1. A OBRA DE ARTE
Anton Tchekhov
Carregando sob o braço um objeto embrulhado no número 223 do Mensageiro
da Bolsa, Sacha Smirnoff, filhinho de mamãe, assumiu uma expressão de
tristeza e entrou no consultório do doutor Kochelkoff.
— Ah! meu grande jovem! — exclamou o médico. — Como vamos? O que há
de novo?
Fechando as pálpebras, Sacha pôs a mão no coração e, comovido, falou:
— Mamãe lhe manda seus cumprimentos, Ivan Nicolaìevitch, e me encarregou
de lhe agradecer… Mamãe só tem a mim no mundo, e o senhor me salvou a
vida… curando-me de grave enfermidade e… não sabemos como lhe
agradecer.
— Ora! O que é isso, meu jovem! — atalhou o médico, realizado. — Não fiz
mais do que qualquer um no meu lugar teria feito…
Depois de observar o presente, o médico coçou lentamente a orelha, bufou e
suspirou, confuso.
— Sim — murmurou —, é algo realmente magnífico… como diria?… um tanto
ou quanto ousado… Não é apenas decotada; é… sei lá, que diabos!
2. — Mas… por que diz isso?
— Nem a serpente em pessoa poderia inventar alguma coisa de mais
indecente. Se eu colocasse esta fantasiazinha na mesa, iria contaminar a casa
toda.
— Que modo mais excêntrico tem o senhor de interpretar a arte! — disse
Sacha, ofendido. — É um objeto artístico!… Olhe! Que beleza! Que elegância!
É de se ficar com a alma inundada de piedade, e com lágrimas a subir aos
olhos! Contemplando-se tamanha beleza, nos esquecemos de tudo o que seja
da Terra… Veja bem… Que movimentos! Que harmonia! Que expressão!…
— Compreendo muito bem tudo isso, meu caro — interrompeu o médico —,
mas acontece que eu sou pai de família. Meus filhos costumam vir aqui.
Recebo senhoras…
— É evidente — disse Sacha — que se a gente adotar o ponto de vista do
povo, este objeto, altamente artístico, causará uma impressão diferente… Sou
o filho único de mamãe… somos pobres, e por isso não podemos lhe
recompensar os seus cuidados; e não sabemos o que fazer; embora, apesar
de tudo, mamãe e eu… seu filho único… lhe suplicamos de todo o coração que
aceite, como penhor de gratidão… esta ninharia que… É um bronze antigo…
uma obra rara… de arte.
— Mas não havia necessidade — disse o médico, franzindo as sobrancelhas.
— Por que razão?
3. — Não, eu imploro ao senhor, não recuse! — continuou a murmurar Sacha,
desembrulhando de todo o pacote. — Seria uma ofensa, a mamãe e a mim…
Trata-se um objeto belíssimo… em bronze antigo. Foi herança de papai,
guardada como uma querida lembrança.. Papai comprava bronzes antigos e
revendia-os aos colecionadores… Já mamãe e eu não nos ocupamos disso…
Sacha acabou de desembrulhar o objeto e colocou-o solenemente em cima
mesa. Era um pequeno candelabro de bronze antigo, de fina feitura.
Representava duas figuras femininas em trajes de Eva e em atitudes que não
ousaria — nem tenho temperamento para isso — descrever.
As figuras sorriam ostensivamente, dando a impressão de que, não fossem
retidas pela obrigação de suster o castiçal, teriam imediatamente fugido do
pedestal dançado tal cancã que, amigo leitor, nem é bom imaginar.
— O doutor, claro, está acima destas coisas todas e portanto sua recusa nos
daria, a mamãe e a mim, uma enorme frustração. Sou o filho único de mamãe;
o senhor me salvou a vida… Damos-lhe de presente o que de mais precioso
possuímos, e… só tenho a tristeza de não nos pertencer o par do candelabro!
— Muito agradecido, meu jovem amigo. Fico-lhe muito grato… Minhas
recomendações à sua mãe, mas rogo-lhe, o senhor mesmo considere a
questão! Meus garotos costumam vir aqui… Aparecem muitas senhoras… Mas
deixo-o aqui, já que me parece impossível convencê-lo!
— Ora, não há de que me convencer! — disse Sacha com habilidade. –
Coloque o candelabro do lado desta jarra. Que infelicidade não possuir o par!…
Bem, vou indo, adeus, doutor.
