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1
MARIA DE LOURDES BACHA
A Teoria da Investigação de C.S.Peirce
Mestrado
Semiótica
PUC-SP 1997
2
MARIA DE LOURDES BACHA
A Teoria da Investigação de C.S.Peirce
Dissertação apresentada como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre
junto ao Programa de Pós-Graduação em
Comunicação e Semiótica da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, sob
orientação do Prof. Dr. Breno Serson.
PUC - SP 1997
3
Banca examinadora
Orientador Prof. Dr. Breno Serson
Prof. Dr. Ivo Assad Ibri
Profa. Dra. Soraya Maria Ferreira Vieira
4
5
RESUMO
Esta dissertação tem como objetivo estudar a Teoria da Investigação (inquiry) de
C.S.Peirce.
Para Peirce, a investigação começa a partir de um estado de dúvida incomodo
paralisante, no qual não se consegue escolher entre dois cursos de ação.
A dúvida, da qual a investigação parte é uma dúvida real, genuína, e não simplesmente
uma dúvida metodológica, um "faz-de-conta".
A investigação científica constitui um esforço para colocar fim à dúvida e voltar a um
estado de crença. A verdade seria, então, um estado de crença inatacável pela dúvida. A
investigação tem por objetivo único o acordo de opiniões.
A Teoria da Investigação também pode ser chamada de Teoria do Método Científico.
Para Peirce, somente o método científico pode nos levar à verdade, em longo prazo, num
longo percurso, que constitui o processo dinâmico da investigação. Este processo está sujeito
ao erro, ao acaso, mas também é passível de auto-correção.
A Teoria da Investigação se baseia em alguns pontos da teoria peirceana que são: a
teoria da verdade (que depende de um critério de convergência e no acordo de opiniões de
uma comunidade); a concepção de realidade (que tem suas bases na teoria da cognição e que
por sua vez tem suas bases na teoria das categorias); a teoria pensamento-signo (que implica
na continuidade, na semiose, na terceiridade); a doutrina do falibilismo; do senso comum, e a
teoria dúvida - crença.
6
Ao Waldemir,
com saudades
7
AGRADECIMENTOS
AO MEU ORIENTADOR PROF. DR. BRENO SERSON,
AO PROF. DR.IVO ASSAD IBRI,
A PROFª. DRª. CECÍLIA ALMEIDA SALLES,
AOS MEUS FILHOS ANA E JÚLIO,
ÀS COLEGAS SUSANA E JORGINA.
ESTE TRABALHO CONTOU COM A COLABORAÇÃO DA
CAPES.
8
ÍNDICE
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................008
Capítulo I. FUNDAMENTOS DA SEMIÓTICA PEIRCEANA ...................................................015
1. Introdução.................................................................................................015
2. O lugar da Semiótica na filosofia peirceana ..........................................018
3. O inter-relacionamento das Ciências Normativas: A Estética,
a Ética e a Lógica.....................................................................................032
4. O escopo da Semiótica peirceana............................................................053
5. As divisões da Semiótica. .........................................................................063
Capítulo II. A TEORIA DA INVESTIGAÇÃO .......................................................................072
1. Introdução ...................................................................................................072
2. A questão do método em Peirce.................................................................078
2.1. O anti-cartesianismo peirceano .........................................................083
2.2. O método científico .............................................................................099
2.3. Evolução dos conceitos peirceanos a partir das inferências
para tipos de raciocínio e finalmente para estágios
da investigação. ...................................................................................116
2.3.1. Abdução.....................................................................................122
2.3.2. Dedução......................................................................................137
2.3.3. Indução ......................................................................................144
2.3.4. Relação entre abdução, dedução e indução e as categorias ..152
3. A lógica da Investigação.............................................................................160
CONCLUSÕES.......................................................................................................................168
BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................................187
9
INTRODUÇÃO
De acordo com Murphey1
, a Teoria da Investigação foi desenvolvida por Peirce, entre
1870 e 1872.
Um dos pontos mais importantes da Teoria da Investigação está na concepção peirceana
de ciência, ligada a um “processo socio-histórico de investigação”. 2
Para Peirce há duas concepções tradicionais de ciência. A primeira, caracterizada como
um corpo sistemático e organizado de conhecimento, seria “um corte superficial capturando
principalmente os remanescentes fossilizados da ciência”. A segunda seria “um corte mais
profundo”, caracterizada como um método do saber. A segunda visão seria a mais certa,
podendo, no entanto, ser comprometida por uma concepção metodológica individualista e por
vezes não suficientemente dinâmica.3
A Teoria da Investigação parte de um dos pontos-chaves da teoria peirceana, que é a
rejeição aos "apriorismos" ou a rejeição à tradição fundacionalista. Segundo Peirce, é muito
1
M Muphey, (1993) The Development of Peirce's Philosophy. p. 159.
2
(MS 614.7 e CP.7.49,7.60, 7.61, 7.87) C. Delaney, (1993), Science, Knowledge and Mind- A study in the philosophy of
C.S.Peirce ,p.13 e C. Stewart, (1986) "Social and Economic Aspects" Transactions of the C.S.Peirce Society, vol.XXII p.
501.
10
diferente partir daquelas coisas das quais nós não duvidamos, o que não quer dizer que
existam verdades ou certezas absolutas. Todo conhecimento tem início nas percepções
recebidas pelos sentidos, mas estas percepções em si mesmas não constituem conhecimento
nem podem ser premissas para o conhecimento.
A rejeição peirceana aos “apriorismos” pode ser expressa na frase: "Não bloqueie o
caminho da investigação". O que Peirce quer evitar é dogmatismo e ceticismo.
Peirce acreditava, por um lado na inexorável marcha da ciência para a verdade, e o
método científico seria aquele método que inevitavelmente levaria à verdade em longo prazo,
por outro lado nenhuma teoria, nenhum conceito, nenhum sistema de idéias traduz verdades
finais.
A filosofia evolucionista de Peirce embute a idéia de aprendizagem e ciência pressupõe
evolução. Aquilo que é verdade hoje, pode se mostra falso no futuro e, se o campo
observacional aumentar, algumas teorias podem se mostrar incompletas ou falsas.
Entretanto, guiados por nossas crenças e empregando métodos de investigação que não
sejam apropriados, poderemos chegar a uma opinião errada, já que todas as teorias científicas
são falíveis e seus resultados devem ser submetidos à crítica
Para Skagestad, a Teoria da Investigação de Peirce reconcilia alguns conflitos ou
discrepâncias entre religião, darwinismo e ciência. Ela é vista como um "socialismo lógico",
por Murphey, para quem o pesquisador peirceano é um membro de uma comunidade que
devota sua vida à busca desinteressada da verdade. A descoberta da verdadeira estrutura da
realidade, por intermédio da ciência, seria "um dever religioso".
Todas as investigações levadas a cabo, em longo prazo, com a adoção do método
correto devem levar às mesmas conclusões, "a conclusão em qualquer departamento da
ciência é essencialmente a mesma." A Teoria da Investigação aponta quais deveriam ser os
princípios guia para aquele investigador que acredita existirem coisas reais e, cujo objetivo é a
descoberta das propriedades daquilo que é real. Adotar o método da ciência é simplesmente
3
C.Delaney (1993), op.cit. p.14.
11
adotar a hipótese da realidade e sua adoção pode ser justificada pelo fato de que leva ao
conhecimento da realidade. A hipótese realista é fundamental para o método da ciência.
Se nós adotamos a hipótese da realidade - e, realidade, para Peirce, é algo externo e
estável, e tudo aquilo que está fora do alcance da investigação não é real, - estamos nos
compromentendo com uma busca única e desinteressada da verdade, estamos aptos a
sacrificar opiniões em curto prazo pelo consenso estável e duradouro, o que pressupõe uma
visão realista contra a visão nominalista da realidade. A realidade é a causa final da
investigação porque reflete a fixação das crenças sobre as quais a investigação se apoia.
De acordo com Peirce, os três estágios da investigação são: abdução, dedução e indução.
Esta distinção é que fundamenta a Teoria da Investigação, formalizando um ciclo; abdução,
dedução, indução, nova abdução...
A Teoria da Investigação está inserida na terceira divisão da semiótica, a metodêutica,
na qual está concentrado o objeto deste estudo. A Semiótica Peirceana se divide em:
1. Gramática Especulativa ou Gramática Pura,
2. Lógica Crítica ou Lógica propriamente dita,
3. Retórica Especulativa ou Metodêutica.
A Gramática Especulativa constitui a teoria geral da natureza e significado dos signos
sejam eles ícones, índices ou símbolos; a Lógica Crítica classifica os argumentos e determina
a validade e o grau de força de cada um, e a Metodêutica, que estuda os métodos que deveriam
ser perseguidos na investigação, exposição e aplicação da verdade. Cada divisão depende da
precedente. (CP 1.191)
Segundo Serson (1996: b), a Metodêutica pode ser vista por dois ângulos:
1. O primeiro, ligado à teoria geral da investigação e aos métodos científicos e,
2. O segundo, o retórico, que é a arte de conduzir um raciocínio, um convencimento que
permite explicar como é que se dá a construção do convencimento quando dois
12
interlocutores ideais ou duas inteligências científicas ao conversar possam provar alguma
coisa uma para a outra.
Por outro lado, sendo a investigação uma atividade voltada a um fim, este fim não pode
se resumir à ação, mas este fim é uma busca do "admirável", o “summum bonum” da
investigação.
Esta dissertação foi dividida em três capítulos.
O Capítulo I tem como título “Fundamentos da Semiótica Peirceana”. O principal
objetivo deste capítulo consiste na apresentação de algumas idéias sobre a Semiótica
peirceana e suas divisões que são a Gramática Pura, a Lógica Crítica e a Metodêutica.
Este capítulo foi dividido em cinco itens. O primeiro item do Capítulo I procura
mostrar resumidamente a importância da Lógica ou Semiótica na obra de Peirce. A concepção
peirceana de Semiótica é de uma Lógica que leva em consideração todos os possíveis tipos de
signos e seus específicos modos de ação.
No segundo item do Capítulo I, a Semiótica será contextualizada no corpo da
arquitetura filosófica de Peirce, utilizando-se o diagrama da classificação das ciências, no qual
os princípios da interdependência de cada ciência são exibidos.
No item 3 do Capítulo I, procura-se mostrar o inter-relacionamento das Ciências
Normativas, isto é, como se relacionam a Estética, a Ética e a Lógica ou Semiótica. A Lógica
ou Semiótica, como a ciência do raciocínio e do pensamento deliberado, extrai seus princípios
da Estética e da Ética. A Lógica estabelece as regras que deveriam ser seguidas para o
raciocínio, mas precisa recorrer ao propósito ou meta que justifique estas regras. 4
Este tópico
será retomado posteriormente no contexto da Teoria da Investigação.
No quarto item do Capítulo I são apresentadas algumas idéias sobre o escopo da
Semiótica peirceana.5
A Semiótica estuda todas as espécies de signo e, além disso, é a ciência
normativa dos métodos de investigação inteligente e do raciocínio em geral.
4
Idem, op.cit. p.121.
5
N .Houser (1990) "O escopo da semiótica peirceana", p.207-214.
13
Para Peirce, todo pensamento ou representação cognitiva é um signo, sendo o signo
peirceano uma relação triádica complexa envolvendo o signo, objeto e o interpretante. Em
função desta relação triádica os signos podem ser classificados de várias maneiras, três das
quais são resumidamente apresentadas neste capítulo.
No quinto item do Capítulo I são apresentadas as três divisões da Semiótica. A
Gramática Pura, que estuda o que deve ter o signo para incorporar qualquer significado, a
Lógica Crítica ou Lógica propriamente dita que estuda as condições de verdade das
representações e a Metodêutica que é a ciência que estuda as condições pelas quais um signo
gera outro, e especialmente um pensamento dá origem a outro. (CP 1.444)
O Capítulo II tem como título "A Teoria da Investigação" e foi dividido em cinco
itens.
O primeiro item do Capítulo II explica em linhas gerais a concepção peirceana de
ciência como um processo sócio-histórico de investigação, subentendendo uma comunidade
de pesquisadores que, num determinado tempo, com unidade de propósito, torna o resultado
da investigação mais do uma simples somatória de resultados individuais.
O segundo item do Capítulo II, se refere à questão do método, discutindo a visão anti-
cartesiana de Peirce, sua rejeição à tradição fundacionalista e oposição às idéias de certeza e
verdade absolutas. A análise destes pontos é feita a partir dos textos conhecidos como a "série
da cognição":
1. “Questões Referentes a Certas Faculdades Reivindicadas pelo Homem” (CP 5.213-63),
2. “Algumas Conseqüências das Quatro Incapacidades” (CP 5.264-317)
6
e
3. “Fundamentos para a Validade das Leis da Lógica: Outras Conseqüências das Quatro
Incapacidades”. (CP 5.318-57).
A análise das idéias peirceanas sobre o método científico, sobre a concepção de
investigação e sobre a teoria dúvida-crença, é feita a partir de uma série de seis artigos
denominada "Lógica da Ciência", que são os seguintes:
6
Os textos 1 e 2 foram publicados em C.S.Peirce,(1990), Semiótica, São Paulo: Perspectiva. p 242-282.
14
1. “Fixação das Crenças” -1877 (CP 5.358-87),
2. “Como Tornar Nossas Idéias Claras” -1878 (CP 5.388-410),
3. “A Doutrina dos Acasos” - 1878 (CP 2.645-60),
4. “A Probabilidade da Indução” -1878 (CP 2.669-93),
5. “A Ordem da Natureza” -1878 (CP 6.395-427) e,
6. “Dedução, Indução e Hipótese” -1878 (CP 2.619-44).7
Estes artigos têm como principal característica a insistência de Peirce quanto à
concepção de realidade independente do que pensamos, a apresentação de uma nova
abordagem para a justificativa dos métodos de investigação e regras de inferência, e a
distinção entre observação e raciocínio como ênfase para o teste das hipóteses.
A evolução dos conceitos peirceanos a partir das inferências para tipos de raciocínio e
finalmente para estágios da investigação também é discutida neste capítulo. Sua análise se
baseia principalmente no texto "Tempo de Colheita", do livro A Assinatura das coisas de M.
Lúcia Santaella.
Resumidamente, se pode dizer que no início de seus trabalhos, Peirce considerava que
todas as formas de inferência poderiam ser reduzidas ao silogismo Bárbara (CP 2.620), mas a
noção peirceana de inferência evoluiu, e as inferências passaram a ser três tipos distintos e
irredutíveis dos argumentos ou raciocínio.8
Inicialmente, Peirce incluía a analogia como o
quarto tipo de raciocínio, mas posteriormente acabou reconhecendo que a analogia combina as
características da indução e da retrodução. (CP 1.65)
Ainda dentro do Capítulo II, são apresentadas as principais idéias peirceanas que
caracterizam cada um dos três estágios da investigação. A abdução, a primeira etapa, é o
processo de geração de hipóteses. A dedução, que é a segunda etapa, consiste em traçar
imaginariamente todas as conseqüências necessárias que se seguem à adoção da hipótese. A
terceira etapa, que é a indução, consiste em testar a hipótese e suas predições dedutivas,
comparando-se os resultados experimentais obtidos com as predições originais.
7
Os textos 1, 2 e 6 estão traduzidos em C.S.Peirce, (1972), Semiótica e Filosofia, São Paulo: Cultrix.
8
B. Serson, (1992), La théorie sémiotique de la cognition chez C.S.Peirce, tese de doutoramento, p.64-91.
15
O item 5 do Capítulo II discute a lógica da investigação, vista como um ciclo abdução/
dedução/indução. Quando fatos surpreendentes que são observados, ou diferenças entre as
previsões e os resultados obrigam a reformulação da hipótese original ou ao seu abandono ou
a conseqüente formulação de hipóteses inteiramente novas, então se reinicia o ciclo como
nova abdução/dedução/indução/nova abdução...Toda a idéia da investigação, no contexto da
metodêutica, é mostrar como se encadeia este ciclo de abdução/dedução/indução/nova
abdução...
O capítulo Conclusões faz uma junção de todos os pontos discutidos anteriormente,
procurando mostrar como questões fundamentais da teoria peirceana (a concepção de ciência,
de verdade, evolucionismo, teoria da realidade, idealismo objetivo, as categorias, o inter-
relacionamento das ciências normativas) estão implicadas na Teoria da Investigação. A partir
desta análise procura-se mostrar qual seria o “summum bonum” da investigação. A
investigação, mesmo sendo lógica, ainda assim ela implica numa escolha ética, e numa busca
do fim último admirável.
***
As obras de Peirce são citadas obedecendo às abreviações comumente aceitas entre os
estudiosos.
CP Collected Papers
HP Historical Perspectives on Peirce’s Logic of Science.
MS Manuscritos da Houghton Library Harvard University
N Charles Sanders Peirce: Contributions to The Nation.
NEM The New Elements of Mathematics
PW The Correspondence between Charles S.Peirce and Victoria Lady Welby.
W Writings of Charles S.Peirce.
SL Studies in Logic by Members of John Hopkins University
R Reasonings and The logic of Things - The Cambridge Conferences.
16
Capítulo I - FUNDAMENTOS DA SEMIÓTICA PEIRCEANA
1. Introdução:
"Dada a pergunta: Em que medida é admissível existir aparência
no mundo moral?, a resposta deve ser sumária: na medida em que
a aparência for estética, isto é, uma aparência que não quer
passar por realidade e tampouco quer que esta a substitua.”
(SCHILLER, 1991:140)
Os primeiros contatos de Peirce com a filosofia deram-se na adolescência com a Lógica
de Whateley, e mais tarde através das cartas de Schiller e das obras de Kant, de quem ele
saberia de cor a Crítica da Razão Pura. (CP 1.44)
Mas, diferentemente de Kant, Peirce concebeu a Lógica como uma lógica da ciência,
como a arte de entender os métodos de investigação utilizados pelas mais diversas ciências.
Segundo Santaella (1994:105), a Semiótica ou doutrina dos signos, da qual Peirce foi o
moderno fundador, aconteceu, na sua vida, como uma conseqüência de sua investigação dos
mecanismos de pensamento e raciocínio que dão suporte aos métodos através dos quais as
ciências conduzem suas investigações.
17
Peirce é um filósofo sistêmico e sua filosofia busca respostas harmônicas para uma série
de questões entre as quais o estatuto do cosmos, a questão da temporalidade, a questão do
conhecimento, a questão da crença e da dúvida, a questão da interioridade e exterioridade, a
dicotomia sujeito-objeto, as condições de possibilidade do pensamento, do real, do
imaginário.
Peirce levou para a Filosofia o espírito da investigação científica, assumindo que as
disciplinas filosóficas são ou podem se tornar também ciências. Para tal, propôs aplicar na
Filosofia, com as devidas modificações os métodos de observação, hipótese e experimentos
que são praticados nas ciências. Para Peirce, o caminho para a Filosofia deveria ser feito
através da Lógica, isto é, através da Lógica da ciência. “Peirce era uma espécie de filósofo que
era, em primeiro lugar um cientista e uma espécie de cientista que era em primeiro lugar, um
lógico da ciência.” (FISCH, apud SANTAELLA, 1985:26) 9
.
Portanto, sendo antes de tudo um cientista, seu interesse em Lógica era primeiramente
um interesse na Lógica das ciências e, entender a Lógica das ciências era, em primeiro lugar,
entender seus métodos de raciocínio.
Durante 60 anos de sua vida Peirce lutou pelo reconhecimento da Lógica como ciência.
Segundo Santaella, tudo o que Peirce fez, todas as atividades científicas que praticou tinham a
Lógica como mira, e, ao se aprofundar no estudo da Lógica, acabou se deparando com sua
insuficiência ou incompletude. “Esta incompletude está no cerne de sua concepção de signo.
Todo signo, por fatalidade congênita, está destinado a ser incompleto” (SANTAELLA,
1994:155).
Mas à medida que constatava a incompletude da Lógica, Peirce trouxe a Estética e a
Ética para ajudá-lo naquelas tarefas teóricas que a Semiótica não podia realizar por si mesma.
Primeiramente Peirce concebeu a Lógica propriamente dita como sendo um ramo da
Semiótica. Mais tarde concebeu uma concepção mais ampla da Lógica. Mas do fato de que
todo raciocínio e todo pensamento se dá em signos, não havendo pensamento ou raciocínio
9
L. Santaella, (1985) O que é Semiótica, p. 26.
18
possível sem signos, a Semiótica, como estudo de todos os tipos possíveis de signos, nasceu
como uma conseqüência natural das descobertas peirceanas em Lógica.
Fazendo uma divisão cronológica na obra de Peirce, podemos distinguir segundo
Murphey10
, quatro fases :
1. a primeira, englobando os primeiros escritos e tendo sofrido grande influência da
lógica kantiana, iria de 1857 até 1865-66.
2. a segunda, que começaria com a descoberta da irredutibilidade das três figuras
silogísticas, pode ser estendida até 1869-70.
3. a terceira, que inaugura a descoberta da lógica dos relativos, continuaria até 1889.
4. a quarta, que começa com a descoberta da quantificação e a teoria dos conjuntos
continuaria até a morte de Peirce. Estas fases não devem ser tomadas como sistemas
distintos e sim como diferentes revisões dentro de um único sistema arquitetônico.
A partir de 1900, Lógica e Semiótica se tornaram sinônimos para Peirce11
:
A Lógica não é senão outro nome para a Semiótica (PEIRCE, CP 2.227).
A Lógica será definida aqui como Semiótica formal. Uma definição de signo
será dada que não tem nenhuma referência ao pensamento humano, não mais
do que teria a definição de uma linha como o lugar que uma partícula ocupa,
parte por parte, durante um lapso de tempo (PEIRCE, NEM 4:20).
A Lógica, em sentido geral, é, como entendo haver demonstrado, apenas
outra denominação da Semiótica, a quase necessária ou formal doutrina dos
signos (PEIRCE, CP 2.227).
Segundo Santaella, a Semiótica está colocada bem no coração do conjunto da obra de
Peirce. A Semiótica peirceana não é uma ciência teórica nem uma ciência aplicada, é uma
ciência formal e abstrata, num nível de generalidade ímpar.12
À medida que harmonizava as
Ciências Normativas, a concepção de Lógica de Peirce foi adquirindo contornos mais amplos,
podendo-se distinguir para ela dois sentidos:
10
M Muphey, (1993) The Development of Peirce's Philosophy. p. 3. Por outro lado Houser, na Introdução de The Essential
Peirce, aponta outras divisões cronológicas da obra de Peirce, tais como a de Max Fisch e Deledalle, p.xxiii
11
C.S Peirce,(1972) Semiótica e Filosofia, p. 93, L. Santaella, (1992) op. cit. p.49 e B. Serson (1996) Introdução à Semiótica
de C. S. Peirce, p. 17-18.
12
L. Santaella (1992) "Signos de Todas as Coisas", op. cit. p.43-57.
19
No sentido mais estreito, é a ciência das condições necessárias para se atingir
a verdade. No sentido mais amplo, é a ciência das leis necessárias do
pensamento, ou melhor (o pensamento sempre ocorrendo por meio de
signos), é Semiótica geral que trata não apenas da verdade, mas também das
condições gerais dos signos... também das leis de evolução do pensamento,
que coincide com o estudo das condições necessárias para a transmissão de
significado de uma mente a outra, e de um estado mental a outro (PEIRCE,
CP 1.444).
