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Ato médico: o fim da guerra
Numa “batalha final”, após mais de quatro horas de apuração, o Congresso Nacional
manteve os vetos da presidente Dilma Rousseff ao projeto intitulado Ato Médico e
conhecido como Desac”ato” médico. A contagem dos votos, feitos em cédulas de
papel, começou pouco depois das 22h de ontem e foi encerrada às 2h30 desta
quarta-feira, 21 de agosto de 2013.
A votação em sessão conjunta do Congresso foi marcada pelo protesto de mais de
500 manifestantes, que invadiram o plenário da Câmara dos Deputados no início da
noite à favor dos vetos.
A nova lei que disciplina a profissão da medicina, que já era regulamentada desde
1932, teve dez itens vetados pelo Executivo. Um dos mais polêmicos era o artigo
que permitia somente aos médicos fazerem diagnósticos e prescrições
terapêuticas. Com o veto, ficam mantidas as prerrogativas de todos os profissionais
da saúde de fazerem seus diagnósticos e as suas prescrições terapêuticas nas suas
respectivas áreas. Outros artigos também estavam em jogo, como a competência
profissional para exercer cargo de direção e chefia de serviços de saúde. Com os
vetos, qualquer profissional da área continua podendo ocupar tais cargos.
A proposta inicial do projeto era uma afronta aos outros profissionais de saúde. Uma
interpretação superficial do texto inicial poderia levar à crer que existia uma
hierarquia entre os profissionais de saúde, com o médico no topo da pirâmide.
Agora, com os vetos, a atuação multiprofissional e a autonomia das profissões de
saúde permanecem. O usuário/cliente/paciente pode sim (e deve) consultar
psicólogos, nutricionistas, fonoaudiólogos e outros profissionais de saúde
diretamente, sem obrigatoriedade de consulta médica prévia.
O texto inicial, de forma confusa, estabelecia que apenas o médico seria o
profissional de primeiro contato, como se ele fosse um profissional capaz de atestar
se o paciente precisa ou não de outro profissional de saúde e, ainda, de dizer o que o
outro profissional de saúde deveria fazer em cada caso. Além de um tremendo
desrespeito, essa seria uma prática impossível, já que só o profissional de cada área
é competente para atestar as intervenções da sua alçada.
É sabido que os profissionais de saúde, incluindo os médicos, devem trabalhar em
cooperação, contribuindo uns com os outros para o sucesso de cada intervenção. Os
atos privativos já nascem com cada profissão, até porque, uma profissão só existe
porque tem seu fazer profissional próprio. Se há uma profissão não tenha seu fazer
profissional próprio, ela não existe. Então, pra quê se preocupar com atos privativos?
Será tentativa de reserva de “mercado”? A lógica de mercado cabe na área da
saúde?
É admissível que exista, contudo, intersecção entre as áreas. É impossível que
fisioterapeutas e profissionais de educação física fiquem completamente distantes
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em seus atos profissionais. O mesmo ocorre entre arquitetos e engenheiros. Vários
outros exemplos poderiam ser citados.
A Saúde Brasileira agradece à Presidente Dilma Roussef, ao Ministro Alexandre
Padilha, aos Senadores e Deputados do Governo e da Oposição que votaram pela
manutenção dos vetos, aos Conselhos Profissionais de Saúde, ao Conselho Nacional
de Saúde e aos manifestantes que ocuparam o Congresso em nome da
INTEGRALIDADE, que é princípio e diretriz do SUS.
Em frente, iremos com força!
Prof. Dr. Eduardo Santana de Araujo é fisioterapeuta, formado na UNISANTA (1996-
2000), especialista em Traumatologia Esportiva pela UNIFESP (2000-2002), mestre
em Saúde Pública pela USP (2005-2008) e doutor em Saúde Pública pela USP (2008-
2012)

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  • 1. 1 Ato médico: o fim da guerra Numa “batalha final”, após mais de quatro horas de apuração, o Congresso Nacional manteve os vetos da presidente Dilma Rousseff ao projeto intitulado Ato Médico e conhecido como Desac”ato” médico. A contagem dos votos, feitos em cédulas de papel, começou pouco depois das 22h de ontem e foi encerrada às 2h30 desta quarta-feira, 21 de agosto de 2013. A votação em sessão conjunta do Congresso foi marcada pelo protesto de mais de 500 manifestantes, que invadiram o plenário da Câmara dos Deputados no início da noite à favor dos vetos. A nova lei que disciplina a profissão da medicina, que já era regulamentada desde 1932, teve dez itens vetados pelo Executivo. Um dos mais polêmicos era o artigo que permitia somente aos médicos fazerem diagnósticos e prescrições terapêuticas. Com o veto, ficam mantidas as prerrogativas de todos os profissionais da saúde de fazerem seus diagnósticos e as suas prescrições terapêuticas nas suas respectivas áreas. Outros artigos também estavam em jogo, como a competência profissional para exercer cargo de direção e chefia de serviços de saúde. Com os vetos, qualquer profissional da área continua podendo ocupar tais cargos. A proposta inicial do projeto era uma afronta aos outros profissionais de saúde. Uma interpretação superficial do texto inicial poderia levar à crer que existia uma hierarquia entre os profissionais de saúde, com o médico no topo da pirâmide. Agora, com os vetos, a atuação multiprofissional e a autonomia das profissões de saúde permanecem. O usuário/cliente/paciente pode sim (e deve) consultar psicólogos, nutricionistas, fonoaudiólogos e outros profissionais de saúde diretamente, sem obrigatoriedade de consulta médica prévia. O texto inicial, de forma confusa, estabelecia que apenas o médico seria o profissional de primeiro contato, como se ele fosse um profissional capaz de atestar se o paciente precisa ou não de outro profissional de saúde e, ainda, de dizer o que o outro profissional de saúde deveria fazer em cada caso. Além de um tremendo desrespeito, essa seria uma prática impossível, já que só o profissional de cada área é competente para atestar as intervenções da sua alçada. É sabido que os profissionais de saúde, incluindo os médicos, devem trabalhar em cooperação, contribuindo uns com os outros para o sucesso de cada intervenção. Os atos privativos já nascem com cada profissão, até porque, uma profissão só existe porque tem seu fazer profissional próprio. Se há uma profissão não tenha seu fazer profissional próprio, ela não existe. Então, pra quê se preocupar com atos privativos? Será tentativa de reserva de “mercado”? A lógica de mercado cabe na área da saúde? É admissível que exista, contudo, intersecção entre as áreas. É impossível que fisioterapeutas e profissionais de educação física fiquem completamente distantes
  • 2. 2 em seus atos profissionais. O mesmo ocorre entre arquitetos e engenheiros. Vários outros exemplos poderiam ser citados. A Saúde Brasileira agradece à Presidente Dilma Roussef, ao Ministro Alexandre Padilha, aos Senadores e Deputados do Governo e da Oposição que votaram pela manutenção dos vetos, aos Conselhos Profissionais de Saúde, ao Conselho Nacional de Saúde e aos manifestantes que ocuparam o Congresso em nome da INTEGRALIDADE, que é princípio e diretriz do SUS. Em frente, iremos com força! Prof. Dr. Eduardo Santana de Araujo é fisioterapeuta, formado na UNISANTA (1996- 2000), especialista em Traumatologia Esportiva pela UNIFESP (2000-2002), mestre em Saúde Pública pela USP (2005-2008) e doutor em Saúde Pública pela USP (2008- 2012)