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Interpretação de Textos



Empréstimo de termos estrangeiros pode evitar "autismo" linguístico de um
idioma – Aldo Bizzocchi



Muito se combate a penetração de palavras estrangeiras na nossa língua. Se
até certo ponto esse combate se justifica, todo radicalismo, como exigir o
banimento puro e simples de todo e qualquer termo estrangeiro do idioma,
cheira a preconceito xenófobo, fanatismo cego e, mais ainda, ignorância da
real dinâmica das línguas.

Antes de lançar ao fogo do inferno tudo o que vem de fora, é preciso tentar
compreender sem paixões por que os estrangeirismos existem. Se olharmos
atentamente para todas as línguas, veremos que nenhuma tem se mantido
pura ao longo dos séculos: intercâmbios comerciais, contatos entre povos,
viagens, grandes ondas migratórias, disseminação de fatos culturais, tudo isso
tem feito com que as línguas compartilhem palavras e expressões. Até o
islandês, que, para muitos, é a língua mais pura do mundo, sem nenhum termo
de origem estrangeira, é na verdade um idioma altamente influenciado por
línguas mais centrais e hegemônicas. O que ocorre é que o islandês traduz os
vocábulos que lhe chegam de fora, usando material nativo. Mas, sendo a
Islândia um país bem pouco industrializado e bastante periférico em termos
culturais, é natural que seja muito mais um polo atrator do que disseminador
de criações culturais - e de palavras. No islandês, os estrangeirismos estão
apenas camuflados.

Enriquecimento
Portanto, quando se trata de discutir uma política de proteção do idioma
contra uma suposta "invasão bárbara", é preciso, em primeiro lugar,
compreender que nenhuma língua natural passa incólume às influências de
outras línguas, e que isso, na maioria das vezes, é benéfico tanto para quem
exporta quanto para quem importa palavras. Toda língua se vê enriquecida
com contribuições externas, que sempre trazem novas visões de mundo, por
vezes simplificam a comunicação e, sobretudo, tiram o idioma de uma situação
de "autismo" linguístico”. Assim como viajar para o exterior é saudável e
enriquecedor, acolher em nossa terra influências externas (na culinária, moda,
música, tecnologia e, por que não, na língua) tem o mesmo efeito salutar.

Dando por assentada a questão de que o empréstimo de palavra estrangeira é


     1 “Quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor.” Fernando Pessoa
Interpretação de Textos



um fenômeno legítimo da dinâmica das línguas e, acima de tudo, inevitável,
cabe então distinguir quando um empréstimo é necessário ou não, quando é
oportuno ou inoportuno. Afinal, uma coisa é a introdução em nossa sociedade
de um novo conceito (por exemplo, uma nova tecnologia, um fato social
inédito, uma nova moda) que, por ser originário de outro país, chegue até nós
acompanhado do nome que tem na língua de origem. Foi assim com o whisky
(ou uísque), a pizza, o futebol (e os nomes das posições dos jogadores, depois
traduzidas para o português), a informática, e assim por diante. Outra coisa é
dar nomes estrangeiros a objetos que já têm nome em português, como
chamar "entrega" de delivery ou "salão de beleza" de esthetic center (que
muitos donos de salões, por ignorância da língua inglesa, grafam sthetic,
stethic ou coisa pior).

Os empréstimos oportunos acabam algumas vezes traduzidos ou
aportuguesados, outras vezes não. Mas, se eles existem na nossa língua, é
porque somos grandes importadores de objetos e fatos culturais inventados
por outros povos. Ou seja, importamos palavras mais do que exportamos
porque, no fundo, somos pouco criativos em matéria de tecnologia ou cultura,
exceto talvez na música.

Moda
Criticam-se muito os estrangeirismos na língua, em particular no comércio, e muitos culpam
uma suposta classe média emergente por querer associar-se a signos de status, como, por
exemplo, palavras em inglês. Mas será que as lojas estampam sale em lugar de "liquidação" e
off em vez de "desconto" por uma pressão da clientela, que só compra nessas lojas se a vitrine
estiver em inglês? Ou será que foram os lojistas que inventaram essa moda besta de escrever
tudo em inglês? Que me conste, o freguês deseja produtos bons e baratos, pouco importa se
eles estejam sendo vendidos com desconto ou off price.

Na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, existe um shopping center chamado New York City, que
tem até uma réplica da Estátua da Liberdade. As estatísticas não indicam que o afluxo a esse
shopping seja maior do que a outros da cidade só por causa da sua aura "ianque".

