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Entrevista* com Virgínia Fontes, do programa de pós-graduação em História da
Universidade Federal Fluminense (UFF).

Nas últimas décadas tem-se visto um aumento na valorização do voluntariado e a
aceitação de que a responsabilidade de desenvolver projetos de educação, saúde, e
assistência social é da própria sociedade civil. Como isso começou a acontecer?
Vamos começar pelo começo.
De onde vem o voluntariado e por que mudou aparentemente de direção? [Mikhail] Bakhtin
mostra como ocorrem as lutas sociais na língua, ou, em termos mais diretos, a luta de
classes na linguagem. A língua não é um neutra: ela é um lugar no qual a própria luta
ocorre. Um dos exemplos mais claros para entender isso é como os golpistas militares
brasileiros em 1964 chamaram o que estavam fazendo de ‘revolução democrática’.
Revolução era algo importante socialmente. Então, deram um golpe de Estado, com o apoio
de um grande empresariado nacional e internacional, chamaram ‘revolução’.
Voltando ao voluntariado, essa é uma tradição que vem muito pela esquerda, e vem pelos
processos revolucionários. Países que viveram processos recentes de revolução cuja
população se mobilizava para voluntariamente exercer tarefas produtivas que não estavam
cumpridas até então. Isso aconteceu na União Soviética, mas o mais conhecido é o caso de
Cuba, inclusive com os cortes de cana-de-açúcar. Os intelectuais iam todos para os
canaviais, fazer o corte da cana, o que também era uma tentativa de reduzir a distância entre
o trabalho intelectual e o manual. Era um esforço no sentido de que os trabalhadores,
conjunta e coletivamente, assumissem o controle do processo produtivo de forma
voluntária, independentemente da forma de pagamento. Porque está se supondo ali que eles
não são mais assalariados e que já têm sua existência garantida por uma sociedade
socializada. Esse trabalho voluntário é um trabalho engajado socialmente.
Mas que transformação aconteceu? Essa palavra – voluntariado – ninguém queria ouvir
porque o voluntário era aquele o contestador, o subversivo, o revolucionário. Nos últimos
30 anos, pelo menos, as grandes agências internacionais, como o Banco Mundial,
começaram a incentivar uma atuação voluntária na vida social.
As empresas passam a mobilizar parcelas da população para realizarem atividades públicas
ou mesmo atividades da empresa através de mão de obra que se declara engajada em algum
projeto social. Os teóricos desses grupos – que foram convertendo o que era o voluntariado
de uma sociedade socializada, agora, numa forma de trabalho não-pago numa sociedade
capitalista – justificavam assim: uma vida sob o mercado pode ser muito agressiva, os laços
sociais podem se desfazer. A gente não quer mais que tenha Estado tomando conta de todo
mundo, mas a gente tem que engajar as pessoas em alguma coisa, senão a sociedade pode
se esgarçar e se desfazer. É aí que nasce todo um linguajar tentando recuperar o que era
uma atividade num processo revolucionário em uma atividade de subordinação. É aí que a
gente vai entender o voluntariado.
A Organização das Nações Unidas (ONU) chegou a fazer um Ano Internacional do
Voluntariado, em 2001. Atualmente, no Brasil, por exemplo, temos a Wanda Engel, que já
trabalhou no Banco Mundial, já trabalhou em várias instâncias internacionais, e veio

*
    Realizada por Raquel Torres em 04/06/2009
trabalhar no Instituto Unibanco para coordenar uma equipe de voluntariado. E ela diz o
seguinte: nós temos como mobilizar um exército de voluntários.
Esse é o primeiro ponto, o da luta. Repare, há uma luta em torno dessa palavra. O
voluntariado não tem nada a ver com isso. Ele esta sendo convertido socialmente numa
forma de subordinação.
O segundo ponto é: que tipo de subordinação é esse? Acho que há duas faces fundamentais.
A primeira é de convencimento popular e coesão social. Exatamente o que os ideólogos da
Terceira Via, como [Anthony] Giddens, diziam. Abrigam pessoas que estão em precárias
condições, essas pessoas se organizam em torno de um projeto de voluntariado, apresentam
esse projeto às agências e essas agências, públicas ou privadas, financiam o projeto. E o
preço da mão de obra para fazer o projeto é muito baixo. Ele é pago, mas é baixo. Não tem
contrato, não tem direito, não tem nada.
