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DIAS DE OUTONO
Sonia Regina Rocha Rodrigues
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ISBN – 85-904649-4-6
Autorizada reprodução, desde que citada autora e fonte.
Ano de publicação: 2004
3
“Sob a pele, há uma vida paralela, onde as datas não importam.”
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1994
Há muitos anos não escrevo um diário. O de infância joguei fora, o de
adolescente era tão perigoso que rasguei em mil pedacinhos, houve um outro tão
sofrido que queimei. No entanto um episódio banal fez cócegas em meus dedos e
cá estou de novo a diarizar meu cotidiano. E, com o computador, teoricamente,
fica mais fácil, mais sigiloso e nem ocupa espaço...O fato banal, que me levou de
novo a escrever, foi o que se segue:
Assiti um documentário sobre Mary Cassat, a pintora impressionista, esposa
de Degas.
Ela recebe a visita de Louise May Alcot, a escritora, que diz para a sobrinha
adolescente de Mary:
- Se você gosta de escrever, tem de ter um diário. Um diário ajudará você a
compreender seus sentimentos.
Comigo não é assim. Eu me confundo ao contar meu dia a meu diário, pois
há tantos aspectos diferentes e tantos pontos de vista e tantas personagens
interiores querendo roubar a cena, que acabo por não saber o que realmente me
aconteceu.
Freqüentemente, escrever diários me leva a descaminhos, a sombrias vielas,
sentimentos bizarros ou desagradáveis, a ilusões, a distorções. Apenas
transformando realidade em literatura aquela bizarrice adquire significado.
Definitivamente, o mundo dos sentimentos é meu lado sombra.
Custei, mas finalmente resolvi _ é agora que eu aposento a minha
obsoleta máquina de escrever.
Ansiosa por entrar na era da informática, comprei um 486 DX2 66.
Não se impressionem com esses números todos. Trata - se, como vocês já
devem ter adivinhado, de um computador . Um computador pessoal, o mais
moderno do mercado, com impressora e multimídia.
E , deslumbrada, a família aventurou - se pelos ícones do Windows
adentro. E foi amor à primeira vista _ maravilhoso ... enquanto durou.
E durou tão pouco !
Como eu sou vítima profissional de todo tipo de parafernália
moderna , seja mecânica ou eletrônica, as filhas, já acostumadas com a
urucubaca, foram reclamando:
- Também, mãe, já dava para adivinhar, tudo acontece contigo !
Há quinze dias os técnicos tentam descobrir porque aquela maravilha
não funciona.
Técnico vem, técnico vai, acrescenta - se memória, troca - se a placa,
reprograma - se o winchester ... e nada ! Ontem, em desespero de causa,
após confabulações misteriosas, os doutores em computação levaram meu
Forrest Gump para a UTI.
E cá estou eu a datilografar esta matéria pela maneira troglodita na
minha velha e fiel Olivetti.
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O comp está apaixonado e cheio de dúvidas !, exclamou minha filha
Fernanda, enquanto eu, infeliz, olhava a impressão de meus textos: uma única
linha de asteriscos, corações, quadrados, círculos e pontos de interrogação.
No dia anterior o comp não imprimia nada. Eu chamara o técnico, por
sorte eu moro bem ao lado da loja. Ele chegara, sentara - se, eu dera os comandos
para demonstrar o problema e o engraçadinho funcionou normalmente.
Que raiva!
Lá tive eu que engolir um “às vezes é o usuário que não sabe usar...”
Como se eu não trabalhasse com impressoras há mais de um ano!
No mês anterior eu enviara uma parte do jornal para a redação todo em
colagens, porque o idiota se recusara a imprimir a última meia página do tablóide,
jogando na tela a mensagem: “O cabo está solto”
Não havia nenhum cabo solto, evidentemente, mas a máquina não se
deixava convencer. Quando voltei, Fernanda terminava de compor um trabalho de
escola, quinze folhas elaboradamente impressas pelo comp.
Estou absolutamente convicta de que aquela máquina me odeia. Faz de
propósito para atrapalhar a minha vida.
Máquina não tem vida ? Ah, tem, sim. Tenho a mais absoluta certeza de
que a minha, pelo menos, tem uma personalidade própria.
Pois como explicar que assim que a Fernanda sentou - se em frente ao
monitor e solicitou a impressão, o adorável comp imprimiu meus contos direitinho
no maior capricho?
É admirável a capacidade de nossas lojas e supermercados contratarem
pessoas totalmente desinformadas sobre o que vendem.
Nem falo do vendedor de livros que procura Machado de Assis no balcão
dos Últimos Lançamentos ou A Defesa de Sócrates na seção de esportes.
O caso é mais grave, gravíssimo até. Julgue o leitor por si mesmo.
Vou ao supermercado comprar feijões. Há anos compro um tipo de feijão
pré-cozido, marca Vapt-vupt. Fica pronto em três minutos com caldo grosso e
saboroso. Não encontrando, pergunto ao gerente.
Parece ser o gerente. Está de terno e gravata, usa um crachá do
estabelecimento e está dando ordens a outros funcionários. O cidadão me conduz
à seção dos ensacados, onde um rapaz me aponta os feijões secos.
- Quero o pré-cozido – explico.
Todos os feijões estão aqui – afirma ele.
- Marca Vapt-vupt – insisto, e, encontrando dois olhares indiferentes, mudo
de tática – e onde encontro as batatas pré-cozidas?
- Isto é fácil – o rosto do gerente se abre em um sorriso e ele me leva ao
rapaz que descarrega batatas fritas em saquinhos nas seção dos petiscos.
- Procuro as batatas pré-cozidas – explico.
- Aqui estão as fritas. A senhora já olhou nos congelados?
- O nome da marca é Vapt-vupt – arrisco, desistindo de esclarecer que não
são congeladas.
- Ah! Estão em frente aos legumes .Por aqui – e o bem informado rapaz nos
guia até uma prateleira repleta dos mais diversos produtos da Vapt-vupt, inclusive
batatas e feijões. O gerente se dirige a mim no tom mais eficiente do mundo:
6
- Aí estão suas batatas, senhora.
Agradeço, pego os feijões e me dirijo ao caixa.
Existem duas adolescências na vida: a primeira aos doze, quando nos
libertamos dos pais. A segunda acontece quando nos libertamos dos filhos.
O castigo do pecador vem atrelado ao pecado. Assim é que os gordos
engordam, os preguiçosos empobrecem, os irados tornam-se hipertensos e as
mães... definham aprisionadas na dita ‘relação definitiva’
Mal entrara eu na livraria e caiu-me nas mãos os Contos do Espólio. E lá
estava o mais magnífico conto que já li: o rato entre o gato e a armadilha.
Quem foge da ratoeira encontra o gato de Kafka.
Entre a ratoeira e o gato, recuso o dilema, procuro opções. Não sou rato,
pertenço antes a uma raça que não tenho bem certeza de poder chamar de humana,
mas dane-se o tcheco! Este é meu conto, quero um universo ‘leminskiano’ e
decreto que nessas linhas, ‘grafite é o limite.’ Mereço o nirvana, não a ratoeira,
nem a goela do gato, nem o kafkiano pessimismo por mais genial que seja. Sou
brasileira, dou a volta por cima, faço a hora, não espera acontecer, este exercício
intelectual não resolve coisa nenhuma mas é divertido como o quê.
Sou diariamente agredida pelo despreparo culinário da mocinha do andar de
baixo. Um verdadeiro terrorismo gastronômico: o pão queimado, o feijão que
pega, o cozido que passou do ponto. Já estamos amparados por lei quanto à praga
da invasão acústica, quando aos cheiros, a coisa é bem diferente. Nas regras do
condomínio há de haver alguma que nos garanta a privacidade olfativa.
Idéias para um concurso promovido pela Nestlé, pois, ao contrário de minha
vizinha, adoro cozinhar, correção: adoro fazer doces:
Nestlé faz parte do álbum da família desde o primeiro aniversário de minha
filha, nos doces caprichosos e deliciosos que enfeitam as mesas das festas.
O seu primeiro bolo foi um tambor, confeitado em rosa e azul, com
baquetas de biscuit. E recheado com Leite Condensado Moça.
O segundo foi um relógio, com números de chocolate e mostradores de
confeitos.
O terceiro foi uma boneca, negra, com cabelos de granulado, porque a
aniversariante era doida por chocolate.
No quarto aniversário a casa virou circo e o bolo palhaço ganhou cabelos de
fios de ovos e nariz de goiabada.
O quinto aniversário foi comemorado com um barco à vela, simples de
confeitar, porque a mãe estava sem tempo; a graça da mesa ficou por conta dos
smurfs que navegavam nele.
No ano seguinte, a mãe estava de férias e caprichou na decoração do Sítio
do Picapau Amarelo. O bolo nem poderia ser outro: a boneca Emília.
Outros bolos esperam sua vez na espaço do armário reservado às
publicações culinárias: o já gasto Livro de Receitas Culinárias de Chocolate de
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Juliette Elkon, os livretos sobre festas infantis e festas juninas da Nestlé e, é claro,
a maravilhosa coleção de revistas Nestlé e Você. Ao lado, no meu caderno de
receitas, há uma parte especial dedicada aos recortes de bolos cuidadosamente
colecionados das latas de Leite Moça. E, na primeira página deste caderno de capa
dura, que a professora do ginásio profetizou “deverá durar a vida toda”, está a
primeira receita que fiz, aos doze anos, copiada do caderno da melhor amiga: o
pavê Nestlé.
Ainda Kafka. Penso naquele incrível conto sobre o gato e o rato e salta-me à
memória a imagem de um Buda de marfim e de Monteiro Lobato. Não há nenhum
elemento de ligação entre a estátua, Lobato e o conto de Kafka (nove anos de
análise freudina poderiam ser desperdiçados nesta busca inglória), mas Kafka é
assim: dá nós no cérebro. Se eu escrevesse como Kafka estaria há muito confinada
entre quatro paredes, confirmando assim as idéias kafkianas.
Se Kafka nascesse no Brasil o sol dos trópicos avacalharia com seu
pessimismo. Que seriedade resiste a um meio-dia de fevereiro ao ar livre? O suor
não tem dignidade.
Ao ser apresentado a uma água de coco gelada, Kafka relaxaria e trocaria as
gargalhadas com que acompanhava a leitura de seus contos por um sorriso de,
pasmem, puro prazer. A sensação inusitada implodiria seu universo. E as invés de
escrever, o tcheco comporia sambas, entrudos, presepadas e bossa-nova, teria
talvez criado o Ritmo do Absurdo, tão de conformidade com nossa História.
A genialidade será talvez genética, no entanto acredito na superioridade da
geografia. O clima mudaria tudo.
Antigamente, as pessoas consultavam a lista telefônica em busca do
número de alguém. Hoje é diferente.
Precisando telefonar para o INAMPS e para a Faculdade Dom Domênico,
revirei as páginas brancas e as amarelas. Nada. Liguei para Informações e, de cada
vez, ouvi:
- Este telefone não consta da lista.
- Não diga! Se constasse da lista... – bem, do outro lado da linha, a
telefonista não sabia que eu estava em casa, com a lista na mão. Tentei
argumentar: - A senhora com certeza conhece o Posto de Assistência Médica do
INAMPS, na Aparecida, é caso de utilidade pública, este telefone tem de constar
em algum lugar!
- Se a senhora souber em nome de quem está o telefone...
A faculdade também não consta da lista, segundo Informações:
- Uma faculdade inteira não pode simplesmente desaparecer! A senhora
sabe, com certeza, que esta faculdade existe, não é?
- Não consta da lista. – Clic.
Definitivamente, a “criatura” do outro lado do fio não é mais humana,
privatizados que foram os seus neurônios em prol do lucro de alguns.
Encontrar os números necessários é simples, desde que a gente aprenda a
técnica. Primeiro, tente o vizinho. Depois, ligue para um estabelecimento similar.
Consegui o número do INAMPS ligando para o INSS, onde uma simpática
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funcionária me forneceu não um, mas dois telefones do posto em questão.
Discando para outra faculdade, uma das secretárias forneceu-me o número da
Dom Domênico. Este é o procedimento que funciona atualmente.
Quanto à lista telefônica... não, não a jogue fora! Ela é extremamente útil!
Com ela, você evita as filas no correio para consultar rotos, ensebados e
dilacerados catálogos, pois nela encontram-se os CEPs de todas as ruas de nossa
cidade.
UM ANTÍDOTO, JÁ!
Fui envenenada por FHC. Veneno mais tóxico que o BHC, FHC corrói
aquele lugarzinho secreto responsável pelo bem-estar e pela paz de espírito, que
os místicos chamam de ‘alma’, os junguianos ‘self’ e o cidadão comum
simplesmente ‘bolso’. Questão de ponto de vista.
Ainda convalescente da última mordida do Leão, reajo mal a 43 anos de
brasilidade.
Devo à CEF, onde fui trocar de pesadelo (do pesadelo do aluguel para o
pesadelo da casa própria) uma úlcera de stress, noites de insônia e sessenta dias de
completa esterilidade mental – as idéias todas debandaram, em pânico.
Recupero-me aos poucos, na esperança bem brasileira de conseguir pagar
juros absurdos com salários congelados há mais de três anos. Valei-me, Santa Rita
dos Impossíveis!
As próximas eleições? Meu voto é ecológico, que a vida é para todos e o
dinheiro também. Quero respirar!
Agora, com licença, vou fazer pipocas, assistir ao final da Copa do Mundo e
tentar convencer o caçula a desistir daquela universidade a R$1000,00 por mês
com garantia de desemprego certo:
_ Vai jogar futebol, meu filho!
O caminhão de mudança encostou e eu fui logo avisando:
- Os livros embalo eu!
Pouco me importa o que acontecerá com as roupas, as louças e os
eletrodomésticos. Afinal, trata-se de um problema mecânico bastante simples:
pegar de um lugar e levar para outro.
Quanto aos livros, a questão é diferente. Na minha primeira mudança
fiquei durante uma semana encontrando os coitadinhos nos lugares mais
inusitados: na máquina de lavar, no forno, no freezer. Até mesmo servindo de
calço para uma perna de sofá capenga _ e olha que era um exemplar novinho, que
eu mal começara a ler.
É indispensável examinar o caminhão cuidadosamente antes que parta.
- Tem certeza de que descarregou tudo?
- Sim, senhora. Aí dentro só tem papel velho e uma meia dúzia de livros
que caíram dos caixotes.
- Livros? E vocês não os pegaram?
- Pra que? A senhora já tem tanto livro aí, que mais um menos um não vai
fazer diferença.
E, estatelados no chão sujo, meu atlas de
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anatomia e minha coleção de arte, importada!
Não é muito ruim quando os carregadores enfiam alguns exemplares junto
com os sabonetes _ ficam cheirosos por bastante tempo. Chato é quando eles os
socam no mesmo caixote com cebolas, pó de café e outras especiarias - por
semanas, ao escolher um livro, tenho a sensação de estar indo ao supermercado.
Em outra ocasião, eu embalava cuidadosamente meus cristais, quando dei
- me conta de um silêncio incomum.
Onde estavam os carregadores? Procura daqui e dali, afinal encontrei - os
sentados na sala, absorvidos na leitura.
Súbita paixão pela literatura? Nada disso. É que haviam descoberto uma
Enciclopédia Sexual Ilustrada.
Desta feita eu resolvi fazer na biblioteca a mesma faxina que faço no resto
da casa _ sumir com as velharias, cortando o que esteja fora de uso e fora de
moda.
Comigo ficaram apenas os clássicos, as obras-primas, os meus preferidos
inseparáveis amigos de todas as horas.
Por isso foi tão fácil acomodá-los, pois couberam todos em apenas vinte e
cinco caixotes.
Acordo angustiada. Sonhei que na sala onde dou minhas aulas, há uma
cama onde escondi minha bolsa. Há muitas pessoas ali, saímos e deixamos a porta
aberta. Percebo que há vozes estranhas na casa, mas não digo nada. Quando
voltamos para a sala, nada foi roubado, exceto minha bolsa, que alguém encontrou
jogada na rua, sem dinheiro, sem as chaves do carro, sem os documentos e
inclusive sem o seguro do carro.
Alguém realmente quer tomar a direção de minha vida, sem nenhuma
garantia.
Um sonho perturbador. Estou em Bebedouro, com duas colegas que
cantavam comigo em um coral, Zulmira e Nívia. Vestida de preto, Nívia está
gemendo e não tem pés. Zulmira diz que a dor é por uma perna estar menor que a
outra. É madrugada e vamos à praia, onde entramos dentro de uma rocha. Ao
entrar na caverna, vejo uma ex-colega de ginásio, imensa de gorda, deitada em
uma maca; ela chama, conta para Zulmira que está doente, tem as faces vermelhas
e inchadas. Na praia, em declive, há muita gente, a água é transparente e está um
dia ensolarado. Suspendo a saia para molhar o pé, não entro na água. Lembro-me
de que a primeira vez que entrei na água, nesta praia, mergulhei até o pescoço,
recordo a deliciosa sensação de água gelada na pele quente. Torno a entrar na
caverna, e a garota gorda diz que emagreceu 4,5 kg. Tornamos a sair, a água subiu
tanto que passou a areia e a amurada, inundou o passeio. São águas tranqüilas e as
atravesso para ir embora.
Acredito que este seja um sonho sobre partes doentes. Nívia é como um
orgulhoso pavão de voz linda e pés feios; desequilíbrio entre ação e emoção;
impotência – sem pés não pode andar. A garota gorda, inchada, retém emoções e
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vê os defeitos alheios. Zulmira sobrecarrega-se de trabalho, é só coração e
determinação, dedicada aos outros. Eu estou indefinida andando em companhia de
pessoas com problemas sem tomar nenhuma atitude, deixando-me levar.
Ontem senti-me de novo vivendo no interior, quando Fábio convidou-me
para ir ao teatro Municipal, assistir um concerto em prol da campanha Aquisição
de um Steinway (piano de cauda). É como um flash back de Léa Pitelli em Um
Piano para Comedouro.
Comedouro foi uma lição de vida. Lá comecei a entender o mundo dos
ricos, a elite culta, a fração elegante dos ricos. Rico é diferente: alegre, seguro,
tranqüilo, um privilegiado como consumidor de cultura. Fábio me disse para ir
chique que a velharada gosta de ir bem arrumada. Em Comedouro, eu correria a
minhas pérolas. Aqui, coloquei meu vestido mais novo, meu colar e brinco
básicos, batom básico e gotas de um perfume francês. A velharada inteira parecia
estar de uniforme: tailleurs, cores pastéis, as inevitáveis pérolas – colares curtos
ou longos, com uma ou duas voltas, e enormes brincos combinando.
O concerto foi divino, viajei na música, um mar de emoções em que o
maestro Guga viaja admiravelmente, aliás, do jeito que aquele maestro se mexe,
ele parece nadar entre os sons. O pianista vindo de Innsbruck tinha mãos grandes
e gordas. Na opinião do Fábio é o melhor pianista do mundo. Já a Regina Amaral,
que organizou o concerto, disse tsc tsc, há muitos pianistas melhores, citou o
nome de três celebridades internacionais e comentou que, quando eles vêm a São
Paulo, sua filha os convida e eles se apresentam no salão particular em casa dela,
pois a filha tem um salão para trinta pessoas, com dois pianos de cauda,
exclusivamente para esses concertos restritos aos íntimos da família... Como eu
dizia, rico é diferente.
Fui apresentada para as presidentes de tantas entidades culturais que não
gravei os nomes nem das presidentes nem das entidades. Todas de queixo para
cima, peito estufado, olhar de águia, sorriso satisfeito do tipo eu mando e gosto
disso. Fábio me apresentou como escritora e eu retruquei à altura, anunciando que
sou a editora do Chapéu-de-Sol – literatura e outras artes, lembram-se da
reportagem de capa sobre a Zezinha? Maria José Aranha de Resende, a Zezinha,
espalhou nossa revista para esta elite toda, foi muito bom para nós, um excelente
trabalho de divulgação.
A maior parte dessa elite cultural fechada se conhece desde a infância e se
freqüenta em locais exclusivos. Em Comedouro eu diria que são umas sessenta
pessoas, aqui umas quatrocentas; a importância que lá se dá ao nome de família
aqui é acrescido pelo olha só o que eu fiz/ conheci/vi/participei. Um mundo
elegante, refinado, perfumado...
Sonho. Vovó estava aqui, em casa, rindo, rindo...
Antes de vovó morrer, ela ficava com os olhos parados e distantes por
alguns momentos e então dizia que estava em um lugar muito bonito, e tanta gente
a chamava e ria, ria e que ela se sentia feliz.
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Será que vou morrer?
Ser poeta é agradecer a vida com alegria, pois, como dizia Epicuro, os
deuses nos deram tudo, exceto sabedoria. Basta escolher, desfrutar, agradecer,
exaltar.
Procuro novos sapatos em um restaurante, encontro sandálias brancas e
experimento, coloco um pé e percebo que o estão servindo a comida, então peço
ao garçon que guarde as sandálias para mim até eu retornar da mesa. Na mesa,
meu pai está sentado ao lado de outra moça e me ignora. Aliás, meu pai é barbudo
e eu não o conheço. Confusa, saio e vou para casa, mas estou sem chaves, chamo
um chaveiro para trocar o miolo da fechadura, nisto chega minha filha e abre a
porta com sua chave. Fico muito confusa, pois o miolo foi trocado e a chave velha
serviu na fechadura nova.
Troca de chaves, troca de sapatos. Um sonho sobre hábitos velhos e novos.
BOM DIA
Comece bem o seu dia
Usando sua fantasia
Para buscar alegria
Energia
Simpatia.
Imagine, a cada manhã,
Que está abrindo um portão.
O que haverá do outro lado?
Ora, um lago!
Não sei se há patos,
Peixes,
Flores ou lenha em feixes.
Olhe ao redor e descubra
Se há céu claro ou espessa bruma.
Retire toda a roupa
Enrole-a em uma trouxa
E por sobre o ombro esquerdo
Atire seus trapinhos.
Entre no lago,
Mergulhe,
Pule,
De uma só vez ou aos pouquinhos,
De seu jeito,
De seu modo,
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Fique inteira sob a água,
Fique o tempo que quiser,
Feche os olhos ou abra os olhos,
Perceba tudo o que puder,
Movimentos, toques, sons,
E atravesse o lago,
Saia da água,
Saia do lago,
Na outra margem há uma muda
De roupa nova e enxuta.
Vista esta roupa e repare
Em seu modelo, suas cores,
Sua textura e espessura
E veja como lhe assenta.
Saia agora do jardim
Pelo portão por onde entrou.
Abra os olhos, vá para a vida,
Se é pesada a sua lida
Ou se é leve a sua sina,
Eu não sei, mas lhe garanto,
A cada manha você pode
Refrescar-se em seu próprio lago
E vestir um traje adequado,
Folgado,
Requintado,
Amalucado,
Melhorado,
Engraçado,
-em qualquer caso –
Encantado.
Bom dia não são versos de pé quebrado, e sim uma técnica de meditação de
um tal de Dr. Epstein, especialista em cura por imagens, cujo livro eu estou
estudando.
Perco sangue às baciadas, tenho muitas cólicas e, de repente, na cuba
hospitalar, vejo o último pedaço expelido: um grande bicho verde e amarelo,
parecido com um marisco, seco e morto. Será um sonho de cura? Finalmente meu
útero parou de chorar ou expeliu o monstro devorador de homens? Uau, que
freudiano!
Uma mulher sabe que envelheceu quando está em uma reunião e alguém lhe
comunica que há um homem à sua procura e o grupo em volta diz com
unanimidade que com certeza trata-se de seu filho.
Você sabe o que é a tão falada e atual síndrome da pânico?
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É o que sente o náufrago vendo passar ao largo o navio enquanto em suas
carnes se encravam os dentes do tubarão.
É assim com ser torturado pela Tribunal da Inquisição.
É quando procuras por teu anjo da guarda e te deparas com os guardiões do
Umbral.
É o que faz um não cristão entrar em uma igreja e apelar para Santa Rita dos
Impossíveis.
Tu te sentes como um cristal estraçalhado e ouves à tua volta: “és forte;
agüentas”.
Tu és um sobrevivente e sofres como um índio aprisionado, um guerreiro
ferido, um cavalheiro desonrado.
Deixa de lado todo aquele jargão psiquiátrico que não consola a tua dor
profunda.
Vivemos em uma sociedade bárbara, em que atingem o poder e o sucesso
aqueles que usam sem escrúpulos da maior violência.
Sossega, nada há de errado contigo.
Se não és um alienado, como não entrar em pânico?
Minha lista de compras: dois camelos. Não sou árabe nem moro no Egito.
Simplesmente estou completando o presépio.
14
1995
Meu pai era conhecido como 'o homem da maquininha' porque fazia
contas em um soroban. Aprendera com amigos japoneses a usar este instrumento
de cálculo e, em todas as eleições, convocavam-no para mesário. E por vários dias
ele ficava trancafiado com outros escolhidos a apurar os resultados voto a voto,
urna a urna. Homem simples, aqueles eram seus dias de glória _ ele saboreava o
prestígio e a admiração dos companheiros por quem conseguira arrancar um
segredo aos japoneses.
Em casa, ele tentava pacientemente ensinar-me o processo. Enquanto ele
ditava as parcelas, eu rapidamente fazia os cálculos _ de cabeça. Meus dedos
canhestros invariavelmente esbarravam em outras fileiras, desarranjando as
dezenas antes de somadas as unidades e era preciso recomeçar. Papai propunha-se
a zerar o instrumento, ao passo que eu, para economizar tempo, nele 'escrevia' o
resultado da soma, já feita mentalmente. O curioso é que papai lamentava minha
total incapacidade para as matemáticas e perguntava-se o que seria de mim,
quando tivesse de somar longas listas de algarismos, como, por exemplo,
verificando as despesas das compras mensais.
