SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 2
A MATEMÁTICA COMO LINGUAGEM:
UM OLHAR FILOSÓFICO
Antes de discutirmos a Matemática como uma linguagem, é preciso nos
questionar sobre o que são alguns elementos básicos da Matemática. Você já
se perguntou o que é “número”? Se alguém lhe perguntasse sobre o que é o
“número dois”, o que você responderia? Você já viu um “número dois” andando
por aí? Provavelmente você tentaria explicar fazendo uma associação com
alguma coleção de dois objetos. Então, talvez o “número dois” não exista por si
só e não tenha um significado isolado. Talvez os números sejam apenas ideias
abstratas que usamos para expressar quantidades de objetos.
Basicamente, uma das ideias de “número” para a atual Filosofia da
Matemática, compreende “número” como algo que caracteriza uma classe de
classes das quais possuem um mesmo número de termos. Por exemplo, a
ideia do número dois atribui a propriedade que caracteriza a todos os infinitos
conjuntos de duplas. Mas ao mesmo tempo, é necessário especificar como
dizer que dois conjuntos tem o mesmo número de termos, sem que para isso
se use o termo “número”, pois afinal se quer definir o que é “número”.
Contornamos isso a partir da ideia de um-para-um, assim, se dois conjuntos
possuem o mesmo número de termos, podemos expressar isso dizendo que
para cada termo de um conjunto haverá uma correspondência um-para-um no
outro conjunto.
Por outro lado, e se alguém lhe perguntasse o que é um círculo? O que
você responderia? Já viu algum círculo rolando por aí? Por mais que você tente
explicar o que é um círculo e, que para isso, faça o uso de objetos com forma
circular, mesmo assim, esses objetos não são círculos! Assim, uma mesa com
tampo redondo e razoavelmente plano, também não é um círculo – ela apenas
nos representa a “ideia” do que seja um círculo. Nesse sentido, os objetos da
geometria só possuem definições precisas no campo dos conceitos abstratos e
idealizados como o ponto, a reta e o plano.
Mas então, qual é o propósito prático da Matemática? A essa pergunta já
surgiram várias tentativas de resposta ao longo da história da humanidade e
não será neste breve texto que tentaremos responder. Aqui nos limitaremos
apenas a analisar a proposta de que a Matemática fornece a linguagem precisa
para descrever os fenômenos da natureza.
Certa vez, o filósofo e cientista italiano Galileu Galilei (1564-1642) disse:
“A Matemática é o alfabeto com o qual Deus escreveu o Universo”
Não vamos querer entrar aqui na discussão sobre a existência ou não
existência de um “Deus”, mas vamos tentar analisar o que Galileu quis dizer.
Dizer que a Matemática é o alfabeto com o qual foi escrito o Universo é uma
metáfora que põe a Matemática numa posição de linguagem.
Quando os cientistas aplicam o Método Científico para tentar entender o
funcionamento das leis do Universo, eles estão tentando compreender os
padrões comportamentais que a natureza apresenta. Um fenômeno físico, por
exemplo, se analisado friamente, aplicando todas as etapas do Método,
geralmente apresentará determinados tipos de padrões – algo que possa vir a
ser previsto em uma Teoria Científica.
Por exemplo, quando Einstein propôs que energia e massa se
relacionam por meio da equação “E=mc2”, ele modelou matematicamente um
comportamento padrão que pode ser observado na natureza. Este modelo
expressa com precisão algo que pode ser testado e inclusive prevê resultados
de experimentos futuros.
Mas agora voltemos à ideia das abstrações matemáticas. Mesmo que
você tenha dificuldades em definir os objetos da Matemática, essas
idealizações permitem que sejam expressos com nitidez e precisão os
fenômenos estudados pelas ciências naturais. Não é atoa então que a
linguagem matemática contenha elementos, que mesmo abstratos, fornecem
idealizações gerais para objetos do mundo real. É fascinante que um círculo
não represente apenas um único objeto, mas sim uma infinita família de objetos
e, o mesmo vale para o “número dois” que caracteriza uma infinidade de duplas
ou o “número três” com os trios, e assim por diante.
No entanto, vale mencionar aqui que mesmo os números, tal como os
entendemos hoje, mesmo que esses tenham sido uma invenção humana, nós
não os compreendemos por completo. Ainda que mesmo um irracional como a
“raiz quadrada de dois” possa caracterizar toda uma classe de classes como as
medidas de diagonais de um quadrado, há ainda aspectos que não
compreendemos nos números. Por exemplo, o próprio comportamento dos
números primos que acarretam questões como a Conjectura de Goldbach.
Entretanto, a proposta de número independe da capacidade ou
existência do ser humano – lembremos que quando duas duplas de
dinossauros se encontraram próximo a algum vulcão há milhões de anos atrás,
não havia ali um humano pra dizer que eram quatro dinossauros e mesmo
assim havia quatro deles. Nesse sentido, ainda que não compreendamos os
elementos matemáticos por completo, do ponto de vista filosófico, faz todo
sentido concordarmos que a Matemática é sim a Linguagem do Universo, pois
apresenta um modo racional de concepção do mesmo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[ 1 ] RUSSELL, B. Introdução à Filosofia Matemática. 4 ed. Trad.
Giasone Rebuá. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1966.
[ 2 ] TARSKI, A. Introducción a la Lógica: y a La metodología de las
ciencias deductivas. 4 ed. Madrid: Espasa-Cape, 1985.
[ 3 ] DESCARTES, R. Discurso do Método. 4 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
[ 4 ] GARDNER, M. Is Mathematics for Real? In: DAVIS, P.; HERSH,
R. The Mathematical Experience. p. 440. Boston: Birkhäuser, 1981.