Por um lado, é uma espécie de convencimento e deslocamento das tarefas públicas para a
própria população necessitada, remunerada em condições precaríssimas. E a segunda face,
que acho que é inquietante: isso significa que massas crescentes de trabalhadores estão
sendo convocados a trabalhar sem nenhum direito. Sem férias, sem décimo terceiro, sem
contrato, sem salário, sem nada. E, portanto, vão começar a formar uma nova configuração
de empresa. Que, se a gente parar para olhar com um pouco mais de calma, atravessa hoje o
conjunto das instituições públicas e privadas.
Repare: isso vai se tornando um hábito. Lógico que o nome que vem se dando agora para o
trabalhador que precisa trabalhar é ‘voluntário’. Da mesma maneira que as empresas estão
chamando os empregados de ‘parceiros’. Mas mudar o nome não muda a relação. Chamar
um empregado de parceiro não quer dizer que o empregado tenha virado parceiro. Chamar
um trabalhador de voluntário não quer dizer necessariamente que ele seja voluntário. Quer
dizer que tem uma luta social aí que está colocada e que estão tentando apagar.


E as empresas que têm responsabilidade social, que organizam essas ações, também
recebem...
Ainda tem isso. Bom, e tem muita coisa que é preciso pesquisar. Uma delas: essas empresas
botam muitas vezes seus empregados para ‘fazerem’ responsabilidade social. Elas dizem
que é totalmente voluntário. Mas vamos imaginar que você está numa empresa. Conseguiu,
a duras penas, um emprego. A empresa abre uma convocação para voluntariado social.
Você tem medo de perder seu emprego. Você acaba entrando como voluntário para mostrar
ao seu patrão que está disposto a fazer o que ele quer. Você faz aquilo de graça. No caso de
funcionários da empresa, é de graça. Deve ter um ticket aqui, passagem ali, uma bolsinha
alimentação acolá, algum mimo. Mas direito zero. Esse cara, em vez de trabalhar oito, está
trabalhando doze horas.
Esse é um caso. Mas vamos ver o sujeito que está procurando emprego, e vê que o Itaú está
convocando voluntários. Ele diz: ‘Poxa, eu me credencio como voluntário, o Itaú me
conhece e quem sabe me contrata’. O cara vai trabalhar para o Itaú e recebe sempre alguma
coisa, recebe bolsa alimentação, passagem, uma pequena ajuda de custo que não configura
salário. Se virmos a legislação, não pode receber salário nem ter contrato de trabalho. Então
você tem uma massa de trabalhadores dispostos – os empregadores precisam de pessoas
dispostas – a atuar nessas atividades, esperando uma chance de serem contratados. É um
sub-salário.
Só que quando você tem massas assim, eles já estão trabalhando, não estão? Isso já é uma
parte de salário, mas sem direitos? Que voluntariado é esse? Estamos entrando numa
situação em que a tendência é converter a maior parte dos trabalhores em sub-remunerados
e sem direitos. E o que é pior: funciona. Mas, para a gente, é péssimo.


E as organizações não-governamentais (ONGs)? Fale um pouco sobre o papel delas e
sobre a sua relação com o Estado.
Aí coisa é mais complicada A palavra ONG, na verdade, não quer dizer nada. ONG quer
dizer organização não-governamental, então tudo o que não é governo é ONG. Tudo.
Empresa pode ser ONG, qualquer associação é ONG. É uma palavra que designa muita
coisa, e o que designa tudo não quer dizer nada.
O que aconteceu no Brasil e no mundo, principalmente da década de 1970 para cá, foi uma
luta furiosa no terreno da ‘organizatividade social’, digamos assim. As lutas que emergiam
pela moradia, pelo meio ambiente etc, eram direcionadas a permanecer naqueles campos, a
não pensar mais transversalmente. Então, a luta das mulheres não encontrava a luta do meio
ambiente, que não encontrava a luta pela moradia, que não encontrava a luta pelo salário,
que não encontra, que não encontra, que não encontra.
Porque cada uma dessas lutas, segmentada, não oferece risco para o conjunto do sistema.