Na última década de sua vida, Peirce estava trabalhando num livro que se chamaria “Um
sistema de Lógica, considerada como Semiótica”.13
2. O lugar da Semiótica na filosofia peirceana.
Embora Peirce considerasse toda e qualquer produção, realização e expressão humana
como sendo uma questão semiótica, a Semiótica é apenas uma parte do seu conjunto
filosófico, que, por sua vez, é também parte de um sistema ainda maior, “um gigantesco corpo
teórico”, o que pode ser percebido através da análise de seu diagrama de classificação das
ciências.
Antes de iniciar a análise do diagrama das ciências, é interessante ressaltar que a
concepção de ciência de Peirce é bastante diferente dos seus contemporâneos.
A concepção de ciência de Peirce tem grande abertura, permitindo as liberdades de
criação e descoberta, e “não há nada mais deliberada e naturalmente liberal do que a
concepção peirceana das ciências” (SANTAELLA, 1992:29). “Distender o arco na direção da
verdade, com atenção no olhar, com energia no braço” (PEIRCE. CP 1.235)
Para Peirce, a finalidade da ciência seria aprender a lição que o universo tem a ensinar.
Ciência, portanto, não se confunde com conhecimento acumulado.
Cientista, para Peirce, será aquele movido pela sede da verdade. (CP 7.609) A ciência é
“um modo de vida”, a vida dedicada à busca do conhecimento e devoção à verdade, não a
13
L .Santaella (1985) op. cit. p.26
20
verdade como cada um a vê, mas a devoção à verdade que não se é ainda capaz de ver, mas se
está lutando para obter. 14
Não é o conhecimento, mas o amor ao conhecimento que caracteriza o cientista. (CP
1.44) Espírito científico é aquele que aprende com a experiência. Os “genuínos homens da
ciência“ são aqueles movidos pelo desejo efetivo e sincero de aprender.
A vida da ciência consiste no desejo de aprender. Se este desejo não é puro,
mas está misturado com o desejo de provar a verdade de uma opinião
definitiva ou de um modo geral de conceber as coisas, ele vai inevitavelmente
levar à adoção de um método errôneo (...) (PEIRCE, CP 1.235).15
Peirce desenvolveu um diagrama das ciências, no qual divide as ciências em ciências da
descoberta, ciências da digestão e ciências aplicadas (CP 1.180 e CP 1.203-83).
As ciências da descoberta, das quais a Semiótica faz parte, serão privilegiadas neste
trabalho. Elas se dividem em três grandes classes:
1. Matemática,
2. Filosofia e,
3. Ciências Especiais.
Segundo este diagrama, quanto mais abstrata for a ciência, mais ela será capaz de
fornecer princípios para as menos abstratas. “É por isso que o diagrama da classificação é um
esquema similar a uma escada de degraus, onde cada degrau é, ele mesmo uma escada de
degraus” (SANTAELLA, 1992: 120).
A classificação das ciências de Peirce não é um esquema linear, mas uma série de
escadas relacionadas numa forma tri-dimensional, de forma a exibir as relações de
dependência entre as ciências. É baseada na lógica dos relativos e na forma diagramática de
pensamento, mostrando os efeitos concebíveis de uma ciência, ou em outras palavras. seu
14
C. Eisele (1987) Historical Perspectives on Peirce's Logic of Science p. 804 e L.Santaella, (1992) op.cit. p.108.
15
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: “The life of science is in the desire to learn. If this desire is not
pure, but is mingled with a desire to prove the truth of a definite opinion, or of a general mode of conceiving of things, it
will almost inevitably lead to the adoption of a faulty method (...)” (CP 1.235)
21
significado pragmático, que segundo Peirce seria uma das formas mais completas de se
entender uma ciência. 16
Sendo as ciências interdependentes, este diagrama mostra os princípios de sua
interdependência. A classificação das ciências de Peirce, segundo Santaella (1992:28),
explicita as relações de interdependência de uma ciência para com as outras, indicando os
escalonamentos em níveis de abstração através dos quais as ciências mais abstratas funcionam
como fundamentação para as menos abstratas, na medida em que é das mais abstratas que as
mais concretas tomam emprestados seus princípios, ao mesmo tempo em que é com dados
fornecidos pelas ciências menos abstratas que as ciências mais gerais se abastecem.
A classificação das Ciências não é um sistema fixo e rígido porque está sempre em
evolução. Sua imagem é de um continuum tridimensional, onde pontos poderiam ser
acrescentados ou tirados em qualquer localização.17
Peirce reconhecia que as ciências não podiam ser rigidamente definidas; suas linhas de
demarcação não tinham grande importância, de forma que novas ciências pudessem emergir,
ou aquelas que se tornassem obsoletas poderiam ser retiradas do diagrama. O importante é que
a classificação deveria ser capaz de incorporar estas mudanças.
Fundamental para Peirce era a ordenação das ciências com relação às categorias. Existe
dentro de sua classificação uma lógica ternária e os números 1,2,3 indicam não somente a
ordem, mas são indicadores de um conteúdo lógico-relacional, de tal forma que, onde o
número 1 estiver, há relação com a primeira categoria, a Primeiridade, que é a categoria da
qualidade, sentimento, acaso, indeterminação. O número 2 indica relação com a segunda
categoria, a Segundidade, que é a categoria do existente, da ação, do aqui e agora, da
dualidade. O número 3 está relacionado com a terceira categoria, a Terceiridade, que é a
categoria da continuidade, da lei, da generalidade, do crescimento e da evolução.
Para Peirce, todas as ciências são observacionais, a diferença entre elas reside no modo
de observação empregado em cada uma delas. 18
16
B. Kent (1987) op. cit. p. 47,139, 141-139
17
Ver B.Kent, (1987) op.cit. p.145 e L. Santaella, (1992) op.cit.p.118-121.
22
No diagrama peirceano, a Matemática é a ciência mais genérica e abstrata e não depende
de nenhuma outra ciência (CP 1.53). No entanto todas as outras ciências dependem da
Matemática, seja implícita ou explicitamente, já que os problemas matemáticos aparecem em
todas as ciências e na vida quotidiana, pois sempre temos que estabelecer conseqüências de
estados gerais de coisas. Conseqüentemente, todas as ciências têm um conteúdo matemático,
ou algum ramo para o qual a Matemática é chamada.19
A Matemática é a grande ciência do geral, da generalidade. A Matemática constrói
relações possíveis dentro de uma sintaxe, com a qual é coerente sem se preocupar com a
realidade. As estruturas matemáticas não necessitam ter aplicação. Para Peirce, as verdades
matemáticas são verdades necessárias, isto é, a Matemática chega a conclusões derivadas
necessariamente de suas premissas. (CP 1.633)
A Matemática é uma ciência que constrói seus objetos na forma de hipóteses, e delas
extrai conseqüências necessárias, sem lidar, contudo, com questões de fato. (CP 4.232)20
Embora a necessidade teórica esteja relacionada às conclusões matemáticas, isto não significa
infalibilidade.
Certamente, acredito que a certeza da Matemática pura e de todo raciocínio
necessário se deve à circunstância de que ela se relaciona com objetos que são as
criações de nossos próprios espíritos... (PEIRCE, CP 5.166).
Ao mesmo tempo a Matemática requer “certo vigor do pensamento, o poder de
concentração da atenção de forma a manter na mente uma imagem altamente complexa.” (CP
2.81)
No texto "Reason's Conscience"21
, Peirce explica que o matemático não se fia em nada,
ele simplesmente estabelece o que é evidente e mostra as circunstâncias que tornam isto
evidente.
18
C.Eisele (1985) "Laws of Nature" op.cit. p.851.
19
idem p.881.
20
ver I. Ibri (1992).Kosmos Noetós: Arquitetura Metafísica de Charles S. Peirce. p 3 e S. Rosenthal, (1994) Charles
Peirce's Pragmatic Pluralism, p. 21-25
21
C.Eisele, (1985) Op. cit. p. 845. Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: "The mathematician does not rely
upon anything. He simply states what is evident, and notes the circunstances which make it evident."
23
A Matemática não é uma ciência positiva pois “constrói no seu interior as hipóteses com
as quais opera, independente do universo dos fatos”. As teorias matemáticas são meras
possibilidades. (CP 1.248) O falso e verdadeiro na Matemática tem a ver somente com suas
próprias regras e não com o mundo. “As hipóteses da matemática pura são puramente ideais
na intenção, e seu interesse é puramente intelectual” (PEIRCE, CP 5.126).
A Matemática não necessita suporte experimental para suas conclusões, que são
baseadas em coisas hipotéticas. A Matemática parte “de uma hipótese, cuja verdade ou
falsidade nada tem a ver com o raciocínio; e naturalmente, suas conclusões são igualmente
ideais” (CP 2.145). Isto não significa, entretanto, que não dependa da observação (CP 3.427).
Em outra passagem do texto "Reason's Conscience", Peirce observa que o interesse do
matemático se concentra na forma das conclusões necessárias e tudo aquilo que não está
relacionado com as conclusões necessárias, inclusive as relações, é considerado pelo
matemático como estranho à matemática. Somente algumas poucas relações entre os
indivíduos do universo imaginário do matemático são consideradas, somente as que levam à
conclusão necessária, sem o que não terão para ele nenhum interesse.22
A Matemática está engajada em descobertas. A descoberta ocorre através da observação
de um diagrama geométrico ou uma disposição de símbolos algébricos, representando os
elementos formais do universo descrito na medida em que há regularidades. 23
A Tarefa do
matemático é a de moldar uma hipótese arbitrária e a partir dela deduzir as conseqüências
necessárias através do raciocínio diagramático. (CP 1.443) A natureza diagramática do
raciocínio matemático foi descrita por Peirce como a sua primeira descoberta real a respeito
de procedimentos matemáticos24
.(CP 2.778)
A primeira coisa que descobri foi que todo raciocínio matemático é
diagramático e que todo raciocínio necessário é matemático, não importa
quão simples ele possa ser. Por raciocínio diagramático, quero significar
raciocínio que constrói um diagrama de acordo com um preceito expresso em
22
idem p. 849, Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte:: “Now the mathematician's whole interest is in the
forms of necessary conclusions; and whatever does not concern them is regarded by him as foreing to mathematics, it is
the same in regard to relations. Only a few relations between the individuals of his imaginary universe are noticed at all by
the mathematician , and as to those few, what he cares for is the presence (or absence) of an unbroken rule as to the
identity of objects in different sets of objects between which the relation subsists. If there is no such rule, which might serve
as the means of drawing some necessary conclusion, he will regard the relation as having no mathematical interest.”
23
B.Kent (1987) op. cit. p. 147 e Santaella (1992) op. cit. p. 119.
24
NEM 4.49 Ver S. Rosenthal, (1994) op.cit. p. 23/24
24
termos gerais, realiza experimentos sobre esse diagrama, nota seus resultados
e os expressa em termos gerais. Esta foi uma descoberta de importância,
mostrando tal como ela o faz, que todo conhecimento vem da observação.
(NEM 4:47)25
Existe outro elemento importante da Matemática, no seu elemento dedutivo e
necessário, pois é a ciência das conclusões exatas a partir de hipóteses. Suas demonstrações
tem uma infalibilidade teórica, e quando submetidas à crítica matemática adequada, não
podem ser geralmente postas em dúvida.
O procedimento do matemático é primeiro, afirmar sua hipótese em termos
gerais; segundo, construir um diagrama, seja um arranjo de letras e símbolos
com o qual "regras" convencionais ou permissões de transformação estejam
associadas, seja uma figura geométrica, a qual não apenas lhe dá segurança
contra confusões em relação a todo e alguns, mas também coloca um ícone
diante dele de cuja observação será detectadas relações entre as partes do
diagrama diferentes daquelas que foram usadas na sua construção. Esta
observação é o terceiro passo. O quarto passo reside em assegurar a si próprio
que a relação observada seria encontrada em toda representação icônica da
hipótese. O quinto e último passo está na afirmação do assunto em termos
gerais. (PEIRCE, NEM 3:749)
No entanto, como uma ciência heurística, as descobertas da matemática ocorrem através
da observação de diagramas. Para desenvolver e descobrir relações, os matemáticos utilizam
as regras gerais de seus postulados. Sendo puramente hipotética, todo o seu raciocínio é
dedutivo e definitivo, pois cada etapa do raciocínio matemático consiste na aplicação de uma
regra, daí suas conclusões serem uniformemente universais, isto é, quando estabelecidas de
forma abstrata e generalizada, devem ser aplicáveis a quaisquer diagramas construídos de
acordo com os mesmos preceitos. (CP 5.147-148). 26
Dentro do diagrama das ciências de Peirce, a ciência que ocupa o segundo lugar é a
Filosofia.
A segunda classe é a Filosofia, que lida com verdades positivas, pois de fato,
satisfaz-se com observações tais como as que são pertinentes à experiência
normal e diária de todo homem, e nas mais das vezes, em toda hora
consciente de sua vida (PEIRCE, CP 1.241)
A Filosofia tem apenas a Matemática como ciência mais abstrata. Dela retira seus
princípios. Enquanto a Matemática estuda aquilo que é logicamente possível, a Filosofia como
25
L.Santaella (1993 b) op.cit. p. 140.
25
ciência tem como função descobrir “o que é realmente verdadeiro, limitando-se, porém, à
verdade que pode ser inferida da experiência comum que está aberta a todo ser humano a
qualquer tempo e hora” (SANTAELLA, 1994:113).
A Filosofia peirceana é uma filosofia científica, que também deve empregar métodos de
observação, hipótese e experimento como qualquer outra ciência. A Filosofia tem um caráter
observacional porque visa examinar e compreender tudo o que se oferece à nossa
experiência.27
Já expliquei que, por Filosofia, entendo aquele departamento da Ciência
Positiva, ou Ciência do Fato, que não se ocupa em reunir fatos, mas
simplesmente com aprender o que pode ser aprendido com essa experiência
que nos acossa a cada um de nós diariamente e a todo o momento. (PEIRCE,
CP 5.120)
Para Peirce, as questões relativas às leis da natureza ou à classe geral de regularidades
da natureza também são questões filosóficas. Por outro lado, fica difícil trazer nossa atenção
para aqueles elementos continuamente presentes na nossa experiência, podemos apenas
contrastá-las com estados imaginários de coisas, o que torna a observação filosófica bastante
difícil.28
A Filosofia tem três grandes divisões:
1. Fenomenologia
2. Ciências Normativas
3. Metafísica.
A Fenomenologia tem por função fornecer o fundamento observacional para as outras
disciplinas.29
A Fenomenologia trata das Qualidades universais dos Fenômenos em seu
caráter fenomenal imediato, neles mesmos como fenômenos. Destarte trata
dos Fenômenos em sua Primeiridade. (PEIRCE, CP 5.122)
Para melhor entender a idéia peirceana de Fenomenologia, seria necessário esclarecer o
que Peirce entendia por fenômeno (“faneron”). (CP 1.280-7 e CP 1.186) Para Peirce fenômeno é
26
Ver B. Kent (1987) op. cit. p. 142, I. Ibri (1992) op.cit. p.2/3 e L. Santaella (1992) op.cit. p 118.
27
B .Kent (1987) Op.cit. p. 145.
28
C. Eisele (1985) op.cit. p. 885.
26
tudo o que está diante de nossa mente, pode ser um sonho, uma sensação, pode ser uma
presença física ou pensamento, não se restringindo a algo "que se pode sentir, perceber,
inferir, lembrar, ou a algo que podemos localizar na ordem-espaço temporal que o senso
comum nos faz identificar como sendo o „mundo real‟.” (SANTAELLA, 1995:16)
A Fenomenologia não é uma ciência da realidade, nada diz sobre o que é, nem sobre o
que deve ser; apenas constata e classifica os fenômenos, ficando restrita às suas aparências.
Peirce sempre enfatizou que a Fenomenologia necessita utilizar o raciocínio dedutivo da
Matemática, embora ela não faça nenhuma tentativa de determinar se o que está investigando
corresponde a algo real. (CP 1.284).
Para Peirce, a observação fenomenológica não requer habilidades especiais (CP 5.41), ela
requer em primeiro lugar apenas uma “capacidade de ver o que está diante dos olhos, tal como
se apresenta sem qualquer interpretação”, em segundo lugar dar atenção aos aspectos de
incidência notável e, finalmente ter capacidade de generalizar, ou seja, torná-lo geral e
pertinente a todo fenômeno. Resumindo: “ver, atentar para, generalizar”. A simplicidade
destas idéias caracteriza um dos traços mais importantes da filosofia peirceana: “o cotidiano, o
imediatamente experienciável, o senso comum.” (IBRI, 1992: 6)
A Fenomenologia constitui a base fundamental de toda a filosofia peirceana. Para
Peirce, a primeira instância de um trabalho filosófico é a fenomenologia, sendo a criação das
categorias, uma das funções do filósofo.
A Fenomenologia ou doutrina das categorias tem por função desenredar a
emaranhada meada daquilo que, em qualquer sentido, aparece, ou seja, fazer
a análise de todas as experiências é a primeira tarefa a que a filosofia tem de
se submeter. Ela é a mais difícil de suas tarefas, exigindo poderes muito
peculiares de pensamento e habilidade de agarrar nuvens, vastas e intangíveis,
organizá-las em disposição ordenada, recolocá-las em processo. (PEIRCE,
CP 1.288).
Assim, a Fenomenologia, como base fundamental para qualquer ciência, observa os
fenômenos, analisa-os e postula as formas ou propriedades universais desses fenômenos. É
através da Fenomenologia que se chega às categorias peirceanas: a Primeiridade, Segundidade
29
B. Kent (1987) op. cit. p. 146/148 , L. Santaella, (1985) op.cit. p.43, L. Santaella, (1992) op.cit. p. 131.
27
e Terceiridade. (CP 5.43, CP 1.357). Os fenômenos aparecem primeiro como liberdade, em
segundo como alteridade e, em terceiro, como ordem.
Insatisfeito com as categorias aristotélicas e as kantianas, que considerava não formais e
universais, Peirce dedicou grande parte de sua existência à elaboração, aperfeiçoamento e
ampliação das suas categorias universais. Depois de muitos anos de estudo Peirce chegou à
conclusão de que só há três e não mais do que três categorias, que são pontos para os quais
todos os fenômenos tendem a convergir: Primeiridade, Segundidade e Terceiridade ou Acaso,
Existência, Lei.
As categorias correspondem aos três modos de ser e aparecer. A Primeiridade é um
modo de qualidade, que na interioridade corresponde à unidade e na exterioridade à
diversidade. A Segundidade corresponde ao modo de reação, que na interioridade corresponde
aos fatos do passado e na exterioridade ao não-eu. A Terceiridade corresponde ao modo de
ordem, que na interioridade se refere à permanência e na exterioridade à regularidade.30
Algo considerado em si mesmo é uma unidade. Algo considerado como um
correlato ou dependente ou como um efeito, é segundo em relação a alguma
outra coisa. Algo que, de algum modo, traz alguma coisa; para uma relação
com outra é um terceiro ou meio entre as duas. (PEIRCE, MS 1660).31
A Primeiridade (CP 1.300-316) está ligada às idéias de acaso, indeterminação, frescor,
originalidade, espontaneidade, potencialidade, qualidade, presentidade, imediaticidade,
mônada.
A Segundidade (CP 1.317-336) está ligada às idéias de força bruta, dualidade, ação e
reação, conflito, aqui e agora, esforço e resistência, díada.
A Terceiridade (CP 1.337-349) está ligada às idéias de generalidade, continuidade,
crescimento, representação, mediação, tríada. É justamente a terceira categoria que vai
corresponder à definição de signo genuíno como um processo relacional entre três termos
30
I. Ibri, (1996 b) “Introdução à Filosofia Kósmos e Psyché”, curso ministrado no espaço Solaris, anotações em aula.
31
Traduzido por L. Santaella, (1993b) A Percepção - uma teoria semiótica, p. 36. Ver N.Houser (1992) "Trichotomic" in
The Essential Peirce, p. 280.
28
(signo, objeto, interpretante), sendo próprio da ação do signo gerar ou produzir outro signo,
processo este que Peirce definiu como semiose.32
A segunda divisão da Filosofia se refere às Ciências Normativas, que investigam “as leis
universais e necessárias da relação com os Fenômenos com os Fins, ou seja, talvez, com a
Verdade, o Direito e a Beleza” (CP 5.121).
As Ciências Normativas são assim chamadas porque tem como função compreender os
fins, normas e ideais que regem o sentimento, a conduta e o pensamento humanos. As
Ciências Normativas tratam das leis da relação dos fenômenos com os fins, isto é, tratam dos
fenômenos em sua segundidade. (CP 5.123) A tarefa das Ciências Normativas é descobrir
como Sentimento, Conduta e Pensamento devem ser controlados, supondo-se que estejam
sujeitos “numa certa medida”, e apenas em certa medida, ao autocontrole, “exercido por meio
da autocrítica e a formação propositada de hábitos, tal como o senso-comum nos diz que eles,
até certo ponto, são controláveis” (MS 655:24) 33
.
As Ciências Normativas não estudam os fenômenos como aparecem, porque esta é a
função da Fenomenologia, mas sim em que medida eles agem sobre os homens e os homens
sobre eles. “Normativo é, assim, o estudo do que deve ser; o que exclui de seu campo tanto a
compulsão incontrolada, quanto o determinismo rígido.” (SANTAELLA, 1994:120).
As Ciências Normativas são constituídas por proposições provisórias e não por crenças
ou modos de ação. (CP 1.635). É a ciência que estuda o que deveria (CP 1.281) e não o que
precisa ser. (CP 2.156)
Para Peirce, as Ciências Normativas teriam como tarefa o exame de leis de
conformidade das coisas aos fins, estudando o que deve ser, estudam os ideais, sendo,
portanto puramente teóricas e positivas. As Ciências Normativas tratam dos fenômenos em
sua Segundidade. “Uma Ciência Normativa é aquela que estuda o que deve ser.“
(SANTAELLA, 1994:120). A Ciência Normativa não é uma prática, nem uma investigação
conduzida com vistas à produção de uma prática. (PEIRCE, CP 5.125)
32
As idéias peirceanas sobre signo serão retomadas posteriormente no item 4.
33
Apud L.Santaella, (1992) Op.cit. p.126.
29
Segundo Peirce, as Ciências Normativas tem três características (CP 5.126):
1. a primeira se refere a que as hipóteses, das quais procedem as deduções da ciência
normativa, obedecem ao “intuito de conformar-se” à verdade positiva do fato;
2. a segunda é que o raciocínio das Ciências Normativas não é puramente dedutivo como o
das matemáticas. Suas “análises peculiares dos fenômenos”, análises que se deveriam
pautar pelos fatos da fenomenologia de um modo pelo qual a Matemática não se pauta,
separam as Ciências Normativas da Matemática de forma bastante radical; e
3. a terceira é de que existe nas Ciências Normativa um elemento íntimo e essencial que são
suas apreciações peculiares, relacionadas à conformidade dos fenômenos com fins que não
são imanentes nesses fenômenos.
As Ciências Normativas se dividem em:
1. Estética
2. Ética
3. Lógica ou Semiótica. (CP1. 191):
A Estética considera aquelas coisas cujos fins devem incorporar qualidades
do sentir, enquanto que a Ética considera aquelas coisas cujos fins residem na
ação e a Lógica, aquelas coisas cujo fim é o de representar alguma coisa.
(PEIRCE, CP 5.129).
As inter-relações entre a Estética, que é a ciência do que é admirável em si, sem
qualquer razão ulterior, a Ética, que é a ciência da conduta auto-controlada e deliberada e a
Lógica, como a ciência do pensamento auto-controlado deliberado (CP 1.191) serão
aprofundadas no item 3.