Mais conteúdo relacionado

Semelhante a A matemática como linguagem

Um exame crítico do argumento cosmológico kalam
Um exame crítico do argumento cosmológico kalamUm exame crítico do argumento cosmológico kalam
Um exame crítico do argumento cosmológico kalamCobol Engineering
 
Teoria dos números
Teoria dos númerosTeoria dos números
Teoria dos númerosAndré Lemos
 
Raciocínio algébrico2mat3 b
Raciocínio algébrico2mat3 bRaciocínio algébrico2mat3 b
Raciocínio algébrico2mat3 bLeny Pardim
 
Algumas observações sobre a forma lógica wittgenstein
Algumas observações sobre a forma lógica   wittgensteinAlgumas observações sobre a forma lógica   wittgenstein
Algumas observações sobre a forma lógica wittgensteinOsandijr
 
MATEMATICA_Ciencia_Aplicacoes_V2_PNLD2018_PR.pdf
MATEMATICA_Ciencia_Aplicacoes_V2_PNLD2018_PR.pdfMATEMATICA_Ciencia_Aplicacoes_V2_PNLD2018_PR.pdf
MATEMATICA_Ciencia_Aplicacoes_V2_PNLD2018_PR.pdfSilvanioRodriguesCos
 
MATEMATICA_Ciencia_Aplicacoes_V2_Ensino medio.pdf
MATEMATICA_Ciencia_Aplicacoes_V2_Ensino medio.pdfMATEMATICA_Ciencia_Aplicacoes_V2_Ensino medio.pdf
MATEMATICA_Ciencia_Aplicacoes_V2_Ensino medio.pdfMARCELODOSSANTOS96
 
Mat_Ciencia_Apl_2_MP_0082P18023_PNLD2018.pdf
Mat_Ciencia_Apl_2_MP_0082P18023_PNLD2018.pdfMat_Ciencia_Apl_2_MP_0082P18023_PNLD2018.pdf
Mat_Ciencia_Apl_2_MP_0082P18023_PNLD2018.pdfHenoc3
 
Introdução a Metafísica
Introdução a MetafísicaIntrodução a Metafísica
Introdução a MetafísicaCursoDeFerias
 
Bergson 1608 ensaio sobre a relação do corpo
Bergson 1608 ensaio sobre a relação do corpoBergson 1608 ensaio sobre a relação do corpo
Bergson 1608 ensaio sobre a relação do corpoDany Pereira
 
03 raciocinio logico-1
03 raciocinio logico-103 raciocinio logico-1
03 raciocinio logico-1Aloisio Amaral
 

Semelhante a A matemática como linguagem (20)

Formalismo
FormalismoFormalismo
Formalismo
 
Analise combinatória
Analise combinatóriaAnalise combinatória
Analise combinatória
 