Elas só oferecem risco para o conjunto do sistema quando se cruzam. A tal ponto que o
Banco Mundial convocou as entidades organizativas brasileiras e disse: ‘O Banco Mundial
pode ajudar vocês. Contanto que a gente não discuta filosofia, em todos os problemas
concretos nós podemos ajudar’. O que isso significa? ‘Contanto que você não discuta
reforma agrária, se você precisa de uma bolsa-alimentação eu posso dar. Contanto que você
não discuta a questão salarial, se você está passando fome a gente pode mandar um quilo de
arroz’.
É pior que assistencialismo. Porque se começa a exigir que os grupos se organizem
voluntariamente para isso. E se começa a exigir, permitir e favorecer que pequenos grupos
populares se organizem para conseguir pequenos recursos para seus projetos. Quantas
pessoas você conhece que vivem de vender projetos? Muita gente gasta seu tempo e sua
energia fazendo isso. Não sobra mais tempo para fazer mais nada, há uma sensação de
militância extremamente angustiante, porque não dá em nada. E alguns vão fazer carreira.
Vão começar a ocupar postos, vão ser os dirigentes de projetos, depois vão ser subalternos
numa ONG ou numa fundação ou num instituto.


Vão dar cursos de como fazer projetos...
É, vão fazer MBA de gestão de projetos sociais e depois vão ser professores de
universidades para gerir recursos de projetos sociais.
Não são só ONGs. É que ONG é um termo mais genérico, mas as organizações sociais
[organizações escolhidas pelos governos para administrar determinados serviços, como de
saúde e educação] também são associações desse tipo. As fundações também são entidades
desse tipo. Hoje você tem uma gama de fundações empresariais. A fundação Bradesco, a
fundação Itaú, por exemplo. Existe um grupo chamado GISE – Grupo de Instituições e
Fundações Empresariais para a Responsabilidade Social. Todas as grandes empresas estão
lá. Elas gastam o dinheiro delas? Em parte, sim, mas muito pouco. Porque elas foram se
impondo à legislação de tal forma que o que elas fazem com responsabilidade social,
ganham em forma de descontos dos impostos.
Portanto, nós pagamos para que as empresas façam políticas próprias de filantropia ou sub-
contratem trabalhadores e rebaixem o valor da força de trabalho de todos nós.
Pode, um negócio desses?
E, de quebra, ainda destroem todas as conquistas públicas que nós levamos 50 anos para ter
– e que eram uma miseriazinha, mas agora nem isso.

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  • 1. Entrevista* com Virgínia Fontes, do programa de pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Nas últimas décadas tem-se visto um aumento na valorização do voluntariado e a aceitação de que a responsabilidade de desenvolver projetos de educação, saúde, e assistência social é da própria sociedade civil. Como isso começou a acontecer? Vamos começar pelo começo. De onde vem o voluntariado e por que mudou aparentemente de direção? [Mikhail] Bakhtin mostra como ocorrem as lutas sociais na língua, ou, em termos mais diretos, a luta de classes na linguagem. A língua não é um neutra: ela é um lugar no qual a própria luta ocorre. Um dos exemplos mais claros para entender isso é como os golpistas militares brasileiros em 1964 chamaram o que estavam fazendo de ‘revolução democrática’. Revolução era algo importante socialmente. Então, deram um golpe de Estado, com o apoio de um grande empresariado nacional e internacional, chamaram ‘revolução’. Voltando ao voluntariado, essa é uma tradição que vem muito pela esquerda, e vem pelos processos revolucionários. Países que viveram processos recentes de revolução cuja população se mobilizava para voluntariamente exercer tarefas produtivas que não estavam cumpridas até então. Isso aconteceu na União Soviética, mas o mais conhecido é o caso de Cuba, inclusive com os cortes de cana-de-açúcar. Os intelectuais iam todos para os canaviais, fazer o corte da cana, o que também era uma tentativa de reduzir a distância entre o trabalho intelectual e o manual. Era um esforço no sentido de que os trabalhadores, conjunta e coletivamente, assumissem o controle do processo produtivo de forma voluntária, independentemente da forma de pagamento. Porque está se supondo ali que eles não são mais assalariados e que já têm sua existência garantida por uma sociedade socializada. Esse trabalho voluntário é um trabalho