esquerdo. Curioso, o
frei levantou o pano e notou que o garoto não tinha o olho.
“Nasci estragado por praga de inimigo”.
O frei achou graça.
“Se me der um tostão4, levo suas coisa”.
“Não é preciso. Quase não me pesa”.
“Levo por meio tostão...”.
“Ora pois, o que me interessa mesmo é uma informação”.
“Se me der dois tostão lhe consigo uma mula pra não ter que andar.
Quer ir a alguma igreja?”.
“Sabe onde fica o Convento de Santa Tereza de Ávilla?”.
4
Moeda de níquel; equivalente a 100 réis.
31. “Sei sim. Nem é longe”.
O negrinho era conhecido ali nas imediações do porto por esse apelido
mesmo, Negrinho, ou melhor, neguinho. Ainda que gostasse de sempre dizer
que tinha nome, José, como o pai de Cristo, nada adiantava, pois todos
insistiam em chamá-lo pela alcunha. Acabou se acostumando, mas gostaria
mesmo é de ser chamado pelo nome, que é a única lembrança que tem ou que
acha que tem desde que passou a viver na rua. Nasceu sem um dos olhos, o
que foi considerado pelos africanos uma maldição, já para os brancos era
imprestável para o trabalho escravo, e acabou abandonado na rua com pouco
mais de dois anos de idade. Aprendeu a viver de restos das mercadorias que
eram negociadas no porto e das esmolas que às vezes recebia. Tinha uma
protetora a quem chamava de tia, uma escrava forra que lhe contou seu nome
cristão e que por piedade às vezes o alimentava, mas já havia muito tempo que
o garoto não a via. Ele vivia pelo cais, sempre em busca de algum dinheiro ou
comida, que recebia em troca de seus serviços de carregador, como esmola,
ou conseguindo passageiros para as mulas do Antunes, um próspero mercador
da área. Foi assim que conseguiu ganhar a promessa de dois tostões de
Miguel.
O movimento nas imediações do porto era frenético, comprava-se e
vendia-se de tudo. Especiarias importadas das Índias, manufaturas européias
de toda ordem, plantas aromáticas nativas, produtos dos engenhos baianos,
em especial açúcar, e claro, os escravos vindos da África. Estes últimos
surgiam a todo o momento, às dezenas, acorrentados pelos pés e pelas mãos,
em fila indiana, com seus ferimentos adquiridos na travessia e seus olhos
assustados.
Miguel se deslocava por entre os transeuntes sobre uma mula puxada
pelo neguinho, girava os olhos em todas as direções tentando absorver tudo
que a paisagem local lhe permitia; os fortes ao longo da costa, a natureza
exuberante, o mercado de escravos e os tantos navios sendo abastecidos de
caixas de açúcar, tabaco e madeira. As negras de tabuleiro eram muitas,
ficavam nas esquinas a vender quitandas, confeitos ou ervas. Pôde observar
meia dúzia de mascates chegarem a disputar a tapa a preferência sobre um
lote de produtos ingleses.
Uma particularidade daquela massa humana logo chamou-lhe a atenção:
as vestes das negras, índias e mestiças, eram extremamente indecentes aos
olhos de um morador de Coimbra. Imaginou o que pensariam as beatas
32. lusitanas se vissem ou tomassem conhecimento que ali mulheres circulavam
livremente tendo sobre a pele uns trapos que quase lhes deixavam as coxas às
mostras. Pena que tão magras, pensou.
Após cruzarem boa parte da rua da praia, tomaram o rumo da chamada
ladeira da preguiça, cujo nome o frei entendeu logo que chegou. Íngreme e
acidentada, era um dos principais caminhos das pessoas e dos produtos
importados para a cidade alta. Em todo o percurso da subida, tiveram a
companhia dos escravos que labutavam a carregar todo tipo de mercadoria
que se comprava dos mercadores da praia. Quando chegou às portas da igreja
de Santa Tereza de Ávila, frei Miguel sentiu-se transportado à infância. A
fachada do templo era igual, nos mínimos detalhes, à igreja de Aveiro, onde
seu pai, quando estava em terra, levava a família à missa aos domingos.
Sentiu o peito apertar e um nó lhe subiu pela garganta ao se lembrar daquelas
manhãs.
“Garoto José, peço que me aguardes por um instante. Hei de precisar de
ti novamente. Toma isso.”