Se meu pai pudesse prever o futuro, teria poupado preocupações. A cada
mês é mais fácil contabilizar as compras da casa. Os abarrotados carrinhos de
supermercado, em tempos de real, transformaram-se paulatinamente em
minguadas, leves sacolinhas.
E eu retiro apenas um dígito por dia para calcular o tempo que falta para o
término do mandato de FHC.
TRADIÇÃO DE FAMÍLIA
Fevereiro é o mês das uvas pretas. Pequenas e doces, dão um licor
delicioso e servem para fazer um tipo de bolo cuca simplesmente di-vi-no.
Lembrando-me da emoção que eu sentia em menina ao acompanhar a
maturação da bebida, expliquei para minha filhinha o que pretendia fazer.
- Posso ajudar?
Equilibrando-se sobre um banco para poder alcançar a pia, com um
avental quase tão grande quanto ela, a pequenina lavou cuidadosamente os
cachos, destacou as frutas e despejou-as uma a uma pelo estreito gargalo. A
seguir, com minha ajuda e a de um funil, despejou açúcar até cobrir
completamente as uvinhas.
- E agora?
- Agora é tampar, colocar aqui no escurinho e esperar quinze dias.
Todos os dias ela abria várias vezes a porta do armário e espiava, e quando
finalmente ficou pronto, coamos cuidadosamente o caldo espesse e perfumado
para a licoreira da cristal.
A ocasião merecia convidados especiais. Os avós foram convidados para
experimentar o licor, que ela serviu em bandeja de prata, o peito estufado de
orgulho, sorrindo feliz:
15
- Eu fiz sozinha!
A cada Carnaval, rotineiramente, refaço meu estoque de licor de uvas
pretas, mas nenhum será tão saboroso quanto o daquele verão.
Temos a possibilidade de criar todas as trapalhadas possíveis por não saber
usar o tremendo potencial de nosso cérebro, este cachorrinho obediente que faz
exatamente o que a gente pede, sem julgar. Como o caso daquela moça que
acendeu um cigarro dizendo: ‘este é o último cigarro que fumo’, e caiu infartada,
pois esquecera-se de avisar que pretendia abandonar o vício.
Já vejo quem me olhe desconfiado, achando que alucino.
Minha mãe entrou em um apiário afirmando que viera ali expressamente
para ser picada por uma abelha. Já adivinhou? Uma abelhinha voou direto para ela
e picou-lhe a ponta do nariz. Ninguém mais foi picado.
Felizmente a maioria de nós aprende a desejar melhor: a mãe que não tem
tempo de adoecer, a estudante que de alguma forma estuda exatamente as
questões do exame, o motorista confiante que sempre encontra uma vaga justo em
frente ao portão, em um estacionamento lotado.
Por isso falo de meus defeitos no passado e de minhas realizações no
presente. E não ligo se me chamam de esquisita.
Esquisito, no espanhol, é algo bom, especial e único. O cérebro humano é
mesmo muito, muito esquisito. Como cada um de nós.
Jung costumava perguntar: qual mito está-me vivendo?
Então escrevi : MINHA LENDA
Mudei meu nome, cansei de ser guerreira.
Não mais Walquíria, e sim Sophia,
Dediquei-me aos livros e devorei bibliotecas.
De Tales a Saramago
Escarafunchei os séculos e as civilizações,
Sem aplacar minha sede,
Eu diria entes, minha fome,
De contato,
De afago,
De agrado.
Estou aqui, de peito aberto, desarmada,
E qual diamante, firo a quem me toca.
Objeto de desejo, não de amor.
O oráculo de Delfos, se existisse ainda,
Concordaria com a astrologia,
E com a numerologia
Que me decretam
Individualista,
Pioneira,
Solitária.
16
E eu buscando carinho...
Desejo a morte com a sofreguidão dos condenados à imortalidade.
Mudar o nome não basta.
Neste mundo que incendiou a Atenas de Péricles
E condenou Sócrates a beber cicuta,
Quem sou eu para implorar aceitação?
Quero ter o fim dos gregos valentes e virtuosos
Que os deuses arrebatam deste planeta hostil:
Mãe Deméter, inicia-me nos mistérios de Elêusis
E coloca-me nos céus, transformada em estrela!
A chuva que ameaçava cair iminente fez-me entrar no prédio onde mora
minha mãe, a meio caminho de minha própria casa. Toquei a campainha:
- Estou sem guarda-chuva...
- Entre, eu estou almoçando. Com todos esses raios e trovões o tempo não
melhora tão cedo. Quer almoçar comigo?
Sirvo-me de arroz , batata e bife. E aí minha mãe disse:
- Amanhã você me devolve o bife.
E eu me engasgo, é lógico.
E me lembro porquê decidiu morar sozinha. A gota d’água foi a conta do
telefone. Eu pagava a minha parte nas despesas, conforme as regras da casa. Um
belo dia mamãe me sai com outra das suas:
- Desconte o troco do mês passado.
- Que troco? Minha parte era R$7,22 e eu lembro perfeitamente que lhe
entreguei exatos R$7,22.
- Nada disso. A conta exata era sete reais, vinte e dois centavos e meio!!!
Bem no horário de pico, no ponto em frente ao mercado, onde entra e sai
uma multidão de passageiros, foi que eles entraram no circular, tagarelando
animados.
- Lá vem a turminha levada – anunciou o motorista.
Uma meia dúzia de meninos e meninas, o mais velho não teria mais de sete
anos, pálidos, magros, exibindo sinais evidentes de desnutrição em sua
compleição óssea, cabelos ralos e quebradiços e olhos grandes brilhando curiosos.
Com a cumplicidade do cobrador, passaram por baixo da catraca, ajudando-
se mutuamente, passando de mão em mão os livros escolares, esgueirando-se por
baixo da estreita catraca, equilibrando-se no veículo em movimento como podiam,
sem alcançar os altos canos de apoio. Não que fossem gastar o dinheiro da
condução em balas, não; é que, não tendo como pagar, não fosse a vista grossa do
cobrador, teriam de percorrer sob o sol a pino o longo caminho para casa.
Preparei-me para um tumulto.
O grupinho instalou-se no fundão, tão quietos e educados que nem parecia
haver crianças no ônibus.
O circular seguiu pelos bairros periféricos de São Vicente, atravessou a
ponte sobre o mar, passou sobre o manguezal, adentrou o continente, rodou um
trecho movimentado de estrada até chegar a Huamitá.
17
Ali a turminha desceu, um auxiliando o outro para pular o alto degrau do
ônibus, acomodando às costas as mochilas, acenando alegremente para os
conhecidos.
E puseram-se a brincar e a cantar, com evidente prazer.
E eu perguntei-me como seria possível risos e felicidade naquela sujeira,
naquela miséria, naquela longura?
Indiferente a especulações sociológicas, a cantoria espontânea espalhava-se
por entre as ruas de terra, por entre as casas sem reboco com telhas de zinco.
Eu observava a cena como quem presencia um milagre. O ônibus afastou-se
e as crinaças penetraram no coração da favela, a saborear a vida. Celebrando...
Está escuro. Estou com um recém-nascido sobre uma cama em um cômodo
muito pobre. Vou fechar a porta e descubro que as portas e janelas não tem trinco
e as grades estão quebradas. E não há luz.
É perigoso ficar ali e lá fora está escuro e ermo.
É ruim ficar. É incerto partir. Estou sem segurança e só com meus novos
projetos.(o bebê). Como consegui ficar em uma situação tão ruim?
Acordo tarde, perdi a hora. Enquanto procuro, em um aposento pequeno
misto de quarto com cozinha, pelo telefone de meu chefe para comunicar meu
atraso, minhas filhas perguntam quando mudamos. Lembro-me de que na quarta-
feira estaremos viajando de Comedouro para Santos, de mudança, mas eu esqueci
de pedir a minha transferência de emprego e de solicitar a transferência da escola
das meninas, então, teremos de adiar a viagem.
Nossa! A vida voltou a ser uma bagunça! E eu nem me dei conta!
Esta aconteceu hoje com uma amiga minha, na barca do Itapema, aquela
imensa favela do Guarujá– quem vai para lá se demite rapidinho, por isso o
governo vai fazer um concurso específico para o tal buraco quente. Os políticos
mudaram o nome do favelão para Vicente de Carvalho, por causa da má fama do
lugar, mas mudar o nome não muda a realidade da coisa, e nós (o grupo dos sete
azarados, é como nos referimos a nós mesmos) fomos temporariamente premiadas
com uma nomeação para lá, por necessidade de serviço que esperamos seja breve.
Vou contar a estória toda:
Chovia que era uma beleza. Um Turner se quedaria deliciado ante os
matizes caleidoscópicos do mar em fúria.
Um dia em que um assalariado de juízo restaria em casa a prevenir-se da
gripe. Mas não Luizinha, funcionária responsável, ciente de suas obrigações.
Luizinha embarcava pontualmente na barca das 6:30 e atravessava o
Atlântico rumo à favela onde trabalhava.
Ela só faltara uma vez, quando ventos acima dos 60 km/h impediram a
navegação das balsas.
18
Ela enfrentava estóicamente, a depender do tempo, dez quadras de pó ou
lama para garantir o emprego federal arduamente conquistado após meses de
estudo e insônia.
A seu lado aglomeravam-se os miseráveis habitantes do cortiço,
maltrapilhos, fétidos, piolhentos, encarando com rancor seu corpo bem nutrido e
bem cuidado. Por mais que se vestisse com simplicidade, ela sobressaía na
multidão, deslocada de seu meio, de suas raízes.
Largando por um momento o guarda-chuva a seu lado, Luíza buscou na
bolsa um lenço e assoou o nariz.
A travessia terminava. A moça tateou pelo banco em vão até encontrar o
olhar duro da corpulenta mulher ao lado, que a fixava agressiva, segurando nas
mãos o precioso guarda-chuva.
A cena armada para o escândalo.
Luizinha pensou em protestar, mas quem disse que a voz lhe obedeceu?
E o olho mau da ladra insolente, provocador, zombeteiro...
A raiva aflorou no rosto da moça sob a forma de lágrimas. Todos os seus
músculos contraíram-se em um patético esboço de reação.
Muda de espanto, Luizinha observou a outra afastando-se imponente,
imensa, ameaçadora, a encarnação dos protestos da Miséria contra a Abastança.
E Luíza lá, imóvel.
Uma mulher desprotegida exposta à tempestade.
Notas de rascunho para uma palestra sobre leitura:
Pais e educadores têm a oportunidade de influenciar profundamente, ou não,
a personalidade de suas crianças. Podemos escolher se queremos crianças quietas,
assustadas e infelizes, prisioneiras dos nãos e de muitas regras; ou poderemos nos
armar de um caminhão de paciência e orientar crianças alegres, espontâneas e
ativas.
A escolha do que fazer com o precioso tempo de nossas crianças é nossa
A leitura é um bom hábito a ser cultivado pela vida afora. O conhecimento
é a melhor herança que podemos deixar a nossos filhos. É a única herança que
ninguém lhes poderá tirar.
Minha opinião sobre a lei mosaica ‘Honrarás pai e mãe.’
Se o profeta desconhecesse menos a humanidade, teria acrescentado um
décimo primeiro mandamento: ‘Só conceberás crianças desejadas’.
Que mundo seria o nosso, se cada criança recebesse carinho e atenção. Se
cada pai ou mãe escolhesse como prioridade a felicidade de seu filho!
Sonhei que entro em uma balsa enorme, com lugar para dezenas de
carros e dois andares para centenas de pessoas. Embarco para uma viagem em um
lindo rio com corredeiras e com locais maravilhosos, paramos diversas vezes para
nos banhar nas piscinas verdes com águas quentes e ouvir o maravilhoso
murmúrio das cascatas. Nos trechos acidentados o barco corre por trilhos, como
um trem. As margens são sempre verdes, de mata fechada. Fico sabendo que
aquela barca-trem foi construída para evitar que o maravilhoso rio fosse destruído
19
por uma rodovia ou por uma barragem. Estou admirando cascatas, parada em uma
das piscinas verdes e quentes, a ouvir o extasiante murmúrio das ondas, quando,
às sete da manhã, em pleno feriado, minha mãe me telefona para dizer algo que
poderia muitíssimo bem dizer às dez.
Interpretação do sonho: a vida – rio – tornou-se segura com o barco-trem,
assim a ameaça das corredeiras tornou-se fascinante e bela; o verde é a saúde, a
esperança; o murmúrio das águas é a harmonia com o cosmos e o calor é o amor.
Estamos em uma época violenta, e trabalho em uma região violenta. Mas
esta tal estória do governo querer desarmar a população, sei não. Não uso armas,
mas não concordo com isso. Quem tem de ser desarmado são os bandidos, pô!
Atravevo-me a fazer umas
PROFECIAS
Kali, a deusa negra, dominou durante a Era das Trevas.
O Grande Ditador esgotou os recursos conhecidos no combate ao mal –
epidemias, ignorância e crime desorganizado.
Impediu-se a reprodução dos dobermans. Castraram-se os pitbulls.
Proibiram o porte e o comércio legal de revólveres e similares. Os contrabandistas
exultaram e os criminosos decretaram o monopólio das armas de fogo.
A seguir, facas e tesouras (e qualquer tipo de objeto perfurante ou
cortante) foram retirados de circulação. As academias de artes marciais
proliferaram e os perigosos assassinos multiplicaram-se em proporção
malthusiana.
‘As mãos matam! Que sejam cortadas todas as mãos do reino!’, exigiu o
Grande Ditador.
‘Alto lá! Excelência...’, e, invocando seus conhecimentos médicos, o
Ministro da Saúde explicou que a agressividade humana localiza-se no cérebro,
mais precisamente em uma determinada região do hipotálamo...
Mirando entre os olhos do ministro, o Grande Ditador atirou, e,
verificando a exatidão da informação, ordenou:
‘Destruam todos os cérebros da Terra!’
Ao fim da tarde, o Ministro do Planejamento apareceu para comunicar que
a ordem fôra cumprida. A onda de violência fôra detida, pois todos os cérebros do
planeta...
‘Bang!’ – um tiro certeiro do governante interrompeu-lhe o discurso.
Faltava um...
O último Homo violentus sente frio. Em sua vaidade, compreende que
ninguém rezará por sua alma após a morte.
O sol mergulha no oceano.
Indra pisca e recria os deuses e o universo.
Prometeu modela no barro molhado por suas lágrimas a sexta raça
humana.
Às portas do Éden, Lúcifer conspira com Gabriel. A serpente foi colocada
à porta do inferno e os frutos da árvore da vida distribuídos a todos os habitantes
do globo.
Betinho ajuda o chefe Seatle a colocar um cartaz à entrada do paraíso:
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“A Terra é sagrada. Somos os guardiões da herança de nossos filhos.”
A nave Interprise traz um recado da Federação: a cláusula da não
intervenção nas sociedades primitivas foi reformulada e eles estão de olho em
nós!
Como? O que aconteceu?
Desafiado por Jeová, a quem acusou de milenar falta de imaginação, Dias
Gomes aparece para escrever o enredo de “Era de Aquário”.
Trapalhadas genéticas com as quais tenho me deparado em meu trabalho:
Na mesa ginecológica está deitado um homem.
Desconcertado, o médico observa sucessivamente a enfermeira, que se
engasga de indignação e a loira glamurosa de vestido rosa cuja voz ansiosa
pergunta como está o nenê.
O médico responde que vai fazer um ultra-som. Não se trata apenas de uma
manobra para ganhar tempo. Enquanto grossas gotas de suor escorrem por sua
testa, apesar do ar condicionado, o médico lembra-se dos casos escabrosos que já
presenciou ali, no departamento de sexualidade humana.
Enquanto explicava para o paciente a possibilidade de uma gravidez
psicológica, procurava por qualquer coisa fora do normal, como uma gônada
indiferenciada, um resquício de útero...Colhido o cariograma, constatou-se o
resultado: 46XY, homem normal. Ou quase, visto o cidadão estar absolutamente
convencido de ser mulher e estar grávida.
Transexualismo? Não. Psicose pura.
Alguns dias mais tarde, a mesma enfermeira protesta:
- Outros daqueles homens que querem mudar de sexo. Qualquer dia desses,
crio juízo e mudo de emprego. Que indecência!
O médico lhe pediu que sentisse um pouco de paciência com o sofrimento
humano.
- Ora, doutor, um homão daqueles! Pouca vergonha é pouca vergonha!
- Bem, vou abrir uma exceção e quebrar o sigilo médico, para você aprender
a não julgar pelas aparências. Veja o resultado do cariograma daquele
homenzarrão, daquele homão, como você diz.
E ela leu: ‘evidenciou-se a existência de três linhagens celulares: 46 XO, 46
XX e 46 XY, sendo o indivíduo em questão, um mosaico.’ Que quer dizer isto,
doutor?’
- Pois então imagine a confusão dentro deste indivíduo que tem um sexo
genital masculino, um sexo psicológico feminino e um sexo genético misto.
- Como?
- Às vezes Deus cochila e deixa a acabamento de suas criaturas aos
descuidos do acaso. E os pobres indivíduos ficam por aí sofridos e
incompreendidos. A zona da intersexualidade humana é nebulosa.
O caso que deixou o pessoal da clínica mais atrapalhado foi o do casal que
queria ter um filho de qualquer jeito. Após três anos de casório, ainda se tratavam
de benzinho pra cá e pra lá. Nenhuma queixa de insatisfação sexual. Apenas
21
desejavam um filho e o marido autorizou a inseminação com material do banco de
sêmen, caso verificassem que ele era estéril. Sendo ele estéril, o ginecologista,
muito afoito, tratou de ir inseminando a mulher, sem espera o parecer dos colegas.
Afinal, o marido autorizara. O urologista, contudo, achou a distribuição de pelos
do rapaz estranha e notou uma má formação, uma hipospadia perineal, que não
fora corrigiada por diversas razões: falta de recursos financeiros, medo da
complexidade cirúrgica, o paciente não via inconveniente em urinar sentado e a
esposa tampouco se importava com este detalhe. A gravidez já ia pela terceira
semana, sucesso comemorado pelo casal com champagne à luz de velas e muitos
benzinhos, quando o geneticista convocou a equipe e perguntou se alguém sabia
informar como o casal mantinha relações sexuais. O motivo da consulta não fora
disfunção sexual, aliás o casal era evidentemente feliz. O geneticista revela:
- Ereção evidentemente este indivíduo não tem mesmo e pouco me interessa
o que eles fazem ou deixam de fazer. O fato é que estou com o cariograma deste
marido na mão: 46 XX, mulher normal.
Foi uma tremenda confusão. Depois de muito bate-boca, a equipe resolveu
deixar o caso no mais absoluto sigilo. A inseminação já estava feita, se falassem a
verdade iriam provocar muita confusão e sofrimento. Como se diz a um homem
apaixonado que ele é uma mulher? O sujeito com certeza se suicida. Esta é uma
situação completamente absurda.
Mas, como será que eles fazem sexo?????
22
1996
A senhora pobre elogiou o Pantaleão dos Andradas. E eu admirei a
delicadeza de sentimentos de minhas acompanhantes, três elegantes senhoras de
elite, que educadamente responderam a seus comentários sem corrigi-la.
Nosso povo iletrado é assim mesmo: sofre de dor no figo e de dilatação;
quando sabem expressar melhor suas mazelas estão aperreados e avexados, que é
‘desse jeito aí como a senhora está vendo’, e o que a gente vê é mesmo muita
miséria com o seu corolário interminável de desgraças.
A minha admiração durou pouco, pois a pobre afastou-se e as ricas
continuaram a pantalear. Arrisquei uma frase com Panteão e elas cortaram-me a
palavra de imediato:
- Pantaleão, querida. Panteão é coisa de grego.
Não me contive e comuniquei àquelas emproadas que o templo grego
situado em Atenas e construído em homenagem à deusa da sabedoria chama-se
Partenon.
Panteão é coisa dos romanos supersticiosos que, com medo de ofenderem
por esquecimento algum dos inumeráveis deuses cultuados em seu vasto império,
construíram por precaução um templo dedicado ao mesmo tempo a todos os
deuses, o Panteão.
E os Andradas por um acaso são deuses para terem lá o seu Panteão?
O caso é que os loucos imperadores romanos gostavam de ser cultuados
em vida e adorados como deuses pelo povo, e após a sua morte, eram enterrados
com pompas divinas. Daí o termo Panteão ter adquirido, por extensão, o
significado de edifício onde se enterram os restos mortais das figuras ilustres da
História de um povo.
Minha sorte foi uma das matronas ter na bolsa um Aurélio, que confirmou
as minhas palavras.
E quanto a Pantaleão? O que é?
É nome próprio, como José, Rosa, João e tantos outros mais meio que
esquecidos, pois a moda agora é ter nome de gente importante; é por isso que os
brasileirinhos de hoje chamam-se Romário, Aírton, Upiudi ou Maiquijaquiçom.
Lendo sobre a guerra da Bósnia-Yerzegovnia, ouso propor uma solução para
a Iugoslávia:
Ah! Esses iugoslavos! Deveriam vir ao Brasil.
Um sérvio e um albanês começariam uma discussão e seriam
imediatamente rodeados pela turma do deixa disso.
Nossos iugoslavos ficariam espantados em ver, juntos, um ariano, um
semita, um nórdico, um árabe, um negro e um oriental. Mais espantados ainda
ficariam ao ver o ariano bater amigavelmente no ombro do negro e contar uma
piada, ‘aquela do judeu e do general nazista no campo de concentração’.
Entre muitas gargalhadas, o árabe retrucaria com ‘aquela do cristão cujo
avião caiu no deserto e encontrou um muçulmano’. E o nórdico, a rir, continuar
23
com ‘aquela do japonês que visitou a Bahia e entrou em um terreiro de
candomblé’
A esta altura, alguém sugeriria aos novos amigos iugoslavos um ‘loira
gelada’ e um brinde à Paz. E já em clima de confraternização, vocês conhecem
‘aquela do albanês e do sérvio que eram vizinhos e aí ...’
Aí os nossos iugoslavos seriam forçados a rir-se da imbecilidade humana e
concordariam em deixar pra lá as suas diferenças, já que, vivendo todos no
mesmo planeta, somos, todos, companheiros de viagem.
Mais anotações para futuras palestras: inspiração e criação ou A Arte como
Terapia.
Arte não é comércio, é como respirar, quase um ato fisiológico.ninguém faz
arte porque quer, faz arte porque precisa. É comunicar-se ou enlouquecer.
Somos influenciados pelo estilo de nossos autores prediletos, em meu caso
Monteiro Lobato.
Hoje em dia Edgar Alan Poe e Fernando Sabino, cuja técnica eu aprecio
especialmente.
Eu percebo que emoções fortes transformam-se em devaneios, imagens
coloridas e vivas, que ficam querendo sair, agitadas em meu cérebro. Esta
inquietação mental começa a tomar um significado, dá origem a uma gestação
mental que só se acalma quando a idéia vem à luz: o parto mental. Este é o
processo de criação, para mim, em qualquer arte:
Emoção – perturbação psíquica – idéias desorganizadas – ideais organizadas
– muito trabalho técnico – criação.
Eu começo a escrever se m censuras, deixando as idéias fluírem do jeito que
saem, espontaneamente, para o papel, por mais sem sentido que pareçam.
A arte é uma forma poderosa de catarse em todas as suas manifestações:
música, pintura, literatura etc
Os sonhos são interessantes elaborações de conflitos internos que aparecem
com histórias simbólicas prontas de grande impacto emocional.
Certa vez li um de meus pesadelos a uma grupo de amigos escritores e cada
um deu para a história uma interpretação completamente diferente. Eu mesma,
tendo sonhado aos doze anos, só encontrei a chave simbólica aos 35. ele referia-se
à passagem da vida de menina para a de mulher, ‘não há volta’, e a chave para
decifrar este símbolo são as letras escritas com sangue, a menarca.
O símbolo tem esta plasticidade, esta particularidade de prestar-se a várias
interpretações em seus vários níveis de complexidade e de acordo com o estado de
cada um em determinado momento.
Em resumo, a criação é uma forma elaborada de transformar o sofrimento
em arte, a exposição da realidade interna do artista.
A Laudelina, quando lhe pedem um poema, não se faz de rogada:
- Para quando? Qual o assunto? É para comemorar alguma data especial?
24
Pois não é que aquela mercenária fazia versos por encomenda? Eu me
indignava. Literatura não é culinária!
Cada artista, contudo, cria lá a seu jeito e gosto, e poetas são criaturas
estranhas de hábitos bizarros, apesar de irem à praia e ao supermercado como toda
a gente. Bem... quase como toda gente.
Aquele cidadão que suspira extasiado ante as frutas empilhadas, que fala de
‘figos solenes’, ‘sabor de avó’ e em ‘amoras comidas com sol’, já se sabe – é um
poeta.
Que dizer da amiga que se inspira quando se molha? Larga a louça por
lavar, sai do chuveiro pingando pela casa e esbarra conosco na rua a correr
debaixo de tempestade, e, quando, solícitos, lhe estendemos o guarda-chuva, ela
nos surpreende:
- Caneta e papel, urgente!
Eu pertenço `a família dos que são acordados à noite pela idéia:
- Psiu, estou aqui!
Estendo a mão, acendo o abajur e anoto rápida as frases boêmias no bloco
que tenho sempre à mão, preparada para estas investidas noturnas.