Tampouco me parece que esthetic centers tenham mais clientela do que salões de beleza
convencionais. Pelo menos a mim o que interessa é que o hairstylist - quer dizer, o cabeleireiro
- seja competente e, de preferência, não muito caro.

Ou seja, essa história de sale, off e outras patacoadas do gênero parece ser invenção de
comerciantes desinformados, que acreditam aumentar os lucros com tais macaquices. O
máximo que a maioria dos clientes faz em relação a isso é não fazer nada (ninguém vai deixar
de comprar numa loja só porque o letreiro está em inglês, a menos que seja um nacionalista à
moda do Policarpo Quaresma de Lima Barreto). E aí todos nós ficamos com a pecha de bregas,


      2 “Quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor.” Fernando Pessoa
Interpretação de Textos



macacos, subservientes ao capitalismo global e toda aquela lengalenga pra lá de conhecida.

Mas não estarei eu sendo ingênuo em afirmar que nenhum consumidor se sente atraído por
letreiros e anúncios em inglês? Sem dúvida, há aqueles emergentes que, tendo subido de
classe graças ao desenvolvimento do país e aos programas sociais do governo, são atraídos
por esses sinais fúteis e enganosos de status. Eu mesmo conheço algumas pessoas assim.
São, em geral, indivíduos de um nível cultural bem baixo (ainda que tenham um alto poder
aquisitivo) e, por isso mesmo, altamente manipuláveis pelas estratégias de marketing. E aqui
chego ao ponto-chave da questão: o emprego desses estrangeirismos estapafúrdios no
comércio apela ao nosso "espírito de colônia", àquele mito altamente enraizado em nossa
cultura de que tudo que é estrangeiro é melhor e, portanto, mais digno das pessoas de alto
nível.

"Canto                                          da                                     sereia"
Mas insisto no ponto de que essa tendência a idolatrar as palavras estrangeiras e usá-las
maciçamente para vender surge da indústria e do comércio, não de uma reivindicação dos
próprios consumidores. O marketing, braço armado do capitalismo e de sua ética do vale-tudo
em busca do lucro, é quem cria nas pessoas o desejo por coisas de que elas efetivamente não
precisam. Portanto, não são os clientes das lojas que exigem que a vitrine estampe sale e 50%
off, são as lojas que utilizam esses artifícios como canto da sereia para atrair consumidores
pouco críticos e, portanto, vulneráveis a esse tipo de apelo.

Mas existe um outro fenômeno, tão ridículo em sua artificialidade quanto chamar "liquidação"
de sale ou "desconto" de off: é o excesso de purismo. Muitos textos, especialmente sites do
governo ou blogs de professores de português, trazem "sítio" em vez de "site", "câmpus" em
lugar de "campus" (assim mesmo, com circunflexo), "doçaria", "leitaria", "carroçaria",
"joalharia", além de "linque", "blogue", e assim por diante. Grande parte dessa paranoia purista
vem sendo incitada por aquilo que Marcos Bagno chamou, em seu livro Preconceito
Linguístico: O que é, Como se faz, de comandos paragramaticais: professores de português
(multi)midiáticos, consultores gramaticais, autores de manuais, colunistas de revistas, rádio e
TV que, partindo do pressuposto de que "brasileiro não sabe falar português", se propõem
corrigir a fala "espúria" do nosso povo prescrevendo arcaísmos e o aportuguesamento de
termos estrangeiros que não têm a menor chance de prosperar.

Ora, em questões de língua, como em tudo mais na vida, a virtude está no meio: nem tanto ao
mar, nem tanto à terra. Portanto, não se deve adotar nem uma postura de servilismo ao que é
estrangeiro nem uma atitude chauvinista em relação ao que é nacional. Afinal, o purismo
linguístico é algo tão irritantemente pedante quanto o estrangeirismo mercadológico, o
gerundismo e outros tantos ismos.