O Neguinho ficou feliz duplamente. Nunca havia tido uma pataca e há
muito tempo ninguém o chamava pelo nome. Intencionalmente ou não, o frei
acabara de ganhar a fidelidade do garoto.
“Muito bem, senhor reverendo frei Miguel...” Começou a dizer,
pausadamente, frei Inácio, capelão do convento e comissário geral da Ordem
Carmelita na Bahia. Acabara de ler a carta do Cônego Oscar. “Pelo que aqui
me diz meu amigo de Coimbra, o senhor é uma pessoa muito talentosa, com
relevantes serviços prestados à Ordem em Portugal. Porém, pela maneira que
o senhor teve que deixar a cidade, de certo o fez porque cometera um pecado
muito grave”.
“Senhor frei Inácio, eu realmente...”.
“Por favor, se quiseres posso tomar-te a confissão, mas antes temos que
terminar esta conversa. Aqui, como em Coimbra, a ordem exerce um papel
muito importante na vida da cidade. A Ordem dos Calçados está aqui há mais
de um século. Este convento abriga os irmãos Descalços desde 1665, quando
foi erguido, graças a doações da população, nas terras que nos foram
presenteadas pela Majestade Dom Afonso VI, o vitorioso...”.
Que de vitorioso não tinha nada – pensou Miguel. Continua o frei mestre
Inácio:
33. “Há poucos anos, leigos de grandes virtudes cristãs e que orientam sua
fé pelo Carmelo, fundaram, na cidade, uma Ordem Terceira, da qual todos nós
fazemos muito gosto. Aqui na Bahia, preservamos nossa independência, mas
nos damos muito bem com o arcebispo D. Sebastião assim como com o
governador geral, D. Rodrigo".
“Vossa reverendíssima não carece de se preocupar com minha pessoa,
não me interesso por política e entendo bem o sentido da palavra
independência quando a diz”.
Não parecia se importar com o que Miguel pudesse ter a dizer, pois
assim que terminara de ler a carta de cônego Oscar, havia sobre ele formado
conceito e já tinha certa sua decisão:
“Por suas qualidades intelectuais e de formação, poderias ocupar um
posto importante no seio da ordem, mas o exercício de sua vocação foi
comprometido e pode acontecer outra vez. Não queremos problemas por aqui.
Em consideração ao Cônego Oscar e somente a ele, permitiremos que se
hospede no convento do Carmo, na cidade alta e que auxilie ao frei Baltazar no
pastoreio dos leigos da Ordem Terceira. Mas isso é temporário, pois poderão
haver outros planos para vossa senhoria. Por ora, será apenas um discreto
colaborador, não celebrará missa ou tomará confissão alguma, também não
realizará casamentos ou quaisquer dos sagrados sacramentos. E tenho dito.
Agora, se quiser mesmo se confessar, peço que me espere por alguns
minutos, na capela, caso contrário, pode se retirar e vá com Deus.
José estava exatamente no mesmo lugar onde frei Miguel o deixara
quando este retornou da audiência com Frei Inácio.
“Pra onde vamo, padre? Pra alguma igreja?”.
“Conheces uma boa taberna?”.
“Taberna?”.
“Sim, onde haja vinho, pessoas, boa conversa...”.
“Eu conheço uns secos e molhados por aqui que talvez o senhor goste.”
“Eu preferiria mesmo uma taberna, garoto”.
Voltaram à cidade baixa, onde Frei Miguel pôde comprar roupas civis ao
seu gosto. Nada de perucas ou gibão. Calções, camisa e meias de bom tecido
e tamancos novos. Encontrou uma estalagem onde pôde se banhar, cortar os
cabelos e barbear-se.
Ao cair da noite, na hora em que haviam marcado, reencontrou José.
34. “É importante que preste atenção. Não quero que saibam que sou padre,
desejo conhecer a cidade e a batina pode deixar as pessoas receosas, creio
eu”.
A taberna ficava a poucos metros do cais. O frei combinou com o garoto
que pela manhã se encontrassem na estalagem, deu-lhe mais um tostão e
adentrou. Homens bebiam ou jogavam cartas em mesas dispostas
caoticamente e bem próximas umas das outras. As negras andavam por entre
as mesas em trajes sumários, bolinadas por um homem diferente a cada
passo. Por um bom gole de vinho, sentavam-se no colo do sujeito e remexiam
os quadris de forma escandalosa para o delírio do agraciado. Não era mesmo
um ambiente para um religioso, pensou o frei. Na Europa também havia
tabernas próprias ao pecado, mas ali nem ao menos fechavam-se as portas,
quem passasse pela rua, fosse uma senhora ou donzela, poderia ver o
carnaval de luxurias e excessos. É bem verdade que os transeuntes não
aparentavam também se importar com aquilo.