Há quem se inspire ao ouvir o som do mar, talvez por isso Santos seja
berço de tantos poetas.
Bom, leitor, de hoje em diante, quando você vir uma distinta senhora a
escrever na areia, ou alguém o abordar à mesa do bar com o pedido insólito de
‘um guardanapo, rápido, por favor’ ou, na fila do banco, alguém a escrever
furiosamente na capa do talão de cheques, sorria – você encontrou um poeta.
Tive cinco filhos gêmeos e troco todos eles por um cesto com cinco gatos.
Um sonho sobre projetos e oportunidades. Os gatos têm sete vidas, portanto
são sete novas possibilidades, maiores chances de sucesso. Filhos são projetos.
Escrevo sobre um garoto radioativo e sua irmã invisível, no estilo de O
Mundo de Bob.
Eu, hien? Que sonho mais estranho...
25
1997
É de manhã, quando passeio na praia, que tropeço em haicais. O mae, o
céu, a areia, jardins, insetos – uma multidão de kigos no espeaço que restou de
natureza na ilha concretada. Aí sou feliz. Ouço o mar, tão caro a meu coração,
cantiga de ninar para quem nasceu caiçara. Ouço os pássaros, as cigarras, as
borboletas... sim, as borboletas cantam, o vento dança e nuvens desenham o céu.
É de manhã que me abasteço de poesia para fortalecer-me. Depois finjo-
me guerreira, quando em meu coração o desejo é de partilha. E como uma tigresa
convivo pacificamente com borboletas e flores, apoiando-me nos forte troncos,
atenta ao ciclo das estações.
Aguardo a manhã seguinte.
Minh mãe brigou a noite toda comigo, dizendo severamente: Egoísta! - e eu
quieta, concordando.
Um sonho de culpa e auto-recriminação. Qual a utilidade deste sonho? De
outra parte, está relacionado ao passado, de que adianta resolver o passado?
Viagens de férias. Sorvetes. Tudo o que é bom parece acontecer no verão. É
uma exuberância de frutas, um não acabar mais de passeios ao ar livre, e quando
se mora à beira mar, então, há um vasto leque de diversões à escolha. Caminhadas
na praia, mergulho, natação, pescaria, passeios de barco e toda sorte de esportes
aquáticos.
Claro, nem sempre o calor é agradável. Para quem trabalha exposto ao
tempo, sem ventilador, sem ar condicionado, fazendo esforço físico, não é nada
divertido.
Há dias em que a temperatura sobe tanto que, visto de longe, o asfalto
parece água, e a paisagem junto ao solo estremece, distorcida pelas ondas de
calor. Dias em que, já pela manhã, tudo parece queimar a nossa pele _ o sofá, os
lençóis, e até das torneiras jorra, à temperatura ambiente, um líquido escaldante e
nada convidativo. Dias em que nada refresca - nem banho, nem piscina, e mesmo
os aparelhos de ar condicionado não conseguem amenizar o mal estar. Dias em
que a única atitude sábia é encolher-se à sombra, como um bichinho, imóvel,
esperando, pois está quente demais até para se conseguir dormir. (deveria haver
um verbo para a suspensão temporária das funções vitais provocadas pelo calor
extremo, uma espécie de hibernação às avessas)
Um dia como o de ontem, que dizem ter sido o mais quente dos últimos
cinqüenta anos. O solstício de verão já acontecera, mas parecia que a Terra
continuava, distraída, a inclinar-se mais e mais em direção à fonte da vida.
Foi com certeza em um dia assim que um grego imaginou a lenda de
Faetonte, o mortal que dirigiu o carro do sol tão desastradamente, chegando tão
próximo que quase incendiou o planeta.
26
Desastre de Carnaval.
Esta é de arrepiar! No Rio, a escola aguarda sua vez de entrar no
sambódromo. O enredo da escola era sobre os ciganos. Um cigano passa pelo
belíssimo carro alegórico, olha e comenta: vocês esqueceram um elemento
fundamental, o fogo. Onde há ciganos, há fogo.
A escola entrou na Sapucaí e o carro pegou fogo.
Devo agradecer ao FHC. .
Há anos com o salário congelado, só tenho a agradecer ao senhor
presidente pelas melhorias na minha qualidade de vida.
Vejamos. A princípio, parei de comprar jornais e revistas, passando a ler
no Sesc, o que me levou a encontrar com mais freqüência as pessoas amigas.
Aboli a carne do cardápio. Este alimento impuro e tóxico é com vantagem
substituído pela soja. Em seguida, o açúcar. Doces, só em festas. Frutas naturais e
chá amargo tem a dupla vantagem de preservar os dentes e manter a cintura fina.
O próximo corte foi a gasolina. Acordar uma hora mais cedo para
caminhar até o trabalho é um hábito saudável. À tarde, faço uma caminhada
maior, enriquecendo minha vida com a poesia do por do sol nos jardins da praia.
Em um momento de jurássica lucidez, dispensei o computador.
Em outubro troquei todas as lâmpadas da casa por um modelo mais
econômico. Em janeiro desliguei o freezer – cozinhar legumes ao vapor
diariamente ao invés de descongelar tortas e frangos traz a economia adicional de
dispensar o micro-ondas.
Agora a insaciável FHC quer ainda mais economia. Desafiante!
Depois de horas de reflexão concluí que só me resta dispensar a TV. Afinal,
é a TV ou o banho quente! Uma hora a menos de TV por dia significa trinta horas
ao final de um mês.
O duro é que só assisto ao telejornal e se desligar a TV fico sem
comunicação com o mundo - quando encostei o carro, o tempo de leitura no Sesc
virou caminhada – e não poderei saber quando terminará este benéfico
racionamento. Experimentei por uma semana – que benção! Sento-me no escuro
em posição de lótus, fico zen e “vou-me embora pra Pasárgada, onde tenho o
Homem que quero no país que escolherei.”
Hoje acordei saudosista.
Ando pela areia da praia, mas é o lago de Bebedouro que me vem à mente.
Ante o pôr-do-sol, recordo as tardes de Bebedouro, com centenas de andorinhas
no céu claro e o quadro magnífico das copas avermelhadas refletidas nas águas
límpidas do lago. Se caminho pelas ruas, são também as ladeiras de Bebedouro
que invadem meu cotidiano.
E as manhãs de domingo em Bebedouro, com a feira típica e as pamonhas
feitas na hora; o jornal lido na varanda, o cachorro ao lado, o jardim florido em
frente e a promessa de um dia inteiro sem nada para fazer!
27
Sinto-me estrangeira em minha própria terra, quando, à noite, o sono
procura o canto ausente dos grilos.
Por que não sou como as árvores, que criam raízes? Sou antes como os
pássaros, buscando a amplidão.
Há algumas semanas atrás, chegou um médico do Rio e foi procurando
pedindo a chave de seu armário; como ninguém entendesse, ele explicou: onde
posso guardar meus livros, meu avental.... e também estranhou não haver um
telefone em cada consultório.
Pois hoje chegou uma louca de Recife, espantando-se por não haver ar
condicionado no consultório e nem ventilador. E ante o olhar atônito do chefe e
dos colegas a seu redor, saca do celular e disca: Alô! Fernando? É Malu! Pois
imagine, estou trabalhando em um posto sem ar condicionado! Um total absurdo!
Estou telefonando para reclamar e pedir que sejam tomadas as devidas
providências.... E completou:
- Taí, chefe, já reclamei ao presidente, é melhor o senhor tratar de
providenciar tudo.
O chefe, na maior cara de inocente, provoca:
- Que presidente?
- O da República, lógico.
Pode?
Sonho: ‘estou em um carro, no banco de trás: um negro sujo está encolhido
no chão, vestido de preto, agachado, e resmunga palavras em alemão. Entendo ele
dizer: Gesundheit. Encolho meus pés para não encostar nele.’
A situação da saúde está ruim, as perspectivas profissionais são péssimas!
Outro sonho: ‘flores, muitas flores, flores que desabrocham pela casa e
estou ao lado de minha mãe e de meus filhos’.
Acho que existe a esperança de uma vida familiar melhor em 98.
A louca que chegou do Recife foi afastada para tratamento psiquiátrico.
Quase à força. Primeiro o chefe proibiu o balcão de marcar consultas para ela;
depois tentaram deixá-la na chefia médica assinando autorizações de consultas
extras, mas a mulher é doida demais. Colocou uma placa de quase meio metro
sobre o balcão com o nome dela escrito em dourado, um enorme vaso de rosas
brancas sobre a mesa e um prato de salgadinhos; ao sair, o colega falou que ela
esquecera os salgadinhos e a outra me sai com esta: esqueci, não, mas não mexa e
não deixa ninguém mexer, que são para o santo. Para o Santo?
No outro dia, a mulher me chega descalça, com um biquíni molhado sob a
saia, dizendo que saíra correndo da aula de natação, pois quase se esquecera que
estava na hora de vir trabalhar. Aí, foi demais, mesmo.
Cada uma!...
28
1998
BHC _ SIM!
Assim que a percebi, parei e retrocedi, não fosse a barata voar em minha
direção. Às sete da manhã, há de se convir, é ousadia demais!
Nos corredores do ambulatório, ela bailava em zigue-zague. Emitindo
reflexos castanhos-dourados à luz que se infiltrava pelo corredor. Visão até
poética, fosse outra a bailarina. Essa apenas denunciava a nossa decadência.
Convenhamos: baratas são arredias, vivem escondidas; quando surpreendidas
parecem ter mais medo dos humanos que o inverso. Para cada barata dançarina,
adivinho todo um corpo de baile oculto nos consultórios.
Há anos trabalhar no Ministério da Saúde significa fazer jus ao adicional
de insalubridade. No verão passado, convivi bem com a explosão demográfica das
cigarras, que estavam por toda parte – nas paredes, na maca, na balança, até nas
gavetas. Eu as recolhia em caixas, cuidadosamente, e as soltava no jardim. Elas
agradeciam encantando-me com sua orquestra de violinos.
E no verão anterior houve a invasão dos mosquitos. Fiquei “ dengosa”,
apesar de acampar no trabalho besuntada de repelente.
Estoicamente, vou levando...mas...baratas? Começo a desconfiar que se
trata de um plano maquiavélico de FHC contra nós, os federais, pois há seis anos
ele tenta acabar conosco, sem o conseguir.
Não adianta, FHC. Resistirei!
Voltando de viagem de férias, registro aqui as confusões provocadas por:
SIMPLES PALAVRAS
-São sessenta dólares e dez...
Eu entreguei ao motorista sessenta dólares e uma moeda de dez centavos.
Não entendi porque o homem ficou nervoso e desandou a falar muito
rápido e muito bravo. Repetia continuamente a palavra dez.
-Pois então! Eu lhe dei os dez.
Meu tio apareceu, deu dez dólares ao motorista e resolveu a questão.
A meu lado, minha irmã ria até as lágrimas. Eu não entendia:
-Pois não eram dez centavos? Ten cents?
-Eram dez por cento.
-Mas...
Meu tio, que só falava inglês, mostrou-nos a casa e disse que teríamos tudo
o que precisássemos, sem preocupações e....
Eu me sentia tão orgulhosa de meu inglês! Entendi a palavra tip. Na lição
nove de meu livro, havia uma lista de tips – dicas de viagens que um amigo dava a
outro: tenha sempre à mão um mapa e um dicionário de bolso, coisas assim.
Respondi a meu tio que certamente eu contava com seu auxílio para me
dar todas as dicas necessárias. Minha irmã desandou a rir novamente e meu tio
arregalou os olhos.
-Você acabou de dizer ao tio que espera que ele pague todas as suas
gorjetas – e minha irmã tranqüilizou o tio, em seu inglês impecável.
-Mas... tip não é dica?
29
-Oh, poupe-me! E o contexto?
-Mas que contexto?
Assim passaram-se dez dias. Eu dizia, por exemplo:
-Nós iremos ao lago Louise depois do feriado se não chover.
-Bem, como o guia falou em inglês, existe sempre a possibilidade de ele
ter dito alguma coisa completamente diferente – e minha irmã, sempre bem
humorada, completava – Nós iremos ao lago Heloísa antes do feriado mesmo que
continue chovendo, por exemplo.
Que dias terríveis! Eu entendia todas as palavras-chave: lago, almoço,
chuva – e perdia todos os elementos de ligação: antes, depois, mesmo que,
somente se etc.
-Pedi à tia ‘roupas de cama’, por medo de errar na pronúncia da palavra
lençol e acabar falando um palavrão.
-Shit, explicou minha irmã, com sua elegante entonação.
Mas na excursão para as Montanhas Rochosas as coisas mudaram. Havia
canadenses de Quebec e suíços que só falavam francês e foi minha vez de servir
de intérprete para minha irmã. E, como ela estava em companhia do namorado, eu
me sentei ao lado de uma irlandesa, muito doce e atenciosa, que viajava sozinha.
Ela me fazia perguntas e mais perguntas sobre o Brasil e por sua vez contava-me
sobre a Irlanda.
Eu me sentia cada vez mais segura de meu inglês e orgulhosa de meu
progresso. Minha irmã, lá do seu canto, lançava-me olhares de aprovação e
incentivo.
Todas as noites, no quarto, eu resumia para minha irmã as longas
conversas que tinha com a irlandesa. Eu estava realmente muito satisfeita com a
facilidade com que me comunicava com a nova amiga.
Então houve aquele almoço, em que perguntei para minha companheira se
ela nos acompanharia na gôndola. Falei devagar, mas firme, pronunciando cada
sílaba dom clareza:
-Do you go to the top of the mountain by gondola after lunch?
Seus encantadores olhos azuis me sorriram com simpatia:
-Oh, yes! My tomato soup is delicious! and yours?
(Oh. Sim, minha sopa de tomate está deliciosa! E as sua?)
Julho passou, com seus dias claros e seu céu límpido fazendo a alegria das
crianças e das donas de casa. Estas porque o pesadelo da roupa suja que não tem
como ser lavada, pois recusa-se a secar quando a cidade se transforma numa
nuvem úmida, e tudo nos armários fica cheirando a ‘cachorro molhado’, não
aconteceu. E aquelas brincaram até fartar empinando pipas, correndo pela areia da
praia e até tomando sorvetes - que estava quente e os pais não tinham porquê
proibir.
Julho passou perfeito para férias, ensolarado, quente, lindo.
Inverno sem frio, no entanto, não tem graça nenhuma. Fiquei, frustrada, a
esperar pela minha estação do ano preferida.
Inverno, afinal, tem seu jeito próprio, seus aromas, seus sabores: o caldo
verde, o fumegante cozido português, o chocolate quente com marshmallow, o
vinho quente, o fondue...
30
Pinhões tem gosto especial quando queimamos nossos dedos gelados no
ingrato trabalho de descascá-los; as mãos ficam vermelhas e o estômago,
aquecido.
Até mesmo as prosaicas pipocas são mais saborosas nas noites frias em
que nos enrolamos em cobertores em volta de uma mesa, como escoteiros
acantonados, para um joguinho de cartas.
Inverno é poder vestir-se com elegância; desfilar de blazers, casacões,
túnicas e sofisticadas botas.
Inverno mesmo é quando dois cobertores não são suficientes e o
companheiro pula quando lhe encostamos nossos pés - e a gente dorme soterrada
entre montanhas de edredons, meias, gorros e cachecóis.
Inverno mesmo é quando a gente perde a hora porque a manhã é tão
escura, o soninho tão bom e a chuva grossa nos embala como uma canção de
ninar.
Inverno perfeito é quando a gente, semicongelada, espera um dia inteiro
pelo namorado carinhoso que nos envolve em um abraço daqueles tão
aconchegantes que nosso coração se aquece, o mundo torna-se agradável e a
felicidade, possível.
Sonho: uma casa ruim, totalmente desarrumada; sigo minha filha até
umquarto atulhado de fiapos de ráfia, caixas e coisas; lá encontro meu piano, com
teclas descascadas e começo a tocar; ele se transforma em um tear com um padrão
de mosaico preto e branco, que manuseio espantada. Tocam a campainha; um
bando de palhaços diz que alugou a casa, que vão mudar-se e que eu devo sair. Eu
afirmo meus direitos de locatária, eles acampam no corredor. Fico assustada,
agora não poderei sair de casa para que eles não invadam tudo em minha
ausência’.
Acho que minha vida voltou a ficar uma bagunça – desorganização
emocinal e mental. Palhaços são fantasias, ilusões, loucura. Devo impedir que
fantasias loucas tomem casa de minha casa mental.
Se ‘na casa de meu Pai há muitas moradas, deve haver um lugar PARA
MIM!!!’
Meus pés ciganos, inquietos, procuram novos caminhos. Morei em vinte
lugares diferentes sem nunca sentir-me ‘em casa’. Aqui há sol demais, lá venta em
demasia, acolá chove de embolorar a alma, ou há barulho demais ou há
privacidade de menos. Meus móveis nunca estão bem: falta espaço, não encontro
posição para dormir, experimento todas as combinações possíveis de decoração,
troco tudo de lugar e é o mesmo desconforto, nunca estou bem em lugar algum!
Ah, que saudade da biblioteca de minha infância, com a cadeira de balanço
de papai! Eu me aninhava nela em sua ausência e viajava em livros de aventuras.
Que saudades da rede na varanda em frente à frondosa acácia que atapetava o
chão com folhinhas miúdas e pétalas douradas! Meus pesadelos são povoados de
casas desarrumadas, em ruínas, entulhadas de objetos e uma profusão de
cacarecos estranhos, e eu atravesso estas casas por portas escancaradas a procurar,
procurar sei lá o quê, ano após ano.
31
Em certo sonho, eu passeava a cavalo, apreciando uma mansão linda, ampla,
clara e agradável, e exclamava: Ah, existem casas de pessoas felizes!
Em outro sonho encontrei minha própria casa toda bem arrumada, recém-
pintada e bem mobiliada. Operários se retiravam a dizer: ‘a casa está pronta, é só
entrar e morar’
Não tive coragem de encara aquela casa silenciosa e afastei-me. Noite após
noite, ao dormir, prossigo em minha buscas solitárias pelas ruas e pelas multidões,
olhando atentamente cada rosto, quase sem esperança. Meus pés ciganos,
inquietos, gostariam de enraizar-se, desabrochar e florir, mas para isso seria
preciso que meu coração encontrasse um lar.
Esta é outra das historinhas acontecidas em meu trabalho.
Como se sabe, fila é ótimo local para sociólogo estudar povo – pobre povo
brasileiro, como poderia ser diferente, se lhe falta o básico: a casa, o emprego, a
escola.
Na fila do INAMPS, por exemplo, há quem procure o especialista em figos,
surdos em busca do Dr. Rino e o homem que quer porque quer marcar consulta
com o ginecologista por estar com ‘doença de mulher’. Também há os que não
desejam consulta nenhuma. Absolutamente! Querem tão somente uma receita ou
um pedido de exames. E quando a balconista tenta explicar que só o médico pode
fazer estes pedidos, das duas uma: ou recomeça a ladainha ou põe-se a reclamar
do funcionário público vagabundo que trata mal o público.
Um dia desses um fiscal do INAMPS que, vistoriando o posto, percorria os
vários setores, na louvável intenção de compreender in locu todos os entretantos,
chegou-se ao balcão de marcação de consultas e cortou o primeiro da fila,
dirigindo-se diretamente ao funcionário atrás do balcão:
- Com licença, eu sou fiscal do INAMPS e preciso de umas informações.
- Pois não. Aguarde na fila.
- Eu sou um fiscal do INAMPS.
- Está certo, mas aguarde na fila.
- Você não entendeu? Eu sou um fiscal!
- Próximo, por favor. Meu senhor, mesmo sendo um fiscal, o senhor tem de
aguardar sua vez na fila.
- Eu não vim marcar consulta.
Furioso, o fiscal escreveu um relatório a quem de direito, solicitando a
imediata suspensão do funcionário, que, para surpresa do fiscal, explica-se
administrativamente, através de uma carta, com um trecho mais ou menos assim:
‘todo dia agendo consultas para várias especialidades, inclusive psiquiatria.
Em minha rotina diária atendo todo tipo de gente importante: o presidente do
Brasil, o prefeito, Jesus Cristo, artistas e cantores famosos, e, recentemente,
dirigiu-se a mim um fiscal do INAMPS’.
Mas, afinal, porque o sujeito não apresentou suas credenciais? Simples,
não?
Fechei-me para balanço.
Uma pessoa nunca deve esquecer-se de lembrar-se das mágoas passadas. É
só a gente ficar feliz, abrir a guarda e – touché!
32
Um artigo meu é publicado em uma revista de saúde de distribuição
nacional e eu vou, idiotamente feliz, repartir a alegria com a minha mãe, como
uma filha razoavelmente normal.
Ela pega a revista, lê e então comenta:
Acho que tem um errinho aqui, nesta linha, escreveram duas vezes a palavra
para.
Eu pego a revista de volta, guardo. Ela ajeita os vasos de flores na janela.
Eu posso perdoar-lhe esta pequena desatenção porque a escolha de ser
indelicada é dela. Mas devo lembrar, para nunca mais mostrar-lhe coisa nenhuma
de minhas pequenas alegrias, nunca mais contar-lhe sobre meus pequenos
triunfos.
Quando eu era pequena, vinha para casa com o boletim cheio de dez e
ficava com os olhos cheios de lágrimas quando o elogio tão desejado não vinha.
Papai dizia a ela: não vai dar os parabéns para sua filha inteligente? E ela dava de
ombros: Por que? Ela não fez mais que a obrigação.
Eu devo ter sido uma filha indesejada. Nasci em uma hora ruim. Ou chorei
por madrugadas inteiras por semanas a fio até enlouquecer minha mãe. Não sei ou
não lembro.
Se eu ganhasse o ouro olímpico, minha mãe diria que em algum lugar do
planeta alguém com um recorde melhor que o meu deixou de concorrer, só para
transformar minha medalha em um prêmio sem valor.
Para ela nada está suficientemente bom. Para mim, há muito está bastante
ruim.
Lá estávamos, os primos em segundo e terceiro graus, os que se reúnem
esporadicamente nos casamentos e batizados da vida, após anos de ausência, com
o mesmo nostálgico sorriso de ‘lembra-se de como brincávamos juntos na casa do
avô?’ e com o mesmo suspiro fatigado de ‘ah! esta vida corrida que a gente leva!’
Cada festa em família reacende o desejo de compartilhar, pois, afinal, esta
é a finalidade da família; durante alguns dias pensamos em promover uma
churrascada ou um passeio, mas logo o cotidiano empurra rotina abaixo nossas
boas resoluções.
Aí passam-se dois ou três anos até que alguém se case ou batize um filho e
é aquela alegria do reencontro, aquela sucessão de calorosos abraços e as trocas de
confidências, piadas e receitas.
A última reunião, contudo, foi bem diferente.
Os abraços até que forma mais calorosos, os sorrisos mais amigos, as
conversas mais prolongadas, mas havia aquele incômodo constrangimento no ar.
É que a reunião familiar, inesperada, urgente, era um velório. E o primo
que falecera nem era o mais velho de sua geração. Os sussurros, aqui e ali,
estremeciam os ouvintes:
- Eu o carreguei no colo.
- Brincamos juntos.
- Eu me lembro bem de quando ele nasceu.
- Tão moço... tão bonito...
33
Agora, à medida que o tempo vai passando, dia um, dia outro, dá o seu
recado: hoje um telefonema, amanhã uma rápida visita, e o primeiro que
aniversariou levou um susto: a casa cheia de parentes.
Tenho certeza de que de agora em diante será assim: aniversários
concorridos no decorrer do ano, por duas razões. A primeira é que nos demos
conta de que a morte não escolhe idade. A segunda é como diz o avô:
- “Não quero saber de flores sobre a minha tumba. Quem quiser
demonstrar o seu amor por mim, trate de fazê-lo enquanto eu estou vivo.”
34
1999
Sonho que estou em uma grande casa, ensolarada, arrumada, limpa, cheia de
pessoas. Ouço vozes, passos, vejo livros abertos sobre uma mesa, os óculos de
meu pai em cima de um deles. O aposento é como uma loja, há uma seção de
vestidos para meninas. Percorro a casa toda, feliz, passando a mão nas paredes e
sentindo as arestas, a aspereza das paredes e a lisura das portas; sinto também o
cheiro das madeiras. Sentir o tato é uma experiência nova em sonhos e eu a
aprecio muito.
Outro sonho: subo e desço várias vezes pela casa e jogo areia pelas janelas.
Saio e vejo no pátio Sophia Bauer, minha professora de hipnose, junto com um
grupo de terapetas alegres, discutindo entusiasmados os meus progressos.
Areia – ampulheta – tempo.
Família em férias.
Ontem, fomos ao zôo em Belo Horizonte, e ficamos a observar um
macaquinho.
O macaquinho estava - coisa excepcional para um macaco - absolutamente
imóvel, encolhido junto ao tronco da árvore.
O passarinho distraído pousou a seu lado e zupt - foi imediatamente
agarrado e espremido entre as mãozinhas espertas.
O passarinho piou, o que excitou o macaquinho, que pos - se a pular e a
agitar as mãos para cima e para baixo, com a vítima presa pelas asas abertas.
Socou - a contra os galhos, contra o tronco, esfregou - a, apertou - a, atirou - a
para o alto, na maior alegria.
Parando alguns momentos para coçar - se, o macaquinho largou uma das
asas. A imobilidade do passarinho o intrigou. Era de ver - se o seu espanto, a tocar
agora delicadamente o corpo inerte.