engajado socialmente. Mas que transformação aconteceu? Essa palavra – voluntariado – ninguém queria ouvir porque o voluntário era aquele o contestador, o subversivo, o revolucionário. Nos últimos 30 anos, pelo menos, as grandes agências internacionais, como o Banco Mundial, começaram a incentivar uma atuação voluntária na vida social. As empresas passam a mobilizar parcelas da população para realizarem atividades públicas ou mesmo atividades da empresa através de mão de obra que se declara engajada em algum projeto social. Os teóricos desses grupos – que foram convertendo o que era o voluntariado de uma sociedade socializada, agora, numa forma de trabalho não-pago numa sociedade capitalista – justificavam assim: uma vida sob o mercado pode ser muito agressiva, os laços sociais podem se desfazer. A gente não quer mais que tenha Estado tomando conta de todo mundo, mas a gente tem que engajar as pessoas em alguma coisa, senão a sociedade pode se esgarçar e se desfazer. É aí que nasce todo um linguajar tentando recuperar o que era uma atividade num processo revolucionário em uma atividade de subordinação. É aí que a gente vai entender o voluntariado. A Organização das Nações Unidas (ONU) chegou a fazer um Ano Internacional do Voluntariado, em 2001. Atualmente, no Brasil, por exemplo, temos a Wanda Engel, que já trabalhou no Banco Mundial, já trabalhou em várias instâncias internacionais, e veio * Realizada por Raquel Torres em 04/06/2009
  • 2. trabalhar no Instituto Unibanco para coordenar uma equipe de voluntariado. E ela diz o seguinte: nós temos como mobilizar um exército de voluntários. Esse é o primeiro ponto, o da luta. Repare, há uma luta em torno dessa palavra. O voluntariado não tem nada a ver com isso. Ele esta sendo convertido socialmente numa forma de subordinação. O segundo ponto é: que tipo de subordinação é esse? Acho que há duas faces fundamentais. A primeira é de convencimento popular e coesão social. Exatamente o que os ideólogos da Terceira Via, como [Anthony] Giddens, diziam. Abrigam pessoas que estão em precárias condições, essas pessoas se organizam em torno de um projeto de voluntariado, apresentam esse projeto às agências e essas agências, públicas ou privadas, financiam o projeto. E o preço da mão de obra para fazer o projeto é muito baixo. Ele é pago, mas é baixo. Não tem contrato, não tem direito, não tem nada. Por um lado, é uma espécie de convencimento e deslocamento das tarefas públicas para a própria população necessitada, remunerada em condições precaríssimas. E a segunda face, que acho que é inquietante: isso significa que massas crescentes de trabalhadores estão sendo convocados a trabalhar sem nenhum direito. Sem férias, sem décimo terceiro, sem contrato, sem salário, sem nada. E, portanto, vão começar a formar uma nova configuração de empresa. Que, se a gente parar para olhar com um pouco mais de calma, atravessa hoje o conjunto das instituições públicas e privadas. Repare: isso vai se tornando um hábito. Lógico que o nome que vem se dando agora para o trabalhador que precisa trabalhar é ‘voluntário’. Da mesma maneira que as empresas estão chamando os empregados de ‘parceiros’. Mas mudar o nome não muda a relação. Chamar um empregado de parceiro não quer dizer que o empregado tenha virado parceiro. Chamar um trabalhador de voluntário não quer dizer necessariamente que ele seja voluntário. Quer dizer que tem uma luta social aí que está colocada e que estão tentando apagar. E as empresas que têm responsabilidade social, que organizam essas ações, também recebem... Ainda tem isso. Bom, e tem muita coisa que é preciso pesquisar. Uma delas: essas empresas botam muitas vezes seus empregados para ‘fazerem’ responsabilidade social. Elas dizem que é totalmente voluntário. Mas vamos imaginar que você está numa empresa. Conseguiu, a duras penas, um emprego. A empresa abre uma convocação para voluntariado social. Você tem medo de perder seu emprego. Você acaba entrando como voluntário para mostrar ao seu patrão que está disposto a fazer o que ele quer. Você faz aquilo de graça. No caso de funcionários da empresa, é de graça. Deve ter um ticket aqui, passagem ali, uma bolsinha alimentação acolá, algum mimo. Mas direito zero. Esse cara, em vez de trabalhar oito, está trabalhando doze horas. Esse é um caso. Mas vamos ver o sujeito que está procurando emprego, e vê que o Itaú está convocando voluntários. Ele diz: ‘Poxa, eu me credencio como voluntário, o Itaú me conhece e quem sabe me contrata’. O cara vai trabalhar para o Itaú e recebe sempre alguma coisa, recebe bolsa alimentação, passagem, uma pequena ajuda de custo que não configura salário. Se virmos a legislação, não pode receber salário nem ter contrato de trabalho. Então você tem uma massa de trabalhadores dispostos – os empregadores precisam de pessoas