Frei Miguel pediu vinho. Não era barato, e não era bom. Por ali somente
se pedia cachaça, miúdos e fumo.
Com o passar das horas, as mulheres sumiram da taberna e com elas
boa parte dos homens. Ficaram somente o frei e outros dois portugueses
recém chegados à colônia.
“Espero conseguir chegar às Minas. Dizem que o caminho partindo aqui
da Bahia é repleto de perigos. Animais e gentios ferozes povoam todo o
trajeto”.– disse um deles.
“Ouvi dizer também de bandos armados que roubam até a roupa do
corpo!” – Disse o outro.
Miguel, até então calado, resolveu tomar parte da conversa:
“Se é assim tão perigoso, porque vocês desejam tanto ir?”.
“Ora meu amigo... são as montanhas”. - Disse um deles já rindo,
enquanto o outro completou:
“De ouro, meu caro. Montanhas de ouro”.
Frei Miguel apenas sorriu, e, finalmente, atendeu aos apelos do
taberneiro e experimentou a tal cachaça. Bebida rude e forte, pensou. Tomou
mais uma dose e depois outra e assim foi até não mais se lembrar. Fato é que
acordou na manhã seguinte na estalagem com a cabeça a explodir de dor e
sem imaginar como encontrara o caminho correto.
35. O convento do Carmo era situado em um largo de mesmo nome, próximo
ao palácio do governo e ao pelourinho - onde se dava publicidade aos atos da
justiça e se puniam escravos ou criminosos. Os casarões e os templos da área
eram suntuosos e o ordenamento das ruas decerto gracioso. Assim como em
Coimbra, era na cidade alta que residiam os mais ricos. Nas dependências do
Convento, almoçou na companhia do vigário provincial Frei Baltazar.
“Encantam-me os pratos feitos pelas negras. Elas colocam dendê em
tudo que preparam, na galinha, no pescado e onde for. No inicio me parecia um
tanto pesado, mas hoje acho essa combinação um primor”, disse frei Baltazar,
com o um pequeno sorriso apertado entre suas rosadas e rechonchudas
bochechas. Era, notavelmente, afeito ao conforto e à boa mesa, estilo de vida
bem distinto daquele abraçado pelos monges e freiras enclausurados da
Ordem.
Os dois frades se deram bem logo de inicio. O vigário pareceu ao frei
Miguel ser um pastor obreiro e justo. Logo nos primeiros dias, pôde presenciar
a luta dele contra a simonia que era praticada por alguns membros da Ordem e
do cabido diocesano. Frei Baltazar se dedicava com igual afinco à organização
da Ordem Terceira do Carmo, composta por leigos oriundos das mais altas
camadas da sociedade baiana. Frei Miguel procurou colaborar em tudo o que
fosse necessário. Tentava ser discreto e polido no trato com os fieis,
principalmente com as damas baianas. Entretanto, durante a noite, assumia
outra personalidade.
Instalou-se em quarto simples nas dependências do Convento, cujo
portão principal era fechado após o por do sol para ser aberto apenas na
manhã seguinte ou eventualmente em ocasiões extraordinárias. Curioso acerca
da vida da cidade, logo o frei descobriu um jeito de sair do prédio perto das
sete da noite e voltar quando quisesse, mesmo que procurasse sempre fazê-lo
antes da dez para que pudesse participar das orações da madrugada e evitar
que suas ausências fossem percebidas.
Utilizava-se de discretas passagens, existentes em cada uma das
laterais da igreja, por onde podia ter acesso ao convento e às ruas. Nas noites
em que estivessem combinados, o garoto José levava para ele uma mula
selada e um candeeiro na esquina da ladeira do Carmo. Miguel dava um tostão
ao garoto e, vestido em roupas seculares, rumava anônimo para as tabernas
da cidade baixa.