Aí começou a parte realmente interessante do fato. O macaquinho largou a
presa e olhou - a, desconfiado. Cheirou - a. Cutucou - a de várias maneiras. Abriu
- lhe o bico e espiou lá dentro. Puxou - lhe algumas penas. Deve ter encontrado
alguns piolhos, pois pos - se a catar com os dedos alguma coisa muito pequena
que levou à boca e mastigou com prazer. A seguir, aos gritinhos, atirou o pássaro
para o ar como se brincasse de bola, deu - lhes tapas como a uma peteca, chutou -
o e até pulou em cima dele.
A pele da avezinha rompeu - se com tamanho peso.
E aí o nosso macaco começou a dilacerar com cuidado o que restava de
pele íntegra e a puxar para fora, com movimentos precisos e delicados, as
vísceras, que apalpava e cheirava, olhava de todos os ângulos, lambia e tornava a
examinar. Parecia não cansar - se daquilo, entretido com aquele exame como se
fora tarefa importante.
35
Arrancava as penas, as penugens do peito e as maiores do rabo,
observando - as uma a uma e colocando - as enfileiradas sobre o tronco.
Aí apareceu outro macaco. Briga na certa.
Que nada! O outro ficou por ali, sossegado, e daí a instantes estavam os
dois a tocar, a apertar, a cutucar, a medir, a cheirar, a trocar grunhidos entre si
como se conversassem, tão concentrados em suas macaquices que nem se davam
conta de estarem sendo, por sua vez, observados.
E eu pensei comigo : estou a contemplar o Simius curiosus, na pré história
da espécie que dominará a Terra daqui a alguns milhões de anos, talvez.
Acredite se quiser:
Já esqueci um bebê no banco traseiro do carro.
Em entrevistas de emprego já esqueci meu endereço, telefone, sobrenome.
Na adolescência eu fazia pior: ria antes das piadas; guardava o fichário
escolar na geladeira; joguei o uniforme a ser lavado na lata do lixo; acendia o
interruptor com o queixo, fechava a porta do carro com os quadris.
Já coloquei a lista telefônica no freezer.
Saí de carro e voltei a pé por ter esquecido que estava de carro.
Dei voltas e mais voltas no estacionamento por esquecido em que vaga
estacionara.
Fui à delegacia e dei queixa de roubo do carro que deixara na garagem de
casa.
Apoiei as compras no muro enquanto procurava as chaves do portão e entrei
em casa sem os pacotes.
Telefonei ao ex por engano.
Dirigi-me ao emprego antigo, completamente fora do meu caminho.
Confundir datas era o padrão cotidiano.
Esquecer em qual planeta estou.
Isto pertence ao passado. Agora fiquei tão normal que perdi a graça.
Culpa de Lobato, que escreveu algo assim: “E Dona Benta falou: ‘a China e
a Índia são como duas velhas árvores craquentas, de frutos saborosos e
nutritivos...’”
Fiquei curiosa e procurei entre os livros de meu avô, onde achei uns
pensamentos de Confúcio e de Lao Tse. Na biblioteca da escola (católica), só
mesmo a biografia de Sidarta. Semanas mais tarde, um tio doqueiro trouxe de
presente um Buda de marfim, que a família colocou em local de destaque e
venerou por muito tempo, não por ser um Buda, sim por ser de marfim.
Por amigos japoneses conheci ikebanas e origamis. Minha paixão pelas
culturas do Oriente cresce com o passar dos anos.
Lobato também me introduziu na Mitologia Grega, fascinação antiga.
Um dia, uma freira repreendeu minhas leituras, afirmando que Lobato era
comunista, e por sua causa – por causa da freira, não de Lobato – abandonei a
religião católica.
Meus pais, que me presentearam com os primeiros livros do Sítio,
declaravam não gostar de Lobato. Incongruência? Não. Ciúmes.Cresci Emília.
36
Ousada, desafiadora, malcriada, sinto indignação ante as injustiças, frustração ante
o desenvolvimento econômico e político ausente do país hoje, apesar do nosso
petróleo de do nosso ferro.
.As idéias de Lobato germinaram nos corações das Tatianas Belinky e das
Ruth Rocha de nossa pátria.
Tanto mérito, tão pouco reconhecimento.
E eu aqui a filosofar... por culpa tua, Lobato!
As idéias de Lobato germinaram nos corações das Tatianas Belinky e das
Ruth Rocha de nossa pátria.
Tanto mérito, tão pouco reconhecimento.
E eu aqui a filosofar... por culpa tua, Lobato!
De pátria a pária, basta tirar um r.
37
2000
Parece que há anos vivo na marginalidade.
Estou tão absolutamente farta de ser excluída que perdi o tesão de sair.
Tentei por tanto tempo e por tantas diferentes maneiras voltar ao convívio das
pessoas normais que já me pergunto se o resultado vale o esforço.
As regras sociais são sutis. Você só convive com casais se for casada
também ou se for um parente, o coitado. Coitada da minha tia que ficou pra tia.
Bem por aí.
Por anos não me caiu a ficha, inocente que sou. Os antigos amigos
continuavam tão gentis por telefone e tão ausentes ao vivo e em cores, e os laços
iam naturalmente afrouxando.
Quando dei por mim estava rodeada por uma fauna estranha: solteironas,
divorciados, homossexuais e artistas mal sucedidos – alguns sem talento, outros
pobres, outros alienados e a maioria totalmente fora do contexto, aquele tipo de
gênio perigoso para o contexto. O tipo Bernard Shaw.
Intelectual tem de ser rico. Como o Vinicius. Exilado, expulso da carreira
diplomática – perdão, diplomaticamente convidado a se retirar – curtindo Paris
com os amigos e divulgando sua arte lá fora e se o sistema não quer, pior para ele.
O fato é que a sociedade ‘normal’ é formada por casais, e casais não
recebem avulsos. Como se os avulsos fossem avançar no parceiro deles. Casais só
recebem avulsos quando convenientemente acompanhados. Namorando, pode.
Nos períodos em que namorei fui recebida, muito bem recebida e até paparicada.
E morri de tédio. A conversa é do tipo o que comi ontem, veja só o que comprei e
onde iremos nas próximas férias. Pior só a cri-cri (criada-criança) das donas de
casa.
A maioria dos casais é enfadonha, com exceção do Carlos e da Catarina,
ambos escritores, e do Jorge e da Amélia, ele compositor, ela pintora de talento,
dois casais que usam os neurônios para pensar, ora que coisa extraordinária e
original, freqüentam cinemas e livrarias, têm enfim a percepção de que o mundo é
mais do que a casa onde eles moram.
Viúvos, divorciados, solteiros, todos são impiedosamente descartados do
convívio dos casais tradicionais, os praticantes da hipocrisia oficial, que algumas
vezes só se mantêm casados porque moram no mesmo endereço.
Passo.
Maus fiéis amigos são os livros.
A frase deve ser velha, mas eu ouvi isto hoje pela primeira vez e concordo:
família é bom em álbum de fotografia.
Por que, em certos períodos da vida, a gente não se lembra dos sonhos?
Há meses em que não acontece naaaaaaaaaaaaaaada.....
38
2001
estou aqui pensando sobre a liberdade de expressão.
Esta questão do livre-arbítrio já foi antes desmistificada por Schopenhauer,
mas eu me atrevo a resumi-la em meus próprios termos.
A criança come o que a mãe oferece, veste o que colocam sobre seu corpo,
brinca e estuda onde, com quem e quando os adultos à sua volta acham que é
conveniente.
O jovem cresce e pode então escolher por qual time torcer. A TV, a rádio e
os jornais divulgam uma variedade conveniente de nomes para garantir a ilusão da
escolha. O processo é semelhante para outros itens de consumo. O importante é
garantir que você acredite ter uma identidade e opções: suas músicas, seus livros,
seus esportes, seus interesses, enfim, aí inclusos as suas idéias e o seu partido
político.
O adulto enfrenta o mundo do trabalho. Suas funções, seus métodos e
honorários seguem regras estabelecidas pelas leis ou consagradas pelos costumes.
Se os laços religiosos estão hoje um tanto frouxos, bem como os
matrimoniais, é porque as malhas da mídia e da propaganda são mais persuasivas.
Todos os brasileiros são livres. A maioria o é para morar mal, comer mal,
estudar mal, pensar pior e passar pela vida em filas para pagar impostos
escorchantes ou candidatar-se a vagas mal remuneradas. Quase me esqueço da fila
para assistência médica, com atalhos para a da funerária.
Ora, dirão, que exagero! As sociedades evoluem e a História registra as lutas
de tantos para garantir o bem maior do ser humano: a liberdade. Tiradentes, a
Princesa Isabel, Monteiro Lobato...
Inovadores e pioneiros, sem exceções, recebem como recompensa cadeia ou
desprezo.
Ah!... Mas ... “Houve uma época áurea na História da Humanidade, na
Grécia de Péricles....”
Onde havia escravos e Sócrates foi condenado a beber cicuta.
E agora que refresquei sua memória, eu lhe digo que não temo desafiar a
ordem estabelecida, pois tenho o salvo-conduto perfeito: sou poetisa.
Ah! Como eu gostaria de viver como Tolstoi! “E o conde retirou-se para
suas terras... onde isolou-se por três anos, a fim de escrever um livro...”
Invejo todos os ttt de Tolstoi. Tempo. Talento. Tenacidade.
Estou em uma escola, tentando vender um curso. Tenho uma palestra
marcada e estou de short azul, por isso vou para casa trocar de roupa. Ao entrar
em meu carro, junto com minha amiga Cláudia (ela está desquitada e é muito
promíscua, sai com o primeiro homem que a convida em qualquer baile, vai a
todos os bailes) descubro que meu carro foi arrombado, e a chave de ignição foi
trocada. Minha antiga chave não funciona, mas a nova, diferente, está no contato e
funciona. Terei de trocar o segredo, pois o arrombador está com a cópia da nova
39
chave. Um homem sai com uma criança, de bicicleta, do estacionamento, à minha
frente; são apenas vultos escuros. Sinto em meu corpo que fui estuprada e que a
lembrança do fato foi retirada de minha mente.
Cada sonho...
Carro arrombado, chave trocada. Uma abertura foi forçada em minha vida,
de forma violenta, oculta e amnésica.. este sonho pode ser a representação de um
trabalho inconsciente. Uma nova direção me foi imposta. Qual? Como? Por
quem?
Os carros de minha infância eram vistoso, com nomes velozes: Impala,
Jaguar. Havia o pretensioso Aero-Willis, com rabo de peixe, um luxo!
Passava um carro na rua, a molecada gritava – que, naquela época, a rua
era o parque temático da infância. A gente corria à janela para espiar quem era o
orgulhoso felizardo que fingia ignorar os olhares cobiçosos das mocinhas
namoradeiras.
Saíam da moda os carros compactos com janelas estreitas e bancos
inteiriços, ótimos para namorar. Imperavam os fusquinhas. Os remediados se
contentavam com os pés-de-boi, sem acessórios, quase que só um banco sobre
quatro rodas. Mas rodava!
E o que dizer daquele carrinho achatado com nome de iniciais, o DKV,
que escondia o motorista quase rente ao chão? O distraído que se colocasse atrás
de um caminhão corria o risco de acabar esmagado, pois ficava literalmente
invisível.
Inesquecível o simpático Romiseta, o carro dos egoístas, onde só so
apertava um.
Carros, como toda novidade, eram a fascinação do momento.
O formidável é que se estacionava em qualquer canto, o tráfego era livre,
não havia pedágios nem flanelinhas nem consórcios. Os manobristas que nos
recebiam à porta dos teatros, hotéis e restaurantes exibiam sorriso e uniforme, e a
gente se sentia tolamente importante.
Mamãe está doente. Veio morar conosco por uns tempos.
A filha do Sílvio Santos foi seqüestrada. Minha mãe, que adora uma notícia
policial, fica o dia todo ligada na TV para ouvir todos os detalhes e, quando chego
em casa, tenho de ficar educamente escutando.
O curioso, no seqüestro da filha do milionário apresentador de TV foi o
motivo que os seqüestradores alegaram para o crime: nada mais, nada menos que
benemerência. Isso mesmo: caridade, amor ao próximo.
Vejamos: a moça que idealizou o atentado pretendia usar o dinheiro do
resgate para distribuir cestas básicas para os pobres. O resgate sendo R$500
000,00, a cesta básica a R$20,00, serão 25 000 cestas básicas! Para tanta
generosidade , só mesmo um marginal espiritualizado. Pois se o executor do plano
foi nada mais, nada menos que o filho de um pregador protestante, um irmão em
40
crença da filha do empresário, bem como de sua mãe, apesar de o pai ser um
judeu fiel seguidor da Torah. Coisas deste abençoada Brasil!
O seqüestrador teve a infelicidade de matar dois guardas que o perseguiam
e teve também a curiosa idéia de refugiar-se – pasmem! – na casa do empresário,
burlando cães, vigias e cerca eletrificada, conseguindo ainda a proeza de capturar
o empresário como refém.
Moço de sorte, este, pois conseguiu garantia de vida – como se no Brasil
houvesse pena de morte – ao negociar suas condições de rendição com o
governador.
O moço nem precisava ficar tão preocupado, pois é réu primário e sem
antecedentes, nunca havendo até então causado qualquer problema, segundo o
pastar, seu pai. Nada mais que algumas bobagens de adolescente, como a polícia
apurou em seus arquivos: uso de drogas, tráfico de maconha, cúmplice em um
assalto à mão armada, receptador de objetos roubados, comércio ilegal de armas,
coisinhas à toa, está-se a ver.
Há a atenuante de o pobre moço estar passando por uma ‘crise existencial
grave’; morando em uma sólida e boa casa em bairro residencial de classe média
alta, na capital, filho de pais estáveis e cursando faculdade particular. A
explicação? Só mesmo um coração de mãe para um comentário desastrado deste!
A namorada, mentora intelectual do crime, entregou-se em prantos,
afirmando ter sido sempre gentil e amável com sua vítima, chamando-a apenas
pelo carinhoso termo ‘princesinha’. Que a princesinha estivesse permanentemente
sob a mira de duas metralhadoras é um mero detalhezinho irrelevante.
O casalzinho caridoso é tão generoso que tinha já planejados cinco outros
seqüestros de famosos ricos, tendo já alugado casas para o cativeiro, nas quais a
polícia encontrou um arsenal bélico.
Os dois estão obviamente tristes, lamentando as cestas básicas não
distribuídas.
Na seqüência da grande publicidade que a mídia deu ao caso, seguiu-se o
seqüestro de uma família de cantores, os Gordinhos Talentosos.
Este caso é cômico, pois tendo o seqüestrador seqüestrado a família toda
incluindo o seu agente, não sabe agora com quem negociar o resgate. Por outro
lado, este seqüestrador em particular não passa por nenhuma crise grave, já que
não é sequer socializado, é excluído mesmo, exclusão perene e estável.
Os brasileiros, que não têm jeito mesmo, e que fazem piada por tudo, já
estão por aí falando que ao final do seqüestro a família vai mudar o nome para os
Magrinhos Talentosos ou então os seqüestradores já terá gasto o valor do resgate
em comida
Muita gente acredita que a questão por trás dos seqüestros seja mesmo
comida, e eu concordo.
Para evitar tais desgraças, há, sim, que se alimentar... AS ALMAS.
Estou aqui a me lembrar de quando eu era criança e vivia alguns momentos
mágicos:
Foi uma festa a ida à praia à noite, de maiô, chinelinho, baldinho e pazinha.
41
Sim, era noite. Uma noite quente de verão, sem lua, o céu coalhado de
estrelas e o forte aroma de damas da noite a enfeitiçar.
Minha tia estendeu a esteira de palhinha no passeio, e nós, crianças,
atacamos a areia.
Os homens se se afastaram, iam jogar futebol. Alguns carros estavam na
areia. Naquela época, não havia ainda iluminação, e o farol dos automóveis é que
clareava o local do jogo ou do churrasco. Senão, era a noite plena, o rugir do mar
nas trevas abaixo do manto de estrelas.
Passou a hora de ir dormir – coisa inusitada – e nós brincando ferozmente, a
construir ruas e ruas de casas moldadas nos baldinhos, com portas e janelas
desenhadas com as pás e decoradas com conchas.
A tia contou estórias e cantou uma música incrível sobre um grão de areia
que se apaixonara por uma estrela.
Quando os homens voltaram, tão ou mais sujos que nós, fomos todos ao
mar.
Bem lá no fundo, além da zona de arrebentação, ouvindo as ondas que
estouravam depois de passar por mim, firmemente segura pelos braços, eu
flutuava na água escura e morna, oscilando nas marolas.
Quando sente aquela cosia deslizante e dormente em minha perna, como
gritei! Cardumes pulavam à nossa volta, prateados e ariscos, e alguns peixes me
tocavam e mordiscavam., fazendo cócegas.
Como rimos, adultos e crianças, saboreando aqueles três gigantes: o mar, o
céu, a noite.
Em casa, mais tarde, o banho quente e o sono das pedras. Ainda sonho,
como o poeta:
“Eu me lembro! Eu me lembro!
Era pequeno e brincava na praia...”
Hoje, dois aviões se chocaram contra o um alto prédio em NY.
Quando cheguei em casa, sem nada saber, mamãe estava de olhos grudados
na telinha, na maior ansiedade, curtindo o terror como só ela sabe:
- Filhinha, que coisa horrível, NY foi atacada.
E eu, ao ver as chamas e as pessoas correndo e o repórter gritando: quem
ousa atacar os EU?, não me contive e deu o maior berro de alegria espontâneo:
- Bem feito!!! Eles merecem!
Contratei como faxineira uma mulher simples a quem dei uma instrução
também bastante simples: “Capriche na limpeza da cozinha”.
Saí cedo pela manhã e retornei ao fim da tarde; ela, já de saída, explicou
meio atrapalhadamente que voltaria no dia seguinte para terminar o serviço.
Entrei na cozinha e levei um baque - a mesma sujeira da manhã, e de
quebra a minha área de serviço em completa bagunça. O banheiro não estava em
melhor estado. Intrigada, entrei na biblioteca.
Que susto! Todos os livros estavam fora de seu lugar habitual. Sócrates
estava filosofando sobre os prazeres da mesa e meu Vade Mécum descansava na
mesinha do telefone.
A curiosidade foi a única explicação que me ocorreu para semelhante
desatino.
42
Lembrei-me de uma antiga criada, de quem suspeitei, pensando que
roubara alguns de meus livros. Eu tratava de arrumar um meio de recuperar os
meus companheiros quando eles reapareceram na estante, exatamente nos
mesmos lugares de antes. Tratara-se tão somente de um ‘empréstimo’ e a garota
ficou toda feliz quando eu expliquei que ela podia perfeitamente ler o que bem
entendesse depois de terminado o serviço enquanto aguardava o ônibus escolar.
Pela vida afora muita gente, simples ou não, já se deliciou aventurando-se
pelas minhas estantes.
É inevitável o fascínio da palavra escrita. Já dizia Castro Alves:
“O livro caindo n’alma...”
Burca à brasileira
“Cada povo tem o governo que merece”, resmungava meu pai, a cada vez
que se descobria alguma corrupção no governo. Externava assim sua negativa
crença de ser o povo brasileiro ignorante e preguiçoso.
Assistindo inúmeras reportagens sobre o Taliban, esta frase de meu pai
volta-me à lembrança. Imagino algum regime fundamentalista a invadir o Planalto
e a impor a tal da burca à geração Pá Tropí.
A turma do deixa disso daria uma gargalhada. “Fala sério!” ressoaria da
Amazônia aos pampas.
Uma ala de burcas poderia sair às ruas em alguma escola carioca ao som
frenético de um samba, mas seriam burcas irreverentes, transparentes,
agradecendo a Alá pela nudez belíssima de sua criação.
Um mulá proibindo música, instituindo rezas obrigatórias...aqui, onde os
cultos são generosos em danças, cantos e sincretismo?
Enclausurar crianças em madrassas? Ingenuidade de quem desconhece
nossos meninos de rua.
Armar os homens? Prevejo nas praias, tomando água de côco em mínimas
sunguinhas, só pra contrariar, Os Filhos de Gândhi com todos os seus
simpatizantes.
Nem pelos lados do agreste os radicais mulçumanos teriam melhor sorte.
Se insistissem, descobririam a fibra do sertanejo, antes de tudo um forte,
invocando ‘meu padrim Padre Cícero’ e lutando até o último homem. Na caatinga,
sem cavernas aonde se abrigar, pobres árabes! Os quengos e os carcarás levariam
vantagem.
- Ouçam o que eu exigo! – gritaria o mulá, roxo de raiva, e logo
descobriria que, no Brasil, o que político fala não é para ser levado a sério.
Reflexos na vidraça:
Hoje pela manhã, estava eu a limpar as minhas vidraças quando vi uma
estranha imagem no vidro.
Lembrei-me de imediato das últimas notícias que chegaram esta manhã de
Ferraz de Vasconcelos. Um senhor olhou pela janela e viu nela estampada nada
mais nada menos que... um elefante! Lembrou-se então do deus-elefante Ganesha,
que de certo usava deste artifício para convidar os brasileiros a se converterem ao
hinduísmo. O bispo, ao ser interrogado, respondeu cautelosamente que aparições e
43
milagres não são exclusivos da igreja católica, podendo o Altíssimo manifestar-se
a qualquer povo da maneira que lhe for mais conveniente, e colocou à disposição
a equipe de especialistas que está examinando a imagem de Nossas Senhora, para
também estudar a questão do elefante. O Padre Quevedo nem se dignou a
examinar esta imagem, que para ele tudo naõ passa de uma mistura de
desinfetante com excesso de imaginação. Ocorre que na casa em frente, um árabe
encontrou no vidro de sua porta a imagem de um homem de turbante montado em
um camelo e jura pelo Alcorão tratar-se do profeta Mohamed. Em São Miguel
Paulista, um estudante de Història encontrou espantado a figura de Dionísio, taça
em uma mão e um cacho de uvas na outra, rindo para ele do vidro do espelho do
banheiro. O rapaz pergunta-se se os deuses do Olimpo estão querendo retornar à
Terra.
Quanto à imagem em minha janela, não chamarei a rede Globo nem os
repórteres de A Tribuna, pois reconheci de imediato a máscara de Luke, o deus
viking das brincadeiras e das trapaças.
Refletindo sobre a guerra do Iraque, sinto-me mal.
Mulher-bomba, impludo. O terrorista número um sou eu. Morte a mim!
Enquanto meus amigos se horrorizam com as cenas da guerra, eu me calo,
escondendo meu secreto desejo de morte e ataque, que me fez gritar ‘Bem feito!’
no primeiro segundo em que vi as torres gêmeas do World Trade Center
desabaram. Verdade que no segundo segundo eu me dei conta de que lá estavam
pessoas comuns, mas afirmo que eu dançaria de alegria se lá estivessem apenas
Bush e seus falcões.
Passo pela vida conservando a capacidade de indignar-me contra a opressão,
o desrespeito, a maldade.
O mundo é maya, ilusão.
Vaidade das vaidades! Cristo aconselha a perdoar os inimigos. Buda
pregava a compaixão. E eu?
Eu fervo do mais ardente desejo de carnificina e sangue. Quero Washington
em chamas. Mahatman em ruínas. Generais americanos condenados ao
fuzilamento como criminosos de guerra.
Ai de mim, impotente sou! Ai de mim, que só posso criar um mundo melhor
através de meu exemplo. Que exemplo?!
Preciso destruir o inimigo numero um, já!
E ouço Nietzsche: ‘procuravas o teu pior inimigo e encontraste a ti
mesmo...’
Narciso, olho meu reflexo.
Comentário de mamãe, hoje cedo, a suspirar:
- Que monotonia, né? Já acabou a novidade da guerra, não tem mais nem
um seqüestro novo, nenhuma noticia emocionante na TV...
ai, humanidade, estás perdida...
O espanhol me encontrou na praia e puxou conversa e eu estiquei o assunto
em parte porque ele era simpático e em parte para quebrar meu padrão de mulher
séria educada por freiras que não conversa com desconhecidos.
44
Ele comportou-se como um macho padrão: exibiu-se alongando os ombros,
abrindo o tórax e sorrindo; exibiu-se falando de seu dinheiro, de seu próprio
negócio, de sua profissão, joalheiro, de sua família, era viúvo, de suas
propriedades no plural, plural mesmo e em sua nacionalidade européia.
O espécime disponível casualmente comentou que se mudaria para o Brasil
caso se apaixonasse por uma brasileira, confessou estar procurando uma
companheira e então perguntou se sou casaca.
Menti que era; a conversa voltou ao terreno neutro dos belos jardins de
Santos e das areias ardentes de Guarujá e passei a tarde a psicoanalisar que acesso
de loucura impediu-me de atirar-me aos braços do europeu rico e famoso e
devorá-lo com saudável apetite tupiniquim. Auto-estima baixa ante um homem
europeu, rico, bonito e....interessado em mim??? Afinal, minha idade não mais
permite-me o luxo se a esmola parece grande demais.
Só se...
Meu inconsciente certamente tem algumas boas razões para tal ato
aparentemente suicida. Talvez o longo rabicho que pendia da nuca do homem,
semelhante ao daquele meu vizinho tão bonzinho e tão travesti, ou um olhar de
esguelha, ou quem sabe o sotaque, que soava mais para o baiano que para o
castelhano.
Äna äm bidros arabi, habiba.
Creio mesmo ser eu a única garota do grupo que realmente prestava
atenção às aulas de árabe e à cultura. As outras limitavam-se ao habib (querido) e
ocupavam o tempo a lançar olhares lânguidos aos rapazes, imaginando-se
sedutoras odaliscas em românticas tendas à sombra de românticas palmeiras em
românticos oásis.