Por fim, como última divisão da Filosofia vem a Metafísica, que depende da Semiótica
ou Lógica. A Metafísica é a ciência da realidade. Para Peirce, real34
é aquilo que existe
independentemente do que pensamos a seu respeito (CP 5.405), pois “vivemos num mundo de
forças que atuam sobre nós, sendo essas forças, e não as transformações lógicas do nosso
próprio pensamento, que determinam em que devemos por fim acreditar”. (PEIRCE, apud
30
SANTAELLA, 1985:39) O real é aquilo que não é o que eventualmente dele pensamos, mas
que permanece não afetado pelo que possamos dele pensar (PEIRCE, CP 8.12). Essa definição
deixa clara porque a Metafísica comparece como resultante e não como antecedente de toda a
sua filosofia peirceana.
A Metafísica peirceana se fundamenta na conduta humana diante do mundo, nos “tipos
de fenômenos com os quais a experiência do homem está tão saturada que ele, usualmente,
não lhes dá atenção particular” (CP 6.2)35
.
A Metafísica consiste no resultado da aceitação absoluta dos princípios
lógicos, não meramente como regulativamente válidos, mas como verdades
do ser (PEIRCE, CP 1.487).
A Metafísica relaciona-se com a categoria da Terceiridade pelo seu caráter generalizador
(CP 1.501). Mas ao se afirmar que a Metafísica trata as coisas como elas são, deve-se ter em
mente que tais afirmações tenham passado antes pela Lógica para a constatação de que sejam
verdadeiras (CP 1.550, 2.37, 3.454).
Finalmente, a terceira grande classe das ciências são as ciências especiais.36
Enquanto as
observações da Filosofia se voltam para os fenômenos que são comuns, familiares a todos, as
ciências especiais descobrem novos fenômenos.
Já as ciências especiais, que cobrem todas as ciências específicas existentes e
por existir, através de treinamento especial, instrumentos especiais, ou
circunstâncias especiais, investigam eventos particulares passíveis de
experiência e inferem a verdade que é usualmente apenas plausível, mas não
obstante passível de teste (SANTAELLA, 1992:141).
Para Peirce, nas ciências especiais os fatos são confrontados com as teorias, porque é
objeto destas ciências conectar os fenômenos especiais que elas descobrem com as
experiências gerais derivadas de outras fontes (CP 8.113)37
.
34
Há diversas passagens que tratam da noção de real: CP 1.578, 3,161, 5.405, 5.408, 5.503, 6.495, 7.339, 8.12. A este
respeito ver J. Smith, (1983), "Community and Reality", The Relevance of Charles Peirce, p.39/41 e S.Rosenthal (1994)
op. cit. 2/3.
35
I. Ibri (1992) op.cit. p.24; B. Kent (1985) op.cit. p.181/184.
36
B. Kent (1985) op.cit. p.184/191.
37
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte:"In the special sciences facts are set over against theories,
because it is the business of those sciences to connect the special phenomena which they discover with the general
experience they derive from other sources." (Peirce, CP.8.113)
31
As Ciências Especiais apelam para a Lógica, como também nas questões mais gerais e
abstratas requerem as concepções da Metafísica. Para Peirce, aqueles que negligenciam a
filosofia também fazem uso de teorias metafísicas tanto quanto os outros, só que “rudes, falsas
e mundanas”. Há aqueles que acham que escapam dos erros metafísicos se não derem atenção
à metafísica, mas desde que todas as pessoas devem ter concepções das coisas em geral, é
muito importante que estas sejam cuidadosamente examinadas (CP 7.579).
Também a Matemática é grande fonte de princípios para as Ciências Especiais, mesmo
que não dependam diretamente da Matemática, dela recebem princípios no que se refere a
rigor científico.38
Peirce dividiu as Ciências Especiais em físicas (em cujas bases estão ações dinâmicas) e
psíquicas (em cujas bases estão ações signicas). As ciências físicas se “caracterizam como as
ciências das coisas como tal” incluem a Física, Astronomia, Química, Biologia, Geologia, etc.
As ciências psíquicas são “as ciências das coisas governadas pelo intelecto. O termo psíquico
não deve ser, portanto, tomado num sentido restrito, mas como sinônimo de vida inteligente”
(SANTAELLA, 1992:142). As ciências psíquicas englobam a Psicologia, Psicanálise,
Lingüistica, História, Crítica da Arte, Literatura, etc.
Mas esta divisão das ciências especiais não se baseou somente nas diferenças entre seus
objetos, porque Peirce acreditava que a natureza do objeto está sempre em mutação. Estas
diferenças se baseiam nas orientações básicas que o cientista adota, correspondendo a tipos
intelectuais de cientistas muito distintos: “se a orientação dirige-se primariamente para a
causação eficiente, então a ciência é física, se ela está direcionada para a causação final, então
é psíquica” (SANTAELLA, 1992:145). Isso não impede que conceitos semióticos sejam
usados nas ciências físicas, assim como há conceitos físicos que são usados nas ciências
psíquicas.
As ciências especiais lidam com fenômenos particulares. Enquanto as ciências físicas
estudam o universo material e os fenômenos tal como eles ocorrem, as psíquicas investigam
os processos e produtos de mentes humanas e outras inteligências.
38
idem p.185.
32
Embora sua tarefa seja descobrir fenômenos previamente desconhecidos, as ciências
especiais "lidam com o existente, tanto no seu nível dinâmico (Segundidade), quanto no seu
nível de generalidade ou tendencialidade (Terceiridade” (SANTAELLA, 1992:148).
3. O inter-relacionamento das Ciências Normativas: a Estética, a Ética e a
Lógica ou Semiótica.39
Este item pretende analisar resumidamente os principais pontos que levam ao
entendimento das inter-relações das Ciências Normativas. Como é que se inter-relacionam a
Estética, Ética e a Lógica?40
Como é que a condição do bem ético condiciona por sua vez o
bem lógico e como é que o bem estético condiciona o bem ético?
Nas considerações de Peirce sobre as Ciências Normativas estão inter-relacionados o
seu pragmatismo, as suas categorias e sua teoria da evolução cósmica. Em suma, Peirce
retoma de um lado o tema platônico o Belo, o Bom e o Verdadeiro e de outro, o tema das três
Críticas de Kant.
Para o desenvolvimento deste capítulo podem-se destacar três textos de Peirce: “Os três
Tipos de Bem”(CP 5.120-150), “O que é Pragmatismo?”(CP 5.411-437)41
, e “Ideais da
Conduta”.(CP 1.591-615).
No texto “Os Três Tipos de Bem”, Peirce ao colocar os problemas da Estética, da Ética
e da Lógica, aponta para alguns vetores da interdependência entre Verdade, Virtude e Beleza,
isto é, as razões pelas quais o Belo se torna admirável.
No texto “O que é Pragmatismo?”, Peirce explica como a Lógica depende da Ética, isto
é, como o significado de um conceito tem influência sobre a conduta. A Ética como ciência
geral da conduta está sob a Segundidade na sua dualidade entre conduta e fins da conduta.
Mas é a conduta que revela a conseqüência prática do conceito. Este texto mostra como é que
39
Este capítulo é muito importante dentro do contexto do trabalho. o inter-relacionamento entre a Estética, Ética e Lógica ou
Semiótica vai ser retomado posteriormente nas Conclusões.
40
Ver B. Kent (1985) op.cit. 149/174.
41
Os textos "Os Três Tipos de Bem" e "O que é Pragmatismo" foram publicados em C.S. Peirce, (1990) op.cit. p 197-209 e
283-299 respectivamente. "Ideais da conduta" foi publicado em Trans/Form/Ação, (1985), n.8, 79-95.
33
se dá a ação, que é Segundidade como reflexo do plano de conduta, a relação entre o
autocontrole da lei, o autocontrole lógico e o autocontrole ético ou autocontrole da conduta.
“Ideais da Conduta” mostra como o Belo da Primeiridade pode estar contido no interior
da inteligência, porque o Belo admirável implica juízo e emana de um sistema, envolvendo
uma forma de propósito. Este texto mostra a Ética, como o vínculo entre a Estética e a Lógica.
Inicialmente é necessário entender a verdadeira natureza das Ciências Normativas,
evitando concepções errôneas, como alerta Peirce. Segundo ele, o principal, senão o único
problema da Ciência Normativa é dizer aquilo que é bom e aquilo que é mau, logicamente,
eticamente e esteticamente; ou seja, qual grau de excelência atinge uma dada descrição dos
fenômenos (CP 5.127).
A Estética peirceana é uma ciência, enquanto que o Belo é um traço real do mundo.
Numa visão mais estreita o Belo, ou a Estética seriam concebidos como sendo exclusivamente
relativo ao gosto humano, mas Estética não pode ser confundida com teoria da arte. Peirce faz
uma clara distinção entre sensibilidade artística, apreciação estética e estudo científico do
Belo.
Portanto, faz sentido buscarmos a caracterização do que seja verdade estética como o
limite de uma investigação indefinidamente controlada. Por outro lado, a Ética também não
pode se confundir com a moral, com o certo e errado, como também não se pode dizer que a
Lógica lidaria apenas com o raciocínio humano.
Para Peirce o conceito de “mind” não é predicado exclusivo do ser humano.
Pensamento existe na natureza, pensamento também existe nos processos naturais, que são
processos intencionalizados, que almejam determinados fins. Este conceito de "mind" como
pensamento, como razoabilidade implica sempre em generalização, implica a conduta do
particular em função de um sistema, que contribui para um sistema geral, implica em
crescimento em aperfeiçoamento, adaptabilidade, ou "amorosidade".
Peirce entendia a relação entre as Ciências Normativas num sentido amplo, bastante
diferente do sentido cartesiano. Segundo Peirce, uma "estreiteza sutil" atravessa a concepção
34
de Ciência Normativa em quase toda a filosofia madura, relacionando-a exclusivamente com
o espírito humano (CP 5.128).
Segundo Peirce, a inclusão da Estética entre as Ciências Normativas é um assunto que
alguns lógicos se recusam a reconhecer (CP 5.129), confessando que suas idéias a este
respeito estavam menos amadurecidas do que aquelas referentes à inclusão da Lógica como
uma Ciência Normativa.
O próprio Peirce chegou a dizer em uma passagem que "era um perfeito ignorante em
estética” (CP 5.111), e que não "se sentia autorizado a ter nenhuma opinião segura sobre ela"
(CP5. 129), mas acreditava ter “certa capacidade para o prazer estético"(CP 5.133).
Para Parret42
, muitos estudiosos e comentadores de Peirce concentram o entendimento
da Estética de Peirce em seu status entre as Ciências Normativas, ou na idéia de um
julgamento estético e classificação dos fins. No entanto, Peirce quer que a Estética seja uma
ciência exata ou empírica, guiada por uma motivação arquitetônica tricotômica (PARRET,
1992).
Além disso, as idéias de Peirce sobre Estética nos mostram como podemos e devemos
criticar "o clássico ideal grego do belo, a aproximação cognitivista radical do sentimento
estético e uma concepção puramente representativa do signo estético".
Parret (1992) também critica a visão do belo como kalos; ou seja, o fim último como
harmonia e integração perfeita, o que Peirce enfatiza não é a perfeição harmônica, mas a
ligação do Belo com o admirável, o alvo final do amor criativo, a evolução agaspática.43
Segundo Santaella (1994:13), muitos comentadores alegam que não há uma teoria
estética na obra de Peirce. Isto seria um equívoco pois não apenas há uma teoria estética,
como também essa teoria tem coerência e relevância para a discussão de questões que estão
sendo debatidas contemporaneamente. Segundo a autora, a Estética passou a ocupar um lugar
proeminente na arquitetura filosófica de Peirce, a tal ponto que, sem a compreensão
aprofundada do papel fundamental por ela desempenhado como alicerce da Ética e, por
extensão, da própria Lógica ou Semiótica, não é possível entender o pragmatismo peirceano.
42
H. Parret (1992), “Fragmentos peirceanos sobre a experiência estética”, Face-Revista de Semiótica e Comunicação, vol.3,
n.2.,jul/dez, p.219
35
Calabrese em "Peirce's Aesthetics From a Structuralistist Point of View"44
faz uma
análise das abordagens sobre a Estética peirceana, dividindo-as em duas tradições: a primeira
relacionada com crítica de arte e a segunda com a idéia de experiência de beleza.
Segundo Calabrese, há duas correntes:
na primeira alguns comentadores tais como Smith (1972), Zeman (1974) e Deledalle
(1979) começam suas análises a partir da classificação dos signos, e chegam à idéia do
que é objetivamente admirável, acreditando na existência de um signo estético
específico: o objetivamente admirável dependeria de certa propensão de certo
fenômeno transformado em signo.
outra corrente como Hocutt (1962), considera o belo como kalos, tentando encontrar
um esquema lógico para a experiência estética em Peirce a partir de quatro passos
lógicos: 1) o objeto estético é um ícone, 2) o valor do objeto estético depende da
harmonia de suas qualidades intrínsecas, 3) o intérprete ou leitor do signo responde a
uma emoção ou sentimento e 4) quando a emoção ou sentimento é repetido é chamado
de "sentimento de beleza".
O inter-relacionamento das Ciências Normativas pode ser visto ou, categorialmente ou,
através da sua posição hierárquica na classificação das ciências ou, com referência à questão
pragmática, mas é fundamental que esta análise seja inserida na cosmologia de Peirce.
Do ponto de vista categorial, Estética, Ética e Lógica são governadas pelas três
categorias (CP 5.132). Assim a “Estética considera aquelas coisas cujos fins devem incorporar
qualidades”, portanto está dentro da Primeiridade. A Ética “considera aquelas coisas cujos
fins residem na ação”, portanto está sob a Segundidade e a Lógica considera “aquelas coisas
cujo fim é o de representar alguma coisa”, portanto sob a Terceiridade. As três Ciências
Normativas correspondem às três categorias, que no seu aspecto psicológico aparecem como
Sentimento, Reação e Pensamento (CP 8.256).
43
Ver o texto peirceano "Evolutionary Love" publicado em Houser (1992), op. cit. p.353-371.
44
O. Calabrese (1994) "Peirce's Aesthetics From a Structuralist Point of View" em Peirce and Value Theory, p.143 - 151.
36
Para Peirce, o que é esteticamente bom deve ser definido na categoria da Primeiridade: a
qualidade de sentimento, totalidade, imediatidade, presentidade, ou seja, o bem estético não
depende de nada, ele se justifica por si mesmo, é incondicionado.
Um objeto para ser esteticamente bom deve ter um caráter holístico, deve conter a idéia
de unidade, deve ter “um sem número de partes de tal forma relacionadas umas com as outras
de modo a dar qualidade positiva, simples e imediata, à totalidade dessas partes; e tudo aquilo
que o fizer é, nesta medida, esteticamente bom, não importando qual possa ser a qualidade
particular do total.” (CP 5.132)
Dessa definição decorre que não existe melhor ou pior em estética, mas tudo o que pode
haver são várias qualidades estéticas, isto é, “simples qualidades de totalidade incapazes de
corporificação completa nas partes, qualidades estas que podem ser mais determinadas e
fortes num caso do que no outro.” (CP 5.132).
A afinidade da Estética com a Primeiridade também poderia ser explicada pela idéia de
que pessoas experienciam uma forma estética "simplesmente na sua apresentação" (CP 5.36) e
Primeiridade é aquilo que "está presente para o olhar do artista." (CP 5.44). Em outra
passagem, Peirce define a Estética como a teoria da formação de hábitos de sentimento. (CP
1.574).
Para Parret45
, existe um "paradoxo de Primeiridade" em relação à Estética peirceana,
porque ela é um primeiro quando enfatiza a qualidade, mas também é último enquanto ideal, e
esta incompatibilidade só se resolve na Metafísica que explica que "o belo, ou aquele que é
admirável na sua apresentação é degradado em sua dignidade própria, se não for reconhecido
como sendo um caso especial do idealmente belo (fine) em geral".
Segundo Calabrese46
, a experiência estética peirceana é uma forma de raciocínio, pois o
homem é pessoa e condição, e destes elementos de humanidade surgem três impulsos: o
primeiro cria as leis, o segundo cria os casos, mas eles só podem conviver frente ao terceiro,
45
H.Parret (1992) op. cit, p.218.
46
Idem p. 147.
37
que cria beleza. Assim, fica evidente que Peirce liga a experiência estética ao raciocínio, já
que ela é claramente uma terceira atitude.
Passando agora para a análise categorial da Ética, esta como verdadeira ciência dos fins,
está marcada pela Segundidade. De acordo com Peirce, seria passada para a Ética a tarefa de
testar se o ideal estético pode ser estabelecido como o fim último para o qual toda atividade
humana deveria ser dirigida. (CP 5.136)
Do mesmo modo que a Estética não está preocupada com o que é belo ou não é belo,
mas com o que é admirável por si só, a Ética não se preocupa diretamente com o que é certo
ou errado, mas sim com aquilo que deveria ser alvo do esforço humano. O bem ético, por
estar sob a segunda categoria envolve uma dualidade entre o plano e o fim da conduta.
A Lógica considera “aquelas coisas cujo fim é o de representar alguma coisa” (CP
5.130). A Lógica é a ciência dos signos (CP 1.204)
O âmago da Lógica reside na classificação e na crítica dos argumentos, que são três:
abdução (hipótese), dedução (necessidade), indução (probabilidade). Nenhum argumento pode
existir sem que “se estabeleça uma referência entre ele e alguma classe especial de
argumento”.
O raciocínio é construído para um particular e generalizado para todos. O pensamento
não se fixa na particularidade de um elemento, mas nas propriedades gerais que valem para
todos. Assim, a “Lógica é coeva do raciocínio” e raciocínio, na medida em que depende do
raciocínio necessário, leva à percepção da generalidade e da continuidade e como tal se
encontra sob a Terceiridade (CP 5.128-130).
A lógica e as outras ciências normativas são ciências positivas - ainda que
indaguem não só o que é, mas o que deveria ser - pois afirmando a verdade
positiva e categórica são capazes de mostrar que o que consideram bom,
realmente o é; e a razão certa, o esforço certo com os quais elas lidam
derivam este caráter de fato categórico positivo (PEIRCE, CP 5.39)47
47
R. Bernstein (1990) “A sedução do Ideal”, Face-Revista de Semiótica e Comunicação, vol..3, n.2. jul/dez, p.195-206.
38
Por outro lado, de acordo com o diagrama da classificação das ciências a Estética, a
Ética, e a Lógica mantêm uma relação hierárquica entre si:
1. Estética,
2. Ética e
3. Lógica.
A Lógica é dependente da Ética, que por sua vez é dependente da Estética. Esta
dependência fica clara quando se entende que a Estética na concepção peirceana é aquela
ciência preocupada com o que deveria ser o telos supremo da vida humana: “o estado de
coisas que é admirável por si só, sem relação com qualquer razão ulterior”. (CP 1.611).
A Estética é a ciência geral do admirável. O admirável é uma meta, um ideal que
“descobrimos porque nos sentimos atraídos por ele como tal”, é o “fim último em direção ao
qual o esforço humano deve se dirigir”. Trata-se do ideal supremo para o qual nosso desejo,
vontade e sentimentos devem se dirigir, não importando para onde ele conduz, o summum
bonum, que não necessita justificativa ou explicação. 48
Mas quais são as condições desta meta última? Peirce responde que é a essência da
razão em si, que nunca alcança completude total e deve estar sempre em "um estado de
insipiência, de crescimento (...), a criação do universo que está em processo até hoje e que
nunca terminará é o próprio desenvolvimento da Razão". (CP 1.615)
Este “summum bonum” é absoluto, é aquele que seria perseguido em todas as
circunstâncias possíveis (CP 5.134). O único mal seria não ter um fim último (CP 5.133). Peirce
acrescenta que não pode existir um ideal mais satisfatório do que o desenvolvimento da razão,
a razão sendo compreendida em sua totalidade, e o ideal da conduta seria tornar o mundo mais
razoável.
Segundo Santaella (1994:109), a Estética de Peirce satisfaz as condições sonhadas por
Schiller de amalgamar razão e sentimento, conciliando os rigores do pensamento às liberdades
do espírito, integrando intelecto à ética e à estética.
39
A Ética está submissa à Estética, por isso o bem ético aparece como uma espécie
particular de bem estético, ao mesmo tempo em que o bem lógico é uma espécie de bem ético.
A Ética, como ciência normativa não diz respeito aos princípios de justiça, e
menos ainda, à justiça de qualquer lei específica; nem diz respeito aos valores
de vários tipos de conduta, nem a questões especificamente morais...
(SANTAELLA, 1992:125).
É a Ética que define o fim e, portanto, é impossível ser racionalmente lógico exceto em
bases éticas (CP 2.199). A Ética deve apelar para a Estética para ajudá-la a determinar o
summum bonum (CP 1.191). A Ética é mais do que simplesmente prática, porque ela envolve a
teoria de conformidade da ação com o ideal, o summum bonum. A Ética é uma Ciência
Normativa “par excellence”, porque um fim está ligado a um ato voluntário de uma forma
primária (CP 5.130). A Ética pergunta para que fim todo esforço deve ser dirigido. (CP 2.199).
A Lógica ou Semiótica, que é a terceira divisão das Ciências Normativas, depende da
Estética e da Ética. Segundo a concepção peirceana, a Lógica se ocupa do raciocínio como
uma forma de atividade deliberada ou conduta, e tem com objetivo especificar e discriminar
boas e más formas de raciocínio. “Raciocínio é necessariamente um ato voluntário sobre o
qual podemos exercer controle.” (PEIRCE, CP, 2.144).
A Lógica segundo Peirce, não só estabelece regras que deveriam ser, mas também é a
análise das condições de obtenção de algo que tem propósito como um ingrediente essencial.
A Lógica é “o estudo dos meios de atingir a meta do pensamento e é a ética que define a
meta” (CP 2.198) 49
A Lógica apela para a Ética para seus perceptos (CP 1.191). A conexão vital da Lógica e
da Ética tem sido posta de lado pelos lógicos. Segundo Peirce, a fim de bem raciocinar “é
absolutamente necessário possuir não apenas virtudes como as da honestidade intelectual, da
sinceridade e um real amor pela verdade, o estudo da ética permite uma ajuda do todo
indispensável para a compreensão da lógica” (CP 2.82).
48
CP 1.191, 1.573-575, 2.116, 5.566 e 6.290.
49
Ver R. Bernstein (1990), op.cit. p. 190.
40
Peirce entende o pensamento como uma operação lógica, como uma relação que se
opera por mediação, desenvolvimento ou processo. A dependência da Lógica sobre a Ética
também pode ser expressa da seguinte maneira:
Pensamento é uma forma de ação e raciocínio é um tipo de ação deliberada;
chamar um argumento de ilógico, ou uma proposição de falsa é um tipo
específico de julgamento moral (PEIRCE, CP 5.130)
Por outro lado, a escolha entre duas condutas deve levar ao bem estético. Assim, o fim
último da ação deliberadamente adotada, ou seja, razoavelmente adotada, “deve ser um ideal
admirável”. A admirabilidade, portanto "é um estado de coisas que razoavelmente se
recomenda a si mesmo em si mesmo, a parte de qualquer consideração ulterior” (CP 5.130).
O admirável em si é qualidade que é, ao mesmo tempo componente básico e efeito total.
A apreciação da qualidade estética está acima do entendimento ou “a qualidade estética é a
impressão total e inanalisável de uma razoabilidade que se tornou exposta numa criação. É
puro Sentimento (feeling), mas um sentimento que é a Marca de uma Razoabilidade estética
que é criativa.” (PARRET, 1990:221)50
O próprio Peirce confessa numa passagem que demorou a entender o inter-
relacionamento da Lógica, Ética e Estética:
Não foi senão depois disso que obtive a prova de que a lógica deve estar
fundada na ética, da qual ela é um desenvolvimento mas elevado. Mas mesmo
então, por algum tempo, fui tão imbecil a ponto de não ver que a ética, do
mesmo modo, está fundada sobre a estética, pela qual, desnecessário
mencionar, eu não quero significar leite e água e açúcar (PEIRCE, CP 8.225).