36. Aquela que o frei gostava de freqüentar pertencia ao Peixoto que se
vangloriava de ser o único taberneiro da rua da praia que vendia a cachaça do
engenho de Tomás de Freitas, a melhor cachaça do mundo, segundo a opinião
de muitos dos freqüentadores daquele botequim. Ali, como em muitos outros, o
dono do estabelecimento também atuava como alcoviteiro, colocando suas
escravas na prostituição ou agenciando mulheres livres pobres para a
atividade. Um dos motivos que traziam Miguel àquele lugar, além da notória
boa cachaça, era que ali procuravam fazer com que os encontros ocorressem
de modo discreto. Exatamente por essa particularidade, foi lá nos fundos da
cozinha e ao ar livre que pela primeira vez frei Miguel pagou por um banho
dado por duas jovens negras faceiras.
Conversava-se sobre tudo naquele ambiente; mulheres, navegações,
minas e até política. Em Salvador podia-se dizer que o poder estava dividido
entre os burocratas da administração real e os senhores de engenho das
cercanias da cidade. Entretanto, no restante da capitania da Bahia, o poder da
classe dos segundos era praticamente absoluto. Senhor de engenho era um
titulo que muitos gostariam de ostentar, mas pertencia somente aos
empreendedores, donos de imensas sesmarias e numerosos escravos, em
cuja propriedade se produzia açúcar, farinha ou tabaco em grandes
quantidades, além de possuírem todas as ferramentas necessárias ao trabalho,
algumas bastante engenhosas como os famosos moinhos de água do
recôncavo. A maioria dos freqüentadores daquelas tabernas era formada por
marujos, pequenos comerciantes, escravos forros e lavradores livres que
trabalhavam nos engenhos e retornavam à cidade após a colheita. Ali se
tratava de política de um modo genérico, discutia-se qual senhor de engenho
era mais poderoso ou mais cruel, qual burocrata era mais esnobe ou corrupto,
mas não havia, ao menos não parecia haver, impulsos revoltosos ou
questionadores, apesar de o governador geral não ser muito popular por
aquelas bandas e El Rey raramente ser mencionado.
Outro ponto da cidade freqüentado por Miguel, aqui sem o disfarce civil,
era um armazém de secos e molhados bem próximo ao largo do Carmo. Neste
estabelecimento, a clientela era formada por reinóis abastados, altos
funcionários da Administração e da Justiça Real ou advogados, e até por
alguns senhores de engenho e seus feitores. Frei Miguel gostava de beber uma
taça de vinho após a última missa do dia, repetindo o hábito de alguns dos fiéis
daquela paróquia. Às vezes, quando convidado, tomava parte da conversa. A
37. se comparar com as tabernas da cidade baixa, a política ali era discutida em
outros termos. Os reinóis reclamavam que os cargos na Câmara estavam
todos nas mãos dos senhores de engenho, já estes e seus asseclas se
queixavam que o governador geral enchera a administração de patrícios
incompetentes e que por essa razão nada funcionava direito na cidade.
Também era muito comum ouvir, por ali, os portugueses criticarem seus iguais
e seus descendentes do Rio de Janeiro, principalmente porque era senso
comum em Salvador a idéia de que a politicagem dos reinóis daquela capitania
fizera com que a região das minas ficasse, eclesiástica e administrativamente,
na jurisdição fluminense. Por vezes diziam: “Daqui a pouco vão querer
transferir a capital da Colônia para o Rio de janeiro!”.
Um assunto também recorrente naquele armazém era a iniciativa da
Confraria de Nossa Senhora do Rosário dos homens pretos, formada por
alforriados, de construírem perto dali uma igreja, cuja obra, àquela altura, inicio
de julho de 1705, já se encontrava adiantada.
Estavam à mesa, além de frei Miguel, o dono do armazém, Augusto
Brito, o Irmão Domingos Assis, importante funcionário do governo e um dos
principais membros da Ordem Terceira do Carmo, e Sebastião, advogado,
também membro da ordem e fiel amigo deste último.
“Se por aqui todos fossem realmente comprometidos com a fé e com a
nossa Ordem, nossa igreja seria erguida antes que a dos pretos” - reclamou
Domingos. À exceção de Miguel, todos pareceram concordar, mesmo que
nenhum deles fosse realmente um importante doador da obra. Sebastião então
disse:
“Se ao menos algum senhor de engenho se comovesse com a causa da
Ordem, com muitos escravos e dinheiro, poderíamos começar já a construção
da nossa igreja e ainda terminaríamos antes dos pretos”.