Aula03 - Lógica
Aula03 - LógicaAula03 - Lógica
Aula03 - Lógica
 
Um exame crítico do argumento cosmológico kalam
Um exame crítico do argumento cosmológico kalamUm exame crítico do argumento cosmológico kalam
Um exame crítico do argumento cosmológico kalam
 
Diabo
DiaboDiabo
Diabo
 
Trabalho final
Trabalho finalTrabalho final
Trabalho final
 
Teoria dos números
Teoria dos númerosTeoria dos números
Teoria dos números
 
Raciocínio algébrico2mat3 b
Raciocínio algébrico2mat3 bRaciocínio algébrico2mat3 b
Raciocínio algébrico2mat3 b
 
Algumas observações sobre a forma lógica wittgenstein
Algumas observações sobre a forma lógica   wittgensteinAlgumas observações sobre a forma lógica   wittgenstein
Algumas observações sobre a forma lógica wittgenstein
 
MATEMATICA_Ciencia_Aplicacoes_V2_PNLD2018_PR.pdf
MATEMATICA_Ciencia_Aplicacoes_V2_PNLD2018_PR.pdfMATEMATICA_Ciencia_Aplicacoes_V2_PNLD2018_PR.pdf
MATEMATICA_Ciencia_Aplicacoes_V2_PNLD2018_PR.pdf
 
MATEMATICA_Ciencia_Aplicacoes_V2_Ensino medio.pdf
MATEMATICA_Ciencia_Aplicacoes_V2_Ensino medio.pdfMATEMATICA_Ciencia_Aplicacoes_V2_Ensino medio.pdf
MATEMATICA_Ciencia_Aplicacoes_V2_Ensino medio.pdf
 
Mat_Ciencia_Apl_2_MP_0082P18023_PNLD2018.pdf
Mat_Ciencia_Apl_2_MP_0082P18023_PNLD2018.pdfMat_Ciencia_Apl_2_MP_0082P18023_PNLD2018.pdf
Mat_Ciencia_Apl_2_MP_0082P18023_PNLD2018.pdf
 
Aspectos históricos da analise combinatória
Aspectos históricos da analise combinatóriaAspectos históricos da analise combinatória
Aspectos históricos da analise combinatória
 
Introdução a Metafísica
Introdução a MetafísicaIntrodução a Metafísica
Introdução a Metafísica
 
Bergson 1608 ensaio sobre a relação do corpo
Bergson 1608 ensaio sobre a relação do corpoBergson 1608 ensaio sobre a relação do corpo
Bergson 1608 ensaio sobre a relação do corpo
 
Apostila do prof aury cap 0
Apostila do prof aury   cap 0Apostila do prof aury   cap 0
Apostila do prof aury cap 0
 
A reta
A retaA reta
A reta
 
03 raciocinio logico-1
03 raciocinio logico-103 raciocinio logico-1
03 raciocinio logico-1
 
