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A MANIA
                          DAS
                       COLECÇÕES

  Tenho um vizinho que é coleccionador. De quê? De
selos? De moedas? De caixas de fósforos? De garrafinhas
de licor? De bilhetes-postais? De revistas antigas?
   Nada disso. O meu vizinho do lado é coleccionador, mas
de chapéus.
   Lá em casa, logo à entrada, tem um bengaleiro, que é um
museu de chapelaria. Quem lhe não conhecer a mania e se
ficar pela entrada, julgará que o senhor tem lá em casa, à
conversa, no salão, uma quantidade de cavalheiros de todas
as épocas… E se tivesse? Se tivesse, pelo que se calcula
dos chapéus pendurados, a casa do meu vizinho seria um
baile de máscaras permanente.
   Se não reparem:
   Um chapéu de plumas à mosqueteiro,
   um fez à turca, que parece um vaso sem flores,
                            1
um chapéu de abat-jour, de um chinês de antigamente,
   um chapéu alto, como usavam os nossos bisavós,
quando não usavam chapéu de coco,
   um chapéu de almirante, que parece um barco virado ao
contrário,
   um capacete com um bico no alto, a servir de pára-raios,
   um chapéu de palha, a que qualquer burro competente
chamaria um figo,
   um barrete de campino, mais garrido que uma bandeira,
   um tricórnio, de que nunca se sabe qual é o lado da
frente,
   um chapéu de explorador africano que, depois de
pintado, já serviu a um polícia sinaleiro de antigamente
   e muitos, muitos mais chapéus…
   É uma pena que o meu vizinho do lado vá acabar com a
colecção. E porquê?
   Explicou-me ele:
   – Estão aqui muitas viagens, muita despesa, muita
aventura. São o meu orgulho, pode crer. Mas a verdade é
que, agora, já me cansam. Vê-los assim, pendurados, sem
préstimo, na sombra do bengaleiro, fazem-me impressão.
Parece que os tirei a quem pertenciam. Enervam-me,
tiram-me o sono. Quero ver-me livre deles.
   – E como? – perguntei.
   – Ponho um anúncio – explicou-me o coleccionador. –
Cada pessoa que vier leva um chapéu de graça. Mas tem de
prometer que não o tira da cabeça, até ao fim da rua.
   – Quero estar cá, à janela, para ver isso ! – exclamei,
entusiasmado.
   Não calculam o espectáculo. Parecia um dia de
Carnaval, como aqueles que já não há. Só visto.

                            2
– E agora? – perguntei eu ao meu vizinho do lado,
quando passei lá por casa. – Está mais aliviado?
  – Nem por isso – suspirou ele. – Sinto-me, de repente,
mais pobre, mais desacompanhado. Parece-me que vou
começar outra colecção.
  – Outra vez de chapéus? – quis eu saber.
  – Não, essa já deu o que tinha a dar. Vou pôr-me em
campo para uma nova colecção, mas de sapatos.
  – Novos? – intriguei-me.
  – De forma alguma. Antigos, isto é, velhos, cambados,
gastos. Quero coleccionar sapatos com muita andadura,
muita experiência de estrada na sola dos pés.
  E o meu vizinho olhava para os meus sapatos, com
particular interesse…
  O que havia eu de fazer? Ofereci-lhos para início de
colecção e, descalço, atravessei o patamar até à minha
casa.
  Entre vizinhos, temos de ser uns para os outros.


  FIM




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  • 1. A MANIA DAS COLECÇÕES Tenho um vizinho que é coleccionador. De quê? De selos? De moedas? De caixas de fósforos? De garrafinhas de licor? De bilhetes-postais? De revistas antigas? Nada disso. O meu vizinho do lado é coleccionador, mas de chapéus. Lá em casa, logo à entrada, tem um bengaleiro, que é um museu de chapelaria. Quem lhe não conhecer a mania e se ficar pela entrada, julgará que o senhor tem lá em casa, à conversa, no salão, uma quantidade de cavalheiros de todas as épocas… E se tivesse? Se tivesse, pelo que se calcula dos chapéus pendurados, a casa do meu vizinho seria um baile de máscaras permanente. Se não reparem: Um chapéu de plumas à mosqueteiro, um fez à turca, que parece um vaso sem flores, 1
  • 2. um chapéu de abat-jour, de um chinês de antigamente, um chapéu alto, como usavam os nossos bisavós, quando não usavam chapéu de coco, um chapéu de almirante, que parece um barco virado ao contrário, um capacete com um bico no alto, a servir de pára-raios, um chapéu de palha, a que qualquer burro competente chamaria um figo, um barrete de campino, mais garrido que uma bandeira, um tricórnio, de que nunca se sabe qual é o lado da frente, um chapéu de explorador africano que, depois de pintado, já serviu a um polícia sinaleiro de antigamente e muitos, muitos mais chapéus… É uma pena que o meu vizinho do lado vá acabar com a colecção. E porquê? Explicou-me ele: – Estão aqui muitas viagens, muita despesa, muita aventura. São o meu orgulho, pode crer. Mas a verdade é que, agora, já me cansam. Vê-los assim, pendurados, sem préstimo, na sombra do bengaleiro, fazem-me impressão. Parece que os tirei a quem pertenciam. Enervam-me, tiram-me o sono. Quero ver-me livre deles. – E como? – perguntei. – Ponho um anúncio – explicou-me o coleccionador. – Cada pessoa que vier leva um chapéu de graça. Mas tem de prometer que não o tira da cabeça, até ao fim da rua. – Quero estar cá, à janela, para ver isso ! – exclamei, entusiasmado. Não calculam o espectáculo. Parecia um dia de Carnaval, como aqueles que já não há. Só visto. 2
  • 3. – E agora? – perguntei eu ao meu vizinho do lado, quando passei lá por casa. – Está mais aliviado? – Nem por isso – suspirou ele. – Sinto-me, de repente, mais pobre, mais desacompanhado. Parece-me que vou começar outra colecção. – Outra vez de chapéus? – quis eu saber. – Não, essa já deu o que tinha a dar. Vou pôr-me em campo para uma nova colecção, mas de sapatos. – Novos? – intriguei-me. – De forma alguma. Antigos, isto é, velhos, cambados, gastos. Quero coleccionar sapatos com muita andadura, muita experiência de estrada na sola dos pés. E o meu vizinho olhava para os meus sapatos, com particular interesse… O que havia eu de fazer? Ofereci-lhos para início de colecção e, descalço, atravessei o patamar até à minha casa. Entre vizinhos, temos de ser uns para os outros. FIM 3