Jamais namorei moço algum da colônia libanesa. Acredito que eles
preferiam as moças de cabelos longos e idéias curtas. Eu usava cabelos curtos e
tinha o curioso hábito de raciocinar.
Uma amiga casou-se com um árabe, aos dezesseis anos. Com sorrisos, ele
a convenceu a usar vestidos apenas, porque assim ficava mais bonita. Para que
continuar os estudos, se ela seria mais útil aos filhos em casa? Sempre que
combinávamos algo com a turma, ele a raptava para um programa mais
interessante – a dois, naturalmente.
Ela estava muito feliz em seu primeiro ano de casada. Recebia
regularmente flores, jóias e bombons. Tinha `disposição cozinheira e arrumadeira;
semanalmente iam à sua casa a manicura, a cabeleireira e a esteticista. As compras
eram solicitadas por telefone e entregues em domicílio; nada daquela chatice de ir
ao açougue, à feira, ao supermercado. Nem sei se ela soube que deixamos de
visitá-la por proibição expressa do marido.
Soubemos por uma prima que ela embarcou entusiasmada para o oriente,
prometendo voltar com dúzias de tapetes e especializar-se em culinária árabe. Ela
nem sabia que a Pérsia hoje chama-se Irã e ir-se embora para Pasárgada não é lá
tão agradável quanto no tempo do grande rei Ciro. Ela rápido descobriu que os
tapetes não são mágicos, a fumaça não sai de lâmpadas encantadas e o único gênio
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  • 1. DIAS DE OUTONO Sonia Regina Rocha Rodrigues
  • 2. 2 ISBN – 85-904649-4-6 Autorizada reprodução, desde que citada autora e fonte. Ano de publicação: 2004
  • 3. 3 “Sob a pele, há uma vida paralela, onde as datas não importam.”
  • 4. 4 1994 Há muitos anos não escrevo um diário. O de infância joguei fora, o de adolescente era tão perigoso que rasguei em mil pedacinhos, houve um outro tão sofrido que queimei. No entanto um episódio banal fez cócegas em meus dedos e cá estou de novo a diarizar meu cotidiano. E, com o computador, teoricamente, fica mais fácil, mais sigiloso e nem ocupa espaço...O fato banal, que me levou de novo a escrever, foi o que se segue: Assiti um documentário sobre Mary Cassat, a pintora impressionista, esposa de Degas. Ela recebe a visita de Louise May Alcot, a escritora, que diz para a sobrinha adolescente de Mary: - Se você gosta de escrever, tem de ter um diário. Um diário ajudará você a compreender seus sentimentos. Comigo não é assim. Eu me confundo ao contar meu dia a meu diário, pois há tantos aspectos diferentes e tantos pontos de vista e tantas personagens interiores querendo roubar a cena, que acabo por não saber o que realmente me aconteceu. Freqüentemente, escrever diários me leva a descaminhos, a sombrias vielas, sentimentos bizarros ou desagradáveis, a ilusões, a distorções. Apenas transformando realidade em literatura aquela bizarrice adquire significado. Definitivamente, o mundo dos sentimentos é meu lado sombra. Custei, mas finalmente resolvi _ é agora que eu aposento a minha obsoleta máquina de escrever. Ansiosa por entrar na era da informática, comprei um 486 DX2 66. Não se impressionem com esses números todos. Trata - se, como vocês já devem ter adivinhado, de um computador . Um computador pessoal, o mais moderno do mercado, com impressora e multimídia. E , deslumbrada, a família aventurou - se pelos ícones do Windows adentro. E foi amor à primeira vista _ maravilhoso ... enquanto durou. E durou tão pouco ! Como eu sou vítima profissional de todo tipo de parafernália moderna , seja mecânica ou eletrônica, as filhas, já acostumadas com a urucubaca, foram reclamando: - Também, mãe, já dava para adivinhar, tudo acontece contigo ! Há quinze dias os técnicos tentam descobrir porque aquela maravilha não funciona. Técnico vem, técnico vai, acrescenta - se memória, troca - se a placa, reprograma - se o winchester ... e nada ! Ontem, em desespero de causa, após confabulações misteriosas, os doutores em computação levaram meu Forrest Gump para a UTI. E cá estou eu a datilografar esta matéria pela maneira troglodita na minha velha e fiel Olivetti.
  • 5. 5 O comp está apaixonado e cheio de dúvidas !, exclamou minha filha Fernanda, enquanto eu, infeliz, olhava a impressão de meus textos: uma única linha de asteriscos, corações, quadrados, círculos e pontos de interrogação. No dia anterior o comp não imprimia nada. Eu chamara o técnico, por sorte eu moro bem ao lado da loja. Ele chegara, sentara - se, eu dera os comandos para demonstrar o problema e o engraçadinho funcionou normalmente. Que raiva! Lá tive eu que engolir um “às vezes é o usuário que não sabe usar...” Como se eu não trabalhasse com impressoras há mais de um ano! No mês anterior eu enviara uma parte do jornal para a redação todo em colagens, porque o idiota se recusara a imprimir a última meia página do tablóide, jogando na tela a mensagem: “O cabo está solto” Não havia nenhum cabo solto, evidentemente, mas a máquina não se deixava convencer. Quando voltei, Fernanda terminava de compor um trabalho de escola, quinze folhas elaboradamente impressas pelo comp. Estou absolutamente convicta de que aquela máquina me odeia. Faz de propósito para atrapalhar a minha vida. Máquina não tem vida ? Ah, tem, sim. Tenho a mais absoluta certeza de que a minha, pelo menos, tem uma personalidade própria. Pois como explicar que assim que a Fernanda sentou - se em frente ao monitor e solicitou a impressão, o adorável comp imprimiu meus contos direitinho no maior capricho? É admirável a capacidade de nossas lojas e supermercados contratarem pessoas totalmente desinformadas sobre o que vendem. Nem falo do vendedor de livros que procura Machado de Assis no balcão dos Últimos Lançamentos ou A Defesa de Sócrates na seção de esportes. O caso é mais grave, gravíssimo até. Julgue o leitor por si mesmo. Vou ao supermercado comprar feijões. Há anos compro um tipo de feijão pré-cozido, marca Vapt-vupt. Fica pronto em três minutos com caldo grosso e saboroso. Não encontrando, pergunto ao gerente. Parece ser o gerente. Está de terno e gravata, usa um crachá do estabelecimento e está dando ordens a outros funcionários. O cidadão me conduz à seção dos ensacados, onde um rapaz me aponta os feijões secos. - Quero o pré-cozido – explico. Todos os feijões estão aqui – afirma ele. - Marca Vapt-vupt – insisto, e, encontrando dois olhares indiferentes, mudo de tática – e onde encontro as batatas pré-cozidas? - Isto é fácil – o rosto do gerente se abre em um sorriso e ele me leva ao rapaz que descarrega batatas fritas em saquinhos nas seção dos petiscos. - Procuro as batatas pré-cozidas – explico. - Aqui estão as fritas. A senhora já olhou nos congelados? - O nome da marca é Vapt-vupt – arrisco, desistindo de esclarecer que não são congeladas. - Ah! Estão em frente aos legumes .Por aqui – e o bem informado rapaz nos guia até uma prateleira repleta dos mais diversos produtos da Vapt-vupt, inclusive batatas e feijões. O gerente se dirige a mim no tom mais eficiente do mundo:
  • 6. 6 - Aí estão suas batatas, senhora. Agradeço, pego os feijões e me dirijo ao caixa. Existem duas adolescências na vida: a primeira aos doze, quando nos libertamos dos pais. A segunda acontece quando nos libertamos dos filhos. O castigo do pecador vem atrelado ao pecado. Assim é que os gordos engordam, os preguiçosos empobrecem, os irados tornam-se hipertensos e as mães... definham aprisionadas na dita ‘relação definitiva’ Mal entrara eu na livraria e caiu-me nas mãos os Contos do Espólio. E lá estava o mais magnífico conto que já li: o rato entre o gato e a armadilha. Quem foge da ratoeira encontra o gato de Kafka. Entre a ratoeira e o gato, recuso o dilema, procuro opções. Não sou rato, pertenço antes a uma raça que não tenho bem certeza de poder chamar de humana, mas dane-se o tcheco! Este é meu conto, quero um universo ‘leminskiano’ e decreto que nessas linhas, ‘grafite é o limite.’ Mereço o nirvana, não a ratoeira, nem a goela do gato, nem o kafkiano pessimismo por mais genial que seja. Sou brasileira, dou a volta por cima, faço a hora, não espera acontecer, este exercício intelectual não resolve coisa nenhuma mas é divertido como o quê. Sou diariamente agredida pelo despreparo culinário da mocinha do andar de baixo. Um verdadeiro terrorismo gastronômico: o pão queimado, o feijão que pega, o cozido que passou do ponto. Já estamos amparados por lei quanto à praga da invasão acústica, quando aos cheiros, a coisa é bem diferente. Nas regras do condomínio há de haver alguma que nos garanta a privacidade olfativa. Idéias para um concurso promovido pela Nestlé, pois, ao contrário de minha vizinha, adoro cozinhar, correção: adoro fazer doces: Nestlé faz parte do álbum da família desde o primeiro aniversário de minha filha, nos doces caprichosos e deliciosos que enfeitam as mesas das festas. O seu primeiro bolo foi um tambor, confeitado em rosa e azul, com baquetas de biscuit. E recheado com Leite Condensado Moça. O segundo foi um relógio, com números de chocolate e mostradores de confeitos. O terceiro foi uma boneca, negra, com cabelos de granulado, porque a aniversariante era doida por chocolate. No quarto aniversário a casa virou circo e o bolo palhaço ganhou cabelos de fios de ovos e nariz de goiabada. O quinto aniversário foi comemorado com um barco à vela, simples de confeitar, porque a mãe estava sem tempo; a graça da mesa ficou por conta dos smurfs que navegavam nele. No ano seguinte, a mãe estava de férias e caprichou na decoração do Sítio do Picapau Amarelo. O bolo nem poderia ser outro: a boneca Emília. Outros bolos esperam sua vez na espaço do armário reservado às publicações culinárias: o já gasto Livro de Receitas Culinárias de Chocolate de
  • 7. 7 Juliette Elkon, os livretos sobre festas infantis e festas juninas da Nestlé e, é claro, a maravilhosa coleção de revistas Nestlé e Você. Ao lado, no meu caderno de receitas, há uma parte especial dedicada aos recortes de bolos cuidadosamente colecionados das latas de Leite Moça. E, na primeira página deste caderno de capa dura, que a professora do ginásio profetizou “deverá durar a vida toda”, está a primeira receita que fiz, aos doze anos, copiada do caderno da melhor amiga: o pavê Nestlé. Ainda Kafka. Penso naquele incrível conto sobre o gato e o rato e salta-me à memória a imagem de um Buda de marfim e de Monteiro Lobato. Não há nenhum elemento de ligação entre a estátua, Lobato e o conto de Kafka (nove anos de análise freudina poderiam ser desperdiçados nesta busca inglória), mas Kafka é assim: dá nós no cérebro. Se eu escrevesse como Kafka estaria há muito confinada entre quatro paredes, confirmando assim as idéias kafkianas. Se Kafka nascesse no Brasil o sol dos trópicos avacalharia com seu pessimismo. Que seriedade resiste a um meio-dia de fevereiro ao ar livre? O suor não tem dignidade. Ao ser apresentado a uma água de coco gelada, Kafka relaxaria e trocaria as gargalhadas com que acompanhava a leitura de seus contos por um sorriso de, pasmem, puro prazer. A sensação inusitada implodiria seu universo. E as invés de escrever, o tcheco comporia sambas, entrudos, presepadas e bossa-nova, teria talvez criado o Ritmo do Absurdo, tão de conformidade com nossa História. A genialidade será talvez genética, no entanto acredito na superioridade da geografia. O clima mudaria tudo. Antigamente, as pessoas consultavam a lista telefônica em busca do número de alguém. Hoje é diferente. Precisando telefonar para o INAMPS e para a Faculdade Dom Domênico, revirei as páginas brancas e as amarelas. Nada. Liguei para Informações e, de cada vez, ouvi: - Este telefone não consta da lista. - Não diga! Se constasse da lista... – bem, do outro lado da linha, a telefonista não sabia que eu estava em casa, com a lista na mão. Tentei argumentar: - A senhora com certeza conhece o Posto de Assistência Médica do INAMPS, na Aparecida, é caso de utilidade pública, este telefone tem de constar em algum lugar! - Se a senhora souber em nome de quem está o telefone... A faculdade também não consta da lista, segundo Informações: - Uma faculdade inteira não pode simplesmente desaparecer! A senhora sabe, com certeza, que esta faculdade existe, não é? - Não consta da lista. – Clic. Definitivamente, a “criatura” do outro lado do fio não é mais humana, privatizados que foram os seus neurônios em prol do lucro de alguns. Encontrar os números necessários é simples, desde que a gente aprenda a técnica. Primeiro, tente o vizinho. Depois, ligue para um estabelecimento similar. Consegui o número do INAMPS ligando para o INSS, onde uma simpática
  • 8. 8 funcionária me forneceu não um, mas dois telefones do posto em questão. Discando para outra faculdade, uma das secretárias forneceu-me o número da Dom Domênico. Este é o procedimento que funciona atualmente. Quanto à lista telefônica... não, não a jogue fora! Ela é extremamente útil! Com ela, você evita as filas no correio para consultar rotos, ensebados e dilacerados catálogos, pois nela encontram-se os CEPs de todas as ruas de nossa cidade. UM ANTÍDOTO, JÁ! Fui envenenada por FHC. Veneno mais tóxico que o BHC, FHC corrói aquele lugarzinho secreto responsável pelo bem-estar e pela paz de espírito, que os místicos chamam de ‘alma’, os junguianos ‘self’ e o cidadão comum simplesmente ‘bolso’. Questão de ponto de vista. Ainda convalescente da última mordida do Leão, reajo mal a 43 anos de brasilidade. Devo à CEF, onde fui trocar de pesadelo (do pesadelo do aluguel para o pesadelo da casa própria) uma úlcera de stress, noites de insônia e sessenta dias de completa esterilidade mental – as idéias todas debandaram, em pânico. Recupero-me aos poucos, na esperança bem brasileira de conseguir pagar juros absurdos com salários congelados há mais de três anos. Valei-me, Santa Rita dos Impossíveis! As próximas eleições? Meu voto é ecológico, que a vida é para todos e o dinheiro também. Quero respirar! Agora, com licença, vou fazer pipocas, assistir ao final da Copa do Mundo e tentar convencer o caçula a desistir daquela universidade a R$1000,00 por mês com garantia de desemprego certo: _ Vai jogar futebol, meu filho! O caminhão de mudança encostou e eu fui logo avisando: - Os livros embalo eu! Pouco me importa o que acontecerá com as roupas, as louças e os eletrodomésticos. Afinal, trata-se de um problema mecânico bastante simples: pegar de um lugar e levar para outro. Quanto aos livros, a questão é diferente. Na minha primeira mudança fiquei durante uma semana encontrando os coitadinhos nos lugares mais inusitados: na máquina de lavar, no forno, no freezer. Até mesmo servindo de calço para uma perna de sofá capenga _ e olha que era um exemplar novinho, que eu mal começara a ler. É indispensável examinar o caminhão cuidadosamente antes que parta. - Tem certeza de que descarregou tudo? - Sim, senhora. Aí dentro só tem papel velho e uma meia dúzia de livros que caíram dos caixotes. - Livros? E vocês não os pegaram? - Pra que? A senhora já tem tanto livro aí, que mais um menos um não vai fazer diferença. E, estatelados no chão sujo, meu atlas de
  • 9. 9 anatomia e minha coleção de arte, importada! Não é muito ruim quando os carregadores enfiam alguns exemplares junto com os sabonetes _ ficam cheirosos por bastante tempo. Chato é quando eles os socam no mesmo caixote com cebolas, pó de café e outras especiarias - por semanas, ao escolher um livro, tenho a sensação de estar indo ao supermercado. Em outra ocasião, eu embalava cuidadosamente meus cristais, quando dei - me conta de um silêncio incomum. Onde estavam os carregadores? Procura daqui e dali, afinal encontrei - os sentados na sala, absorvidos na leitura. Súbita paixão pela literatura? Nada disso. É que haviam descoberto uma Enciclopédia Sexual Ilustrada. Desta feita eu resolvi fazer na biblioteca a mesma faxina que faço no resto da casa _ sumir com as velharias, cortando o que esteja fora de uso e fora de moda. Comigo ficaram apenas os clássicos, as obras-primas, os meus preferidos inseparáveis amigos de todas as horas. Por isso foi tão fácil acomodá-los, pois couberam todos em apenas vinte e cinco caixotes. Acordo angustiada. Sonhei que na sala onde dou minhas aulas, há uma cama onde escondi minha bolsa. Há muitas pessoas ali, saímos e deixamos a porta aberta. Percebo que há vozes estranhas na casa, mas não digo nada. Quando voltamos para a sala, nada foi roubado, exceto minha bolsa, que alguém encontrou jogada na rua, sem dinheiro, sem as chaves do carro, sem os documentos e inclusive sem o seguro do carro. Alguém realmente quer tomar a direção de minha vida, sem nenhuma garantia. Um sonho perturbador. Estou em Bebedouro, com duas colegas que cantavam comigo em um coral, Zulmira e Nívia. Vestida de preto, Nívia está gemendo e não tem pés. Zulmira diz que a dor é por uma perna estar menor que a outra. É madrugada e vamos à praia, onde entramos dentro de uma rocha. Ao entrar na caverna, vejo uma ex-colega de ginásio, imensa de gorda, deitada em uma maca; ela chama, conta para Zulmira que está doente, tem as faces vermelhas e inchadas. Na praia, em declive, há muita gente, a água é transparente e está um dia ensolarado. Suspendo a saia para molhar o pé, não entro na água. Lembro-me de que a primeira vez que entrei na água, nesta praia, mergulhei até o pescoço, recordo a deliciosa sensação de água gelada na pele quente. Torno a entrar na caverna, e a garota gorda diz que emagreceu 4,5 kg. Tornamos a sair, a água subiu tanto que passou a areia e a amurada, inundou o passeio. São águas tranqüilas e as atravesso para ir embora. Acredito que este seja um sonho sobre partes doentes. Nívia é como um orgulhoso pavão de voz linda e pés feios; desequilíbrio entre ação e emoção; impotência – sem pés não pode andar. A garota gorda, inchada, retém emoções e
  • 10. 10 vê os defeitos alheios. Zulmira sobrecarrega-se de trabalho, é só coração e determinação, dedicada aos outros. Eu estou indefinida andando em companhia de pessoas com problemas sem tomar nenhuma atitude, deixando-me levar. Ontem senti-me de novo vivendo no interior, quando Fábio convidou-me para ir ao teatro Municipal, assistir um concerto em prol da campanha Aquisição de um Steinway (piano de cauda). É como um flash back de Léa Pitelli em Um Piano para Comedouro. Comedouro foi uma lição de vida. Lá comecei a entender o mundo dos ricos, a elite culta, a fração elegante dos ricos. Rico é diferente: alegre, seguro, tranqüilo, um privilegiado como consumidor de cultura. Fábio me disse para ir chique que a velharada gosta de ir bem arrumada. Em Comedouro, eu correria a minhas pérolas. Aqui, coloquei meu vestido mais novo, meu colar e brinco básicos, batom básico e gotas de um perfume francês. A velharada inteira parecia estar de uniforme: tailleurs, cores pastéis, as inevitáveis pérolas – colares curtos ou longos, com uma ou duas voltas, e enormes brincos combinando. O concerto foi divino, viajei na música, um mar de emoções em que o maestro Guga viaja admiravelmente, aliás, do jeito que aquele maestro se mexe, ele parece nadar entre os sons. O pianista vindo de Innsbruck tinha mãos grandes e gordas. Na opinião do Fábio é o melhor pianista do mundo. Já a Regina Amaral, que organizou o concerto, disse tsc tsc, há muitos pianistas melhores, citou o nome de três celebridades internacionais e comentou que, quando eles vêm a São Paulo, sua filha os convida e eles se apresentam no salão particular em casa dela, pois a filha tem um salão para trinta pessoas, com dois pianos de cauda, exclusivamente para esses concertos restritos aos íntimos da família... Como eu dizia, rico é diferente. Fui apresentada para as presidentes de tantas entidades culturais que não gravei os nomes nem das presidentes nem das entidades. Todas de queixo para cima, peito estufado, olhar de águia, sorriso satisfeito do tipo eu mando e gosto disso. Fábio me apresentou como escritora e eu retruquei à altura, anunciando que sou a editora do Chapéu-de-Sol – literatura e outras artes, lembram-se da reportagem de capa sobre a Zezinha? Maria José Aranha de Resende, a Zezinha, espalhou nossa revista para esta elite toda, foi muito bom para nós, um excelente trabalho de divulgação. A maior parte dessa elite cultural fechada se conhece desde a infância e se freqüenta em locais exclusivos. Em Comedouro eu diria que são umas sessenta pessoas, aqui umas quatrocentas; a importância que lá se dá ao nome de família aqui é acrescido pelo olha só o que eu fiz/ conheci/vi/participei. Um mundo elegante, refinado, perfumado... Sonho. Vovó estava aqui, em casa, rindo, rindo... Antes de vovó morrer, ela ficava com os olhos parados e distantes por alguns momentos e então dizia que estava em um lugar muito bonito, e tanta gente a chamava e ria, ria e que ela se sentia feliz.
  • 11. 11 Será que vou morrer? Ser poeta é agradecer a vida com alegria, pois, como dizia Epicuro, os deuses nos deram tudo, exceto sabedoria. Basta escolher, desfrutar, agradecer, exaltar. Procuro novos sapatos em um restaurante, encontro sandálias brancas e experimento, coloco um pé e percebo que o estão servindo a comida, então peço ao garçon que guarde as sandálias para mim até eu retornar da mesa. Na mesa, meu pai está sentado ao lado de outra moça e me ignora. Aliás, meu pai é barbudo e eu não o conheço. Confusa, saio e vou para casa, mas estou sem chaves, chamo um chaveiro para trocar o miolo da fechadura, nisto chega minha filha e abre a porta com sua chave. Fico muito confusa, pois o miolo foi trocado e a chave velha serviu na fechadura nova. Troca de chaves, troca de sapatos. Um sonho sobre hábitos velhos e novos. BOM DIA Comece bem o seu dia Usando sua fantasia Para buscar alegria Energia Simpatia. Imagine, a cada manhã, Que está abrindo um portão. O que haverá do outro lado? Ora, um lago! Não sei se há patos, Peixes, Flores ou lenha em feixes. Olhe ao redor e descubra Se há céu claro ou espessa bruma. Retire toda a roupa Enrole-a em uma trouxa E por sobre o ombro esquerdo Atire seus trapinhos. Entre no lago, Mergulhe, Pule, De uma só vez ou aos pouquinhos, De seu jeito, De seu modo,
  • 12. 12 Fique inteira sob a água, Fique o tempo que quiser, Feche os olhos ou abra os olhos, Perceba tudo o que puder, Movimentos, toques, sons, E atravesse o lago, Saia da água, Saia do lago, Na outra margem há uma muda De roupa nova e enxuta. Vista esta roupa e repare Em seu modelo, suas cores, Sua textura e espessura E veja como lhe assenta. Saia agora do jardim Pelo portão por onde entrou. Abra os olhos, vá para a vida, Se é pesada a sua lida Ou se é leve a sua sina, Eu não sei, mas lhe garanto, A cada manha você pode Refrescar-se em seu próprio lago E vestir um traje adequado, Folgado, Requintado, Amalucado, Melhorado, Engraçado, -em qualquer caso – Encantado. Bom dia não são versos de pé quebrado, e sim uma técnica de meditação de um tal de Dr. Epstein, especialista em cura por imagens, cujo livro eu estou estudando. Perco sangue às baciadas, tenho muitas cólicas e, de repente, na cuba hospitalar, vejo o último pedaço expelido: um grande bicho verde e amarelo, parecido com um marisco, seco e morto. Será um sonho de cura? Finalmente meu útero parou de chorar ou expeliu o monstro devorador de homens? Uau, que freudiano! Uma mulher sabe que envelheceu quando está em uma reunião e alguém lhe comunica que há um homem à sua procura e o grupo em volta diz com unanimidade que com certeza trata-se de seu filho. Você sabe o que é a tão falada e atual síndrome da pânico?
  • 13. 13 É o que sente o náufrago vendo passar ao largo o navio enquanto em suas carnes se encravam os dentes do tubarão. É assim com ser torturado pela Tribunal da Inquisição. É quando procuras por teu anjo da guarda e te deparas com os guardiões do Umbral. É o que faz um não cristão entrar em uma igreja e apelar para Santa Rita dos Impossíveis. Tu te sentes como um cristal estraçalhado e ouves à tua volta: “és forte; agüentas”. Tu és um sobrevivente e sofres como um índio aprisionado, um guerreiro ferido, um cavalheiro desonrado. Deixa de lado todo aquele jargão psiquiátrico que não consola a tua dor profunda. Vivemos em uma sociedade bárbara, em que atingem o poder e o sucesso aqueles que usam sem escrúpulos da maior violência. Sossega, nada há de errado contigo. Se não és um alienado, como não entrar em pânico? Minha lista de compras: dois camelos. Não sou árabe nem moro no Egito. Simplesmente estou completando o presépio.
