1. Meia Nota de Vinte Escudos
Ao ser encontrada despertei no João, o meu descobridor, uma memória: 'vinte escudos'.
Este jovem português, habitante da capital, não chegou a transacionar-me, não me conheceu de
perto, não privou comigo no meu auge profissional. De mim, apenas detém um conhecimento
histórico e livresco, talvez, ou apenas, de conversas entre gerações. No entanto, conheceu a
minha irmã mais nova, a moeda de vinte escudos.
Mais pequena, de maior portatibilidade, a minha irmã partilhou em muitos dias da sua vida
uma pequena habitação social T0 com um pequeno amigo de plástico - o perservativo - nas águas
furtadas de um condomínio de luxo de um bolso de calças de ganga Lévi. Entre ambos, não se
conhece relação de parentesco ou de amor, apenas de ódio. O ódio próprio das relações
desgovernadas entre patrão e proletariado, ou mesmo, entre classe rica e classe pobre de
proletariado.
Quando os dias, ou talvez melhor, parte dos dias, eram de sorte e paixão ou mesmo só e
apenas de sexo entre humanos, as minhas irmãs e primas moedas sofriam de um rasgo de
preservatização, sendo instantaneamente colectivizadas e convocadas (de livre vontade ou não)
para a compra de um ou mais preservativos.
Retomemos, por ora, o momento presente. Guardada na carteira com cheiro a couro do
João, no bolso grande e traseiro das calças do João, eu que ainda agora era sem-abrigo
portegida apenas do vento e do frio pela velha lata de bolachas, em casa da avó do João, devo
considerar-me de um novo riquismo para lá da habitação social T0 da minha irmã moeda. A que
devo atribuir esta súbita alteração de nível de vida, condição social, e melhora afectiva? -
pergunta a nota de vinte euros que partilha comigo a carteira de couro do João.
Minha cara amiga - respondo num tom burguês - penso que os factos se devem à
memória, ou seja, conjunto de redes neuronais e bioquímicas, que crio ou activo no João. Acredito
que a emoção e o afecto da minha velhice sobre a tua juventude e vazio de afecto tornam a minha
plataforma neuronal mais atractiva e prazerosa para o João.
Compreendo - retoma a nota de vinte euros. Bom, então se me permite vou trabalhar pelo
João e pagar o almoço e a bica, aqui no balcão do restaurante. Com alguma sorte, talvez venha a
conhecer algumas das minhas primas, as notas de 10 euros ou de 5 euros. Adeus, gosto em
conhecê-la.
Por instantes, fico triste e isolada aqui entre duas paredes de couro, sentindo a falta do
2. trabalho, da correria do dia-a-dia profissional. Mas, num instante ainda mais breve, chegam as tais
de 10 e 5 euros, de raça vermelha e azul, respectivamente.
- Boa tarde! Quer ficar mais perto da saída, aqui ao cimo da carteira ou mais para baixo? -
pergunta a de 5 euros. Não se preocupe jovem, estou bem aqui pelo meio - respondo. Mas
porque pergunta? - questiono. Bom, não querendo ser indelicada, como está velhinha e com o
handicap da metade, preocupei-me - responde a de 5. Compreendo - exclamo, sorrindo.
- Não querendo ser indiscreta, será que pode falar-nos sobre o handicap da metade? -
solicita a medo a de 10.
Claro minha jovem! - afirmo com a alegria prórpia dos velhos com história para contar,
sedentos de ouvintes atentos e curiosos. Era um dia seco e frio de inverno quando caí por entre
os dedos de uma mão que num instante se abriu para sufocar um cachorro brincalhão que do
nada fugira à coleira de passeio pelas ruas da cidade, o insolente. E para maior azar, caí na poça
de merda que o insolente havia acabado de despejar, ficando afogada até três terços. Ora, como
tinha um valor de amuleto para o humano que passeava o cão, fui resgatada com um suave lenço
de papel, após o agarrar do canídeo, e transportada ao vento até casa do humano. Chegados a
casa, o meu cheiro pestoso entranhou-se com tal poder nas gotas de ar da habitação, que o
humano se obrigou a cortar-me pela metade, e a internar-me numa velha lata de bolachas. Como
imaginam não tive na vida maior desgosto.
Eu, que tanto esforço fizera para evoluir de um cheiro vazio e simples de nota de cofre,
para um cheiro de suor transpirado pelo suor dos outros, através de viagens de mão para mão; eu
que, num dia solarengo de mercado, tinha adquirido o cheiro peixoso do avental de uma varina,
ganhando mesmo um extra de escamas e restos de guelras ao ser transacionada como troco de
pagamento de peixe; eu que depois chegara ao cheiro de naftalina e mofo da gaveta de lado da
cama do pequeno neto do avô que um dia piscando-lhe o olho lhe sussurrou baixinho 'esta é a tua
nota da sorte, guarda-a'; eu que ganhara a um cheiro a caixote de mudanças quando o neto se
casou e me levou para a gaveta do hall da casa nova, donde sempre me tirava e levava por
passeios pela cidade quando a vida lhe era mais desorganizada e ansiava por invocar o velho avô
que tantos concelhos lhe dera antes de morrer. Fui despejada na velha lata para onde o olhar do
neto jazia nas manhãs em que nada fazia sentido, ou para onde o neto sorria quando os dias do
neto eram solarengos para lá do tempo que a rádio anúnciava e profetizava lá para fora. E foi
nessa lata que fui descoberta pelo jovem que agora encontraram no balcão. Sabem, e concluindo,
talvez o insolente do canídeo me tenho poupado a troca no Banco de Portugal por uma das
vossas primas moedas de euro.