Mas o admirável que é um fim último, que é um fim que se auto-justifica e se
recomenda a si mesmo, não pode estar no interesse do indivíduo, no particular. Ele aponta
para uma transgressão do individualismo. Peirce propõe uma socialização do pensamento
científico, considerando seu objeto um bem a ser compartilhado por toda inteligência em
busca da verdade.51
50
H.Parret, (1992), op.cit., p. 217-228.
51
L. Silveira (1997) "Subsídios para um retrato de Charles Sanders Peirce", em O sujeito entre a Língua e a Linguagem, p.
87-92.
41
O fim último não pode depender dos caminhos particulares que acidentalmente o agente
percorreu. O fim último não depende de contingências. Esse fim último, capaz de ser
perseguido no curso indefinidamente prolongado de uma ação, deve ser imutável, sem o que
não seria um fim último. É necessário que esteja em concordância com o livre
desenvolvimento da qualidade estética do próprio agente, ao mesmo tempo em que não tende
a ser perturbado pelas reações sobre o agente proveniente do mundo exterior pressuposto na
própria idéia de ação (CP 5.135-6).
O homem correto é o homem que controla suas paixões, e as faz conformar-se
com os fins que ele está deliberadamente pré-preparado para adotar como fins
últimos. Se fosse da natureza do homem sentir-se totalmente satisfeito com
fazer de seu conforto pessoal seu objetivo último, não se poderia culpá-lo
mais por isto do que se culpa um porco por comportar-se da maneira como o
faz. (PEIRCE, CP 5.130)
Deste ponto de vista, aquilo que é moralmente bom surge como uma espécie particular
daquilo que é esteticamente bom. Portanto para se conhecer aquilo no que consiste
exatamente o bem lógico é necessário primeiramente analisar a natureza do bem moral e do
bem estético. Daí, se esta linha de raciocínio estiver correta, decorre que:
[...] o bem moral será o bem estético especialmente determinado por um
elemento peculiar que se lhe acrescentou; e o bem lógico será o bem moral
especialmente determinado por um elemento especial que se lhe acrescentou
(PEIRCE, CP 5.131).
Por outro lado, a questão do pragmatismo é fundamental no entendimento de como a
Lógica se relaciona com a Ética. A essência do pragmatismo consiste exclusivamente em sua
concebível influência sobre a conduta (CP 5.412).
É necessário entender, portanto, que todo objetivo que puder ser perseguido de modo
consistente, coloca-se tão logo que seja adotado de uma forma decidida, além de toda crítica
possível, pois “um objetivo que não puder ser perseguido e adotado de forma consistente é um
mau objetivo e não pode ser chamado propriamente, de forma alguma, de fim último.” (CP
2.133).
Pois sendo as Ciências Normativas em geral a ciência das leis de
conformidade das coisas com seus fins [...] é exatamente neste ponto que
começamos a entrar no caminho que nos leva ao segredo do pragmatismo.
(PEIRCE, CP 5.129-130)
42
Dessa forma, o problema da Ética será determinar qual fim é possível, e esta é uma
questão fundamental para o pragmatismo, pois o agir é o modo como a interioridade do
conceito se faz existência concreta.
Pois se o significado de um símbolo consiste em como, poderia levar-nos a
agir, é evidente que este como não pode referir-se à descrição dos
movimentos mecânicos que o símbolo poderia causar, mas deve ser entendido
como referente a uma descrição da ação como tendo este ou aquele objetivo.
A fim de compreender o pragmatismo, portanto, o bastante para submetê-lo a
uma crítica inteligente, cabe-nos indagar o que pode ser um fim último, capaz
de ser perseguido no curso indefinidamente prolongado de uma ação.
(PEIRCE, CP 5.135)
A filosofia pragmática de Peirce desenvolveu-se, em grande parte, em oposição ao
espírito cartesiano.52
Peirce rejeita a idéia cartesiana de que a filosofia deve começar com a
dúvida universal, ou de um ego isolado como fonte principal de significado e verdade, isto é
que, o último teste da certeza deve ser buscado na consciência individual. Peirce também
rejeita a idéia de que a inferência depende sempre de premissas indubitáveis.
Filósofos das mais diversas facções propõem que a filosofia deve ter como
ponto de partida um ou outro estado de espírito em que homem algum, e
menos ainda um principiante em filosofia, realmente se encontra. Um deles
propõe que comecemos por duvidar de tudo, e por dizer que só há uma coisa
de que não podemos duvidar como se duvidar fosse tão fácil como mentir
(PEIRCE, CP 5.416).
Peirce rejeita aquelas dúvidas que não são verdadeiras, “recusem-se os faz-de-conta”
(CP 5.416). Recusar os “faz-de-conta” significa recusar aquilo que contradiz nossas
verdadeiras crenças. A dúvida verdadeira é um estado muito desconfortável, com reflexos
imediatos na conduta, porque as crenças é que determinam o modo como agimos, como nos
conduzimos, e quem faz a análise desta conduta e de seus fins é a Ética
É da Ética que devemos partir, se a ação ou conduta é o fenômeno que
aparece, porque não há como duvidar daquilo que de fato não duvidamos,
porque não conseguimos, não há materialização da dúvida na conduta. (IBRI:
1996 a)
A crença não é um estado momentâneo, ela dura muito tempo e só é abalada pela
experiência, “a crença é um hábito da mente” A crença não é um modo momentâneo da
52
O espírito anti-cartesiano de Peirce vai ser aprofundado no próximo capítulo.
43
consciência (CP 5.417). Daí resulta a noção de verdade, como um estado de crença inatacável
pela dúvida, “a ação do pensamento é excitada pela incitação da dúvida e cessa com o atingir
da crença; e, assim o chegar à crença é a função única do pensamento” (CP 5.394).
Há uma relação entre crença e verdade como um ponto para o qual tende uma crença
indefinidamente. “Este conceito envolve uma idéia metafísica de evolução de crescimento de
signo, de crescimento da Terceiridade, crescimento da Razão” (IBRI: 1996: a). Quando se diz
que alguma coisa é verdadeira, significa que nela acreditamos, significa que nossas crenças
são permanentemente reforçadas através de nossas experiências, isto é, não encontramos
nenhuma experiência que invalide o que consideramos verdadeiro. É a conduta que mostra se
houve mudança de crença ou não. O sentido da crença é o modo como a conduta se mostra.
O agir se faz segundo as crenças, o modo exterior de ser revela a estrutura do
meu modo interior de crer. O sentido da crença é o modo como eu me
manifesto e este modo exibe as conseqüências práticas do conceito. Toda
crença é conceitual. (IBRI: 1996 a)
Para Peirce, as crenças são dotadas de três propriedades: em primeiro lugar, as crenças
são algo de que estamos cientes; em segundo lugar aplacam a irritação da dúvida e, em
terceiro lugar envolvem o surgimento, em nossa natureza, de uma regra de ação, ou digamos
com brevidade, o surgimento de um hábito (CP 5.397).
Já a noção de dúvida real é totalmente contrária a de crença. A dúvida não é um hábito,
mas uma privação de um hábito e tem uma condição errática que precisa ser superada por um
hábito. Dúvida gera angústia, aflição, porque a Terceiridade foi quebrada, daí ser um estado
desconfortável. “A dúvida não é uma questão de vontade, de volição, é uma questão de
conduta” (IBRI, 1996a).
Como, entretanto, a crença é uma regra de ação, cuja aplicação envolve
dúvida posterior e posterior reflexão, constitui-se, ao mesmo tempo, em ponto
de escala e novo ponto de partida para o pensamento (PEIRCE, CP 5.397).
Se o conceito tem significado, estamos preparados para agir segundo ele, para interagir
existencialmente, isto é, o conceito só tem significado se tiver efeito na conduta. Significado
envolve alguma referência a propósito. "O que o hábito seja depende de quando e como ele
nos leva a agir" (CP 5.400). O agir está ligado às conseqüências experienciáveis do conceito,
44
na medida em que sai da interioridade, da mera possibilidade. Assim, a diferença entre os dois
conceitos se refere aos diferentes modos de como eles afetam a nossa conduta. 53
Assim, nosso agir tem referência exclusiva ao que afeta os sentidos, nosso
hábito tem o mesmo alcance de nosso agir, nossa crença o mesmo de nosso
hábito, nossa concepção, o mesmo de nossa crença [...] Meu único desejo é o
acentuar a impossibilidade de abrigarmos uma idéia relacionada com alguma
coisa que não sejam imagináveis efeitos sensíveis das coisas. Nossa idéia a
respeito de algo é nossa idéia a respeito de seus efeitos sensíveis... (PEIRCE,
CP 5.401).
Peirce se angustiava com a interpretação dada ao seu Pragmatismo. Pragmatismo não é
utilitarismo e ação não é a meta da vida, porque dizer que vivemos simplesmente da ação
como ação, não levando em consideração o pensamento que ela carrega, "seria dizer que não
existe algo que se possa chamar de propósito racional" (CP 5.429). O fim último não é ação.
Pragmatismo só é ação na medida em que esta ação vincular outro
pensamento mais aperfeiçoado, na medida em que a idéia leva a outra idéia,
que tenha passado pela existência, envolvendo aprendizagem, veracidade,
plausibilidade e verificação. (IBRI, 1996a)
O pragmatismo peirceano embute três idéias: a relação necessária entre interioridade e
exterioridade, entre o geral e particular e entre o existente e não existente, e "se imaginarmos
ser coisa diversa, estaremos incidindo em engano e tomando erradamente uma sensação que
acompanha o pensamento como parte integrante do próprio pensamento” (CP 5.401). Não se
pode fazer uma cisão entre o mundo teórico e o mundo prático, que é o mundo da conduta, da
ação.54
[...] isto é, o teor racional de uma palavra ou outra expressão reside,
exclusivamente, em sua concebível influência sobre a conduta da vida; de
modo que, como obviamente nada que não pudesse resultar de um
experimento pode exercer influência direta sobre a conduta, se se puder
definir acuradamente todos os fenômenos experimentais concebíveis que a
afirmação ou negação poderia implicar, ter-se-á uma definição completa do
conceito e nele não há absolutamente nada mais. (PEIRCE, CP 5.412)
Esta definição de pragmatismo explica como é que a Lógica depende da Ética, na
medida em que uma teoria só é verdadeira se mostra reflexos na conduta, e o plano da conduta
53
Para Santaella (1993:24), “o Pragmatismo é um teorema semiótico, porque a Semiótica é a ética do intelecto e a ética é a
estética da ação.”
45
é o da existência, da Segundidade, da alteridade. Uma mera possibilidade, um primeiro que
não se existencializa, não se faz segundo não tem significado possível, não tem realidade, não
tem sentido.55
Ora, assim como a conduta controlada pela razão ética tende a fixação de certos
hábitos de conduta, cuja natureza (para ilustrar o significado, hábitos pacatos e não
irrascíveis) não depende de nenhuma circunstância acidental, e nesse sentido pode-se
dizer que ela está destinada; do mesmo modo, o pensamento controlado por uma
lógica experimental racional, tende à fixação de certas opiniões, igualmente
destinadas, cuja natureza será a mesma ao final, por mais que a perversidade de
pensamento de gerações inteiras possa provocar o adiamento da fixação última.
(PEIRCE, CP 5.429)
O pragmatismo peirceano não pode ser entendido sem as três categorias, o fim é algo
que dá sua sanção à ação, pertencendo, portanto à terceira categoria, a do pensamento, mas o
pensamento envolve ação, assim a Terceiridade é um ingrediente fundamental da realidade. O
ser concreto do pensamento (Terceiridade) é dado pela ação (Segundidade), do mesmo modo
que a ação é governada pelo pensamento.
Essas três ciências normativas correspondem às minhas categorias [...] A verdadeira
natureza do pragmatismo não pode ser entendida sem elas; o pragmatismo não toma
a reação como sendo o tudo da coisa; mas considera o fim como ser-tudo e o fim é
algo que dá a sua sanção à ação. É da terceira categoria. (PEIRCE, CP 8.256)
Segundidade é a categoria da efetividade, daquilo que se atualiza. Entre o que é possível
(Primeiridade) e a mediação da Terceiridade, interpõe-se aquilo que é responsável pela
realização concreta. Toda ação supõe fins, mas os fins sendo gerais estão no modo de ser do
pensamento e esse fim, ou aquilo que é o bem supremo, consiste num processo de evolução.
Conseqüentemente, o pragmaticista não faz com que o summum bonum consista na
ação, mas faz com que consista naquele processo de evolução pelo qual o existente
chega cada vez mais a corporificar aqueles gerais a cujo respeito ainda há pouco se
disse que estavam destinados, que é aquilo que tentamos exprimir ao chamá-los de
razoáveis (PEIRCE, CP 5.433).
54
Para alguns comentadores tais como J.Stuhr (1994) "Rendering the World more Reasonable: The Practical Significance of
Peirce's Normative Science", p. 3-16 e Krois, J.M "C.S.Peirce and Philosophical Ethics", p. 27-36, Peirce separa a prática
da teoria.
55
I. Ibri, (1996) “Estética, Ética e Lógica - As relações entre as Ciências Normativas na Filosofia de C.S.Peirce, anotações em
aula.
46
Por outro lado, quando uma pessoa afirma algo e se comporta de acordo com o que
afirma, isto é admirável. É esta a relação do pragmatismo com a Estética.
Uma pessoa que estrutura uma determinada teoria cujas conseqüências práticas ela
realmente vivência, isto é admirável. Quando se fala que uma pessoa é verdadeira
significa que ela tem um modelo de conduta e segue aquele modelo. Na nossa vida, é
difícil admitirmos distanciamento entre teoria e fato (IBRI, 1996 a).
Nós fazemos planos, prevemos nossa conduta, mas depois que ela se realiza fazemos
uma autocrítica para verificar se a conduta está de acordo com nossos fins. Fazemos
permanente esta auto-correção dos nossos projetos e das nossas previsões.
Entre as coisas de que o leitor, como pessoa racional que é não duvida, é que não
apenas tem hábitos como também pode exercer certo autocontrole sobre suas ações
futuras... (PEIRCE, CP 5.418)
O hábito só se constitui quando a pessoa passou por situações semelhantes onde exerceu
o autocontrole, sendo assim essa reflexão subsequente é um preparo para a ação futura. “Ora,
o pensamento é uma espécie de conduta que se acha em larga escala submetido ao
autocontrole” (CP 5.419).
Peirce conclui que o autocontrole lógico é muito semelhante ao autocontrole ético. O
modo como tomamos decisões, o nosso pensamento judicativo é submetido ao autocontrole,
da mesma forma como controlamos nossa conduta. Um experimento pode ser uma operação
do pensamento, com uma intencionalidade e uma racionalidade embutida. Isso remete à idéia
da Terceiridade como um sistema ordenador, o autocontrole da Segundidade real.
O autocontrole consiste em primeiro comparar as ações passadas com padrões: segundo
na deliberação racional que concerne a maneira como a pessoa vai agir, o que é em si mesmo
uma operação complicada, e terceiro na formação de uma resolução, uma forte determinação
ou na modificação de um hábito.
Para a compreensão e resolução de nossos problemas é necessária reflexão e análise,
significa ação judicativa. A conduta é fato. O modo como agimos é uma concreção dos nossos
planos. O que legitima nossas crenças é a conduta. Toda crença influi na nossa maneira de nos
47
comportarmos. Portanto, a Ética como ciência da conduta legitima a Lógica. Também do
ponto de vista categorial não há "lógica possível sem fato e não há lógica do fato sem o fato".
No entanto, a única conduta que está sujeita ao autocontrole é a conduta futura, e os
resultados experimentais são os únicos resultados capazes de afetar a conduta humana, pois
"um fenômeno experimental é o fato afirmado pela proposição de que a ação de certa
descrição terá certa espécie de resultado experimental" (CP 5.427).
Só o fato muda a conduta, só a experiência pauta a conduta. Esta é a relação entre
Segundidade e Terceiridade, entre pensamento e ação. Os propósitos aparecem no nosso modo
de agir, isto é, nós agimos segundo determinados planos, segundo determinados propósitos.
Não há Terceiridade sem Segundidade, não há idéia de lei sem efeito de continuidade.
[...] a posição de que a terceira categoria - a categoria do pensamento, representação,
relação triádica, mediação, Terceiridade genuína, Terceiridade enquanto tal, é um
ingrediente essencial da realidade, e, todavia por si mesma não constitui a realidade,
uma vez que esta categoria (que naquela cosmologia surge como e elemento do
hábito) não pode ter um ser concreto sem a ação, como um objeto separado sobre o
qual operar seu controle, assim como a ação não pode existir sem o ser imediato do
sentimento sobre o qual operar. (PEIRCE, CP 5.436)
Em "Ideais da Conduta", Peirce argumenta que todo homem tem certos ideais de
conduta. Em primeiro lugar, certos tipos de conduta, quando o homem as contempla têm certa
qualidade estética. Em segundo lugar, o homem se esforça por moldar seus ideais,
consistentemente com cada outro, pois inconstância é odiosa para ele. Em terceiro lugar, ele
imagina quais conseqüências acarretariam seus ideais, e se pergunta que qualidades estéticas
estas conseqüências teriam (CP 1.591).
Segundo estes ideais, as pessoas são levadas a pretender que sua conduta se conforme,
pelo menos a uma parte destes ideais, formulando então certas regras de conduta. Estas regras
mobilizarão algumas forças levando a pessoa a considerar como agir. Esta resolução é da
natureza de um plano. Um plano é um diagrama, é um esquema geral de ação, não para uma
ocasião específica, mas para aquelas ocasiões em que aparecer um estado de coisas
semelhante, embora toda pessoa que vive em contato com a realidade sabe que o futuro
contém erraticidade.
48
Em contato com o real, a pessoa obtém o significado dos fatos e de suas próprias ações
para corrigir sua conduta a cada instante face à alteridade, face ao erro. O futuro contém certa
acidentalidade com a qual terá que programar sua conduta futura, já que não existe saber
absoluto, e as previsões devem ser feitas por meio de alguma coisa verdadeira e real.
Há um elo entre elaborar um plano e efetivamente cumpri-lo, este elo se chama vontade,
volição. Nem sempre fazer um plano significa que este plano será materializado na ação. A
única forma de saber a eficácia do plano é através da ação, porque a ação é uma passagem
necessária para correção, para o aperfeiçoamento. O mundo da existência virá fatalmente
denunciar o erro. A ação é o modo particular do geral, é a Segundidade embutida na
Terceiridade. Assim, o agir se transforma na concretude do pensamento, envolvendo volição.
Uma ação gera conseqüências diante das quais, as pessoas estão sempre se perguntando se a
conduta foi conforme a resolução, se a conduta concordou com as intenções gerais. A pessoa
pode ir mais longe ainda indagando se a conduta concordou com os ideais, o que será seguido
por um novo juízo acompanhado por sentimento, seguido por um reconhecimento do caráter
aprazível ou doloroso deste sentimento. (CP 1.597)
Por outro lado, o homem vai periodicamente rever seus ideais, pois a “experiência de
vida está contribuindo com exemplos mais ou menos elucidativos, que são sumarizados
primeiro, não na consciência do homem, mas nas profundezas de seu ser razoável. Os
resultados vêm à consciência mais tarde”. (CP 1.599).
A idéia de autocontrole do plano para ação futura só é possível diante da continuidade.
O homem está a todos os momentos operando racionalmente os fatos da experiência,
procurando a partir deles uma projeção para o futuro. Um plano de conduta significa balizar a
ação futura com base na experiência passada.
Para Peirce os principais elementos da conduta moral são: 1) o padrão geral
mentalmente concebido antecipadamente; 2) o agente eficiente na natureza interna, o ato, e 3)
a comparação subsequente do ato com o padrão. (CP 1.607)
49
Mas todos estes elementos estão representados no raciocínio e, portanto, há um
paralelismo perfeito entre conduta e raciocínio. Desde que a descrição dos fenômenos da
conduta controlada seja verdadeira, então o “raciocínio é apenas um tipo especial de conduta
auto-controlada” (CP 1.610).
Mas ao desenvolver sua cosmologia é que Peirce consolida as inter-relações das
Ciências Normativas. Sua cosmologia é uma doutrina de como deve ser a estrutura do
universo, explica que relações têm esta estrutura com nosso mundo interior, com nossa lógica,
com nosso pensamento e com nosso sentimento.
Peirce percebeu que não era possível construir um amálgama entre a Estética, Ética e
Lógica sem resolver alguns problemas tais como, em primeiro lugar, situar o homem no
universo, ou seja, desenvolvendo uma teoria de mundo. 56
A condição inicial, antes da existência do universo, não foi um estado de um ser puro
abstrato, ao contrário foi um estado de simplesmente absolutamente nada, nem
mesmo um estado de vazio, pois mesmo o vazio é alguma coisa. Se vamos proceder
de modo lógico e científico, devemos, a fim de considerar todo o universo, supor
uma condição inicial na qual o universo completo foi não existente, e, assim um
estado de absoluto nada. (PEIRCE, CP 6.217)
O evolucionismo peirceano pode ser visto como uma teoria de um mundo cuja direção
indica a passagem da desordem para a ordem, onde coexistem ordem e desordem Lei e Acaso.
A ordem surge da liberdade como uma tendência à aquisição de hábitos. E a tendência à
aquisição de hábitos é uma tendência da mente. 57
A tendência para generalização consiste na
primeira e fundamental lei da ação mental. Idéias tendem a se reproduzir. Há várias
formulações de Peirce para a lei do crescimento da mente (CP 6.21).
O caminho da Lógica vai do vago ao definido. A ordem aparece como uma tendência do
universo a adquirir hábitos. O que é uma lei da natureza? É um hábito adquirido. Se o
universo adquire hábito ele deve ter um substrato mental. Aquisição de hábito é a
característica mais fundamental da mente.
56
I. Ibri (1992) op.cit. p. 73.
57
I. Ibri (1994) Kosmos Poietikos - Criação e Descoberta na Filosofia de Charles S. Peirce, p. 3.
50
Peirce entende os sistemas lógicos naturais como sistemas de mesma natureza que o
nosso pensamento. Pode-se pensar o mundo, ou certa ordem geral da natureza ou certos
sistemas de ordenação como tendo estruturação lógica similar à lógica de nosso pensamento, o
que permite representar com verossimilhança sistemas da natureza, pois nós temos uma
estrutura racional que é assim porque foi adestrada pela natureza, a forma racional do homem
é hereditária da forma racional da natureza.
A primeira coisa que demanda nossa investigação é que a conduzamos para uma
idéia clara e distinta do que são hábito e aquisição de hábito. Podemos unicamente
aprender isto estudando estas coisas onde as vemos em formação na mente humana.
Ao fazê-lo, não estou receoso de especializar demais e de assumir que o universo
tem caracteres que pertencem apenas ao protoplasma nervoso em um complicado
organismo. Pois devemos lembrar que o organismo não fez a mente, mas apenas a
ela se adaptou. Adaptou-se por um processo evolucionário tal, que não está longe de
ser correto considerar que a mente humana constitui o organismo (PEIRCE, NEM
141)58
.
Representar com verossimilhança não significa verdades finais ou teorias finalistas,
porque para Peirce nenhuma teoria, nenhum conceito, nenhum sistema de idéias é final ou
traduz verdades finais. O mundo contém acidentalidade, contém acaso. Mas pode-se dizer que
há um movimento que se dirige para o crescimento e aprendizagem.