  • 14. 14 1995 Meu pai era conhecido como 'o homem da maquininha' porque fazia contas em um soroban. Aprendera com amigos japoneses a usar este instrumento de cálculo e, em todas as eleições, convocavam-no para mesário. E por vários dias ele ficava trancafiado com outros escolhidos a apurar os resultados voto a voto, urna a urna. Homem simples, aqueles eram seus dias de glória _ ele saboreava o prestígio e a admiração dos companheiros por quem conseguira arrancar um segredo aos japoneses. Em casa, ele tentava pacientemente ensinar-me o processo. Enquanto ele ditava as parcelas, eu rapidamente fazia os cálculos _ de cabeça. Meus dedos canhestros invariavelmente esbarravam em outras fileiras, desarranjando as dezenas antes de somadas as unidades e era preciso recomeçar. Papai propunha-se a zerar o instrumento, ao passo que eu, para economizar tempo, nele 'escrevia' o resultado da soma, já feita mentalmente. O curioso é que papai lamentava minha total incapacidade para as matemáticas e perguntava-se o que seria de mim, quando tivesse de somar longas listas de algarismos, como, por exemplo, verificando as despesas das compras mensais. Se meu pai pudesse prever o futuro, teria poupado preocupações. A cada mês é mais fácil contabilizar as compras da casa. Os abarrotados carrinhos de supermercado, em tempos de real, transformaram-se paulatinamente em minguadas, leves sacolinhas. E eu retiro apenas um dígito por dia para calcular o tempo que falta para o término do mandato de FHC. TRADIÇÃO DE FAMÍLIA Fevereiro é o mês das uvas pretas. Pequenas e doces, dão um licor delicioso e servem para fazer um tipo de bolo cuca simplesmente di-vi-no. Lembrando-me da emoção que eu sentia em menina ao acompanhar a maturação da bebida, expliquei para minha filhinha o que pretendia fazer. - Posso ajudar? Equilibrando-se sobre um banco para poder alcançar a pia, com um avental quase tão grande quanto ela, a pequenina lavou cuidadosamente os cachos, destacou as frutas e despejou-as uma a uma pelo estreito gargalo. A seguir, com minha ajuda e a de um funil, despejou açúcar até cobrir completamente as uvinhas. - E agora? - Agora é tampar, colocar aqui no escurinho e esperar quinze dias. Todos os dias ela abria várias vezes a porta do armário e espiava, e quando finalmente ficou pronto, coamos cuidadosamente o caldo espesse e perfumado para a licoreira da cristal. A ocasião merecia convidados especiais. Os avós foram convidados para experimentar o licor, que ela serviu em bandeja de prata, o peito estufado de orgulho, sorrindo feliz:
  • 15. 15 - Eu fiz sozinha! A cada Carnaval, rotineiramente, refaço meu estoque de licor de uvas pretas, mas nenhum será tão saboroso quanto o daquele verão. Temos a possibilidade de criar todas as trapalhadas possíveis por não saber usar o tremendo potencial de nosso cérebro, este cachorrinho obediente que faz exatamente o que a gente pede, sem julgar. Como o caso daquela moça que acendeu um cigarro dizendo: ‘este é o último cigarro que fumo’, e caiu infartada, pois esquecera-se de avisar que pretendia abandonar o vício. Já vejo quem me olhe desconfiado, achando que alucino. Minha mãe entrou em um apiário afirmando que viera ali expressamente para ser picada por uma abelha. Já adivinhou? Uma abelhinha voou direto para ela e picou-lhe a ponta do nariz. Ninguém mais foi picado. Felizmente a maioria de nós aprende a desejar melhor: a mãe que não tem tempo de adoecer, a estudante que de alguma forma estuda exatamente as questões do exame, o motorista confiante que sempre encontra uma vaga justo em frente ao portão, em um estacionamento lotado. Por isso falo de meus defeitos no passado e de minhas realizações no presente. E não ligo se me chamam de esquisita. Esquisito, no espanhol, é algo bom, especial e único. O cérebro humano é mesmo muito, muito esquisito. Como cada um de nós. Jung costumava perguntar: qual mito está-me vivendo? Então escrevi : MINHA LENDA Mudei meu nome, cansei de ser guerreira. Não mais Walquíria, e sim Sophia, Dediquei-me aos livros e devorei bibliotecas. De Tales a Saramago Escarafunchei os séculos e as civilizações, Sem aplacar minha sede, Eu diria entes, minha fome, De contato, De afago, De agrado. Estou aqui, de peito aberto, desarmada, E qual diamante, firo a quem me toca. Objeto de desejo, não de amor. O oráculo de Delfos, se existisse ainda, Concordaria com a astrologia, E com a numerologia Que me decretam Individualista, Pioneira, Solitária.
  • 16. 16 E eu buscando carinho... Desejo a morte com a sofreguidão dos condenados à imortalidade. Mudar o nome não basta. Neste mundo que incendiou a Atenas de Péricles E condenou Sócrates a beber cicuta, Quem sou eu para implorar aceitação? Quero ter o fim dos gregos valentes e virtuosos Que os deuses arrebatam deste planeta hostil: Mãe Deméter, inicia-me nos mistérios de Elêusis E coloca-me nos céus, transformada em estrela! A chuva que ameaçava cair iminente fez-me entrar no prédio onde mora minha mãe, a meio caminho de minha própria casa. Toquei a campainha: - Estou sem guarda-chuva... - Entre, eu estou almoçando. Com todos esses raios e trovões o tempo não melhora tão cedo. Quer almoçar comigo? Sirvo-me de arroz , batata e bife. E aí minha mãe disse: - Amanhã você me devolve o bife. E eu me engasgo, é lógico. E me lembro porquê decidiu morar sozinha. A gota d’água foi a conta do telefone. Eu pagava a minha parte nas despesas, conforme as regras da casa. Um belo dia mamãe me sai com outra das suas: - Desconte o troco do mês passado. - Que troco? Minha parte era R$7,22 e eu lembro perfeitamente que lhe entreguei exatos R$7,22. - Nada disso. A conta exata era sete reais, vinte e dois centavos e meio!!! Bem no horário de pico, no ponto em frente ao mercado, onde entra e sai uma multidão de passageiros, foi que eles entraram no circular, tagarelando animados. - Lá vem a turminha levada – anunciou o motorista. Uma meia dúzia de meninos e meninas, o mais velho não teria mais de sete anos, pálidos, magros, exibindo sinais evidentes de desnutrição em sua compleição óssea, cabelos ralos e quebradiços e olhos grandes brilhando curiosos. Com a cumplicidade do cobrador, passaram por baixo da catraca, ajudando- se mutuamente, passando de mão em mão os livros escolares, esgueirando-se por baixo da estreita catraca, equilibrando-se no veículo em movimento como podiam, sem alcançar os altos canos de apoio. Não que fossem gastar o dinheiro da condução em balas, não; é que, não tendo como pagar, não fosse a vista grossa do cobrador, teriam de percorrer sob o sol a pino o longo caminho para casa. Preparei-me para um tumulto. O grupinho instalou-se no fundão, tão quietos e educados que nem parecia haver crianças no ônibus. O circular seguiu pelos bairros periféricos de São Vicente, atravessou a ponte sobre o mar, passou sobre o manguezal, adentrou o continente, rodou um trecho movimentado de estrada até chegar a Huamitá.
  • 17. 17 Ali a turminha desceu, um auxiliando o outro para pular o alto degrau do ônibus, acomodando às costas as mochilas, acenando alegremente para os conhecidos. E puseram-se a brincar e a cantar, com evidente prazer. E eu perguntei-me como seria possível risos e felicidade naquela sujeira, naquela miséria, naquela longura? Indiferente a especulações sociológicas, a cantoria espontânea espalhava-se por entre as ruas de terra, por entre as casas sem reboco com telhas de zinco. Eu observava a cena como quem presencia um milagre. O ônibus afastou-se e as crinaças penetraram no coração da favela, a saborear a vida. Celebrando... Está escuro. Estou com um recém-nascido sobre uma cama em um cômodo muito pobre. Vou fechar a porta e descubro que as portas e janelas não tem trinco e as grades estão quebradas. E não há luz. É perigoso ficar ali e lá fora está escuro e ermo. É ruim ficar. É incerto partir. Estou sem segurança e só com meus novos projetos.(o bebê). Como consegui ficar em uma situação tão ruim? Acordo tarde, perdi a hora. Enquanto procuro, em um aposento pequeno misto de quarto com cozinha, pelo telefone de meu chefe para comunicar meu atraso, minhas filhas perguntam quando mudamos. Lembro-me de que na quarta- feira estaremos viajando de Comedouro para Santos, de mudança, mas eu esqueci de pedir a minha transferência de emprego e de solicitar a transferência da escola das meninas, então, teremos de adiar a viagem. Nossa! A vida voltou a ser uma bagunça! E eu nem me dei conta! Esta aconteceu hoje com uma amiga minha, na barca do Itapema, aquela imensa favela do Guarujá– quem vai para lá se demite rapidinho, por isso o governo vai fazer um concurso específico para o tal buraco quente. Os políticos mudaram o nome do favelão para Vicente de Carvalho, por causa da má fama do lugar, mas mudar o nome não muda a realidade da coisa, e nós (o grupo dos sete azarados, é como nos referimos a nós mesmos) fomos temporariamente premiadas com uma nomeação para lá, por necessidade de serviço que esperamos seja breve. Vou contar a estória toda: Chovia que era uma beleza. Um Turner se quedaria deliciado ante os matizes caleidoscópicos do mar em fúria. Um dia em que um assalariado de juízo restaria em casa a prevenir-se da gripe. Mas não Luizinha, funcionária responsável, ciente de suas obrigações. Luizinha embarcava pontualmente na barca das 6:30 e atravessava o Atlântico rumo à favela onde trabalhava. Ela só faltara uma vez, quando ventos acima dos 60 km/h impediram a navegação das balsas.
  • 18. 18 Ela enfrentava estóicamente, a depender do tempo, dez quadras de pó ou lama para garantir o emprego federal arduamente conquistado após meses de estudo e insônia. A seu lado aglomeravam-se os miseráveis habitantes do cortiço, maltrapilhos, fétidos, piolhentos, encarando com rancor seu corpo bem nutrido e bem cuidado. Por mais que se vestisse com simplicidade, ela sobressaía na multidão, deslocada de seu meio, de suas raízes. Largando por um momento o guarda-chuva a seu lado, Luíza buscou na bolsa um lenço e assoou o nariz. A travessia terminava. A moça tateou pelo banco em vão até encontrar o olhar duro da corpulenta mulher ao lado, que a fixava agressiva, segurando nas mãos o precioso guarda-chuva. A cena armada para o escândalo. Luizinha pensou em protestar, mas quem disse que a voz lhe obedeceu? E o olho mau da ladra insolente, provocador, zombeteiro... A raiva aflorou no rosto da moça sob a forma de lágrimas. Todos os seus músculos contraíram-se em um patético esboço de reação. Muda de espanto, Luizinha observou a outra afastando-se imponente, imensa, ameaçadora, a encarnação dos protestos da Miséria contra a Abastança. E Luíza lá, imóvel. Uma mulher desprotegida exposta à tempestade. Notas de rascunho para uma palestra sobre leitura: Pais e educadores têm a oportunidade de influenciar profundamente, ou não, a personalidade de suas crianças. Podemos escolher se queremos crianças quietas, assustadas e infelizes, prisioneiras dos nãos e de muitas regras; ou poderemos nos armar de um caminhão de paciência e orientar crianças alegres, espontâneas e ativas. A escolha do que fazer com o precioso tempo de nossas crianças é nossa A leitura é um bom hábito a ser cultivado pela vida afora. O conhecimento é a melhor herança que podemos deixar a nossos filhos. É a única herança que ninguém lhes poderá tirar. Minha opinião sobre a lei mosaica ‘Honrarás pai e mãe.’ Se o profeta desconhecesse menos a humanidade, teria acrescentado um décimo primeiro mandamento: ‘Só conceberás crianças desejadas’. Que mundo seria o nosso, se cada criança recebesse carinho e atenção. Se cada pai ou mãe escolhesse como prioridade a felicidade de seu filho! Sonhei que entro em uma balsa enorme, com lugar para dezenas de carros e dois andares para centenas de pessoas. Embarco para uma viagem em um lindo rio com corredeiras e com locais maravilhosos, paramos diversas vezes para nos banhar nas piscinas verdes com águas quentes e ouvir o maravilhoso murmúrio das cascatas. Nos trechos acidentados o barco corre por trilhos, como um trem. As margens são sempre verdes, de mata fechada. Fico sabendo que aquela barca-trem foi construída para evitar que o maravilhoso rio fosse destruído
  • 19. 19 por uma rodovia ou por uma barragem. Estou admirando cascatas, parada em uma das piscinas verdes e quentes, a ouvir o extasiante murmúrio das ondas, quando, às sete da manhã, em pleno feriado, minha mãe me telefona para dizer algo que poderia muitíssimo bem dizer às dez. Interpretação do sonho: a vida – rio – tornou-se segura com o barco-trem, assim a ameaça das corredeiras tornou-se fascinante e bela; o verde é a saúde, a esperança; o murmúrio das águas é a harmonia com o cosmos e o calor é o amor. Estamos em uma época violenta, e trabalho em uma região violenta. Mas esta tal estória do governo querer desarmar a população, sei não. Não uso armas, mas não concordo com isso. Quem tem de ser desarmado são os bandidos, pô! Atravevo-me a fazer umas PROFECIAS Kali, a deusa negra, dominou durante a Era das Trevas. O Grande Ditador esgotou os recursos conhecidos no combate ao mal – epidemias, ignorância e crime desorganizado. Impediu-se a reprodução dos dobermans. Castraram-se os pitbulls. Proibiram o porte e o comércio legal de revólveres e similares. Os contrabandistas exultaram e os criminosos decretaram o monopólio das armas de fogo. A seguir, facas e tesouras (e qualquer tipo de objeto perfurante ou cortante) foram retirados de circulação. As academias de artes marciais proliferaram e os perigosos assassinos multiplicaram-se em proporção malthusiana. ‘As mãos matam! Que sejam cortadas todas as mãos do reino!’, exigiu o Grande Ditador. ‘Alto lá! Excelência...’, e, invocando seus conhecimentos médicos, o Ministro da Saúde explicou que a agressividade humana localiza-se no cérebro, mais precisamente em uma determinada região do hipotálamo... Mirando entre os olhos do ministro, o Grande Ditador atirou, e, verificando a exatidão da informação, ordenou: ‘Destruam todos os cérebros da Terra!’ Ao fim da tarde, o Ministro do Planejamento apareceu para comunicar que a ordem fôra cumprida. A onda de violência fôra detida, pois todos os cérebros do planeta... ‘Bang!’ – um tiro certeiro do governante interrompeu-lhe o discurso. Faltava um... O último Homo violentus sente frio. Em sua vaidade, compreende que ninguém rezará por sua alma após a morte. O sol mergulha no oceano. Indra pisca e recria os deuses e o universo. Prometeu modela no barro molhado por suas lágrimas a sexta raça humana. Às portas do Éden, Lúcifer conspira com Gabriel. A serpente foi colocada à porta do inferno e os frutos da árvore da vida distribuídos a todos os habitantes do globo. Betinho ajuda o chefe Seatle a colocar um cartaz à entrada do paraíso:
  • 20. 20 “A Terra é sagrada. Somos os guardiões da herança de nossos filhos.” A nave Interprise traz um recado da Federação: a cláusula da não intervenção nas sociedades primitivas foi reformulada e eles estão de olho em nós! Como? O que aconteceu? Desafiado por Jeová, a quem acusou de milenar falta de imaginação, Dias Gomes aparece para escrever o enredo de “Era de Aquário”. Trapalhadas genéticas com as quais tenho me deparado em meu trabalho: Na mesa ginecológica está deitado um homem. Desconcertado, o médico observa sucessivamente a enfermeira, que se engasga de indignação e a loira glamurosa de vestido rosa cuja voz ansiosa pergunta como está o nenê. O médico responde que vai fazer um ultra-som. Não se trata apenas de uma manobra para ganhar tempo. Enquanto grossas gotas de suor escorrem por sua testa, apesar do ar condicionado, o médico lembra-se dos casos escabrosos que já presenciou ali, no departamento de sexualidade humana. Enquanto explicava para o paciente a possibilidade de uma gravidez psicológica, procurava por qualquer coisa fora do normal, como uma gônada indiferenciada, um resquício de útero...Colhido o cariograma, constatou-se o resultado: 46XY, homem normal. Ou quase, visto o cidadão estar absolutamente convencido de ser mulher e estar grávida. Transexualismo? Não. Psicose pura. Alguns dias mais tarde, a mesma enfermeira protesta: - Outros daqueles homens que querem mudar de sexo. Qualquer dia desses, crio juízo e mudo de emprego. Que indecência! O médico lhe pediu que sentisse um pouco de paciência com o sofrimento humano. - Ora, doutor, um homão daqueles! Pouca vergonha é pouca vergonha! - Bem, vou abrir uma exceção e quebrar o sigilo médico, para você aprender a não julgar pelas aparências. Veja o resultado do cariograma daquele homenzarrão, daquele homão, como você diz. E ela leu: ‘evidenciou-se a existência de três linhagens celulares: 46 XO, 46 XX e 46 XY, sendo o indivíduo em questão, um mosaico.’ Que quer dizer isto, doutor?’ - Pois então imagine a confusão dentro deste indivíduo que tem um sexo genital masculino, um sexo psicológico feminino e um sexo genético misto. - Como? - Às vezes Deus cochila e deixa a acabamento de suas criaturas aos descuidos do acaso. E os pobres indivíduos ficam por aí sofridos e incompreendidos. A zona da intersexualidade humana é nebulosa. O caso que deixou o pessoal da clínica mais atrapalhado foi o do casal que queria ter um filho de qualquer jeito. Após três anos de casório, ainda se tratavam de benzinho pra cá e pra lá. Nenhuma queixa de insatisfação sexual. Apenas
  • 21. 21 desejavam um filho e o marido autorizou a inseminação com material do banco de sêmen, caso verificassem que ele era estéril. Sendo ele estéril, o ginecologista, muito afoito, tratou de ir inseminando a mulher, sem espera o parecer dos colegas. Afinal, o marido autorizara. O urologista, contudo, achou a distribuição de pelos do rapaz estranha e notou uma má formação, uma hipospadia perineal, que não fora corrigiada por diversas razões: falta de recursos financeiros, medo da complexidade cirúrgica, o paciente não via inconveniente em urinar sentado e a esposa tampouco se importava com este detalhe. A gravidez já ia pela terceira semana, sucesso comemorado pelo casal com champagne à luz de velas e muitos benzinhos, quando o geneticista convocou a equipe e perguntou se alguém sabia informar como o casal mantinha relações sexuais. O motivo da consulta não fora disfunção sexual, aliás o casal era evidentemente feliz. O geneticista revela: - Ereção evidentemente este indivíduo não tem mesmo e pouco me interessa o que eles fazem ou deixam de fazer. O fato é que estou com o cariograma deste marido na mão: 46 XX, mulher normal. Foi uma tremenda confusão. Depois de muito bate-boca, a equipe resolveu deixar o caso no mais absoluto sigilo. A inseminação já estava feita, se falassem a verdade iriam provocar muita confusão e sofrimento. Como se diz a um homem apaixonado que ele é uma mulher? O sujeito com certeza se suicida. Esta é uma situação completamente absurda. Mas, como será que eles fazem sexo?????
  • 22. 22 1996 A senhora pobre elogiou o Pantaleão dos Andradas. E eu admirei a delicadeza de sentimentos de minhas acompanhantes, três elegantes senhoras de elite, que educadamente responderam a seus comentários sem corrigi-la. Nosso povo iletrado é assim mesmo: sofre de dor no figo e de dilatação; quando sabem expressar melhor suas mazelas estão aperreados e avexados, que é ‘desse jeito aí como a senhora está vendo’, e o que a gente vê é mesmo muita miséria com o seu corolário interminável de desgraças. A minha admiração durou pouco, pois a pobre afastou-se e as ricas continuaram a pantalear. Arrisquei uma frase com Panteão e elas cortaram-me a palavra de imediato: - Pantaleão, querida. Panteão é coisa de grego. Não me contive e comuniquei àquelas emproadas que o templo grego situado em Atenas e construído em homenagem à deusa da sabedoria chama-se Partenon. Panteão é coisa dos romanos supersticiosos que, com medo de ofenderem por esquecimento algum dos inumeráveis deuses cultuados em seu vasto império, construíram por precaução um templo dedicado ao mesmo tempo a todos os deuses, o Panteão. E os Andradas por um acaso são deuses para terem lá o seu Panteão? O caso é que os loucos imperadores romanos gostavam de ser cultuados em vida e adorados como deuses pelo povo, e após a sua morte, eram enterrados com pompas divinas. Daí o termo Panteão ter adquirido, por extensão, o significado de edifício onde se enterram os restos mortais das figuras ilustres da História de um povo. Minha sorte foi uma das matronas ter na bolsa um Aurélio, que confirmou as minhas palavras. E quanto a Pantaleão? O que é? É nome próprio, como José, Rosa, João e tantos outros mais meio que esquecidos, pois a moda agora é ter nome de gente importante; é por isso que os brasileirinhos de hoje chamam-se Romário, Aírton, Upiudi ou Maiquijaquiçom. Lendo sobre a guerra da Bósnia-Yerzegovnia, ouso propor uma solução para a Iugoslávia: Ah! Esses iugoslavos! Deveriam vir ao Brasil. Um sérvio e um albanês começariam uma discussão e seriam imediatamente rodeados pela turma do deixa disso. Nossos iugoslavos ficariam espantados em ver, juntos, um ariano, um semita, um nórdico, um árabe, um negro e um oriental. Mais espantados ainda ficariam ao ver o ariano bater amigavelmente no ombro do negro e contar uma piada, ‘aquela do judeu e do general nazista no campo de concentração’. Entre muitas gargalhadas, o árabe retrucaria com ‘aquela do cristão cujo avião caiu no deserto e encontrou um muçulmano’. E o nórdico, a rir, continuar
  • 23. 23 com ‘aquela do japonês que visitou a Bahia e entrou em um terreiro de candomblé’ A esta altura, alguém sugeriria aos novos amigos iugoslavos um ‘loira gelada’ e um brinde à Paz. E já em clima de confraternização, vocês conhecem ‘aquela do albanês e do sérvio que eram vizinhos e aí ...’ Aí os nossos iugoslavos seriam forçados a rir-se da imbecilidade humana e concordariam em deixar pra lá as suas diferenças, já que, vivendo todos no mesmo planeta, somos, todos, companheiros de viagem. Mais anotações para futuras palestras: inspiração e criação ou A Arte como Terapia. Arte não é comércio, é como respirar, quase um ato fisiológico.ninguém faz arte porque quer, faz arte porque precisa. É comunicar-se ou enlouquecer. Somos influenciados pelo estilo de nossos autores prediletos, em meu caso Monteiro Lobato. Hoje em dia Edgar Alan Poe e Fernando Sabino, cuja técnica eu aprecio especialmente. Eu percebo que emoções fortes transformam-se em devaneios, imagens coloridas e vivas, que ficam querendo sair, agitadas em meu cérebro. Esta inquietação mental começa a tomar um significado, dá origem a uma gestação mental que só se acalma quando a idéia vem à luz: o parto mental. Este é o processo de criação, para mim, em qualquer arte: Emoção – perturbação psíquica – idéias desorganizadas – ideais organizadas – muito trabalho técnico – criação. Eu começo a escrever se m censuras, deixando as idéias fluírem do jeito que saem, espontaneamente, para o papel, por mais sem sentido que pareçam. A arte é uma forma poderosa de catarse em todas as suas manifestações: música, pintura, literatura etc Os sonhos são interessantes elaborações de conflitos internos que aparecem com histórias simbólicas prontas de grande impacto emocional. Certa vez li um de meus pesadelos a uma grupo de amigos escritores e cada um deu para a história uma interpretação completamente diferente. Eu mesma, tendo sonhado aos doze anos, só encontrei a chave simbólica aos 35. ele referia-se à passagem da vida de menina para a de mulher, ‘não há volta’, e a chave para decifrar este símbolo são as letras escritas com sangue, a menarca. O símbolo tem esta plasticidade, esta particularidade de prestar-se a várias interpretações em seus vários níveis de complexidade e de acordo com o estado de cada um em determinado momento. Em resumo, a criação é uma forma elaborada de transformar o sofrimento em arte, a exposição da realidade interna do artista. A Laudelina, quando lhe pedem um poema, não se faz de rogada: - Para quando? Qual o assunto? É para comemorar alguma data especial?
  • 24. 24 Pois não é que aquela mercenária fazia versos por encomenda? Eu me indignava. Literatura não é culinária! Cada artista, contudo, cria lá a seu jeito e gosto, e poetas são criaturas estranhas de hábitos bizarros, apesar de irem à praia e ao supermercado como toda a gente. Bem... quase como toda gente. Aquele cidadão que suspira extasiado ante as frutas empilhadas, que fala de ‘figos solenes’, ‘sabor de avó’ e em ‘amoras comidas com sol’, já se sabe – é um poeta. Que dizer da amiga que se inspira quando se molha? Larga a louça por lavar, sai do chuveiro pingando pela casa e esbarra conosco na rua a correr debaixo de tempestade, e, quando, solícitos, lhe estendemos o guarda-chuva, ela nos surpreende: - Caneta e papel, urgente! Eu pertenço `a família dos que são acordados à noite pela idéia: - Psiu, estou aqui! Estendo a mão, acendo o abajur e anoto rápida as frases boêmias no bloco que tenho sempre à mão, preparada para estas investidas noturnas. Há quem se inspire ao ouvir o som do mar, talvez por isso Santos seja berço de tantos poetas. Bom, leitor, de hoje em diante, quando você vir uma distinta senhora a escrever na areia, ou alguém o abordar à mesa do bar com o pedido insólito de ‘um guardanapo, rápido, por favor’ ou, na fila do banco, alguém a escrever furiosamente na capa do talão de cheques, sorria – você encontrou um poeta. Tive cinco filhos gêmeos e troco todos eles por um cesto com cinco gatos. Um sonho sobre projetos e oportunidades. Os gatos têm sete vidas, portanto são sete novas possibilidades, maiores chances de sucesso. Filhos são projetos. Escrevo sobre um garoto radioativo e sua irmã invisível, no estilo de O Mundo de Bob. Eu, hien? Que sonho mais estranho...