4. Depois da saída de Sacha, o doutor observou bastante o candelabro, coço
orelha e concluiu:
―Não se pode negar que é magnífico. É uma pena abrir mão dele. Ao mesmo
tempo é impossível deixá-lo aqui… Hum… Está criado o problema… Poderia
dá-lo de presente a quem?‖ ·
Depois desta reflexão, lembrou-se do advogado Ukhoff, seu amigo íntimo, que
gostaria de ter o objeto.
―Às mil maravilhas!‖, decidiu. ―Ukof Ukhoff não aceita receber dinheiro de mim ,
mas ficará contente com esta lembrança… E assim me livrarei deste incômodo.
Além do mais, ele é solteiro e maroto…‖ ·
Rápido, o médico se vestiu, pegou o candelabro e foi até a casa do advogado.
— Bom dia, amigo — disse, ao encontrar Ukhoff em sua morada… — Venho
lhe trazer uma recompensa pela amolação… Já que não quer aceitar dinheiro
meu, aceitará um pequeno presente… Ei-lo, meu amigo! É um objeto
magnífico!
Ao ver o candelabro, o advogado viu-se tomado de inefável encantamento.
5. — Isso sim é que é obra de arte — disse, rindo às gargalhadas. — Que o diabo
carregue os meliantes capazes de sequer imaginar alguma coisa de parecido…
É maravilhoso! Onde foi que você encontrou tal preciosidade?
Assim que o entusiasmo se esgotou, o advogado lançou temerosos olhares
para o lado da porta e disse:
— No entanto, meu velho amigo, é melhor levar de volta o seu presente. Não
posso aceitá-lo…
— Por quê? — quis saber, espantado, o médico.
— Porque… Mamãe vem aqui, meus clientes… e além do mais é
constrangedor em relação aos criados…
— Ora, essa é boa!… Você não terá a ousadia de recusá-lo. (E o médico
agitou as mãos.) Eu ficaria ofendido!… Trata-se de um objeto de arte… Que
movimentos! Que expressão!… Não quero ouvir seus argumentos! Você me
deixaria melindrado!
— Se pelo menos tivesse alguma sutileza, ou se estivesse coberta…
O médico, porém, ainda a agitar as mãos e contente por conseguir se desfazer
do presente, voltou para o seu consultório.
6. Sozinho em casa, o advogado pôs-se a examinar o candelabro, apalpou-lhe
todas as partes e, da mesma forma que o médico, viu-se tentado a refletir
sobre o que deveria fazer com ele.
―É um objeto belíssimo‖, pensou. ―Seria uma pena se desfazer dele; ao mesmo
tempo, é inconveniente tê-lo em casa… Melhor seria oferecê-lo a alguém… Já
sei, vou levá-lo hoje à noite ao cômico Chachkine. O sacana adora as coisas
desse gênero, e hoje é justamente o dia de sua estréia…‖
Foi o que fez, tão rápido quanto pensou. À noite o candelabro, lindamente
embrulhado, era oferecido ao cômico Chachkine.
A noite toda o camarim do artista foi invadido pelos homens que queriam
admirar o presente; a noite toda foi de murmúrios de aprovação e de risadas
que mais pareciam relinchos… Quando uma artista se aproximava do camarim
e perguntava: ―Pode-se entrar?‖, logo a voz rouca do cômico retumbava:
— Não, não, cara amiga! Estou sem roupa!
Terminado o espetáculo, Chachkine dizia, dando de ombros e abrindo os
braços:
— Onde vou colocar tamanha indecência? Moro em casa de família e recebo
muitos artistas! E isso não é como fotografia, que a gente pode esconder
dentro da gaveta..
7. — Ora, por que não o vende, senhor? — aconselhou o cabeleireiro, que o
ajudava a trocar de roupa. — Tem uma velha aqui no bairro que compra bronze
antigo. Vá lá e pergunte pela senhora Smirnoff… Todo mundo a conhece.
O cômico resolveu seguir o conselho…
Dois dias depois, o doutor Kochelkoff meditava sobre os ácidos biliosos, de
dedo na testa. Subitamente a porta se abriu e Sacha Smirnoff jogou-se a seu
encontro. Sorria exultante, e todo o seu ser transpirava felicidade… Trazia
alguma coisa embrulhada em jornal.
— Doutor — disse, ofegante —, imagine só nossa alegria!… Para nossa
felicidade, encontramos o par do seu candelabro!… Mamãe está se sentindo
tão feliz!… E o senhor me salvou a vida…
E então, tremendo de gratidão, Sacha colocou o candelabro diante dos olhos
de Ivan Nicolaievitch. 0 médico quis dizer alguma coisa mas não conseguiu.
Perdera o uso da palavra.