Para Ibri (1996a), a filosofia peirciana é um grande convite ao abandono do
antropocentrismo e do logocentrismo da palavra. É um convite a olhar a natureza e nela
descobrir outras formas de diálogo, que não a mera palavra.
Portanto, é através do raciocínio correto que se chegará ao objetivo último, que é o ideal
da conduta. Para um autor como Peirce este objetivo último não pode estar na ação, como
também não pode ser qualidade de sentimento finita. Peirce se opõe à idéia de o homem só
possa agir pelo prazer, porque a ação que ser refere ao prazer não deixa espaço para a
distinção entre o certo e errado. Este objetivo último é o admirável.
O objeto admirável que é admirável per si deve, sem dúvida, ser geral. Todo ideal é
mais ou menos geral; ele deve ter unidade, porque é uma idéia, e unidade é essencial
a toda idéia e todo ideal. (PEIRCE, CP 1.613)
58
Apud I. Ibri (1992) op. cit. p. 87.
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  • 1. 1 MARIA DE LOURDES BACHA A Teoria da Investigação de C.S.Peirce Mestrado Semiótica PUC-SP 1997
  • 2. 2 MARIA DE LOURDES BACHA A Teoria da Investigação de C.S.Peirce Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre junto ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Breno Serson. PUC - SP 1997
  • 3. 3 Banca examinadora Orientador Prof. Dr. Breno Serson Prof. Dr. Ivo Assad Ibri Profa. Dra. Soraya Maria Ferreira Vieira
  • 4. 4
  • 5. 5 RESUMO Esta dissertação tem como objetivo estudar a Teoria da Investigação (inquiry) de C.S.Peirce. Para Peirce, a investigação começa a partir de um estado de dúvida incomodo paralisante, no qual não se consegue escolher entre dois cursos de ação. A dúvida, da qual a investigação parte é uma dúvida real, genuína, e não simplesmente uma dúvida metodológica, um "faz-de-conta". A investigação científica constitui um esforço para colocar fim à dúvida e voltar a um estado de crença. A verdade seria, então, um estado de crença inatacável pela dúvida. A investigação tem por objetivo único o acordo de opiniões. A Teoria da Investigação também pode ser chamada de Teoria do Método Científico. Para Peirce, somente o método científico pode nos levar à verdade, em longo prazo, num longo percurso, que constitui o processo dinâmico da investigação. Este processo está sujeito ao erro, ao acaso, mas também é passível de auto-correção. A Teoria da Investigação se baseia em alguns pontos da teoria peirceana que são: a teoria da verdade (que depende de um critério de convergência e no acordo de opiniões de uma comunidade); a concepção de realidade (que tem suas bases na teoria da cognição e que por sua vez tem suas bases na teoria das categorias); a teoria pensamento-signo (que implica na continuidade, na semiose, na terceiridade); a doutrina do falibilismo; do senso comum, e a teoria dúvida - crença.
  • 7. 7 AGRADECIMENTOS AO MEU ORIENTADOR PROF. DR. BRENO SERSON, AO PROF. DR.IVO ASSAD IBRI, A PROFª. DRª. CECÍLIA ALMEIDA SALLES, AOS MEUS FILHOS ANA E JÚLIO, ÀS COLEGAS SUSANA E JORGINA. ESTE TRABALHO CONTOU COM A COLABORAÇÃO DA CAPES.
  • 8. 8 ÍNDICE INTRODUÇÃO.......................................................................................................................008 Capítulo I. FUNDAMENTOS DA SEMIÓTICA PEIRCEANA ...................................................015 1. Introdução.................................................................................................015 2. O lugar da Semiótica na filosofia peirceana ..........................................018 3. O inter-relacionamento das Ciências Normativas: A Estética, a Ética e a Lógica.....................................................................................032 4. O escopo da Semiótica peirceana............................................................053 5. As divisões da Semiótica. .........................................................................063 Capítulo II. A TEORIA DA INVESTIGAÇÃO .......................................................................072 1. Introdução ...................................................................................................072 2. A questão do método em Peirce.................................................................078 2.1. O anti-cartesianismo peirceano .........................................................083 2.2. O método científico .............................................................................099 2.3. Evolução dos conceitos peirceanos a partir das inferências para tipos de raciocínio e finalmente para estágios da investigação. ...................................................................................116 2.3.1. Abdução.....................................................................................122 2.3.2. Dedução......................................................................................137 2.3.3. Indução ......................................................................................144 2.3.4. Relação entre abdução, dedução e indução e as categorias ..152 3. A lógica da Investigação.............................................................................160 CONCLUSÕES.......................................................................................................................168 BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................................187
  • 9. 9 INTRODUÇÃO De acordo com Murphey1 , a Teoria da Investigação foi desenvolvida por Peirce, entre 1870 e 1872. Um dos pontos mais importantes da Teoria da Investigação está na concepção peirceana de ciência, ligada a um “processo socio-histórico de investigação”. 2 Para Peirce há duas concepções tradicionais de ciência. A primeira, caracterizada como um corpo sistemático e organizado de conhecimento, seria “um corte superficial capturando principalmente os remanescentes fossilizados da ciência”. A segunda seria “um corte mais profundo”, caracterizada como um método do saber. A segunda visão seria a mais certa, podendo, no entanto, ser comprometida por uma concepção metodológica individualista e por vezes não suficientemente dinâmica.3 A Teoria da Investigação parte de um dos pontos-chaves da teoria peirceana, que é a rejeição aos "apriorismos" ou a rejeição à tradição fundacionalista. Segundo Peirce, é muito 1 M Muphey, (1993) The Development of Peirce's Philosophy. p. 159. 2 (MS 614.7 e CP.7.49,7.60, 7.61, 7.87) C. Delaney, (1993), Science, Knowledge and Mind- A study in the philosophy of C.S.Peirce ,p.13 e C. Stewart, (1986) "Social and Economic Aspects" Transactions of the C.S.Peirce Society, vol.XXII p. 501.
  • 10. 10 diferente partir daquelas coisas das quais nós não duvidamos, o que não quer dizer que existam verdades ou certezas absolutas. Todo conhecimento tem início nas percepções recebidas pelos sentidos, mas estas percepções em si mesmas não constituem conhecimento nem podem ser premissas para o conhecimento. A rejeição peirceana aos “apriorismos” pode ser expressa na frase: "Não bloqueie o caminho da investigação". O que Peirce quer evitar é dogmatismo e ceticismo. Peirce acreditava, por um lado na inexorável marcha da ciência para a verdade, e o método científico seria aquele método que inevitavelmente levaria à verdade em longo prazo, por outro lado nenhuma teoria, nenhum conceito, nenhum sistema de idéias traduz verdades finais. A filosofia evolucionista de Peirce embute a idéia de aprendizagem e ciência pressupõe evolução. Aquilo que é verdade hoje, pode se mostra falso no futuro e, se o campo observacional aumentar, algumas teorias podem se mostrar incompletas ou falsas. Entretanto, guiados por nossas crenças e empregando métodos de investigação que não sejam apropriados, poderemos chegar a uma opinião errada, já que todas as teorias científicas são falíveis e seus resultados devem ser submetidos à crítica Para Skagestad, a Teoria da Investigação de Peirce reconcilia alguns conflitos ou discrepâncias entre religião, darwinismo e ciência. Ela é vista como um "socialismo lógico", por Murphey, para quem o pesquisador peirceano é um membro de uma comunidade que devota sua vida à busca desinteressada da verdade. A descoberta da verdadeira estrutura da realidade, por intermédio da ciência, seria "um dever religioso". Todas as investigações levadas a cabo, em longo prazo, com a adoção do método correto devem levar às mesmas conclusões, "a conclusão em qualquer departamento da ciência é essencialmente a mesma." A Teoria da Investigação aponta quais deveriam ser os princípios guia para aquele investigador que acredita existirem coisas reais e, cujo objetivo é a descoberta das propriedades daquilo que é real. Adotar o método da ciência é simplesmente 3 C.Delaney (1993), op.cit. p.14.
  • 11. 11 adotar a hipótese da realidade e sua adoção pode ser justificada pelo fato de que leva ao conhecimento da realidade. A hipótese realista é fundamental para o método da ciência. Se nós adotamos a hipótese da realidade - e, realidade, para Peirce, é algo externo e estável, e tudo aquilo que está fora do alcance da investigação não é real, - estamos nos compromentendo com uma busca única e desinteressada da verdade, estamos aptos a sacrificar opiniões em curto prazo pelo consenso estável e duradouro, o que pressupõe uma visão realista contra a visão nominalista da realidade. A realidade é a causa final da investigação porque reflete a fixação das crenças sobre as quais a investigação se apoia. De acordo com Peirce, os três estágios da investigação são: abdução, dedução e indução. Esta distinção é que fundamenta a Teoria da Investigação, formalizando um ciclo; abdução, dedução, indução, nova abdução... A Teoria da Investigação está inserida na terceira divisão da semiótica, a metodêutica, na qual está concentrado o objeto deste estudo. A Semiótica Peirceana se divide em: 1. Gramática Especulativa ou Gramática Pura, 2. Lógica Crítica ou Lógica propriamente dita, 3. Retórica Especulativa ou Metodêutica. A Gramática Especulativa constitui a teoria geral da natureza e significado dos signos sejam eles ícones, índices ou símbolos; a Lógica Crítica classifica os argumentos e determina a validade e o grau de força de cada um, e a Metodêutica, que estuda os métodos que deveriam ser perseguidos na investigação, exposição e aplicação da verdade. Cada divisão depende da precedente. (CP 1.191) Segundo Serson (1996: b), a Metodêutica pode ser vista por dois ângulos: 1. O primeiro, ligado à teoria geral da investigação e aos métodos científicos e, 2. O segundo, o retórico, que é a arte de conduzir um raciocínio, um convencimento que permite explicar como é que se dá a construção do convencimento quando dois
  • 12. 12 interlocutores ideais ou duas inteligências científicas ao conversar possam provar alguma coisa uma para a outra. Por outro lado, sendo a investigação uma atividade voltada a um fim, este fim não pode se resumir à ação, mas este fim é uma busca do "admirável", o “summum bonum” da investigação. Esta dissertação foi dividida em três capítulos. O Capítulo I tem como título “Fundamentos da Semiótica Peirceana”. O principal objetivo deste capítulo consiste na apresentação de algumas idéias sobre a Semiótica peirceana e suas divisões que são a Gramática Pura, a Lógica Crítica e a Metodêutica. Este capítulo foi dividido em cinco itens. O primeiro item do Capítulo I procura mostrar resumidamente a importância da Lógica ou Semiótica na obra de Peirce. A concepção peirceana de Semiótica é de uma Lógica que leva em consideração todos os possíveis tipos de signos e seus específicos modos de ação. No segundo item do Capítulo I, a Semiótica será contextualizada no corpo da arquitetura filosófica de Peirce, utilizando-se o diagrama da classificação das ciências, no qual os princípios da interdependência de cada ciência são exibidos. No item 3 do Capítulo I, procura-se mostrar o inter-relacionamento das Ciências Normativas, isto é, como se relacionam a Estética, a Ética e a Lógica ou Semiótica. A Lógica ou Semiótica, como a ciência do raciocínio e do pensamento deliberado, extrai seus princípios da Estética e da Ética. A Lógica estabelece as regras que deveriam ser seguidas para o raciocínio, mas precisa recorrer ao propósito ou meta que justifique estas regras. 4 Este tópico será retomado posteriormente no contexto da Teoria da Investigação. No quarto item do Capítulo I são apresentadas algumas idéias sobre o escopo da Semiótica peirceana.5 A Semiótica estuda todas as espécies de signo e, além disso, é a ciência normativa dos métodos de investigação inteligente e do raciocínio em geral. 4 Idem, op.cit. p.121. 5 N .Houser (1990) "O escopo da semiótica peirceana", p.207-214.
  • 13. 13 Para Peirce, todo pensamento ou representação cognitiva é um signo, sendo o signo peirceano uma relação triádica complexa envolvendo o signo, objeto e o interpretante. Em função desta relação triádica os signos podem ser classificados de várias maneiras, três das quais são resumidamente apresentadas neste capítulo. No quinto item do Capítulo I são apresentadas as três divisões da Semiótica. A Gramática Pura, que estuda o que deve ter o signo para incorporar qualquer significado, a Lógica Crítica ou Lógica propriamente dita que estuda as condições de verdade das representações e a Metodêutica que é a ciência que estuda as condições pelas quais um signo gera outro, e especialmente um pensamento dá origem a outro. (CP 1.444) O Capítulo II tem como título "A Teoria da Investigação" e foi dividido em cinco itens. O primeiro item do Capítulo II explica em linhas gerais a concepção peirceana de ciência como um processo sócio-histórico de investigação, subentendendo uma comunidade de pesquisadores que, num determinado tempo, com unidade de propósito, torna o resultado da investigação mais do uma simples somatória de resultados individuais. O segundo item do Capítulo II, se refere à questão do método, discutindo a visão anti- cartesiana de Peirce, sua rejeição à tradição fundacionalista e oposição às idéias de certeza e verdade absolutas. A análise destes pontos é feita a partir dos textos conhecidos como a "série da cognição": 1. “Questões Referentes a Certas Faculdades Reivindicadas pelo Homem” (CP 5.213-63), 2. “Algumas Conseqüências das Quatro Incapacidades” (CP 5.264-317) 6 e 3. “Fundamentos para a Validade das Leis da Lógica: Outras Conseqüências das Quatro Incapacidades”. (CP 5.318-57). A análise das idéias peirceanas sobre o método científico, sobre a concepção de investigação e sobre a teoria dúvida-crença, é feita a partir de uma série de seis artigos denominada "Lógica da Ciência", que são os seguintes: 6 Os textos 1 e 2 foram publicados em C.S.Peirce,(1990), Semiótica, São Paulo: Perspectiva. p 242-282.
  • 14. 14 1. “Fixação das Crenças” -1877 (CP 5.358-87), 2. “Como Tornar Nossas Idéias Claras” -1878 (CP 5.388-410), 3. “A Doutrina dos Acasos” - 1878 (CP 2.645-60), 4. “A Probabilidade da Indução” -1878 (CP 2.669-93), 5. “A Ordem da Natureza” -1878 (CP 6.395-427) e, 6. “Dedução, Indução e Hipótese” -1878 (CP 2.619-44).7 Estes artigos têm como principal característica a insistência de Peirce quanto à concepção de realidade independente do que pensamos, a apresentação de uma nova abordagem para a justificativa dos métodos de investigação e regras de inferência, e a distinção entre observação e raciocínio como ênfase para o teste das hipóteses. A evolução dos conceitos peirceanos a partir das inferências para tipos de raciocínio e finalmente para estágios da investigação também é discutida neste capítulo. Sua análise se baseia principalmente no texto "Tempo de Colheita", do livro A Assinatura das coisas de M. Lúcia Santaella. Resumidamente, se pode dizer que no início de seus trabalhos, Peirce considerava que todas as formas de inferência poderiam ser reduzidas ao silogismo Bárbara (CP 2.620), mas a noção peirceana de inferência evoluiu, e as inferências passaram a ser três tipos distintos e irredutíveis dos argumentos ou raciocínio.8 Inicialmente, Peirce incluía a analogia como o quarto tipo de raciocínio, mas posteriormente acabou reconhecendo que a analogia combina as características da indução e da retrodução. (CP 1.65) Ainda dentro do Capítulo II, são apresentadas as principais idéias peirceanas que caracterizam cada um dos três estágios da investigação. A abdução, a primeira etapa, é o processo de geração de hipóteses. A dedução, que é a segunda etapa, consiste em traçar imaginariamente todas as conseqüências necessárias que se seguem à adoção da hipótese. A terceira etapa, que é a indução, consiste em testar a hipótese e suas predições dedutivas, comparando-se os resultados experimentais obtidos com as predições originais. 7 Os textos 1, 2 e 6 estão traduzidos em C.S.Peirce, (1972), Semiótica e Filosofia, São Paulo: Cultrix. 8 B. Serson, (1992), La théorie sémiotique de la cognition chez C.S.Peirce, tese de doutoramento, p.64-91.
  • 15. 15 O item 5 do Capítulo II discute a lógica da investigação, vista como um ciclo abdução/ dedução/indução. Quando fatos surpreendentes que são observados, ou diferenças entre as previsões e os resultados obrigam a reformulação da hipótese original ou ao seu abandono ou a conseqüente formulação de hipóteses inteiramente novas, então se reinicia o ciclo como nova abdução/dedução/indução/nova abdução...Toda a idéia da investigação, no contexto da metodêutica, é mostrar como se encadeia este ciclo de abdução/dedução/indução/nova abdução... O capítulo Conclusões faz uma junção de todos os pontos discutidos anteriormente, procurando mostrar como questões fundamentais da teoria peirceana (a concepção de ciência, de verdade, evolucionismo, teoria da realidade, idealismo objetivo, as categorias, o inter- relacionamento das ciências normativas) estão implicadas na Teoria da Investigação. A partir desta análise procura-se mostrar qual seria o “summum bonum” da investigação. A investigação, mesmo sendo lógica, ainda assim ela implica numa escolha ética, e numa busca do fim último admirável. *** As obras de Peirce são citadas obedecendo às abreviações comumente aceitas entre os estudiosos. CP Collected Papers HP Historical Perspectives on Peirce’s Logic of Science. MS Manuscritos da Houghton Library Harvard University N Charles Sanders Peirce: Contributions to The Nation. NEM The New Elements of Mathematics PW The Correspondence between Charles S.Peirce and Victoria Lady Welby. W Writings of Charles S.Peirce. SL Studies in Logic by Members of John Hopkins University R Reasonings and The logic of Things - The Cambridge Conferences.
  • 16. 16 Capítulo I - FUNDAMENTOS DA SEMIÓTICA PEIRCEANA 1. Introdução: "Dada a pergunta: Em que medida é admissível existir aparência no mundo moral?, a resposta deve ser sumária: na medida em que a aparência for estética, isto é, uma aparência que não quer passar por realidade e tampouco quer que esta a substitua.” (SCHILLER, 1991:140) Os primeiros contatos de Peirce com a filosofia deram-se na adolescência com a Lógica de Whateley, e mais tarde através das cartas de Schiller e das obras de Kant, de quem ele saberia de cor a Crítica da Razão Pura. (CP 1.44) Mas, diferentemente de Kant, Peirce concebeu a Lógica como uma lógica da ciência, como a arte de entender os métodos de investigação utilizados pelas mais diversas ciências. Segundo Santaella (1994:105), a Semiótica ou doutrina dos signos, da qual Peirce foi o moderno fundador, aconteceu, na sua vida, como uma conseqüência de sua investigação dos mecanismos de pensamento e raciocínio que dão suporte aos métodos através dos quais as ciências conduzem suas investigações.
  • 17. 17 Peirce é um filósofo sistêmico e sua filosofia busca respostas harmônicas para uma série de questões entre as quais o estatuto do cosmos, a questão da temporalidade, a questão do conhecimento, a questão da crença e da dúvida, a questão da interioridade e exterioridade, a dicotomia sujeito-objeto, as condições de possibilidade do pensamento, do real, do imaginário. Peirce levou para a Filosofia o espírito da investigação científica, assumindo que as disciplinas filosóficas são ou podem se tornar também ciências. Para tal, propôs aplicar na Filosofia, com as devidas modificações os métodos de observação, hipótese e experimentos que são praticados nas ciências. Para Peirce, o caminho para a Filosofia deveria ser feito através da Lógica, isto é, através da Lógica da ciência. “Peirce era uma espécie de filósofo que era, em primeiro lugar um cientista e uma espécie de cientista que era em primeiro lugar, um lógico da ciência.” (FISCH, apud SANTAELLA, 1985:26) 9 . Portanto, sendo antes de tudo um cientista, seu interesse em Lógica era primeiramente um interesse na Lógica das ciências e, entender a Lógica das ciências era, em primeiro lugar, entender seus métodos de raciocínio. Durante 60 anos de sua vida Peirce lutou pelo reconhecimento da Lógica como ciência. Segundo Santaella, tudo o que Peirce fez, todas as atividades científicas que praticou tinham a Lógica como mira, e, ao se aprofundar no estudo da Lógica, acabou se deparando com sua insuficiência ou incompletude. “Esta incompletude está no cerne de sua concepção de signo. Todo signo, por fatalidade congênita, está destinado a ser incompleto” (SANTAELLA, 1994:155). Mas à medida que constatava a incompletude da Lógica, Peirce trouxe a Estética e a Ética para ajudá-lo naquelas tarefas teóricas que a Semiótica não podia realizar por si mesma. Primeiramente Peirce concebeu a Lógica propriamente dita como sendo um ramo da Semiótica. Mais tarde concebeu uma concepção mais ampla da Lógica. Mas do fato de que todo raciocínio e todo pensamento se dá em signos, não havendo pensamento ou raciocínio 9 L. Santaella, (1985) O que é Semiótica, p. 26.
  • 18. 18 possível sem signos, a Semiótica, como estudo de todos os tipos possíveis de signos, nasceu como uma conseqüência natural das descobertas peirceanas em Lógica. Fazendo uma divisão cronológica na obra de Peirce, podemos distinguir segundo Murphey10 , quatro fases : 1. a primeira, englobando os primeiros escritos e tendo sofrido grande influência da lógica kantiana, iria de 1857 até 1865-66. 2. a segunda, que começaria com a descoberta da irredutibilidade das três figuras silogísticas, pode ser estendida até 1869-70. 3. a terceira, que inaugura a descoberta da lógica dos relativos, continuaria até 1889. 4. a quarta, que começa com a descoberta da quantificação e a teoria dos conjuntos continuaria até a morte de Peirce. Estas fases não devem ser tomadas como sistemas distintos e sim como diferentes revisões dentro de um único sistema arquitetônico. A partir de 1900, Lógica e Semiótica se tornaram sinônimos para Peirce11 : A Lógica não é senão outro nome para a Semiótica (PEIRCE, CP 2.227). A Lógica será definida aqui como Semiótica formal. Uma definição de signo será dada que não tem nenhuma referência ao pensamento humano, não mais do que teria a definição de uma linha como o lugar que uma partícula ocupa, parte por parte, durante um lapso de tempo (PEIRCE, NEM 4:20). A Lógica, em sentido geral, é, como entendo haver demonstrado, apenas outra denominação da Semiótica, a quase necessária ou formal doutrina dos signos (PEIRCE, CP 2.227). Segundo Santaella, a Semiótica está colocada bem no coração do conjunto da obra de Peirce. A Semiótica peirceana não é uma ciência teórica nem uma ciência aplicada, é uma ciência formal e abstrata, num nível de generalidade ímpar.12 À medida que harmonizava as Ciências Normativas, a concepção de Lógica de Peirce foi adquirindo contornos mais amplos, podendo-se distinguir para ela dois sentidos: 10 M Muphey, (1993) The Development of Peirce's Philosophy. p. 3. Por outro lado Houser, na Introdução de The Essential Peirce, aponta outras divisões cronológicas da obra de Peirce, tais como a de Max Fisch e Deledalle, p.xxiii 11 C.S Peirce,(1972) Semiótica e Filosofia, p. 93, L. Santaella, (1992) op. cit. p.49 e B. Serson (1996) Introdução à Semiótica de C. S. Peirce, p. 17-18. 12 L. Santaella (1992) "Signos de Todas as Coisas", op. cit. p.43-57.