  • 25. 25 1997 É de manhã, quando passeio na praia, que tropeço em haicais. O mae, o céu, a areia, jardins, insetos – uma multidão de kigos no espeaço que restou de natureza na ilha concretada. Aí sou feliz. Ouço o mar, tão caro a meu coração, cantiga de ninar para quem nasceu caiçara. Ouço os pássaros, as cigarras, as borboletas... sim, as borboletas cantam, o vento dança e nuvens desenham o céu. É de manhã que me abasteço de poesia para fortalecer-me. Depois finjo- me guerreira, quando em meu coração o desejo é de partilha. E como uma tigresa convivo pacificamente com borboletas e flores, apoiando-me nos forte troncos, atenta ao ciclo das estações. Aguardo a manhã seguinte. Minh mãe brigou a noite toda comigo, dizendo severamente: Egoísta! - e eu quieta, concordando. Um sonho de culpa e auto-recriminação. Qual a utilidade deste sonho? De outra parte, está relacionado ao passado, de que adianta resolver o passado? Viagens de férias. Sorvetes. Tudo o que é bom parece acontecer no verão. É uma exuberância de frutas, um não acabar mais de passeios ao ar livre, e quando se mora à beira mar, então, há um vasto leque de diversões à escolha. Caminhadas na praia, mergulho, natação, pescaria, passeios de barco e toda sorte de esportes aquáticos. Claro, nem sempre o calor é agradável. Para quem trabalha exposto ao tempo, sem ventilador, sem ar condicionado, fazendo esforço físico, não é nada divertido. Há dias em que a temperatura sobe tanto que, visto de longe, o asfalto parece água, e a paisagem junto ao solo estremece, distorcida pelas ondas de calor. Dias em que, já pela manhã, tudo parece queimar a nossa pele _ o sofá, os lençóis, e até das torneiras jorra, à temperatura ambiente, um líquido escaldante e nada convidativo. Dias em que nada refresca - nem banho, nem piscina, e mesmo os aparelhos de ar condicionado não conseguem amenizar o mal estar. Dias em que a única atitude sábia é encolher-se à sombra, como um bichinho, imóvel, esperando, pois está quente demais até para se conseguir dormir. (deveria haver um verbo para a suspensão temporária das funções vitais provocadas pelo calor extremo, uma espécie de hibernação às avessas) Um dia como o de ontem, que dizem ter sido o mais quente dos últimos cinqüenta anos. O solstício de verão já acontecera, mas parecia que a Terra continuava, distraída, a inclinar-se mais e mais em direção à fonte da vida. Foi com certeza em um dia assim que um grego imaginou a lenda de Faetonte, o mortal que dirigiu o carro do sol tão desastradamente, chegando tão próximo que quase incendiou o planeta.
  • 26. 26 Desastre de Carnaval. Esta é de arrepiar! No Rio, a escola aguarda sua vez de entrar no sambódromo. O enredo da escola era sobre os ciganos. Um cigano passa pelo belíssimo carro alegórico, olha e comenta: vocês esqueceram um elemento fundamental, o fogo. Onde há ciganos, há fogo. A escola entrou na Sapucaí e o carro pegou fogo. Devo agradecer ao FHC. . Há anos com o salário congelado, só tenho a agradecer ao senhor presidente pelas melhorias na minha qualidade de vida. Vejamos. A princípio, parei de comprar jornais e revistas, passando a ler no Sesc, o que me levou a encontrar com mais freqüência as pessoas amigas. Aboli a carne do cardápio. Este alimento impuro e tóxico é com vantagem substituído pela soja. Em seguida, o açúcar. Doces, só em festas. Frutas naturais e chá amargo tem a dupla vantagem de preservar os dentes e manter a cintura fina. O próximo corte foi a gasolina. Acordar uma hora mais cedo para caminhar até o trabalho é um hábito saudável. À tarde, faço uma caminhada maior, enriquecendo minha vida com a poesia do por do sol nos jardins da praia. Em um momento de jurássica lucidez, dispensei o computador. Em outubro troquei todas as lâmpadas da casa por um modelo mais econômico. Em janeiro desliguei o freezer – cozinhar legumes ao vapor diariamente ao invés de descongelar tortas e frangos traz a economia adicional de dispensar o micro-ondas. Agora a insaciável FHC quer ainda mais economia. Desafiante! Depois de horas de reflexão concluí que só me resta dispensar a TV. Afinal, é a TV ou o banho quente! Uma hora a menos de TV por dia significa trinta horas ao final de um mês. O duro é que só assisto ao telejornal e se desligar a TV fico sem comunicação com o mundo - quando encostei o carro, o tempo de leitura no Sesc virou caminhada – e não poderei saber quando terminará este benéfico racionamento. Experimentei por uma semana – que benção! Sento-me no escuro em posição de lótus, fico zen e “vou-me embora pra Pasárgada, onde tenho o Homem que quero no país que escolherei.” Hoje acordei saudosista. Ando pela areia da praia, mas é o lago de Bebedouro que me vem à mente. Ante o pôr-do-sol, recordo as tardes de Bebedouro, com centenas de andorinhas no céu claro e o quadro magnífico das copas avermelhadas refletidas nas águas límpidas do lago. Se caminho pelas ruas, são também as ladeiras de Bebedouro que invadem meu cotidiano. E as manhãs de domingo em Bebedouro, com a feira típica e as pamonhas feitas na hora; o jornal lido na varanda, o cachorro ao lado, o jardim florido em frente e a promessa de um dia inteiro sem nada para fazer!
  • 27. 27 Sinto-me estrangeira em minha própria terra, quando, à noite, o sono procura o canto ausente dos grilos. Por que não sou como as árvores, que criam raízes? Sou antes como os pássaros, buscando a amplidão. Há algumas semanas atrás, chegou um médico do Rio e foi procurando pedindo a chave de seu armário; como ninguém entendesse, ele explicou: onde posso guardar meus livros, meu avental.... e também estranhou não haver um telefone em cada consultório. Pois hoje chegou uma louca de Recife, espantando-se por não haver ar condicionado no consultório e nem ventilador. E ante o olhar atônito do chefe e dos colegas a seu redor, saca do celular e disca: Alô! Fernando? É Malu! Pois imagine, estou trabalhando em um posto sem ar condicionado! Um total absurdo! Estou telefonando para reclamar e pedir que sejam tomadas as devidas providências.... E completou: - Taí, chefe, já reclamei ao presidente, é melhor o senhor tratar de providenciar tudo. O chefe, na maior cara de inocente, provoca: - Que presidente? - O da República, lógico. Pode? Sonho: ‘estou em um carro, no banco de trás: um negro sujo está encolhido no chão, vestido de preto, agachado, e resmunga palavras em alemão. Entendo ele dizer: Gesundheit. Encolho meus pés para não encostar nele.’ A situação da saúde está ruim, as perspectivas profissionais são péssimas! Outro sonho: ‘flores, muitas flores, flores que desabrocham pela casa e estou ao lado de minha mãe e de meus filhos’. Acho que existe a esperança de uma vida familiar melhor em 98. A louca que chegou do Recife foi afastada para tratamento psiquiátrico. Quase à força. Primeiro o chefe proibiu o balcão de marcar consultas para ela; depois tentaram deixá-la na chefia médica assinando autorizações de consultas extras, mas a mulher é doida demais. Colocou uma placa de quase meio metro sobre o balcão com o nome dela escrito em dourado, um enorme vaso de rosas brancas sobre a mesa e um prato de salgadinhos; ao sair, o colega falou que ela esquecera os salgadinhos e a outra me sai com esta: esqueci, não, mas não mexa e não deixa ninguém mexer, que são para o santo. Para o Santo? No outro dia, a mulher me chega descalça, com um biquíni molhado sob a saia, dizendo que saíra correndo da aula de natação, pois quase se esquecera que estava na hora de vir trabalhar. Aí, foi demais, mesmo. Cada uma!...
  • 28. 28 1998 BHC _ SIM! Assim que a percebi, parei e retrocedi, não fosse a barata voar em minha direção. Às sete da manhã, há de se convir, é ousadia demais! Nos corredores do ambulatório, ela bailava em zigue-zague. Emitindo reflexos castanhos-dourados à luz que se infiltrava pelo corredor. Visão até poética, fosse outra a bailarina. Essa apenas denunciava a nossa decadência. Convenhamos: baratas são arredias, vivem escondidas; quando surpreendidas parecem ter mais medo dos humanos que o inverso. Para cada barata dançarina, adivinho todo um corpo de baile oculto nos consultórios. Há anos trabalhar no Ministério da Saúde significa fazer jus ao adicional de insalubridade. No verão passado, convivi bem com a explosão demográfica das cigarras, que estavam por toda parte – nas paredes, na maca, na balança, até nas gavetas. Eu as recolhia em caixas, cuidadosamente, e as soltava no jardim. Elas agradeciam encantando-me com sua orquestra de violinos. E no verão anterior houve a invasão dos mosquitos. Fiquei “ dengosa”, apesar de acampar no trabalho besuntada de repelente. Estoicamente, vou levando...mas...baratas? Começo a desconfiar que se trata de um plano maquiavélico de FHC contra nós, os federais, pois há seis anos ele tenta acabar conosco, sem o conseguir. Não adianta, FHC. Resistirei! Voltando de viagem de férias, registro aqui as confusões provocadas por: SIMPLES PALAVRAS -São sessenta dólares e dez... Eu entreguei ao motorista sessenta dólares e uma moeda de dez centavos. Não entendi porque o homem ficou nervoso e desandou a falar muito rápido e muito bravo. Repetia continuamente a palavra dez. -Pois então! Eu lhe dei os dez. Meu tio apareceu, deu dez dólares ao motorista e resolveu a questão. A meu lado, minha irmã ria até as lágrimas. Eu não entendia: -Pois não eram dez centavos? Ten cents? -Eram dez por cento. -Mas... Meu tio, que só falava inglês, mostrou-nos a casa e disse que teríamos tudo o que precisássemos, sem preocupações e.... Eu me sentia tão orgulhosa de meu inglês! Entendi a palavra tip. Na lição nove de meu livro, havia uma lista de tips – dicas de viagens que um amigo dava a outro: tenha sempre à mão um mapa e um dicionário de bolso, coisas assim. Respondi a meu tio que certamente eu contava com seu auxílio para me dar todas as dicas necessárias. Minha irmã desandou a rir novamente e meu tio arregalou os olhos. -Você acabou de dizer ao tio que espera que ele pague todas as suas gorjetas – e minha irmã tranqüilizou o tio, em seu inglês impecável. -Mas... tip não é dica?
  • 29. 29 -Oh, poupe-me! E o contexto? -Mas que contexto? Assim passaram-se dez dias. Eu dizia, por exemplo: -Nós iremos ao lago Louise depois do feriado se não chover. -Bem, como o guia falou em inglês, existe sempre a possibilidade de ele ter dito alguma coisa completamente diferente – e minha irmã, sempre bem humorada, completava – Nós iremos ao lago Heloísa antes do feriado mesmo que continue chovendo, por exemplo. Que dias terríveis! Eu entendia todas as palavras-chave: lago, almoço, chuva – e perdia todos os elementos de ligação: antes, depois, mesmo que, somente se etc. -Pedi à tia ‘roupas de cama’, por medo de errar na pronúncia da palavra lençol e acabar falando um palavrão. -Shit, explicou minha irmã, com sua elegante entonação. Mas na excursão para as Montanhas Rochosas as coisas mudaram. Havia canadenses de Quebec e suíços que só falavam francês e foi minha vez de servir de intérprete para minha irmã. E, como ela estava em companhia do namorado, eu me sentei ao lado de uma irlandesa, muito doce e atenciosa, que viajava sozinha. Ela me fazia perguntas e mais perguntas sobre o Brasil e por sua vez contava-me sobre a Irlanda. Eu me sentia cada vez mais segura de meu inglês e orgulhosa de meu progresso. Minha irmã, lá do seu canto, lançava-me olhares de aprovação e incentivo. Todas as noites, no quarto, eu resumia para minha irmã as longas conversas que tinha com a irlandesa. Eu estava realmente muito satisfeita com a facilidade com que me comunicava com a nova amiga. Então houve aquele almoço, em que perguntei para minha companheira se ela nos acompanharia na gôndola. Falei devagar, mas firme, pronunciando cada sílaba dom clareza: -Do you go to the top of the mountain by gondola after lunch? Seus encantadores olhos azuis me sorriram com simpatia: -Oh, yes! My tomato soup is delicious! and yours? (Oh. Sim, minha sopa de tomate está deliciosa! E as sua?) Julho passou, com seus dias claros e seu céu límpido fazendo a alegria das crianças e das donas de casa. Estas porque o pesadelo da roupa suja que não tem como ser lavada, pois recusa-se a secar quando a cidade se transforma numa nuvem úmida, e tudo nos armários fica cheirando a ‘cachorro molhado’, não aconteceu. E aquelas brincaram até fartar empinando pipas, correndo pela areia da praia e até tomando sorvetes - que estava quente e os pais não tinham porquê proibir. Julho passou perfeito para férias, ensolarado, quente, lindo. Inverno sem frio, no entanto, não tem graça nenhuma. Fiquei, frustrada, a esperar pela minha estação do ano preferida. Inverno, afinal, tem seu jeito próprio, seus aromas, seus sabores: o caldo verde, o fumegante cozido português, o chocolate quente com marshmallow, o vinho quente, o fondue...
  • 30. 30 Pinhões tem gosto especial quando queimamos nossos dedos gelados no ingrato trabalho de descascá-los; as mãos ficam vermelhas e o estômago, aquecido. Até mesmo as prosaicas pipocas são mais saborosas nas noites frias em que nos enrolamos em cobertores em volta de uma mesa, como escoteiros acantonados, para um joguinho de cartas. Inverno é poder vestir-se com elegância; desfilar de blazers, casacões, túnicas e sofisticadas botas. Inverno mesmo é quando dois cobertores não são suficientes e o companheiro pula quando lhe encostamos nossos pés - e a gente dorme soterrada entre montanhas de edredons, meias, gorros e cachecóis. Inverno mesmo é quando a gente perde a hora porque a manhã é tão escura, o soninho tão bom e a chuva grossa nos embala como uma canção de ninar. Inverno perfeito é quando a gente, semicongelada, espera um dia inteiro pelo namorado carinhoso que nos envolve em um abraço daqueles tão aconchegantes que nosso coração se aquece, o mundo torna-se agradável e a felicidade, possível. Sonho: uma casa ruim, totalmente desarrumada; sigo minha filha até umquarto atulhado de fiapos de ráfia, caixas e coisas; lá encontro meu piano, com teclas descascadas e começo a tocar; ele se transforma em um tear com um padrão de mosaico preto e branco, que manuseio espantada. Tocam a campainha; um bando de palhaços diz que alugou a casa, que vão mudar-se e que eu devo sair. Eu afirmo meus direitos de locatária, eles acampam no corredor. Fico assustada, agora não poderei sair de casa para que eles não invadam tudo em minha ausência’. Acho que minha vida voltou a ficar uma bagunça – desorganização emocinal e mental. Palhaços são fantasias, ilusões, loucura. Devo impedir que fantasias loucas tomem casa de minha casa mental. Se ‘na casa de meu Pai há muitas moradas, deve haver um lugar PARA MIM!!!’ Meus pés ciganos, inquietos, procuram novos caminhos. Morei em vinte lugares diferentes sem nunca sentir-me ‘em casa’. Aqui há sol demais, lá venta em demasia, acolá chove de embolorar a alma, ou há barulho demais ou há privacidade de menos. Meus móveis nunca estão bem: falta espaço, não encontro posição para dormir, experimento todas as combinações possíveis de decoração, troco tudo de lugar e é o mesmo desconforto, nunca estou bem em lugar algum! Ah, que saudade da biblioteca de minha infância, com a cadeira de balanço de papai! Eu me aninhava nela em sua ausência e viajava em livros de aventuras. Que saudades da rede na varanda em frente à frondosa acácia que atapetava o chão com folhinhas miúdas e pétalas douradas! Meus pesadelos são povoados de casas desarrumadas, em ruínas, entulhadas de objetos e uma profusão de cacarecos estranhos, e eu atravesso estas casas por portas escancaradas a procurar, procurar sei lá o quê, ano após ano.
  • 31. 31 Em certo sonho, eu passeava a cavalo, apreciando uma mansão linda, ampla, clara e agradável, e exclamava: Ah, existem casas de pessoas felizes! Em outro sonho encontrei minha própria casa toda bem arrumada, recém- pintada e bem mobiliada. Operários se retiravam a dizer: ‘a casa está pronta, é só entrar e morar’ Não tive coragem de encara aquela casa silenciosa e afastei-me. Noite após noite, ao dormir, prossigo em minha buscas solitárias pelas ruas e pelas multidões, olhando atentamente cada rosto, quase sem esperança. Meus pés ciganos, inquietos, gostariam de enraizar-se, desabrochar e florir, mas para isso seria preciso que meu coração encontrasse um lar. Esta é outra das historinhas acontecidas em meu trabalho. Como se sabe, fila é ótimo local para sociólogo estudar povo – pobre povo brasileiro, como poderia ser diferente, se lhe falta o básico: a casa, o emprego, a escola. Na fila do INAMPS, por exemplo, há quem procure o especialista em figos, surdos em busca do Dr. Rino e o homem que quer porque quer marcar consulta com o ginecologista por estar com ‘doença de mulher’. Também há os que não desejam consulta nenhuma. Absolutamente! Querem tão somente uma receita ou um pedido de exames. E quando a balconista tenta explicar que só o médico pode fazer estes pedidos, das duas uma: ou recomeça a ladainha ou põe-se a reclamar do funcionário público vagabundo que trata mal o público. Um dia desses um fiscal do INAMPS que, vistoriando o posto, percorria os vários setores, na louvável intenção de compreender in locu todos os entretantos, chegou-se ao balcão de marcação de consultas e cortou o primeiro da fila, dirigindo-se diretamente ao funcionário atrás do balcão: - Com licença, eu sou fiscal do INAMPS e preciso de umas informações. - Pois não. Aguarde na fila. - Eu sou um fiscal do INAMPS. - Está certo, mas aguarde na fila. - Você não entendeu? Eu sou um fiscal! - Próximo, por favor. Meu senhor, mesmo sendo um fiscal, o senhor tem de aguardar sua vez na fila. - Eu não vim marcar consulta. Furioso, o fiscal escreveu um relatório a quem de direito, solicitando a imediata suspensão do funcionário, que, para surpresa do fiscal, explica-se administrativamente, através de uma carta, com um trecho mais ou menos assim: ‘todo dia agendo consultas para várias especialidades, inclusive psiquiatria. Em minha rotina diária atendo todo tipo de gente importante: o presidente do Brasil, o prefeito, Jesus Cristo, artistas e cantores famosos, e, recentemente, dirigiu-se a mim um fiscal do INAMPS’. Mas, afinal, porque o sujeito não apresentou suas credenciais? Simples, não? Fechei-me para balanço. Uma pessoa nunca deve esquecer-se de lembrar-se das mágoas passadas. É só a gente ficar feliz, abrir a guarda e – touché!
  • 32. 32 Um artigo meu é publicado em uma revista de saúde de distribuição nacional e eu vou, idiotamente feliz, repartir a alegria com a minha mãe, como uma filha razoavelmente normal. Ela pega a revista, lê e então comenta: Acho que tem um errinho aqui, nesta linha, escreveram duas vezes a palavra para. Eu pego a revista de volta, guardo. Ela ajeita os vasos de flores na janela. Eu posso perdoar-lhe esta pequena desatenção porque a escolha de ser indelicada é dela. Mas devo lembrar, para nunca mais mostrar-lhe coisa nenhuma de minhas pequenas alegrias, nunca mais contar-lhe sobre meus pequenos triunfos. Quando eu era pequena, vinha para casa com o boletim cheio de dez e ficava com os olhos cheios de lágrimas quando o elogio tão desejado não vinha. Papai dizia a ela: não vai dar os parabéns para sua filha inteligente? E ela dava de ombros: Por que? Ela não fez mais que a obrigação. Eu devo ter sido uma filha indesejada. Nasci em uma hora ruim. Ou chorei por madrugadas inteiras por semanas a fio até enlouquecer minha mãe. Não sei ou não lembro. Se eu ganhasse o ouro olímpico, minha mãe diria que em algum lugar do planeta alguém com um recorde melhor que o meu deixou de concorrer, só para transformar minha medalha em um prêmio sem valor. Para ela nada está suficientemente bom. Para mim, há muito está bastante ruim. Lá estávamos, os primos em segundo e terceiro graus, os que se reúnem esporadicamente nos casamentos e batizados da vida, após anos de ausência, com o mesmo nostálgico sorriso de ‘lembra-se de como brincávamos juntos na casa do avô?’ e com o mesmo suspiro fatigado de ‘ah! esta vida corrida que a gente leva!’ Cada festa em família reacende o desejo de compartilhar, pois, afinal, esta é a finalidade da família; durante alguns dias pensamos em promover uma churrascada ou um passeio, mas logo o cotidiano empurra rotina abaixo nossas boas resoluções. Aí passam-se dois ou três anos até que alguém se case ou batize um filho e é aquela alegria do reencontro, aquela sucessão de calorosos abraços e as trocas de confidências, piadas e receitas. A última reunião, contudo, foi bem diferente. Os abraços até que forma mais calorosos, os sorrisos mais amigos, as conversas mais prolongadas, mas havia aquele incômodo constrangimento no ar. É que a reunião familiar, inesperada, urgente, era um velório. E o primo que falecera nem era o mais velho de sua geração. Os sussurros, aqui e ali, estremeciam os ouvintes: - Eu o carreguei no colo. - Brincamos juntos. - Eu me lembro bem de quando ele nasceu. - Tão moço... tão bonito...
  • 33. 33 Agora, à medida que o tempo vai passando, dia um, dia outro, dá o seu recado: hoje um telefonema, amanhã uma rápida visita, e o primeiro que aniversariou levou um susto: a casa cheia de parentes. Tenho certeza de que de agora em diante será assim: aniversários concorridos no decorrer do ano, por duas razões. A primeira é que nos demos conta de que a morte não escolhe idade. A segunda é como diz o avô: - “Não quero saber de flores sobre a minha tumba. Quem quiser demonstrar o seu amor por mim, trate de fazê-lo enquanto eu estou vivo.”
  • 34. 34 1999 Sonho que estou em uma grande casa, ensolarada, arrumada, limpa, cheia de pessoas. Ouço vozes, passos, vejo livros abertos sobre uma mesa, os óculos de meu pai em cima de um deles. O aposento é como uma loja, há uma seção de vestidos para meninas. Percorro a casa toda, feliz, passando a mão nas paredes e sentindo as arestas, a aspereza das paredes e a lisura das portas; sinto também o cheiro das madeiras. Sentir o tato é uma experiência nova em sonhos e eu a aprecio muito. Outro sonho: subo e desço várias vezes pela casa e jogo areia pelas janelas. Saio e vejo no pátio Sophia Bauer, minha professora de hipnose, junto com um grupo de terapetas alegres, discutindo entusiasmados os meus progressos. Areia – ampulheta – tempo. Família em férias. Ontem, fomos ao zôo em Belo Horizonte, e ficamos a observar um macaquinho. O macaquinho estava - coisa excepcional para um macaco - absolutamente imóvel, encolhido junto ao tronco da árvore. O passarinho distraído pousou a seu lado e zupt - foi imediatamente agarrado e espremido entre as mãozinhas espertas. O passarinho piou, o que excitou o macaquinho, que pos - se a pular e a agitar as mãos para cima e para baixo, com a vítima presa pelas asas abertas. Socou - a contra os galhos, contra o tronco, esfregou - a, apertou - a, atirou - a para o alto, na maior alegria. Parando alguns momentos para coçar - se, o macaquinho largou uma das asas. A imobilidade do passarinho o intrigou. Era de ver - se o seu espanto, a tocar agora delicadamente o corpo inerte. Aí começou a parte realmente interessante do fato. O macaquinho largou a presa e olhou - a, desconfiado. Cheirou - a. Cutucou - a de várias maneiras. Abriu - lhe o bico e espiou lá dentro. Puxou - lhe algumas penas. Deve ter encontrado alguns piolhos, pois pos - se a catar com os dedos alguma coisa muito pequena que levou à boca e mastigou com prazer. A seguir, aos gritinhos, atirou o pássaro para o ar como se brincasse de bola, deu - lhes tapas como a uma peteca, chutou - o e até pulou em cima dele. A pele da avezinha rompeu - se com tamanho peso. E aí o nosso macaco começou a dilacerar com cuidado o que restava de pele íntegra e a puxar para fora, com movimentos precisos e delicados, as vísceras, que apalpava e cheirava, olhava de todos os ângulos, lambia e tornava a examinar. Parecia não cansar - se daquilo, entretido com aquele exame como se fora tarefa importante.