“Ora, senhores, não sejamos ingênuos – exprimiu-se Irmão Domingos -
Senhores de engenho gostam de rezar em suas próprias igrejas, somente se
dignam a vir à cidade quando têm algo importante a ser decidido pelos
vereadores na câmara, onde eles invariavelmente possuem a maioria. Muitos
deles até mesmo permitem que seus escravos ajudem na construção da igreja
dos pretos, isso sem falar, naturalmente, daquilo que é sabido sem segredo em
toda cidade da Bahia e no recôncavo, de que muitos geram filhos de suas
escravas”.
38. “Imaginem os senhores que é intenção dos pretos fazer a Igreja mais
bonita da cidade alta, para rivalizar até mesmo com a Sé!” - disse Brito, com
ares de indignado. Voltou se para o frei e disse:
“O senhor, que é conhecedor de Direito Canônico, esclareça-nos... não
seria esse intuito uma blasfêmia?” Antes que Miguel pudesse responder, o
Irmão Domingos disse:
“Mas é claro que se trata de um sacrilégio, uma igreja de escravos não
pode ser mais importante que a Sé!”.
“Penso que igreja dos pretos não será mais importante que nenhuma
outra. A Sé, por si só já carrega toda sua santidade, o templo da Irmandade
dos pretos será mais uma casa de oração na cidade, o que é muito importante
para a vida das pessoas. Creio que os senhores devam ver a questão por esse
lado”.
“Não me admiras que tenhas esta opinião, frei Miguel” - disse-lhe Irmão
Domingos, já irritado. “O senhor não conhece os pretos, eles não são cristãos,
apenas fingem para enganar a lei. São pagãos adeptos a rituais diabólicos,
onde dançam e batem tambores. Se continuar a defender os forros, encontrará
problemas por aqui” – terminou de beber sua taça de vinho e levantou-se,
retirando-se do armazém, no que foi acompanhando por Sebastião. Miguel
virou se para Brito e disse, justificando-se:
“Os senhores me pediram uma opinião...”.
“Se continuar a expressares sua opinião deste modo, ficarei sem minha
freguesia”.
Não era a primeira vez que o Irmão Domingos e frei Miguel discordavam
a respeito dos negros. Ainda na primeira semana na cidade, o frade despertou
a revolta de boa parte dos membros da Ordem Terceira do Carmo e de toda a
paróquia, especialmente daquele destacado Irmão, ao permitir que o garoto
José entrasse na igreja e contemplasse o altar e seus santos, quando no
interior do templo estavam alguns brancos. Por conta desta ousadia, várias
reclamações e queixas chegaram aos ouvidos do frade mestre Inácio, no
Convento de Santa Tereza. A esposa de Domingos chegou a solicitar
audiência com o bispo para denunciar o que acreditava ser a maior imoralidade
da colônia, permitir que um negrinho pagão pisasse no chão sagrado de um
templo cristão. Mas é claro que o bispo, sendo o homem ocupado que era,
deixava querelas deste tipo a seus auxiliares, que eram, em sua maioria,
muitos bons de conversa, mas de ação nula. Um perfil oposto ao da senhora
39. Maria Angelina Assis, que era voluntariosa e dada ao mando, rígida com
escravos, criados e crianças, qualidades não comuns, porém também não
raríssimas entre as senhoras portuguesas. Corriam na cidade, à boca pequena,
comentários, maldosos ou não, que davam conta que na verdade, era ela
própria e não o marido que governava a casa e a família. Obesa, muito mais
que o desejável, segundo o juízo de Miguel, dona de um buço tão cabeludo
como de um rapazola, não raro arvorava para si o direito de reprimir
moralmente paroquianos como se fosse um homem da Ordem ou mesmo um
frei. Em reuniões sociais com outras damas da sociedade baiana, costumava
denunciar a existência de pessoas e de famílias, na cidade alta, envolvidas em
rituais africanos e com feiticeiros. Dada a posição de seu marido no governo e
o seu rigoroso modelo moral, era uma das mulheres mais respeitadas da
cidade, apesar de não muito estimada, pois notória era sua atuação como
delatora, junto aos familiares do Santo Oficio. Frei Miguel se divertia sozinho
ao imaginar o que ela pensaria se soubesse a idéia que tinha em mente.