  • 3. dispostas – a atuar nessas atividades, esperando uma chance de serem contratados. É um sub-salário. Só que quando você tem massas assim, eles já estão trabalhando, não estão? Isso já é uma parte de salário, mas sem direitos? Que voluntariado é esse? Estamos entrando numa situação em que a tendência é converter a maior parte dos trabalhores em sub-remunerados e sem direitos. E o que é pior: funciona. Mas, para a gente, é péssimo. E as organizações não-governamentais (ONGs)? Fale um pouco sobre o papel delas e sobre a sua relação com o Estado. Aí coisa é mais complicada A palavra ONG, na verdade, não quer dizer nada. ONG quer dizer organização não-governamental, então tudo o que não é governo é ONG. Tudo. Empresa pode ser ONG, qualquer associação é ONG. É uma palavra que designa muita coisa, e o que designa tudo não quer dizer nada. O que aconteceu no Brasil e no mundo, principalmente da década de 1970 para cá, foi uma luta furiosa no terreno da ‘organizatividade social’, digamos assim. As lutas que emergiam pela moradia, pelo meio ambiente etc, eram direcionadas a permanecer naqueles campos, a não pensar mais transversalmente. Então, a luta das mulheres não encontrava a luta do meio ambiente, que não encontrava a luta pela moradia, que não encontrava a luta pelo salário, que não encontra, que não encontra, que não encontra. Porque cada uma dessas lutas, segmentada, não oferece risco para o conjunto do sistema. Elas só oferecem risco para o conjunto do sistema quando se cruzam. A tal ponto que o Banco Mundial convocou as entidades organizativas brasileiras e disse: ‘O Banco Mundial pode ajudar vocês. Contanto que a gente não discuta filosofia, em todos os problemas concretos nós podemos ajudar’. O que isso significa? ‘Contanto que você não discuta reforma agrária, se você precisa de uma bolsa-alimentação eu posso dar. Contanto que você não discuta a questão salarial, se você está passando fome a gente pode mandar um quilo de arroz’. É pior que assistencialismo. Porque se começa a exigir que os grupos se organizem voluntariamente para isso. E se começa a exigir, permitir e favorecer que pequenos grupos populares se organizem para conseguir pequenos recursos para seus projetos. Quantas pessoas você conhece que vivem de vender projetos? Muita gente gasta seu tempo e sua energia fazendo isso. Não sobra mais tempo para fazer mais nada, há uma sensação de militância extremamente angustiante, porque não dá em nada. E alguns vão fazer carreira. Vão começar a ocupar postos, vão ser os dirigentes de projetos, depois vão ser subalternos numa ONG ou numa fundação ou num instituto. Vão dar cursos de como fazer projetos... É, vão fazer MBA de gestão de projetos sociais e depois vão ser professores de universidades para gerir recursos de projetos sociais. Não são só ONGs. É que ONG é um termo mais genérico, mas as organizações sociais [organizações escolhidas pelos governos para administrar determinados serviços, como de saúde e educação] também são associações desse tipo. As fundações também são entidades
  • 4. desse tipo. Hoje você tem uma gama de fundações empresariais. A fundação Bradesco, a fundação Itaú, por exemplo. Existe um grupo chamado GISE – Grupo de Instituições e Fundações Empresariais para a Responsabilidade Social. Todas as grandes empresas estão lá. Elas gastam o dinheiro delas? Em parte, sim, mas muito pouco. Porque elas foram se impondo à legislação de tal forma que o que elas fazem com responsabilidade social, ganham em forma de descontos dos impostos. Portanto, nós pagamos para que as empresas façam políticas próprias de filantropia ou sub- contratem trabalhadores e rebaixem o valor da força de trabalho de todos nós. Pode, um negócio desses? E, de quebra, ainda destroem todas as conquistas públicas que nós levamos 50 anos para ter – e que eram uma miseriazinha, mas agora nem isso.