  • 35. 35 Arrancava as penas, as penugens do peito e as maiores do rabo, observando - as uma a uma e colocando - as enfileiradas sobre o tronco. Aí apareceu outro macaco. Briga na certa. Que nada! O outro ficou por ali, sossegado, e daí a instantes estavam os dois a tocar, a apertar, a cutucar, a medir, a cheirar, a trocar grunhidos entre si como se conversassem, tão concentrados em suas macaquices que nem se davam conta de estarem sendo, por sua vez, observados. E eu pensei comigo : estou a contemplar o Simius curiosus, na pré história da espécie que dominará a Terra daqui a alguns milhões de anos, talvez. Acredite se quiser: Já esqueci um bebê no banco traseiro do carro. Em entrevistas de emprego já esqueci meu endereço, telefone, sobrenome. Na adolescência eu fazia pior: ria antes das piadas; guardava o fichário escolar na geladeira; joguei o uniforme a ser lavado na lata do lixo; acendia o interruptor com o queixo, fechava a porta do carro com os quadris. Já coloquei a lista telefônica no freezer. Saí de carro e voltei a pé por ter esquecido que estava de carro. Dei voltas e mais voltas no estacionamento por esquecido em que vaga estacionara. Fui à delegacia e dei queixa de roubo do carro que deixara na garagem de casa. Apoiei as compras no muro enquanto procurava as chaves do portão e entrei em casa sem os pacotes. Telefonei ao ex por engano. Dirigi-me ao emprego antigo, completamente fora do meu caminho. Confundir datas era o padrão cotidiano. Esquecer em qual planeta estou. Isto pertence ao passado. Agora fiquei tão normal que perdi a graça. Culpa de Lobato, que escreveu algo assim: “E Dona Benta falou: ‘a China e a Índia são como duas velhas árvores craquentas, de frutos saborosos e nutritivos...’” Fiquei curiosa e procurei entre os livros de meu avô, onde achei uns pensamentos de Confúcio e de Lao Tse. Na biblioteca da escola (católica), só mesmo a biografia de Sidarta. Semanas mais tarde, um tio doqueiro trouxe de presente um Buda de marfim, que a família colocou em local de destaque e venerou por muito tempo, não por ser um Buda, sim por ser de marfim. Por amigos japoneses conheci ikebanas e origamis. Minha paixão pelas culturas do Oriente cresce com o passar dos anos. Lobato também me introduziu na Mitologia Grega, fascinação antiga. Um dia, uma freira repreendeu minhas leituras, afirmando que Lobato era comunista, e por sua causa – por causa da freira, não de Lobato – abandonei a religião católica. Meus pais, que me presentearam com os primeiros livros do Sítio, declaravam não gostar de Lobato. Incongruência? Não. Ciúmes.Cresci Emília.
  • 36. 36 Ousada, desafiadora, malcriada, sinto indignação ante as injustiças, frustração ante o desenvolvimento econômico e político ausente do país hoje, apesar do nosso petróleo de do nosso ferro. .As idéias de Lobato germinaram nos corações das Tatianas Belinky e das Ruth Rocha de nossa pátria. Tanto mérito, tão pouco reconhecimento. E eu aqui a filosofar... por culpa tua, Lobato! As idéias de Lobato germinaram nos corações das Tatianas Belinky e das Ruth Rocha de nossa pátria. Tanto mérito, tão pouco reconhecimento. E eu aqui a filosofar... por culpa tua, Lobato! De pátria a pária, basta tirar um r.
  • 37. 37 2000 Parece que há anos vivo na marginalidade. Estou tão absolutamente farta de ser excluída que perdi o tesão de sair. Tentei por tanto tempo e por tantas diferentes maneiras voltar ao convívio das pessoas normais que já me pergunto se o resultado vale o esforço. As regras sociais são sutis. Você só convive com casais se for casada também ou se for um parente, o coitado. Coitada da minha tia que ficou pra tia. Bem por aí. Por anos não me caiu a ficha, inocente que sou. Os antigos amigos continuavam tão gentis por telefone e tão ausentes ao vivo e em cores, e os laços iam naturalmente afrouxando. Quando dei por mim estava rodeada por uma fauna estranha: solteironas, divorciados, homossexuais e artistas mal sucedidos – alguns sem talento, outros pobres, outros alienados e a maioria totalmente fora do contexto, aquele tipo de gênio perigoso para o contexto. O tipo Bernard Shaw. Intelectual tem de ser rico. Como o Vinicius. Exilado, expulso da carreira diplomática – perdão, diplomaticamente convidado a se retirar – curtindo Paris com os amigos e divulgando sua arte lá fora e se o sistema não quer, pior para ele. O fato é que a sociedade ‘normal’ é formada por casais, e casais não recebem avulsos. Como se os avulsos fossem avançar no parceiro deles. Casais só recebem avulsos quando convenientemente acompanhados. Namorando, pode. Nos períodos em que namorei fui recebida, muito bem recebida e até paparicada. E morri de tédio. A conversa é do tipo o que comi ontem, veja só o que comprei e onde iremos nas próximas férias. Pior só a cri-cri (criada-criança) das donas de casa. A maioria dos casais é enfadonha, com exceção do Carlos e da Catarina, ambos escritores, e do Jorge e da Amélia, ele compositor, ela pintora de talento, dois casais que usam os neurônios para pensar, ora que coisa extraordinária e original, freqüentam cinemas e livrarias, têm enfim a percepção de que o mundo é mais do que a casa onde eles moram. Viúvos, divorciados, solteiros, todos são impiedosamente descartados do convívio dos casais tradicionais, os praticantes da hipocrisia oficial, que algumas vezes só se mantêm casados porque moram no mesmo endereço. Passo. Maus fiéis amigos são os livros. A frase deve ser velha, mas eu ouvi isto hoje pela primeira vez e concordo: família é bom em álbum de fotografia. Por que, em certos períodos da vida, a gente não se lembra dos sonhos? Há meses em que não acontece naaaaaaaaaaaaaaada.....
  • 38. 38 2001 estou aqui pensando sobre a liberdade de expressão. Esta questão do livre-arbítrio já foi antes desmistificada por Schopenhauer, mas eu me atrevo a resumi-la em meus próprios termos. A criança come o que a mãe oferece, veste o que colocam sobre seu corpo, brinca e estuda onde, com quem e quando os adultos à sua volta acham que é conveniente. O jovem cresce e pode então escolher por qual time torcer. A TV, a rádio e os jornais divulgam uma variedade conveniente de nomes para garantir a ilusão da escolha. O processo é semelhante para outros itens de consumo. O importante é garantir que você acredite ter uma identidade e opções: suas músicas, seus livros, seus esportes, seus interesses, enfim, aí inclusos as suas idéias e o seu partido político. O adulto enfrenta o mundo do trabalho. Suas funções, seus métodos e honorários seguem regras estabelecidas pelas leis ou consagradas pelos costumes. Se os laços religiosos estão hoje um tanto frouxos, bem como os matrimoniais, é porque as malhas da mídia e da propaganda são mais persuasivas. Todos os brasileiros são livres. A maioria o é para morar mal, comer mal, estudar mal, pensar pior e passar pela vida em filas para pagar impostos escorchantes ou candidatar-se a vagas mal remuneradas. Quase me esqueço da fila para assistência médica, com atalhos para a da funerária. Ora, dirão, que exagero! As sociedades evoluem e a História registra as lutas de tantos para garantir o bem maior do ser humano: a liberdade. Tiradentes, a Princesa Isabel, Monteiro Lobato... Inovadores e pioneiros, sem exceções, recebem como recompensa cadeia ou desprezo. Ah!... Mas ... “Houve uma época áurea na História da Humanidade, na Grécia de Péricles....” Onde havia escravos e Sócrates foi condenado a beber cicuta. E agora que refresquei sua memória, eu lhe digo que não temo desafiar a ordem estabelecida, pois tenho o salvo-conduto perfeito: sou poetisa. Ah! Como eu gostaria de viver como Tolstoi! “E o conde retirou-se para suas terras... onde isolou-se por três anos, a fim de escrever um livro...” Invejo todos os ttt de Tolstoi. Tempo. Talento. Tenacidade. Estou em uma escola, tentando vender um curso. Tenho uma palestra marcada e estou de short azul, por isso vou para casa trocar de roupa. Ao entrar em meu carro, junto com minha amiga Cláudia (ela está desquitada e é muito promíscua, sai com o primeiro homem que a convida em qualquer baile, vai a todos os bailes) descubro que meu carro foi arrombado, e a chave de ignição foi trocada. Minha antiga chave não funciona, mas a nova, diferente, está no contato e funciona. Terei de trocar o segredo, pois o arrombador está com a cópia da nova
  • 39. 39 chave. Um homem sai com uma criança, de bicicleta, do estacionamento, à minha frente; são apenas vultos escuros. Sinto em meu corpo que fui estuprada e que a lembrança do fato foi retirada de minha mente. Cada sonho... Carro arrombado, chave trocada. Uma abertura foi forçada em minha vida, de forma violenta, oculta e amnésica.. este sonho pode ser a representação de um trabalho inconsciente. Uma nova direção me foi imposta. Qual? Como? Por quem? Os carros de minha infância eram vistoso, com nomes velozes: Impala, Jaguar. Havia o pretensioso Aero-Willis, com rabo de peixe, um luxo! Passava um carro na rua, a molecada gritava – que, naquela época, a rua era o parque temático da infância. A gente corria à janela para espiar quem era o orgulhoso felizardo que fingia ignorar os olhares cobiçosos das mocinhas namoradeiras. Saíam da moda os carros compactos com janelas estreitas e bancos inteiriços, ótimos para namorar. Imperavam os fusquinhas. Os remediados se contentavam com os pés-de-boi, sem acessórios, quase que só um banco sobre quatro rodas. Mas rodava! E o que dizer daquele carrinho achatado com nome de iniciais, o DKV, que escondia o motorista quase rente ao chão? O distraído que se colocasse atrás de um caminhão corria o risco de acabar esmagado, pois ficava literalmente invisível. Inesquecível o simpático Romiseta, o carro dos egoístas, onde só so apertava um. Carros, como toda novidade, eram a fascinação do momento. O formidável é que se estacionava em qualquer canto, o tráfego era livre, não havia pedágios nem flanelinhas nem consórcios. Os manobristas que nos recebiam à porta dos teatros, hotéis e restaurantes exibiam sorriso e uniforme, e a gente se sentia tolamente importante. Mamãe está doente. Veio morar conosco por uns tempos. A filha do Sílvio Santos foi seqüestrada. Minha mãe, que adora uma notícia policial, fica o dia todo ligada na TV para ouvir todos os detalhes e, quando chego em casa, tenho de ficar educamente escutando. O curioso, no seqüestro da filha do milionário apresentador de TV foi o motivo que os seqüestradores alegaram para o crime: nada mais, nada menos que benemerência. Isso mesmo: caridade, amor ao próximo. Vejamos: a moça que idealizou o atentado pretendia usar o dinheiro do resgate para distribuir cestas básicas para os pobres. O resgate sendo R$500 000,00, a cesta básica a R$20,00, serão 25 000 cestas básicas! Para tanta generosidade , só mesmo um marginal espiritualizado. Pois se o executor do plano foi nada mais, nada menos que o filho de um pregador protestante, um irmão em
  • 40. 40 crença da filha do empresário, bem como de sua mãe, apesar de o pai ser um judeu fiel seguidor da Torah. Coisas deste abençoada Brasil! O seqüestrador teve a infelicidade de matar dois guardas que o perseguiam e teve também a curiosa idéia de refugiar-se – pasmem! – na casa do empresário, burlando cães, vigias e cerca eletrificada, conseguindo ainda a proeza de capturar o empresário como refém. Moço de sorte, este, pois conseguiu garantia de vida – como se no Brasil houvesse pena de morte – ao negociar suas condições de rendição com o governador. O moço nem precisava ficar tão preocupado, pois é réu primário e sem antecedentes, nunca havendo até então causado qualquer problema, segundo o pastar, seu pai. Nada mais que algumas bobagens de adolescente, como a polícia apurou em seus arquivos: uso de drogas, tráfico de maconha, cúmplice em um assalto à mão armada, receptador de objetos roubados, comércio ilegal de armas, coisinhas à toa, está-se a ver. Há a atenuante de o pobre moço estar passando por uma ‘crise existencial grave’; morando em uma sólida e boa casa em bairro residencial de classe média alta, na capital, filho de pais estáveis e cursando faculdade particular. A explicação? Só mesmo um coração de mãe para um comentário desastrado deste! A namorada, mentora intelectual do crime, entregou-se em prantos, afirmando ter sido sempre gentil e amável com sua vítima, chamando-a apenas pelo carinhoso termo ‘princesinha’. Que a princesinha estivesse permanentemente sob a mira de duas metralhadoras é um mero detalhezinho irrelevante. O casalzinho caridoso é tão generoso que tinha já planejados cinco outros seqüestros de famosos ricos, tendo já alugado casas para o cativeiro, nas quais a polícia encontrou um arsenal bélico. Os dois estão obviamente tristes, lamentando as cestas básicas não distribuídas. Na seqüência da grande publicidade que a mídia deu ao caso, seguiu-se o seqüestro de uma família de cantores, os Gordinhos Talentosos. Este caso é cômico, pois tendo o seqüestrador seqüestrado a família toda incluindo o seu agente, não sabe agora com quem negociar o resgate. Por outro lado, este seqüestrador em particular não passa por nenhuma crise grave, já que não é sequer socializado, é excluído mesmo, exclusão perene e estável. Os brasileiros, que não têm jeito mesmo, e que fazem piada por tudo, já estão por aí falando que ao final do seqüestro a família vai mudar o nome para os Magrinhos Talentosos ou então os seqüestradores já terá gasto o valor do resgate em comida Muita gente acredita que a questão por trás dos seqüestros seja mesmo comida, e eu concordo. Para evitar tais desgraças, há, sim, que se alimentar... AS ALMAS. Estou aqui a me lembrar de quando eu era criança e vivia alguns momentos mágicos: Foi uma festa a ida à praia à noite, de maiô, chinelinho, baldinho e pazinha.
  • 41. 41 Sim, era noite. Uma noite quente de verão, sem lua, o céu coalhado de estrelas e o forte aroma de damas da noite a enfeitiçar. Minha tia estendeu a esteira de palhinha no passeio, e nós, crianças, atacamos a areia. Os homens se se afastaram, iam jogar futebol. Alguns carros estavam na areia. Naquela época, não havia ainda iluminação, e o farol dos automóveis é que clareava o local do jogo ou do churrasco. Senão, era a noite plena, o rugir do mar nas trevas abaixo do manto de estrelas. Passou a hora de ir dormir – coisa inusitada – e nós brincando ferozmente, a construir ruas e ruas de casas moldadas nos baldinhos, com portas e janelas desenhadas com as pás e decoradas com conchas. A tia contou estórias e cantou uma música incrível sobre um grão de areia que se apaixonara por uma estrela. Quando os homens voltaram, tão ou mais sujos que nós, fomos todos ao mar. Bem lá no fundo, além da zona de arrebentação, ouvindo as ondas que estouravam depois de passar por mim, firmemente segura pelos braços, eu flutuava na água escura e morna, oscilando nas marolas. Quando sente aquela cosia deslizante e dormente em minha perna, como gritei! Cardumes pulavam à nossa volta, prateados e ariscos, e alguns peixes me tocavam e mordiscavam., fazendo cócegas. Como rimos, adultos e crianças, saboreando aqueles três gigantes: o mar, o céu, a noite. Em casa, mais tarde, o banho quente e o sono das pedras. Ainda sonho, como o poeta: “Eu me lembro! Eu me lembro! Era pequeno e brincava na praia...” Hoje, dois aviões se chocaram contra o um alto prédio em NY. Quando cheguei em casa, sem nada saber, mamãe estava de olhos grudados na telinha, na maior ansiedade, curtindo o terror como só ela sabe: - Filhinha, que coisa horrível, NY foi atacada. E eu, ao ver as chamas e as pessoas correndo e o repórter gritando: quem ousa atacar os EU?, não me contive e deu o maior berro de alegria espontâneo: - Bem feito!!! Eles merecem! Contratei como faxineira uma mulher simples a quem dei uma instrução também bastante simples: “Capriche na limpeza da cozinha”. Saí cedo pela manhã e retornei ao fim da tarde; ela, já de saída, explicou meio atrapalhadamente que voltaria no dia seguinte para terminar o serviço. Entrei na cozinha e levei um baque - a mesma sujeira da manhã, e de quebra a minha área de serviço em completa bagunça. O banheiro não estava em melhor estado. Intrigada, entrei na biblioteca. Que susto! Todos os livros estavam fora de seu lugar habitual. Sócrates estava filosofando sobre os prazeres da mesa e meu Vade Mécum descansava na mesinha do telefone. A curiosidade foi a única explicação que me ocorreu para semelhante desatino.
  • 42. 42 Lembrei-me de uma antiga criada, de quem suspeitei, pensando que roubara alguns de meus livros. Eu tratava de arrumar um meio de recuperar os meus companheiros quando eles reapareceram na estante, exatamente nos mesmos lugares de antes. Tratara-se tão somente de um ‘empréstimo’ e a garota ficou toda feliz quando eu expliquei que ela podia perfeitamente ler o que bem entendesse depois de terminado o serviço enquanto aguardava o ônibus escolar. Pela vida afora muita gente, simples ou não, já se deliciou aventurando-se pelas minhas estantes. É inevitável o fascínio da palavra escrita. Já dizia Castro Alves: “O livro caindo n’alma...” Burca à brasileira “Cada povo tem o governo que merece”, resmungava meu pai, a cada vez que se descobria alguma corrupção no governo. Externava assim sua negativa crença de ser o povo brasileiro ignorante e preguiçoso. Assistindo inúmeras reportagens sobre o Taliban, esta frase de meu pai volta-me à lembrança. Imagino algum regime fundamentalista a invadir o Planalto e a impor a tal da burca à geração Pá Tropí. A turma do deixa disso daria uma gargalhada. “Fala sério!” ressoaria da Amazônia aos pampas. Uma ala de burcas poderia sair às ruas em alguma escola carioca ao som frenético de um samba, mas seriam burcas irreverentes, transparentes, agradecendo a Alá pela nudez belíssima de sua criação. Um mulá proibindo música, instituindo rezas obrigatórias...aqui, onde os cultos são generosos em danças, cantos e sincretismo? Enclausurar crianças em madrassas? Ingenuidade de quem desconhece nossos meninos de rua. Armar os homens? Prevejo nas praias, tomando água de côco em mínimas sunguinhas, só pra contrariar, Os Filhos de Gândhi com todos os seus simpatizantes. Nem pelos lados do agreste os radicais mulçumanos teriam melhor sorte. Se insistissem, descobririam a fibra do sertanejo, antes de tudo um forte, invocando ‘meu padrim Padre Cícero’ e lutando até o último homem. Na caatinga, sem cavernas aonde se abrigar, pobres árabes! Os quengos e os carcarás levariam vantagem. - Ouçam o que eu exigo! – gritaria o mulá, roxo de raiva, e logo descobriria que, no Brasil, o que político fala não é para ser levado a sério. Reflexos na vidraça: Hoje pela manhã, estava eu a limpar as minhas vidraças quando vi uma estranha imagem no vidro. Lembrei-me de imediato das últimas notícias que chegaram esta manhã de Ferraz de Vasconcelos. Um senhor olhou pela janela e viu nela estampada nada mais nada menos que... um elefante! Lembrou-se então do deus-elefante Ganesha, que de certo usava deste artifício para convidar os brasileiros a se converterem ao hinduísmo. O bispo, ao ser interrogado, respondeu cautelosamente que aparições e
  • 43. 43 milagres não são exclusivos da igreja católica, podendo o Altíssimo manifestar-se a qualquer povo da maneira que lhe for mais conveniente, e colocou à disposição a equipe de especialistas que está examinando a imagem de Nossas Senhora, para também estudar a questão do elefante. O Padre Quevedo nem se dignou a examinar esta imagem, que para ele tudo naõ passa de uma mistura de desinfetante com excesso de imaginação. Ocorre que na casa em frente, um árabe encontrou no vidro de sua porta a imagem de um homem de turbante montado em um camelo e jura pelo Alcorão tratar-se do profeta Mohamed. Em São Miguel Paulista, um estudante de Història encontrou espantado a figura de Dionísio, taça em uma mão e um cacho de uvas na outra, rindo para ele do vidro do espelho do banheiro. O rapaz pergunta-se se os deuses do Olimpo estão querendo retornar à Terra. Quanto à imagem em minha janela, não chamarei a rede Globo nem os repórteres de A Tribuna, pois reconheci de imediato a máscara de Luke, o deus viking das brincadeiras e das trapaças. Refletindo sobre a guerra do Iraque, sinto-me mal. Mulher-bomba, impludo. O terrorista número um sou eu. Morte a mim! Enquanto meus amigos se horrorizam com as cenas da guerra, eu me calo, escondendo meu secreto desejo de morte e ataque, que me fez gritar ‘Bem feito!’ no primeiro segundo em que vi as torres gêmeas do World Trade Center desabaram. Verdade que no segundo segundo eu me dei conta de que lá estavam pessoas comuns, mas afirmo que eu dançaria de alegria se lá estivessem apenas Bush e seus falcões. Passo pela vida conservando a capacidade de indignar-me contra a opressão, o desrespeito, a maldade. O mundo é maya, ilusão. Vaidade das vaidades! Cristo aconselha a perdoar os inimigos. Buda pregava a compaixão. E eu? Eu fervo do mais ardente desejo de carnificina e sangue. Quero Washington em chamas. Mahatman em ruínas. Generais americanos condenados ao fuzilamento como criminosos de guerra. Ai de mim, impotente sou! Ai de mim, que só posso criar um mundo melhor através de meu exemplo. Que exemplo?! Preciso destruir o inimigo numero um, já! E ouço Nietzsche: ‘procuravas o teu pior inimigo e encontraste a ti mesmo...’ Narciso, olho meu reflexo. Comentário de mamãe, hoje cedo, a suspirar: - Que monotonia, né? Já acabou a novidade da guerra, não tem mais nem um seqüestro novo, nenhuma noticia emocionante na TV... ai, humanidade, estás perdida... O espanhol me encontrou na praia e puxou conversa e eu estiquei o assunto em parte porque ele era simpático e em parte para quebrar meu padrão de mulher séria educada por freiras que não conversa com desconhecidos.
  • 44. 44 Ele comportou-se como um macho padrão: exibiu-se alongando os ombros, abrindo o tórax e sorrindo; exibiu-se falando de seu dinheiro, de seu próprio negócio, de sua profissão, joalheiro, de sua família, era viúvo, de suas propriedades no plural, plural mesmo e em sua nacionalidade européia. O espécime disponível casualmente comentou que se mudaria para o Brasil caso se apaixonasse por uma brasileira, confessou estar procurando uma companheira e então perguntou se sou casaca. Menti que era; a conversa voltou ao terreno neutro dos belos jardins de Santos e das areias ardentes de Guarujá e passei a tarde a psicoanalisar que acesso de loucura impediu-me de atirar-me aos braços do europeu rico e famoso e devorá-lo com saudável apetite tupiniquim. Auto-estima baixa ante um homem europeu, rico, bonito e....interessado em mim??? Afinal, minha idade não mais permite-me o luxo se a esmola parece grande demais. Só se... Meu inconsciente certamente tem algumas boas razões para tal ato aparentemente suicida. Talvez o longo rabicho que pendia da nuca do homem, semelhante ao daquele meu vizinho tão bonzinho e tão travesti, ou um olhar de esguelha, ou quem sabe o sotaque, que soava mais para o baiano que para o castelhano. Äna äm bidros arabi, habiba. Creio mesmo ser eu a única garota do grupo que realmente prestava atenção às aulas de árabe e à cultura. As outras limitavam-se ao habib (querido) e ocupavam o tempo a lançar olhares lânguidos aos rapazes, imaginando-se sedutoras odaliscas em românticas tendas à sombra de românticas palmeiras em românticos oásis. Jamais namorei moço algum da colônia libanesa. Acredito que eles preferiam as moças de cabelos longos e idéias curtas. Eu usava cabelos curtos e tinha o curioso hábito de raciocinar. Uma amiga casou-se com um árabe, aos dezesseis anos. Com sorrisos, ele a convenceu a usar vestidos apenas, porque assim ficava mais bonita. Para que continuar os estudos, se ela seria mais útil aos filhos em casa? Sempre que combinávamos algo com a turma, ele a raptava para um programa mais interessante – a dois, naturalmente. Ela estava muito feliz em seu primeiro ano de casada. Recebia regularmente flores, jóias e bombons. Tinha `disposição cozinheira e arrumadeira; semanalmente iam à sua casa a manicura, a cabeleireira e a esteticista. As compras eram solicitadas por telefone e entregues em domicílio; nada daquela chatice de ir ao açougue, à feira, ao supermercado. Nem sei se ela soube que deixamos de visitá-la por proibição expressa do marido. Soubemos por uma prima que ela embarcou entusiasmada para o oriente, prometendo voltar com dúzias de tapetes e especializar-se em culinária árabe. Ela nem sabia que a Pérsia hoje chama-se Irã e ir-se embora para Pasárgada não é lá tão agradável quanto no tempo do grande rei Ciro. Ela rápido descobriu que os tapetes não são mágicos, a fumaça não sai de lâmpadas encantadas e o único gênio