  • 19. 19 No sentido mais estreito, é a ciência das condições necessárias para se atingir a verdade. No sentido mais amplo, é a ciência das leis necessárias do pensamento, ou melhor (o pensamento sempre ocorrendo por meio de signos), é Semiótica geral que trata não apenas da verdade, mas também das condições gerais dos signos... também das leis de evolução do pensamento, que coincide com o estudo das condições necessárias para a transmissão de significado de uma mente a outra, e de um estado mental a outro (PEIRCE, CP 1.444). Na última década de sua vida, Peirce estava trabalhando num livro que se chamaria “Um sistema de Lógica, considerada como Semiótica”.13 2. O lugar da Semiótica na filosofia peirceana. Embora Peirce considerasse toda e qualquer produção, realização e expressão humana como sendo uma questão semiótica, a Semiótica é apenas uma parte do seu conjunto filosófico, que, por sua vez, é também parte de um sistema ainda maior, “um gigantesco corpo teórico”, o que pode ser percebido através da análise de seu diagrama de classificação das ciências. Antes de iniciar a análise do diagrama das ciências, é interessante ressaltar que a concepção de ciência de Peirce é bastante diferente dos seus contemporâneos. A concepção de ciência de Peirce tem grande abertura, permitindo as liberdades de criação e descoberta, e “não há nada mais deliberada e naturalmente liberal do que a concepção peirceana das ciências” (SANTAELLA, 1992:29). “Distender o arco na direção da verdade, com atenção no olhar, com energia no braço” (PEIRCE. CP 1.235) Para Peirce, a finalidade da ciência seria aprender a lição que o universo tem a ensinar. Ciência, portanto, não se confunde com conhecimento acumulado. Cientista, para Peirce, será aquele movido pela sede da verdade. (CP 7.609) A ciência é “um modo de vida”, a vida dedicada à busca do conhecimento e devoção à verdade, não a 13 L .Santaella (1985) op. cit. p.26
  • 20. 20 verdade como cada um a vê, mas a devoção à verdade que não se é ainda capaz de ver, mas se está lutando para obter. 14 Não é o conhecimento, mas o amor ao conhecimento que caracteriza o cientista. (CP 1.44) Espírito científico é aquele que aprende com a experiência. Os “genuínos homens da ciência“ são aqueles movidos pelo desejo efetivo e sincero de aprender. A vida da ciência consiste no desejo de aprender. Se este desejo não é puro, mas está misturado com o desejo de provar a verdade de uma opinião definitiva ou de um modo geral de conceber as coisas, ele vai inevitavelmente levar à adoção de um método errôneo (...) (PEIRCE, CP 1.235).15 Peirce desenvolveu um diagrama das ciências, no qual divide as ciências em ciências da descoberta, ciências da digestão e ciências aplicadas (CP 1.180 e CP 1.203-83). As ciências da descoberta, das quais a Semiótica faz parte, serão privilegiadas neste trabalho. Elas se dividem em três grandes classes: 1. Matemática, 2. Filosofia e, 3. Ciências Especiais. Segundo este diagrama, quanto mais abstrata for a ciência, mais ela será capaz de fornecer princípios para as menos abstratas. “É por isso que o diagrama da classificação é um esquema similar a uma escada de degraus, onde cada degrau é, ele mesmo uma escada de degraus” (SANTAELLA, 1992: 120). A classificação das ciências de Peirce não é um esquema linear, mas uma série de escadas relacionadas numa forma tri-dimensional, de forma a exibir as relações de dependência entre as ciências. É baseada na lógica dos relativos e na forma diagramática de pensamento, mostrando os efeitos concebíveis de uma ciência, ou em outras palavras. seu 14 C. Eisele (1987) Historical Perspectives on Peirce's Logic of Science p. 804 e L.Santaella, (1992) op.cit. p.108. 15 Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: “The life of science is in the desire to learn. If this desire is not pure, but is mingled with a desire to prove the truth of a definite opinion, or of a general mode of conceiving of things, it will almost inevitably lead to the adoption of a faulty method (...)” (CP 1.235)
  • 21. 21 significado pragmático, que segundo Peirce seria uma das formas mais completas de se entender uma ciência. 16 Sendo as ciências interdependentes, este diagrama mostra os princípios de sua interdependência. A classificação das ciências de Peirce, segundo Santaella (1992:28), explicita as relações de interdependência de uma ciência para com as outras, indicando os escalonamentos em níveis de abstração através dos quais as ciências mais abstratas funcionam como fundamentação para as menos abstratas, na medida em que é das mais abstratas que as mais concretas tomam emprestados seus princípios, ao mesmo tempo em que é com dados fornecidos pelas ciências menos abstratas que as ciências mais gerais se abastecem. A classificação das Ciências não é um sistema fixo e rígido porque está sempre em evolução. Sua imagem é de um continuum tridimensional, onde pontos poderiam ser acrescentados ou tirados em qualquer localização.17 Peirce reconhecia que as ciências não podiam ser rigidamente definidas; suas linhas de demarcação não tinham grande importância, de forma que novas ciências pudessem emergir, ou aquelas que se tornassem obsoletas poderiam ser retiradas do diagrama. O importante é que a classificação deveria ser capaz de incorporar estas mudanças. Fundamental para Peirce era a ordenação das ciências com relação às categorias. Existe dentro de sua classificação uma lógica ternária e os números 1,2,3 indicam não somente a ordem, mas são indicadores de um conteúdo lógico-relacional, de tal forma que, onde o número 1 estiver, há relação com a primeira categoria, a Primeiridade, que é a categoria da qualidade, sentimento, acaso, indeterminação. O número 2 indica relação com a segunda categoria, a Segundidade, que é a categoria do existente, da ação, do aqui e agora, da dualidade. O número 3 está relacionado com a terceira categoria, a Terceiridade, que é a categoria da continuidade, da lei, da generalidade, do crescimento e da evolução. Para Peirce, todas as ciências são observacionais, a diferença entre elas reside no modo de observação empregado em cada uma delas. 18 16 B. Kent (1987) op. cit. p. 47,139, 141-139 17 Ver B.Kent, (1987) op.cit. p.145 e L. Santaella, (1992) op.cit.p.118-121.
  • 22. 22 No diagrama peirceano, a Matemática é a ciência mais genérica e abstrata e não depende de nenhuma outra ciência (CP 1.53). No entanto todas as outras ciências dependem da Matemática, seja implícita ou explicitamente, já que os problemas matemáticos aparecem em todas as ciências e na vida quotidiana, pois sempre temos que estabelecer conseqüências de estados gerais de coisas. Conseqüentemente, todas as ciências têm um conteúdo matemático, ou algum ramo para o qual a Matemática é chamada.19 A Matemática é a grande ciência do geral, da generalidade. A Matemática constrói relações possíveis dentro de uma sintaxe, com a qual é coerente sem se preocupar com a realidade. As estruturas matemáticas não necessitam ter aplicação. Para Peirce, as verdades matemáticas são verdades necessárias, isto é, a Matemática chega a conclusões derivadas necessariamente de suas premissas. (CP 1.633) A Matemática é uma ciência que constrói seus objetos na forma de hipóteses, e delas extrai conseqüências necessárias, sem lidar, contudo, com questões de fato. (CP 4.232)20 Embora a necessidade teórica esteja relacionada às conclusões matemáticas, isto não significa infalibilidade. Certamente, acredito que a certeza da Matemática pura e de todo raciocínio necessário se deve à circunstância de que ela se relaciona com objetos que são as criações de nossos próprios espíritos... (PEIRCE, CP 5.166). Ao mesmo tempo a Matemática requer “certo vigor do pensamento, o poder de concentração da atenção de forma a manter na mente uma imagem altamente complexa.” (CP 2.81) No texto "Reason's Conscience"21 , Peirce explica que o matemático não se fia em nada, ele simplesmente estabelece o que é evidente e mostra as circunstâncias que tornam isto evidente. 18 C.Eisele (1985) "Laws of Nature" op.cit. p.851. 19 idem p.881. 20 ver I. Ibri (1992).Kosmos Noetós: Arquitetura Metafísica de Charles S. Peirce. p 3 e S. Rosenthal, (1994) Charles Peirce's Pragmatic Pluralism, p. 21-25 21 C.Eisele, (1985) Op. cit. p. 845. Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: "The mathematician does not rely upon anything. He simply states what is evident, and notes the circunstances which make it evident."
  • 23. 23 A Matemática não é uma ciência positiva pois “constrói no seu interior as hipóteses com as quais opera, independente do universo dos fatos”. As teorias matemáticas são meras possibilidades. (CP 1.248) O falso e verdadeiro na Matemática tem a ver somente com suas próprias regras e não com o mundo. “As hipóteses da matemática pura são puramente ideais na intenção, e seu interesse é puramente intelectual” (PEIRCE, CP 5.126). A Matemática não necessita suporte experimental para suas conclusões, que são baseadas em coisas hipotéticas. A Matemática parte “de uma hipótese, cuja verdade ou falsidade nada tem a ver com o raciocínio; e naturalmente, suas conclusões são igualmente ideais” (CP 2.145). Isto não significa, entretanto, que não dependa da observação (CP 3.427). Em outra passagem do texto "Reason's Conscience", Peirce observa que o interesse do matemático se concentra na forma das conclusões necessárias e tudo aquilo que não está relacionado com as conclusões necessárias, inclusive as relações, é considerado pelo matemático como estranho à matemática. Somente algumas poucas relações entre os indivíduos do universo imaginário do matemático são consideradas, somente as que levam à conclusão necessária, sem o que não terão para ele nenhum interesse.22 A Matemática está engajada em descobertas. A descoberta ocorre através da observação de um diagrama geométrico ou uma disposição de símbolos algébricos, representando os elementos formais do universo descrito na medida em que há regularidades. 23 A Tarefa do matemático é a de moldar uma hipótese arbitrária e a partir dela deduzir as conseqüências necessárias através do raciocínio diagramático. (CP 1.443) A natureza diagramática do raciocínio matemático foi descrita por Peirce como a sua primeira descoberta real a respeito de procedimentos matemáticos24 .(CP 2.778) A primeira coisa que descobri foi que todo raciocínio matemático é diagramático e que todo raciocínio necessário é matemático, não importa quão simples ele possa ser. Por raciocínio diagramático, quero significar raciocínio que constrói um diagrama de acordo com um preceito expresso em 22 idem p. 849, Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte:: “Now the mathematician's whole interest is in the forms of necessary conclusions; and whatever does not concern them is regarded by him as foreing to mathematics, it is the same in regard to relations. Only a few relations between the individuals of his imaginary universe are noticed at all by the mathematician , and as to those few, what he cares for is the presence (or absence) of an unbroken rule as to the identity of objects in different sets of objects between which the relation subsists. If there is no such rule, which might serve as the means of drawing some necessary conclusion, he will regard the relation as having no mathematical interest.” 23 B.Kent (1987) op. cit. p. 147 e Santaella (1992) op. cit. p. 119. 24 NEM 4.49 Ver S. Rosenthal, (1994) op.cit. p. 23/24
  • 24. 24 termos gerais, realiza experimentos sobre esse diagrama, nota seus resultados e os expressa em termos gerais. Esta foi uma descoberta de importância, mostrando tal como ela o faz, que todo conhecimento vem da observação. (NEM 4:47)25 Existe outro elemento importante da Matemática, no seu elemento dedutivo e necessário, pois é a ciência das conclusões exatas a partir de hipóteses. Suas demonstrações tem uma infalibilidade teórica, e quando submetidas à crítica matemática adequada, não podem ser geralmente postas em dúvida. O procedimento do matemático é primeiro, afirmar sua hipótese em termos gerais; segundo, construir um diagrama, seja um arranjo de letras e símbolos com o qual "regras" convencionais ou permissões de transformação estejam associadas, seja uma figura geométrica, a qual não apenas lhe dá segurança contra confusões em relação a todo e alguns, mas também coloca um ícone diante dele de cuja observação será detectadas relações entre as partes do diagrama diferentes daquelas que foram usadas na sua construção. Esta observação é o terceiro passo. O quarto passo reside em assegurar a si próprio que a relação observada seria encontrada em toda representação icônica da hipótese. O quinto e último passo está na afirmação do assunto em termos gerais. (PEIRCE, NEM 3:749) No entanto, como uma ciência heurística, as descobertas da matemática ocorrem através da observação de diagramas. Para desenvolver e descobrir relações, os matemáticos utilizam as regras gerais de seus postulados. Sendo puramente hipotética, todo o seu raciocínio é dedutivo e definitivo, pois cada etapa do raciocínio matemático consiste na aplicação de uma regra, daí suas conclusões serem uniformemente universais, isto é, quando estabelecidas de forma abstrata e generalizada, devem ser aplicáveis a quaisquer diagramas construídos de acordo com os mesmos preceitos. (CP 5.147-148). 26 Dentro do diagrama das ciências de Peirce, a ciência que ocupa o segundo lugar é a Filosofia. A segunda classe é a Filosofia, que lida com verdades positivas, pois de fato, satisfaz-se com observações tais como as que são pertinentes à experiência normal e diária de todo homem, e nas mais das vezes, em toda hora consciente de sua vida (PEIRCE, CP 1.241) A Filosofia tem apenas a Matemática como ciência mais abstrata. Dela retira seus princípios. Enquanto a Matemática estuda aquilo que é logicamente possível, a Filosofia como 25 L.Santaella (1993 b) op.cit. p. 140.
  • 25. 25 ciência tem como função descobrir “o que é realmente verdadeiro, limitando-se, porém, à verdade que pode ser inferida da experiência comum que está aberta a todo ser humano a qualquer tempo e hora” (SANTAELLA, 1994:113). A Filosofia peirceana é uma filosofia científica, que também deve empregar métodos de observação, hipótese e experimento como qualquer outra ciência. A Filosofia tem um caráter observacional porque visa examinar e compreender tudo o que se oferece à nossa experiência.27 Já expliquei que, por Filosofia, entendo aquele departamento da Ciência Positiva, ou Ciência do Fato, que não se ocupa em reunir fatos, mas simplesmente com aprender o que pode ser aprendido com essa experiência que nos acossa a cada um de nós diariamente e a todo o momento. (PEIRCE, CP 5.120) Para Peirce, as questões relativas às leis da natureza ou à classe geral de regularidades da natureza também são questões filosóficas. Por outro lado, fica difícil trazer nossa atenção para aqueles elementos continuamente presentes na nossa experiência, podemos apenas contrastá-las com estados imaginários de coisas, o que torna a observação filosófica bastante difícil.28 A Filosofia tem três grandes divisões: 1. Fenomenologia 2. Ciências Normativas 3. Metafísica. A Fenomenologia tem por função fornecer o fundamento observacional para as outras disciplinas.29 A Fenomenologia trata das Qualidades universais dos Fenômenos em seu caráter fenomenal imediato, neles mesmos como fenômenos. Destarte trata dos Fenômenos em sua Primeiridade. (PEIRCE, CP 5.122) Para melhor entender a idéia peirceana de Fenomenologia, seria necessário esclarecer o que Peirce entendia por fenômeno (“faneron”). (CP 1.280-7 e CP 1.186) Para Peirce fenômeno é 26 Ver B. Kent (1987) op. cit. p. 142, I. Ibri (1992) op.cit. p.2/3 e L. Santaella (1992) op.cit. p 118. 27 B .Kent (1987) Op.cit. p. 145. 28 C. Eisele (1985) op.cit. p. 885.
  • 26. 26 tudo o que está diante de nossa mente, pode ser um sonho, uma sensação, pode ser uma presença física ou pensamento, não se restringindo a algo "que se pode sentir, perceber, inferir, lembrar, ou a algo que podemos localizar na ordem-espaço temporal que o senso comum nos faz identificar como sendo o „mundo real‟.” (SANTAELLA, 1995:16) A Fenomenologia não é uma ciência da realidade, nada diz sobre o que é, nem sobre o que deve ser; apenas constata e classifica os fenômenos, ficando restrita às suas aparências. Peirce sempre enfatizou que a Fenomenologia necessita utilizar o raciocínio dedutivo da Matemática, embora ela não faça nenhuma tentativa de determinar se o que está investigando corresponde a algo real. (CP 1.284). Para Peirce, a observação fenomenológica não requer habilidades especiais (CP 5.41), ela requer em primeiro lugar apenas uma “capacidade de ver o que está diante dos olhos, tal como se apresenta sem qualquer interpretação”, em segundo lugar dar atenção aos aspectos de incidência notável e, finalmente ter capacidade de generalizar, ou seja, torná-lo geral e pertinente a todo fenômeno. Resumindo: “ver, atentar para, generalizar”. A simplicidade destas idéias caracteriza um dos traços mais importantes da filosofia peirceana: “o cotidiano, o imediatamente experienciável, o senso comum.” (IBRI, 1992: 6) A Fenomenologia constitui a base fundamental de toda a filosofia peirceana. Para Peirce, a primeira instância de um trabalho filosófico é a fenomenologia, sendo a criação das categorias, uma das funções do filósofo. A Fenomenologia ou doutrina das categorias tem por função desenredar a emaranhada meada daquilo que, em qualquer sentido, aparece, ou seja, fazer a análise de todas as experiências é a primeira tarefa a que a filosofia tem de se submeter. Ela é a mais difícil de suas tarefas, exigindo poderes muito peculiares de pensamento e habilidade de agarrar nuvens, vastas e intangíveis, organizá-las em disposição ordenada, recolocá-las em processo. (PEIRCE, CP 1.288). Assim, a Fenomenologia, como base fundamental para qualquer ciência, observa os fenômenos, analisa-os e postula as formas ou propriedades universais desses fenômenos. É através da Fenomenologia que se chega às categorias peirceanas: a Primeiridade, Segundidade 29 B. Kent (1987) op. cit. p. 146/148 , L. Santaella, (1985) op.cit. p.43, L. Santaella, (1992) op.cit. p. 131.
  • 27. 27 e Terceiridade. (CP 5.43, CP 1.357). Os fenômenos aparecem primeiro como liberdade, em segundo como alteridade e, em terceiro, como ordem. Insatisfeito com as categorias aristotélicas e as kantianas, que considerava não formais e universais, Peirce dedicou grande parte de sua existência à elaboração, aperfeiçoamento e ampliação das suas categorias universais. Depois de muitos anos de estudo Peirce chegou à conclusão de que só há três e não mais do que três categorias, que são pontos para os quais todos os fenômenos tendem a convergir: Primeiridade, Segundidade e Terceiridade ou Acaso, Existência, Lei. As categorias correspondem aos três modos de ser e aparecer. A Primeiridade é um modo de qualidade, que na interioridade corresponde à unidade e na exterioridade à diversidade. A Segundidade corresponde ao modo de reação, que na interioridade corresponde aos fatos do passado e na exterioridade ao não-eu. A Terceiridade corresponde ao modo de ordem, que na interioridade se refere à permanência e na exterioridade à regularidade.30 Algo considerado em si mesmo é uma unidade. Algo considerado como um correlato ou dependente ou como um efeito, é segundo em relação a alguma outra coisa. Algo que, de algum modo, traz alguma coisa; para uma relação com outra é um terceiro ou meio entre as duas. (PEIRCE, MS 1660).31 A Primeiridade (CP 1.300-316) está ligada às idéias de acaso, indeterminação, frescor, originalidade, espontaneidade, potencialidade, qualidade, presentidade, imediaticidade, mônada. A Segundidade (CP 1.317-336) está ligada às idéias de força bruta, dualidade, ação e reação, conflito, aqui e agora, esforço e resistência, díada. A Terceiridade (CP 1.337-349) está ligada às idéias de generalidade, continuidade, crescimento, representação, mediação, tríada. É justamente a terceira categoria que vai corresponder à definição de signo genuíno como um processo relacional entre três termos 30 I. Ibri, (1996 b) “Introdução à Filosofia Kósmos e Psyché”, curso ministrado no espaço Solaris, anotações em aula. 31 Traduzido por L. Santaella, (1993b) A Percepção - uma teoria semiótica, p. 36. Ver N.Houser (1992) "Trichotomic" in The Essential Peirce, p. 280.
  • 28. 28 (signo, objeto, interpretante), sendo próprio da ação do signo gerar ou produzir outro signo, processo este que Peirce definiu como semiose.32 A segunda divisão da Filosofia se refere às Ciências Normativas, que investigam “as leis universais e necessárias da relação com os Fenômenos com os Fins, ou seja, talvez, com a Verdade, o Direito e a Beleza” (CP 5.121). As Ciências Normativas são assim chamadas porque tem como função compreender os fins, normas e ideais que regem o sentimento, a conduta e o pensamento humanos. As Ciências Normativas tratam das leis da relação dos fenômenos com os fins, isto é, tratam dos fenômenos em sua segundidade. (CP 5.123) A tarefa das Ciências Normativas é descobrir como Sentimento, Conduta e Pensamento devem ser controlados, supondo-se que estejam sujeitos “numa certa medida”, e apenas em certa medida, ao autocontrole, “exercido por meio da autocrítica e a formação propositada de hábitos, tal como o senso-comum nos diz que eles, até certo ponto, são controláveis” (MS 655:24) 33 . As Ciências Normativas não estudam os fenômenos como aparecem, porque esta é a função da Fenomenologia, mas sim em que medida eles agem sobre os homens e os homens sobre eles. “Normativo é, assim, o estudo do que deve ser; o que exclui de seu campo tanto a compulsão incontrolada, quanto o determinismo rígido.” (SANTAELLA, 1994:120). As Ciências Normativas são constituídas por proposições provisórias e não por crenças ou modos de ação. (CP 1.635). É a ciência que estuda o que deveria (CP 1.281) e não o que precisa ser. (CP 2.156) Para Peirce, as Ciências Normativas teriam como tarefa o exame de leis de conformidade das coisas aos fins, estudando o que deve ser, estudam os ideais, sendo, portanto puramente teóricas e positivas. As Ciências Normativas tratam dos fenômenos em sua Segundidade. “Uma Ciência Normativa é aquela que estuda o que deve ser.“ (SANTAELLA, 1994:120). A Ciência Normativa não é uma prática, nem uma investigação conduzida com vistas à produção de uma prática. (PEIRCE, CP 5.125) 32 As idéias peirceanas sobre signo serão retomadas posteriormente no item 4. 33 Apud L.Santaella, (1992) Op.cit. p.126.