Modelos e logica
Modelos e logicaModelos e logica
Modelos e logica
 
Slide rp descartes
Slide rp descartesSlide rp descartes
Slide rp descartes
 

A matemática como linguagem

  • 1. A MATEMÁTICA COMO LINGUAGEM: UM OLHAR FILOSÓFICO Antes de discutirmos a Matemática como uma linguagem, é preciso nos questionar sobre o que são alguns elementos básicos da Matemática. Você já se perguntou o que é “número”? Se alguém lhe perguntasse sobre o que é o “número dois”, o que você responderia? Você já viu um “número dois” andando por aí? Provavelmente você tentaria explicar fazendo uma associação com alguma coleção de dois objetos. Então, talvez o “número dois” não exista por si só e não tenha um significado isolado. Talvez os números sejam apenas ideias abstratas que usamos para expressar quantidades de objetos. Basicamente, uma das ideias de “número” para a atual Filosofia da Matemática, compreende “número” como algo que caracteriza uma classe de classes das quais possuem um mesmo número de termos. Por exemplo, a ideia do número dois atribui a propriedade que caracteriza a todos os infinitos conjuntos de duplas. Mas ao mesmo tempo, é necessário especificar como dizer que dois conjuntos tem o mesmo número de termos, sem que para isso se use o termo “número”, pois afinal se quer definir o que é “número”. Contornamos isso a partir da ideia de um-para-um, assim, se dois conjuntos possuem o mesmo número de termos, podemos expressar isso dizendo que para cada termo de um conjunto haverá uma correspondência um-para-um no outro conjunto. Por outro lado, e se alguém lhe perguntasse o que é um círculo? O que você responderia? Já viu algum círculo rolando por aí? Por mais que você tente explicar o que é um círculo e, que para isso, faça o uso de objetos com forma circular, mesmo assim, esses objetos não são círculos! Assim, uma mesa com tampo redondo e razoavelmente plano, também não é um círculo – ela apenas nos representa a “ideia” do que seja um círculo. Nesse sentido, os objetos da geometria só possuem definições precisas no campo dos conceitos abstratos e idealizados como o ponto, a reta e o plano. Mas então, qual é o propósito prático da Matemática? A essa pergunta já surgiram várias tentativas de resposta ao longo da história da humanidade e não será neste breve texto que tentaremos responder. Aqui nos limitaremos apenas a analisar a proposta de que a Matemática fornece a linguagem precisa para descrever os fenômenos da natureza. Certa vez, o filósofo e cientista italiano Galileu Galilei (1564-1642) disse: “A Matemática é o alfabeto com o qual Deus escreveu o Universo” Não vamos querer entrar aqui na discussão sobre a existência ou não existência de um “Deus”, mas vamos tentar analisar o que Galileu quis dizer. Dizer que a Matemática é o alfabeto com o qual foi escrito o Universo é uma metáfora que põe a Matemática numa posição de linguagem. Quando os cientistas aplicam o Método Científico para tentar entender o funcionamento das leis do Universo, eles estão tentando compreender os padrões comportamentais que a natureza apresenta. Um fenômeno físico, por
  • 2. exemplo, se analisado friamente, aplicando todas as etapas do Método, geralmente apresentará determinados tipos de padrões – algo que possa vir a ser previsto em uma Teoria Científica. Por exemplo, quando Einstein propôs que energia e massa se relacionam por meio da equação “E=mc2”, ele modelou matematicamente um comportamento padrão que pode ser observado na natureza. Este modelo expressa com precisão algo que pode ser testado e inclusive prevê resultados de experimentos futuros. Mas agora voltemos à ideia das abstrações matemáticas. Mesmo que você tenha dificuldades em definir os objetos da Matemática, essas idealizações permitem que sejam expressos com nitidez e precisão os fenômenos estudados pelas ciências naturais. Não é atoa então que a linguagem matemática contenha elementos, que mesmo abstratos, fornecem idealizações gerais para objetos do mundo real. É fascinante que um círculo não represente apenas um único objeto, mas sim uma infinita família de objetos e, o mesmo vale para o “número dois” que caracteriza uma infinidade de duplas ou o “número três” com os trios, e assim por diante. No entanto, vale mencionar aqui que mesmo os números, tal como os entendemos hoje, mesmo que esses tenham sido uma invenção humana, nós não os compreendemos por completo. Ainda que mesmo um irracional como a “raiz quadrada de dois” possa caracterizar toda uma classe de classes como as medidas de diagonais de um quadrado, há ainda aspectos que não compreendemos nos números. Por exemplo, o próprio comportamento dos números primos que acarretam questões como a Conjectura de Goldbach. Entretanto, a proposta de número independe da capacidade ou existência do ser humano – lembremos que quando duas duplas de dinossauros se encontraram próximo a algum vulcão há milhões de anos atrás, não havia ali um humano pra dizer que eram quatro dinossauros e mesmo assim havia quatro deles. Nesse sentido, ainda que não compreendamos os elementos matemáticos por completo, do ponto de vista filosófico, faz todo sentido concordarmos que a Matemática é sim a Linguagem do Universo, pois apresenta um modo racional de concepção do mesmo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS [ 1 ] RUSSELL, B. Introdução à Filosofia Matemática. 4 ed. Trad. Giasone Rebuá. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1966. [ 2 ] TARSKI, A. Introducción a la Lógica: y a La metodología de las ciencias deductivas. 4 ed. Madrid: Espasa-Cape, 1985. [ 3 ] DESCARTES, R. Discurso do Método. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. [ 4 ] GARDNER, M. Is Mathematics for Real? In: DAVIS, P.; HERSH, R. The Mathematical Experience. p. 440. Boston: Birkhäuser, 1981.