  • 29. 29 Segundo Peirce, as Ciências Normativas tem três características (CP 5.126): 1. a primeira se refere a que as hipóteses, das quais procedem as deduções da ciência normativa, obedecem ao “intuito de conformar-se” à verdade positiva do fato; 2. a segunda é que o raciocínio das Ciências Normativas não é puramente dedutivo como o das matemáticas. Suas “análises peculiares dos fenômenos”, análises que se deveriam pautar pelos fatos da fenomenologia de um modo pelo qual a Matemática não se pauta, separam as Ciências Normativas da Matemática de forma bastante radical; e 3. a terceira é de que existe nas Ciências Normativa um elemento íntimo e essencial que são suas apreciações peculiares, relacionadas à conformidade dos fenômenos com fins que não são imanentes nesses fenômenos. As Ciências Normativas se dividem em: 1. Estética 2. Ética 3. Lógica ou Semiótica. (CP1. 191): A Estética considera aquelas coisas cujos fins devem incorporar qualidades do sentir, enquanto que a Ética considera aquelas coisas cujos fins residem na ação e a Lógica, aquelas coisas cujo fim é o de representar alguma coisa. (PEIRCE, CP 5.129). As inter-relações entre a Estética, que é a ciência do que é admirável em si, sem qualquer razão ulterior, a Ética, que é a ciência da conduta auto-controlada e deliberada e a Lógica, como a ciência do pensamento auto-controlado deliberado (CP 1.191) serão aprofundadas no item 3. Por fim, como última divisão da Filosofia vem a Metafísica, que depende da Semiótica ou Lógica. A Metafísica é a ciência da realidade. Para Peirce, real34 é aquilo que existe independentemente do que pensamos a seu respeito (CP 5.405), pois “vivemos num mundo de forças que atuam sobre nós, sendo essas forças, e não as transformações lógicas do nosso próprio pensamento, que determinam em que devemos por fim acreditar”. (PEIRCE, apud
  • 30. 30 SANTAELLA, 1985:39) O real é aquilo que não é o que eventualmente dele pensamos, mas que permanece não afetado pelo que possamos dele pensar (PEIRCE, CP 8.12). Essa definição deixa clara porque a Metafísica comparece como resultante e não como antecedente de toda a sua filosofia peirceana. A Metafísica peirceana se fundamenta na conduta humana diante do mundo, nos “tipos de fenômenos com os quais a experiência do homem está tão saturada que ele, usualmente, não lhes dá atenção particular” (CP 6.2)35 . A Metafísica consiste no resultado da aceitação absoluta dos princípios lógicos, não meramente como regulativamente válidos, mas como verdades do ser (PEIRCE, CP 1.487). A Metafísica relaciona-se com a categoria da Terceiridade pelo seu caráter generalizador (CP 1.501). Mas ao se afirmar que a Metafísica trata as coisas como elas são, deve-se ter em mente que tais afirmações tenham passado antes pela Lógica para a constatação de que sejam verdadeiras (CP 1.550, 2.37, 3.454). Finalmente, a terceira grande classe das ciências são as ciências especiais.36 Enquanto as observações da Filosofia se voltam para os fenômenos que são comuns, familiares a todos, as ciências especiais descobrem novos fenômenos. Já as ciências especiais, que cobrem todas as ciências específicas existentes e por existir, através de treinamento especial, instrumentos especiais, ou circunstâncias especiais, investigam eventos particulares passíveis de experiência e inferem a verdade que é usualmente apenas plausível, mas não obstante passível de teste (SANTAELLA, 1992:141). Para Peirce, nas ciências especiais os fatos são confrontados com as teorias, porque é objeto destas ciências conectar os fenômenos especiais que elas descobrem com as experiências gerais derivadas de outras fontes (CP 8.113)37 . 34 Há diversas passagens que tratam da noção de real: CP 1.578, 3,161, 5.405, 5.408, 5.503, 6.495, 7.339, 8.12. A este respeito ver J. Smith, (1983), "Community and Reality", The Relevance of Charles Peirce, p.39/41 e S.Rosenthal (1994) op. cit. 2/3. 35 I. Ibri (1992) op.cit. p.24; B. Kent (1985) op.cit. p.181/184. 36 B. Kent (1985) op.cit. p.184/191. 37 Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte:"In the special sciences facts are set over against theories, because it is the business of those sciences to connect the special phenomena which they discover with the general experience they derive from other sources." (Peirce, CP.8.113)
  • 31. 31 As Ciências Especiais apelam para a Lógica, como também nas questões mais gerais e abstratas requerem as concepções da Metafísica. Para Peirce, aqueles que negligenciam a filosofia também fazem uso de teorias metafísicas tanto quanto os outros, só que “rudes, falsas e mundanas”. Há aqueles que acham que escapam dos erros metafísicos se não derem atenção à metafísica, mas desde que todas as pessoas devem ter concepções das coisas em geral, é muito importante que estas sejam cuidadosamente examinadas (CP 7.579). Também a Matemática é grande fonte de princípios para as Ciências Especiais, mesmo que não dependam diretamente da Matemática, dela recebem princípios no que se refere a rigor científico.38 Peirce dividiu as Ciências Especiais em físicas (em cujas bases estão ações dinâmicas) e psíquicas (em cujas bases estão ações signicas). As ciências físicas se “caracterizam como as ciências das coisas como tal” incluem a Física, Astronomia, Química, Biologia, Geologia, etc. As ciências psíquicas são “as ciências das coisas governadas pelo intelecto. O termo psíquico não deve ser, portanto, tomado num sentido restrito, mas como sinônimo de vida inteligente” (SANTAELLA, 1992:142). As ciências psíquicas englobam a Psicologia, Psicanálise, Lingüistica, História, Crítica da Arte, Literatura, etc. Mas esta divisão das ciências especiais não se baseou somente nas diferenças entre seus objetos, porque Peirce acreditava que a natureza do objeto está sempre em mutação. Estas diferenças se baseiam nas orientações básicas que o cientista adota, correspondendo a tipos intelectuais de cientistas muito distintos: “se a orientação dirige-se primariamente para a causação eficiente, então a ciência é física, se ela está direcionada para a causação final, então é psíquica” (SANTAELLA, 1992:145). Isso não impede que conceitos semióticos sejam usados nas ciências físicas, assim como há conceitos físicos que são usados nas ciências psíquicas. As ciências especiais lidam com fenômenos particulares. Enquanto as ciências físicas estudam o universo material e os fenômenos tal como eles ocorrem, as psíquicas investigam os processos e produtos de mentes humanas e outras inteligências. 38 idem p.185.
  • 32. 32 Embora sua tarefa seja descobrir fenômenos previamente desconhecidos, as ciências especiais "lidam com o existente, tanto no seu nível dinâmico (Segundidade), quanto no seu nível de generalidade ou tendencialidade (Terceiridade” (SANTAELLA, 1992:148). 3. O inter-relacionamento das Ciências Normativas: a Estética, a Ética e a Lógica ou Semiótica.39 Este item pretende analisar resumidamente os principais pontos que levam ao entendimento das inter-relações das Ciências Normativas. Como é que se inter-relacionam a Estética, Ética e a Lógica?40 Como é que a condição do bem ético condiciona por sua vez o bem lógico e como é que o bem estético condiciona o bem ético? Nas considerações de Peirce sobre as Ciências Normativas estão inter-relacionados o seu pragmatismo, as suas categorias e sua teoria da evolução cósmica. Em suma, Peirce retoma de um lado o tema platônico o Belo, o Bom e o Verdadeiro e de outro, o tema das três Críticas de Kant. Para o desenvolvimento deste capítulo podem-se destacar três textos de Peirce: “Os três Tipos de Bem”(CP 5.120-150), “O que é Pragmatismo?”(CP 5.411-437)41 , e “Ideais da Conduta”.(CP 1.591-615). No texto “Os Três Tipos de Bem”, Peirce ao colocar os problemas da Estética, da Ética e da Lógica, aponta para alguns vetores da interdependência entre Verdade, Virtude e Beleza, isto é, as razões pelas quais o Belo se torna admirável. No texto “O que é Pragmatismo?”, Peirce explica como a Lógica depende da Ética, isto é, como o significado de um conceito tem influência sobre a conduta. A Ética como ciência geral da conduta está sob a Segundidade na sua dualidade entre conduta e fins da conduta. Mas é a conduta que revela a conseqüência prática do conceito. Este texto mostra como é que 39 Este capítulo é muito importante dentro do contexto do trabalho. o inter-relacionamento entre a Estética, Ética e Lógica ou Semiótica vai ser retomado posteriormente nas Conclusões. 40 Ver B. Kent (1985) op.cit. 149/174. 41 Os textos "Os Três Tipos de Bem" e "O que é Pragmatismo" foram publicados em C.S. Peirce, (1990) op.cit. p 197-209 e 283-299 respectivamente. "Ideais da conduta" foi publicado em Trans/Form/Ação, (1985), n.8, 79-95.
  • 33. 33 se dá a ação, que é Segundidade como reflexo do plano de conduta, a relação entre o autocontrole da lei, o autocontrole lógico e o autocontrole ético ou autocontrole da conduta. “Ideais da Conduta” mostra como o Belo da Primeiridade pode estar contido no interior da inteligência, porque o Belo admirável implica juízo e emana de um sistema, envolvendo uma forma de propósito. Este texto mostra a Ética, como o vínculo entre a Estética e a Lógica. Inicialmente é necessário entender a verdadeira natureza das Ciências Normativas, evitando concepções errôneas, como alerta Peirce. Segundo ele, o principal, senão o único problema da Ciência Normativa é dizer aquilo que é bom e aquilo que é mau, logicamente, eticamente e esteticamente; ou seja, qual grau de excelência atinge uma dada descrição dos fenômenos (CP 5.127). A Estética peirceana é uma ciência, enquanto que o Belo é um traço real do mundo. Numa visão mais estreita o Belo, ou a Estética seriam concebidos como sendo exclusivamente relativo ao gosto humano, mas Estética não pode ser confundida com teoria da arte. Peirce faz uma clara distinção entre sensibilidade artística, apreciação estética e estudo científico do Belo. Portanto, faz sentido buscarmos a caracterização do que seja verdade estética como o limite de uma investigação indefinidamente controlada. Por outro lado, a Ética também não pode se confundir com a moral, com o certo e errado, como também não se pode dizer que a Lógica lidaria apenas com o raciocínio humano. Para Peirce o conceito de “mind” não é predicado exclusivo do ser humano. Pensamento existe na natureza, pensamento também existe nos processos naturais, que são processos intencionalizados, que almejam determinados fins. Este conceito de "mind" como pensamento, como razoabilidade implica sempre em generalização, implica a conduta do particular em função de um sistema, que contribui para um sistema geral, implica em crescimento em aperfeiçoamento, adaptabilidade, ou "amorosidade". Peirce entendia a relação entre as Ciências Normativas num sentido amplo, bastante diferente do sentido cartesiano. Segundo Peirce, uma "estreiteza sutil" atravessa a concepção
  • 34. 34 de Ciência Normativa em quase toda a filosofia madura, relacionando-a exclusivamente com o espírito humano (CP 5.128). Segundo Peirce, a inclusão da Estética entre as Ciências Normativas é um assunto que alguns lógicos se recusam a reconhecer (CP 5.129), confessando que suas idéias a este respeito estavam menos amadurecidas do que aquelas referentes à inclusão da Lógica como uma Ciência Normativa. O próprio Peirce chegou a dizer em uma passagem que "era um perfeito ignorante em estética” (CP 5.111), e que não "se sentia autorizado a ter nenhuma opinião segura sobre ela" (CP5. 129), mas acreditava ter “certa capacidade para o prazer estético"(CP 5.133). Para Parret42 , muitos estudiosos e comentadores de Peirce concentram o entendimento da Estética de Peirce em seu status entre as Ciências Normativas, ou na idéia de um julgamento estético e classificação dos fins. No entanto, Peirce quer que a Estética seja uma ciência exata ou empírica, guiada por uma motivação arquitetônica tricotômica (PARRET, 1992). Além disso, as idéias de Peirce sobre Estética nos mostram como podemos e devemos criticar "o clássico ideal grego do belo, a aproximação cognitivista radical do sentimento estético e uma concepção puramente representativa do signo estético". Parret (1992) também critica a visão do belo como kalos; ou seja, o fim último como harmonia e integração perfeita, o que Peirce enfatiza não é a perfeição harmônica, mas a ligação do Belo com o admirável, o alvo final do amor criativo, a evolução agaspática.43 Segundo Santaella (1994:13), muitos comentadores alegam que não há uma teoria estética na obra de Peirce. Isto seria um equívoco pois não apenas há uma teoria estética, como também essa teoria tem coerência e relevância para a discussão de questões que estão sendo debatidas contemporaneamente. Segundo a autora, a Estética passou a ocupar um lugar proeminente na arquitetura filosófica de Peirce, a tal ponto que, sem a compreensão aprofundada do papel fundamental por ela desempenhado como alicerce da Ética e, por extensão, da própria Lógica ou Semiótica, não é possível entender o pragmatismo peirceano. 42 H. Parret (1992), “Fragmentos peirceanos sobre a experiência estética”, Face-Revista de Semiótica e Comunicação, vol.3, n.2.,jul/dez, p.219
  • 35. 35 Calabrese em "Peirce's Aesthetics From a Structuralistist Point of View"44 faz uma análise das abordagens sobre a Estética peirceana, dividindo-as em duas tradições: a primeira relacionada com crítica de arte e a segunda com a idéia de experiência de beleza. Segundo Calabrese, há duas correntes: na primeira alguns comentadores tais como Smith (1972), Zeman (1974) e Deledalle (1979) começam suas análises a partir da classificação dos signos, e chegam à idéia do que é objetivamente admirável, acreditando na existência de um signo estético específico: o objetivamente admirável dependeria de certa propensão de certo fenômeno transformado em signo. outra corrente como Hocutt (1962), considera o belo como kalos, tentando encontrar um esquema lógico para a experiência estética em Peirce a partir de quatro passos lógicos: 1) o objeto estético é um ícone, 2) o valor do objeto estético depende da harmonia de suas qualidades intrínsecas, 3) o intérprete ou leitor do signo responde a uma emoção ou sentimento e 4) quando a emoção ou sentimento é repetido é chamado de "sentimento de beleza". O inter-relacionamento das Ciências Normativas pode ser visto ou, categorialmente ou, através da sua posição hierárquica na classificação das ciências ou, com referência à questão pragmática, mas é fundamental que esta análise seja inserida na cosmologia de Peirce. Do ponto de vista categorial, Estética, Ética e Lógica são governadas pelas três categorias (CP 5.132). Assim a “Estética considera aquelas coisas cujos fins devem incorporar qualidades”, portanto está dentro da Primeiridade. A Ética “considera aquelas coisas cujos fins residem na ação”, portanto está sob a Segundidade e a Lógica considera “aquelas coisas cujo fim é o de representar alguma coisa”, portanto sob a Terceiridade. As três Ciências Normativas correspondem às três categorias, que no seu aspecto psicológico aparecem como Sentimento, Reação e Pensamento (CP 8.256). 43 Ver o texto peirceano "Evolutionary Love" publicado em Houser (1992), op. cit. p.353-371. 44 O. Calabrese (1994) "Peirce's Aesthetics From a Structuralist Point of View" em Peirce and Value Theory, p.143 - 151.
  • 36. 36 Para Peirce, o que é esteticamente bom deve ser definido na categoria da Primeiridade: a qualidade de sentimento, totalidade, imediatidade, presentidade, ou seja, o bem estético não depende de nada, ele se justifica por si mesmo, é incondicionado. Um objeto para ser esteticamente bom deve ter um caráter holístico, deve conter a idéia de unidade, deve ter “um sem número de partes de tal forma relacionadas umas com as outras de modo a dar qualidade positiva, simples e imediata, à totalidade dessas partes; e tudo aquilo que o fizer é, nesta medida, esteticamente bom, não importando qual possa ser a qualidade particular do total.” (CP 5.132) Dessa definição decorre que não existe melhor ou pior em estética, mas tudo o que pode haver são várias qualidades estéticas, isto é, “simples qualidades de totalidade incapazes de corporificação completa nas partes, qualidades estas que podem ser mais determinadas e fortes num caso do que no outro.” (CP 5.132). A afinidade da Estética com a Primeiridade também poderia ser explicada pela idéia de que pessoas experienciam uma forma estética "simplesmente na sua apresentação" (CP 5.36) e Primeiridade é aquilo que "está presente para o olhar do artista." (CP 5.44). Em outra passagem, Peirce define a Estética como a teoria da formação de hábitos de sentimento. (CP 1.574). Para Parret45 , existe um "paradoxo de Primeiridade" em relação à Estética peirceana, porque ela é um primeiro quando enfatiza a qualidade, mas também é último enquanto ideal, e esta incompatibilidade só se resolve na Metafísica que explica que "o belo, ou aquele que é admirável na sua apresentação é degradado em sua dignidade própria, se não for reconhecido como sendo um caso especial do idealmente belo (fine) em geral". Segundo Calabrese46 , a experiência estética peirceana é uma forma de raciocínio, pois o homem é pessoa e condição, e destes elementos de humanidade surgem três impulsos: o primeiro cria as leis, o segundo cria os casos, mas eles só podem conviver frente ao terceiro, 45 H.Parret (1992) op. cit, p.218. 46 Idem p. 147.
  • 37. 37 que cria beleza. Assim, fica evidente que Peirce liga a experiência estética ao raciocínio, já que ela é claramente uma terceira atitude. Passando agora para a análise categorial da Ética, esta como verdadeira ciência dos fins, está marcada pela Segundidade. De acordo com Peirce, seria passada para a Ética a tarefa de testar se o ideal estético pode ser estabelecido como o fim último para o qual toda atividade humana deveria ser dirigida. (CP 5.136) Do mesmo modo que a Estética não está preocupada com o que é belo ou não é belo, mas com o que é admirável por si só, a Ética não se preocupa diretamente com o que é certo ou errado, mas sim com aquilo que deveria ser alvo do esforço humano. O bem ético, por estar sob a segunda categoria envolve uma dualidade entre o plano e o fim da conduta. A Lógica considera “aquelas coisas cujo fim é o de representar alguma coisa” (CP 5.130). A Lógica é a ciência dos signos (CP 1.204) O âmago da Lógica reside na classificação e na crítica dos argumentos, que são três: abdução (hipótese), dedução (necessidade), indução (probabilidade). Nenhum argumento pode existir sem que “se estabeleça uma referência entre ele e alguma classe especial de argumento”. O raciocínio é construído para um particular e generalizado para todos. O pensamento não se fixa na particularidade de um elemento, mas nas propriedades gerais que valem para todos. Assim, a “Lógica é coeva do raciocínio” e raciocínio, na medida em que depende do raciocínio necessário, leva à percepção da generalidade e da continuidade e como tal se encontra sob a Terceiridade (CP 5.128-130). A lógica e as outras ciências normativas são ciências positivas - ainda que indaguem não só o que é, mas o que deveria ser - pois afirmando a verdade positiva e categórica são capazes de mostrar que o que consideram bom, realmente o é; e a razão certa, o esforço certo com os quais elas lidam derivam este caráter de fato categórico positivo (PEIRCE, CP 5.39)47 47 R. Bernstein (1990) “A sedução do Ideal”, Face-Revista de Semiótica e Comunicação, vol..3, n.2. jul/dez, p.195-206.
  • 38. 38 Por outro lado, de acordo com o diagrama da classificação das ciências a Estética, a Ética, e a Lógica mantêm uma relação hierárquica entre si: 1. Estética, 2. Ética e 3. Lógica. A Lógica é dependente da Ética, que por sua vez é dependente da Estética. Esta dependência fica clara quando se entende que a Estética na concepção peirceana é aquela ciência preocupada com o que deveria ser o telos supremo da vida humana: “o estado de coisas que é admirável por si só, sem relação com qualquer razão ulterior”. (CP 1.611). A Estética é a ciência geral do admirável. O admirável é uma meta, um ideal que “descobrimos porque nos sentimos atraídos por ele como tal”, é o “fim último em direção ao qual o esforço humano deve se dirigir”. Trata-se do ideal supremo para o qual nosso desejo, vontade e sentimentos devem se dirigir, não importando para onde ele conduz, o summum bonum, que não necessita justificativa ou explicação. 48 Mas quais são as condições desta meta última? Peirce responde que é a essência da razão em si, que nunca alcança completude total e deve estar sempre em "um estado de insipiência, de crescimento (...), a criação do universo que está em processo até hoje e que nunca terminará é o próprio desenvolvimento da Razão". (CP 1.615) Este “summum bonum” é absoluto, é aquele que seria perseguido em todas as circunstâncias possíveis (CP 5.134). O único mal seria não ter um fim último (CP 5.133). Peirce acrescenta que não pode existir um ideal mais satisfatório do que o desenvolvimento da razão, a razão sendo compreendida em sua totalidade, e o ideal da conduta seria tornar o mundo mais razoável. Segundo Santaella (1994:109), a Estética de Peirce satisfaz as condições sonhadas por Schiller de amalgamar razão e sentimento, conciliando os rigores do pensamento às liberdades do espírito, integrando intelecto à ética e à estética.
  • 39. 39 A Ética está submissa à Estética, por isso o bem ético aparece como uma espécie particular de bem estético, ao mesmo tempo em que o bem lógico é uma espécie de bem ético. A Ética, como ciência normativa não diz respeito aos princípios de justiça, e menos ainda, à justiça de qualquer lei específica; nem diz respeito aos valores de vários tipos de conduta, nem a questões especificamente morais... (SANTAELLA, 1992:125). É a Ética que define o fim e, portanto, é impossível ser racionalmente lógico exceto em bases éticas (CP 2.199). A Ética deve apelar para a Estética para ajudá-la a determinar o summum bonum (CP 1.191). A Ética é mais do que simplesmente prática, porque ela envolve a teoria de conformidade da ação com o ideal, o summum bonum. A Ética é uma Ciência Normativa “par excellence”, porque um fim está ligado a um ato voluntário de uma forma primária (CP 5.130). A Ética pergunta para que fim todo esforço deve ser dirigido. (CP 2.199). A Lógica ou Semiótica, que é a terceira divisão das Ciências Normativas, depende da Estética e da Ética. Segundo a concepção peirceana, a Lógica se ocupa do raciocínio como uma forma de atividade deliberada ou conduta, e tem com objetivo especificar e discriminar boas e más formas de raciocínio. “Raciocínio é necessariamente um ato voluntário sobre o qual podemos exercer controle.” (PEIRCE, CP, 2.144). A Lógica segundo Peirce, não só estabelece regras que deveriam ser, mas também é a análise das condições de obtenção de algo que tem propósito como um ingrediente essencial. A Lógica é “o estudo dos meios de atingir a meta do pensamento e é a ética que define a meta” (CP 2.198) 49 A Lógica apela para a Ética para seus perceptos (CP 1.191). A conexão vital da Lógica e da Ética tem sido posta de lado pelos lógicos. Segundo Peirce, a fim de bem raciocinar “é absolutamente necessário possuir não apenas virtudes como as da honestidade intelectual, da sinceridade e um real amor pela verdade, o estudo da ética permite uma ajuda do todo indispensável para a compreensão da lógica” (CP 2.82). 48 CP 1.191, 1.573-575, 2.116, 5.566 e 6.290. 49 Ver R. Bernstein (1990), op.cit. p. 190.
  • 40. 40 Peirce entende o pensamento como uma operação lógica, como uma relação que se opera por mediação, desenvolvimento ou processo. A dependência da Lógica sobre a Ética também pode ser expressa da seguinte maneira: Pensamento é uma forma de ação e raciocínio é um tipo de ação deliberada; chamar um argumento de ilógico, ou uma proposição de falsa é um tipo específico de julgamento moral (PEIRCE, CP 5.130) Por outro lado, a escolha entre duas condutas deve levar ao bem estético. Assim, o fim último da ação deliberadamente adotada, ou seja, razoavelmente adotada, “deve ser um ideal admirável”. A admirabilidade, portanto "é um estado de coisas que razoavelmente se recomenda a si mesmo em si mesmo, a parte de qualquer consideração ulterior” (CP 5.130). O admirável em si é qualidade que é, ao mesmo tempo componente básico e efeito total. A apreciação da qualidade estética está acima do entendimento ou “a qualidade estética é a impressão total e inanalisável de uma razoabilidade que se tornou exposta numa criação. É puro Sentimento (feeling), mas um sentimento que é a Marca de uma Razoabilidade estética que é criativa.” (PARRET, 1990:221)50 O próprio Peirce confessa numa passagem que demorou a entender o inter- relacionamento da Lógica, Ética e Estética: Não foi senão depois disso que obtive a prova de que a lógica deve estar fundada na ética, da qual ela é um desenvolvimento mas elevado. Mas mesmo então, por algum tempo, fui tão imbecil a ponto de não ver que a ética, do mesmo modo, está fundada sobre a estética, pela qual, desnecessário mencionar, eu não quero significar leite e água e açúcar (PEIRCE, CP 8.225). Mas o admirável que é um fim último, que é um fim que se auto-justifica e se recomenda a si mesmo, não pode estar no interesse do indivíduo, no particular. Ele aponta para uma transgressão do individualismo. Peirce propõe uma socialização do pensamento científico, considerando seu objeto um bem a ser compartilhado por toda inteligência em busca da verdade.51 50 H.Parret, (1992), op.cit., p. 217-228. 51 L. Silveira (1997) "Subsídios para um retrato de Charles Sanders Peirce", em O sujeito entre a Língua e a Linguagem, p. 87-92.
  • 41. 41 O fim último não pode depender dos caminhos particulares que acidentalmente o agente percorreu. O fim último não depende de contingências. Esse fim último, capaz de ser perseguido no curso indefinidamente prolongado de uma ação, deve ser imutável, sem o que não seria um fim último. É necessário que esteja em concordância com o livre desenvolvimento da qualidade estética do próprio agente, ao mesmo tempo em que não tende a ser perturbado pelas reações sobre o agente proveniente do mundo exterior pressuposto na própria idéia de ação (CP 5.135-6). O homem correto é o homem que controla suas paixões, e as faz conformar-se com os fins que ele está deliberadamente pré-preparado para adotar como fins últimos. Se fosse da natureza do homem sentir-se totalmente satisfeito com fazer de seu conforto pessoal seu objetivo último, não se poderia culpá-lo mais por isto do que se culpa um porco por comportar-se da maneira como o faz. (PEIRCE, CP 5.130) Deste ponto de vista, aquilo que é moralmente bom surge como uma espécie particular daquilo que é esteticamente bom. Portanto para se conhecer aquilo no que consiste exatamente o bem lógico é necessário primeiramente analisar a natureza do bem moral e do bem estético. Daí, se esta linha de raciocínio estiver correta, decorre que: [...] o bem moral será o bem estético especialmente determinado por um elemento peculiar que se lhe acrescentou; e o bem lógico será o bem moral especialmente determinado por um elemento especial que se lhe acrescentou (PEIRCE, CP 5.131). Por outro lado, a questão do pragmatismo é fundamental no entendimento de como a Lógica se relaciona com a Ética. A essência do pragmatismo consiste exclusivamente em sua concebível influência sobre a conduta (CP 5.412). É necessário entender, portanto, que todo objetivo que puder ser perseguido de modo consistente, coloca-se tão logo que seja adotado de uma forma decidida, além de toda crítica possível, pois “um objetivo que não puder ser perseguido e adotado de forma consistente é um mau objetivo e não pode ser chamado propriamente, de forma alguma, de fim último.” (CP 2.133). Pois sendo as Ciências Normativas em geral a ciência das leis de conformidade das coisas com seus fins [...] é exatamente neste ponto que começamos a entrar no caminho que nos leva ao segredo do pragmatismo. (PEIRCE, CP 5.129-130)
  • 42. 42 Dessa forma, o problema da Ética será determinar qual fim é possível, e esta é uma questão fundamental para o pragmatismo, pois o agir é o modo como a interioridade do conceito se faz existência concreta. Pois se o significado de um símbolo consiste em como, poderia levar-nos a agir, é evidente que este como não pode referir-se à descrição dos movimentos mecânicos que o símbolo poderia causar, mas deve ser entendido como referente a uma descrição da ação como tendo este ou aquele objetivo. A fim de compreender o pragmatismo, portanto, o bastante para submetê-lo a uma crítica inteligente, cabe-nos indagar o que pode ser um fim último, capaz de ser perseguido no curso indefinidamente prolongado de uma ação. (PEIRCE, CP 5.135) A filosofia pragmática de Peirce desenvolveu-se, em grande parte, em oposição ao espírito cartesiano.52 Peirce rejeita a idéia cartesiana de que a filosofia deve começar com a dúvida universal, ou de um ego isolado como fonte principal de significado e verdade, isto é que, o último teste da certeza deve ser buscado na consciência individual. Peirce também rejeita a idéia de que a inferência depende sempre de premissas indubitáveis. Filósofos das mais diversas facções propõem que a filosofia deve ter como ponto de partida um ou outro estado de espírito em que homem algum, e menos ainda um principiante em filosofia, realmente se encontra. Um deles propõe que comecemos por duvidar de tudo, e por dizer que só há uma coisa de que não podemos duvidar como se duvidar fosse tão fácil como mentir (PEIRCE, CP 5.416). Peirce rejeita aquelas dúvidas que não são verdadeiras, “recusem-se os faz-de-conta” (CP 5.416). Recusar os “faz-de-conta” significa recusar aquilo que contradiz nossas verdadeiras crenças. A dúvida verdadeira é um estado muito desconfortável, com reflexos imediatos na conduta, porque as crenças é que determinam o modo como agimos, como nos conduzimos, e quem faz a análise desta conduta e de seus fins é a Ética É da Ética que devemos partir, se a ação ou conduta é o fenômeno que aparece, porque não há como duvidar daquilo que de fato não duvidamos, porque não conseguimos, não há materialização da dúvida na conduta. (IBRI: 1996 a) A crença não é um estado momentâneo, ela dura muito tempo e só é abalada pela experiência, “a crença é um hábito da mente” A crença não é um modo momentâneo da 52 O espírito anti-cartesiano de Peirce vai ser aprofundado no próximo capítulo.
  • 43. 43 consciência (CP 5.417). Daí resulta a noção de verdade, como um estado de crença inatacável pela dúvida, “a ação do pensamento é excitada pela incitação da dúvida e cessa com o atingir da crença; e, assim o chegar à crença é a função única do pensamento” (CP 5.394). Há uma relação entre crença e verdade como um ponto para o qual tende uma crença indefinidamente. “Este conceito envolve uma idéia metafísica de evolução de crescimento de signo, de crescimento da Terceiridade, crescimento da Razão” (IBRI: 1996: a). Quando se diz que alguma coisa é verdadeira, significa que nela acreditamos, significa que nossas crenças são permanentemente reforçadas através de nossas experiências, isto é, não encontramos nenhuma experiência que invalide o que consideramos verdadeiro. É a conduta que mostra se houve mudança de crença ou não. O sentido da crença é o modo como a conduta se mostra. O agir se faz segundo as crenças, o modo exterior de ser revela a estrutura do meu modo interior de crer. O sentido da crença é o modo como eu me manifesto e este modo exibe as conseqüências práticas do conceito. Toda crença é conceitual. (IBRI: 1996 a) Para Peirce, as crenças são dotadas de três propriedades: em primeiro lugar, as crenças são algo de que estamos cientes; em segundo lugar aplacam a irritação da dúvida e, em terceiro lugar envolvem o surgimento, em nossa natureza, de uma regra de ação, ou digamos com brevidade, o surgimento de um hábito (CP 5.397). Já a noção de dúvida real é totalmente contrária a de crença. A dúvida não é um hábito, mas uma privação de um hábito e tem uma condição errática que precisa ser superada por um hábito. Dúvida gera angústia, aflição, porque a Terceiridade foi quebrada, daí ser um estado desconfortável. “A dúvida não é uma questão de vontade, de volição, é uma questão de conduta” (IBRI, 1996a). Como, entretanto, a crença é uma regra de ação, cuja aplicação envolve dúvida posterior e posterior reflexão, constitui-se, ao mesmo tempo, em ponto de escala e novo ponto de partida para o pensamento (PEIRCE, CP 5.397). Se o conceito tem significado, estamos preparados para agir segundo ele, para interagir existencialmente, isto é, o conceito só tem significado se tiver efeito na conduta. Significado envolve alguma referência a propósito. "O que o hábito seja depende de quando e como ele nos leva a agir" (CP 5.400). O agir está ligado às conseqüências experienciáveis do conceito,
  • 44. 44 na medida em que sai da interioridade, da mera possibilidade. Assim, a diferença entre os dois conceitos se refere aos diferentes modos de como eles afetam a nossa conduta. 53 Assim, nosso agir tem referência exclusiva ao que afeta os sentidos, nosso hábito tem o mesmo alcance de nosso agir, nossa crença o mesmo de nosso hábito, nossa concepção, o mesmo de nossa crença [...] Meu único desejo é o acentuar a impossibilidade de abrigarmos uma idéia relacionada com alguma coisa que não sejam imagináveis efeitos sensíveis das coisas. Nossa idéia a respeito de algo é nossa idéia a respeito de seus efeitos sensíveis... (PEIRCE, CP 5.401). Peirce se angustiava com a interpretação dada ao seu Pragmatismo. Pragmatismo não é utilitarismo e ação não é a meta da vida, porque dizer que vivemos simplesmente da ação como ação, não levando em consideração o pensamento que ela carrega, "seria dizer que não existe algo que se possa chamar de propósito racional" (CP 5.429). O fim último não é ação. Pragmatismo só é ação na medida em que esta ação vincular outro pensamento mais aperfeiçoado, na medida em que a idéia leva a outra idéia, que tenha passado pela existência, envolvendo aprendizagem, veracidade, plausibilidade e verificação. (IBRI, 1996a) O pragmatismo peirceano embute três idéias: a relação necessária entre interioridade e exterioridade, entre o geral e particular e entre o existente e não existente, e "se imaginarmos ser coisa diversa, estaremos incidindo em engano e tomando erradamente uma sensação que acompanha o pensamento como parte integrante do próprio pensamento” (CP 5.401). Não se pode fazer uma cisão entre o mundo teórico e o mundo prático, que é o mundo da conduta, da ação.54 [...] isto é, o teor racional de uma palavra ou outra expressão reside, exclusivamente, em sua concebível influência sobre a conduta da vida; de modo que, como obviamente nada que não pudesse resultar de um experimento pode exercer influência direta sobre a conduta, se se puder definir acuradamente todos os fenômenos experimentais concebíveis que a afirmação ou negação poderia implicar, ter-se-á uma definição completa do conceito e nele não há absolutamente nada mais. (PEIRCE, CP 5.412) Esta definição de pragmatismo explica como é que a Lógica depende da Ética, na medida em que uma teoria só é verdadeira se mostra reflexos na conduta, e o plano da conduta 53 Para Santaella (1993:24), “o Pragmatismo é um teorema semiótico, porque a Semiótica é a ética do intelecto e a ética é a estética da ação.”
  • 45. 45 é o da existência, da Segundidade, da alteridade. Uma mera possibilidade, um primeiro que não se existencializa, não se faz segundo não tem significado possível, não tem realidade, não tem sentido.55 Ora, assim como a conduta controlada pela razão ética tende a fixação de certos hábitos de conduta, cuja natureza (para ilustrar o significado, hábitos pacatos e não irrascíveis) não depende de nenhuma circunstância acidental, e nesse sentido pode-se dizer que ela está destinada; do mesmo modo, o pensamento controlado por uma lógica experimental racional, tende à fixação de certas opiniões, igualmente destinadas, cuja natureza será a mesma ao final, por mais que a perversidade de pensamento de gerações inteiras possa provocar o adiamento da fixação última. (PEIRCE, CP 5.429) O pragmatismo peirceano não pode ser entendido sem as três categorias, o fim é algo que dá sua sanção à ação, pertencendo, portanto à terceira categoria, a do pensamento, mas o pensamento envolve ação, assim a Terceiridade é um ingrediente fundamental da realidade. O ser concreto do pensamento (Terceiridade) é dado pela ação (Segundidade), do mesmo modo que a ação é governada pelo pensamento. Essas três ciências normativas correspondem às minhas categorias [...] A verdadeira natureza do pragmatismo não pode ser entendida sem elas; o pragmatismo não toma a reação como sendo o tudo da coisa; mas considera o fim como ser-tudo e o fim é algo que dá a sua sanção à ação. É da terceira categoria. (PEIRCE, CP 8.256) Segundidade é a categoria da efetividade, daquilo que se atualiza. Entre o que é possível (Primeiridade) e a mediação da Terceiridade, interpõe-se aquilo que é responsável pela realização concreta. Toda ação supõe fins, mas os fins sendo gerais estão no modo de ser do pensamento e esse fim, ou aquilo que é o bem supremo, consiste num processo de evolução. Conseqüentemente, o pragmaticista não faz com que o summum bonum consista na ação, mas faz com que consista naquele processo de evolução pelo qual o existente chega cada vez mais a corporificar aqueles gerais a cujo respeito ainda há pouco se disse que estavam destinados, que é aquilo que tentamos exprimir ao chamá-los de razoáveis (PEIRCE, CP 5.433). 54 Para alguns comentadores tais como J.Stuhr (1994) "Rendering the World more Reasonable: The Practical Significance of Peirce's Normative Science", p. 3-16 e Krois, J.M "C.S.Peirce and Philosophical Ethics", p. 27-36, Peirce separa a prática da teoria. 55 I. Ibri, (1996) “Estética, Ética e Lógica - As relações entre as Ciências Normativas na Filosofia de C.S.Peirce, anotações em aula.
  • 46. 46 Por outro lado, quando uma pessoa afirma algo e se comporta de acordo com o que afirma, isto é admirável. É esta a relação do pragmatismo com a Estética. Uma pessoa que estrutura uma determinada teoria cujas conseqüências práticas ela realmente vivência, isto é admirável. Quando se fala que uma pessoa é verdadeira significa que ela tem um modelo de conduta e segue aquele modelo. Na nossa vida, é difícil admitirmos distanciamento entre teoria e fato (IBRI, 1996 a). Nós fazemos planos, prevemos nossa conduta, mas depois que ela se realiza fazemos uma autocrítica para verificar se a conduta está de acordo com nossos fins. Fazemos permanente esta auto-correção dos nossos projetos e das nossas previsões. Entre as coisas de que o leitor, como pessoa racional que é não duvida, é que não apenas tem hábitos como também pode exercer certo autocontrole sobre suas ações futuras... (PEIRCE, CP 5.418) O hábito só se constitui quando a pessoa passou por situações semelhantes onde exerceu o autocontrole, sendo assim essa reflexão subsequente é um preparo para a ação futura. “Ora, o pensamento é uma espécie de conduta que se acha em larga escala submetido ao autocontrole” (CP 5.419). Peirce conclui que o autocontrole lógico é muito semelhante ao autocontrole ético. O modo como tomamos decisões, o nosso pensamento judicativo é submetido ao autocontrole, da mesma forma como controlamos nossa conduta. Um experimento pode ser uma operação do pensamento, com uma intencionalidade e uma racionalidade embutida. Isso remete à idéia da Terceiridade como um sistema ordenador, o autocontrole da Segundidade real. O autocontrole consiste em primeiro comparar as ações passadas com padrões: segundo na deliberação racional que concerne a maneira como a pessoa vai agir, o que é em si mesmo uma operação complicada, e terceiro na formação de uma resolução, uma forte determinação ou na modificação de um hábito. Para a compreensão e resolução de nossos problemas é necessária reflexão e análise, significa ação judicativa. A conduta é fato. O modo como agimos é uma concreção dos nossos planos. O que legitima nossas crenças é a conduta. Toda crença influi na nossa maneira de nos
  • 47. 47 comportarmos. Portanto, a Ética como ciência da conduta legitima a Lógica. Também do ponto de vista categorial não há "lógica possível sem fato e não há lógica do fato sem o fato". No entanto, a única conduta que está sujeita ao autocontrole é a conduta futura, e os resultados experimentais são os únicos resultados capazes de afetar a conduta humana, pois "um fenômeno experimental é o fato afirmado pela proposição de que a ação de certa descrição terá certa espécie de resultado experimental" (CP 5.427). Só o fato muda a conduta, só a experiência pauta a conduta. Esta é a relação entre Segundidade e Terceiridade, entre pensamento e ação. Os propósitos aparecem no nosso modo de agir, isto é, nós agimos segundo determinados planos, segundo determinados propósitos. Não há Terceiridade sem Segundidade, não há idéia de lei sem efeito de continuidade. [...] a posição de que a terceira categoria - a categoria do pensamento, representação, relação triádica, mediação, Terceiridade genuína, Terceiridade enquanto tal, é um ingrediente essencial da realidade, e, todavia por si mesma não constitui a realidade, uma vez que esta categoria (que naquela cosmologia surge como e elemento do hábito) não pode ter um ser concreto sem a ação, como um objeto separado sobre o qual operar seu controle, assim como a ação não pode existir sem o ser imediato do sentimento sobre o qual operar. (PEIRCE, CP 5.436) Em "Ideais da Conduta", Peirce argumenta que todo homem tem certos ideais de conduta. Em primeiro lugar, certos tipos de conduta, quando o homem as contempla têm certa qualidade estética. Em segundo lugar, o homem se esforça por moldar seus ideais, consistentemente com cada outro, pois inconstância é odiosa para ele. Em terceiro lugar, ele imagina quais conseqüências acarretariam seus ideais, e se pergunta que qualidades estéticas estas conseqüências teriam (CP 1.591). Segundo estes ideais, as pessoas são levadas a pretender que sua conduta se conforme, pelo menos a uma parte destes ideais, formulando então certas regras de conduta. Estas regras mobilizarão algumas forças levando a pessoa a considerar como agir. Esta resolução é da natureza de um plano. Um plano é um diagrama, é um esquema geral de ação, não para uma ocasião específica, mas para aquelas ocasiões em que aparecer um estado de coisas semelhante, embora toda pessoa que vive em contato com a realidade sabe que o futuro contém erraticidade.
  • 48. 48 Em contato com o real, a pessoa obtém o significado dos fatos e de suas próprias ações para corrigir sua conduta a cada instante face à alteridade, face ao erro. O futuro contém certa acidentalidade com a qual terá que programar sua conduta futura, já que não existe saber absoluto, e as previsões devem ser feitas por meio de alguma coisa verdadeira e real. Há um elo entre elaborar um plano e efetivamente cumpri-lo, este elo se chama vontade, volição. Nem sempre fazer um plano significa que este plano será materializado na ação. A única forma de saber a eficácia do plano é através da ação, porque a ação é uma passagem necessária para correção, para o aperfeiçoamento. O mundo da existência virá fatalmente denunciar o erro. A ação é o modo particular do geral, é a Segundidade embutida na Terceiridade. Assim, o agir se transforma na concretude do pensamento, envolvendo volição. Uma ação gera conseqüências diante das quais, as pessoas estão sempre se perguntando se a conduta foi conforme a resolução, se a conduta concordou com as intenções gerais. A pessoa pode ir mais longe ainda indagando se a conduta concordou com os ideais, o que será seguido por um novo juízo acompanhado por sentimento, seguido por um reconhecimento do caráter aprazível ou doloroso deste sentimento. (CP 1.597) Por outro lado, o homem vai periodicamente rever seus ideais, pois a “experiência de vida está contribuindo com exemplos mais ou menos elucidativos, que são sumarizados primeiro, não na consciência do homem, mas nas profundezas de seu ser razoável. Os resultados vêm à consciência mais tarde”. (CP 1.599). A idéia de autocontrole do plano para ação futura só é possível diante da continuidade. O homem está a todos os momentos operando racionalmente os fatos da experiência, procurando a partir deles uma projeção para o futuro. Um plano de conduta significa balizar a ação futura com base na experiência passada. Para Peirce os principais elementos da conduta moral são: 1) o padrão geral mentalmente concebido antecipadamente; 2) o agente eficiente na natureza interna, o ato, e 3) a comparação subsequente do ato com o padrão. (CP 1.607)
  • 49. 49 Mas todos estes elementos estão representados no raciocínio e, portanto, há um paralelismo perfeito entre conduta e raciocínio. Desde que a descrição dos fenômenos da conduta controlada seja verdadeira, então o “raciocínio é apenas um tipo especial de conduta auto-controlada” (CP 1.610). Mas ao desenvolver sua cosmologia é que Peirce consolida as inter-relações das Ciências Normativas. Sua cosmologia é uma doutrina de como deve ser a estrutura do universo, explica que relações têm esta estrutura com nosso mundo interior, com nossa lógica, com nosso pensamento e com nosso sentimento. Peirce percebeu que não era possível construir um amálgama entre a Estética, Ética e Lógica sem resolver alguns problemas tais como, em primeiro lugar, situar o homem no universo, ou seja, desenvolvendo uma teoria de mundo. 56 A condição inicial, antes da existência do universo, não foi um estado de um ser puro abstrato, ao contrário foi um estado de simplesmente absolutamente nada, nem mesmo um estado de vazio, pois mesmo o vazio é alguma coisa. Se vamos proceder de modo lógico e científico, devemos, a fim de considerar todo o universo, supor uma condição inicial na qual o universo completo foi não existente, e, assim um estado de absoluto nada. (PEIRCE, CP 6.217) O evolucionismo peirceano pode ser visto como uma teoria de um mundo cuja direção indica a passagem da desordem para a ordem, onde coexistem ordem e desordem Lei e Acaso. A ordem surge da liberdade como uma tendência à aquisição de hábitos. E a tendência à aquisição de hábitos é uma tendência da mente. 57 A tendência para generalização consiste na primeira e fundamental lei da ação mental. Idéias tendem a se reproduzir. Há várias formulações de Peirce para a lei do crescimento da mente (CP 6.21). O caminho da Lógica vai do vago ao definido. A ordem aparece como uma tendência do universo a adquirir hábitos. O que é uma lei da natureza? É um hábito adquirido. Se o universo adquire hábito ele deve ter um substrato mental. Aquisição de hábito é a característica mais fundamental da mente. 56 I. Ibri (1992) op.cit. p. 73. 57 I. Ibri (1994) Kosmos Poietikos - Criação e Descoberta na Filosofia de Charles S. Peirce, p. 3.
  • 50. 50 Peirce entende os sistemas lógicos naturais como sistemas de mesma natureza que o nosso pensamento. Pode-se pensar o mundo, ou certa ordem geral da natureza ou certos sistemas de ordenação como tendo estruturação lógica similar à lógica de nosso pensamento, o que permite representar com verossimilhança sistemas da natureza, pois nós temos uma estrutura racional que é assim porque foi adestrada pela natureza, a forma racional do homem é hereditária da forma racional da natureza. A primeira coisa que demanda nossa investigação é que a conduzamos para uma idéia clara e distinta do que são hábito e aquisição de hábito. Podemos unicamente aprender isto estudando estas coisas onde as vemos em formação na mente humana. Ao fazê-lo, não estou receoso de especializar demais e de assumir que o universo tem caracteres que pertencem apenas ao protoplasma nervoso em um complicado organismo. Pois devemos lembrar que o organismo não fez a mente, mas apenas a ela se adaptou. Adaptou-se por um processo evolucionário tal, que não está longe de ser correto considerar que a mente humana constitui o organismo (PEIRCE, NEM 141)58 . Representar com verossimilhança não significa verdades finais ou teorias finalistas, porque para Peirce nenhuma teoria, nenhum conceito, nenhum sistema de idéias é final ou traduz verdades finais. O mundo contém acidentalidade, contém acaso. Mas pode-se dizer que há um movimento que se dirige para o crescimento e aprendizagem. Para Ibri (1996a), a filosofia peirciana é um grande convite ao abandono do antropocentrismo e do logocentrismo da palavra. É um convite a olhar a natureza e nela descobrir outras formas de diálogo, que não a mera palavra. Portanto, é através do raciocínio correto que se chegará ao objetivo último, que é o ideal da conduta. Para um autor como Peirce este objetivo último não pode estar na ação, como também não pode ser qualidade de sentimento finita. Peirce se opõe à idéia de o homem só possa agir pelo prazer, porque a ação que ser refere ao prazer não deixa espaço para a distinção entre o certo e errado. Este objetivo último é o admirável. O objeto admirável que é admirável per si deve, sem dúvida, ser geral. Todo ideal é mais ou menos geral; ele deve ter unidade, porque é uma idéia, e unidade é essencial a toda idéia e todo ideal. (PEIRCE, CP 1.613) 58 Apud I. Ibri (1992) op. cit. p. 87.