Aldo Bizzocchi é doutor em linguística pela USP e autor de Léxico e Ideologia na Europa
Ocidental (Annablume) e Anatomia da Cultura (Palas Athena)




      3 “Quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor.” Fernando Pessoa
Interpretação de Textos



EXERCÍCIOS

  1. Há um tema que tem sido objeto de ampla discussões e tem envolvido
      até mesmo um projeto politico de controle de idioma. Sobre esse tema, o
      escritor se pronuncia no texto. Uma analise das considerações feitas por
      esse autor nos leva às seguintes conclusões:
  I.     Convém a entrada de palavras estrangeiras na língua seja
         compreendida em suas causas e motivações socioculturais. Além
         disso, convém que a questão seja vista com equilíbrio, sem
         radicalismos nem simplismos reducionistas.
  II.    O empréstimo de termos estrangeiros é um fato inevitável em um
         mundo que cultiva os intercâmbios comerciais, a propagação da
         diversidade de tendências culturais, o contato entre povos de línguas
         e visões de mundo diferentes.
  III. O fato de línguas diferentes compartilharem elementos de seu
         repertorio linguístico atesta uma postura de servilismo por parte de
         quem importa. Afinal, a necessidade de importar objetos e fatos
         culturais provoca insuficiência de nossa cultura.
  IV.    Dada a legitima dinâmica das línguas, todo empréstimo é necessário e
         oportuno. Promove o enriquecimento da língua, além de evitar seu
         isolamento e afastar o risco de um autismo linguístico e cultural.
  V.     Se admite que “nenhuma língua natural passa incólume às influencias
         de outras línguas”, pode-se concluir que a entrada de palavras
         estrangeiras em uma língua constitui um fenômeno legítimo e, não, um
         sinal de sua decadência.

  São aceitáveis as conclusões encontradas nos itens:

  a) I, II e V    b) II, III e IV     c) I, III e V    d) I, II e I     e) III, IV e V


  2. A análise de algumas expressões do texto nos permite admitir que:
  I.    Um “preconceito xenófobo” significa uma espécie de preconceito
        radical, alimentado contra toda e qualquer inovação cultural.
  II.   A expressão “lançar ao fogo do inferno” constitui uma metáfora que
        exprime um sentido de radicalismo, de rejeição extrema.
  III. A referência a “grandes ondas migratórias” recupera, entre outros, os
        fatos históricos dos Descobrimentos, que puseram em contato
        europeus e nativos da América.


     4 “Quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor.” Fernando Pessoa
Interpretação de Textos



 IV.     Admitir que “os estrangeirismos estão apenas camuflados”,
         corresponde a aceitar que eles existem, embora sejam sutis ou não
         perceptíveis.
 V.      A expressão “o purismo linguístico” pressupõe que as línguas devem
         manter-se originais e inalteráveis, apesar de suas trajetórias de
         vizinhanças e contatos.

 Os comentários estão incorretos apenas nos itens

 a) II e IV         b) II, IV e V         c) I, III e V   d) I e III       e) III e V


 3. As variações de um texto se justificam por muitos fatores e assumem
     diferentes manifestações. No caso do texto, por exemplo:
 I.     Ficaria comprometido o potencial semântico e a função comunicativa
        de sua formulação, caso o autor tivesse optado por fugir à norma culta
        da língua portuguesa.
 II.    O autor assume uma linguagem precisa e relevante, uma vez que
        oferece sustentação para argumentos apresentados.
 III. O autor, em dado momento, pretende mostrar-se incluído na interação
        com o grupo. Por isso, recorre ao uso da primeira pessoa, com em: “Se
        olharmos atentamente para todas as línguas, veremos que”.
 IV.    A sequência verificada nos parágrafos é característica de um texto
        expositivo. Se se tratasse de um gênero narrativo – como uma noticia –
        o mais comum seria uma ordem cronológica.
 V.     A finalidade prevista e os interlocutores pensados para esse texto
        justificam o uso de uma formulação textual distinta do padrão
        informal, não monitorado e distenso.

 As observações são aceitáveis nas alternativas

 a) I, II e III                     c) I, II e IV              e) IV e V
 b) II, III e V                     d) II, III, IV e V




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  • 1. Interpretação de Textos Empréstimo de termos estrangeiros pode evitar "autismo" linguístico de um idioma – Aldo Bizzocchi Muito se combate a penetração de palavras estrangeiras na nossa língua. Se até certo ponto esse combate se justifica, todo radicalismo, como exigir o banimento puro e simples de todo e qualquer termo estrangeiro do idioma, cheira a preconceito xenófobo, fanatismo cego e, mais ainda, ignorância da real dinâmica das línguas. Antes de lançar ao fogo do inferno tudo o que vem de fora, é preciso tentar compreender sem paixões por que os estrangeirismos existem. Se olharmos atentamente para todas as línguas, veremos que nenhuma tem se mantido pura ao longo dos séculos: intercâmbios comerciais, contatos entre povos, viagens, grandes ondas migratórias, disseminação de fatos culturais, tudo isso tem feito com que as línguas compartilhem palavras e expressões. Até o islandês, que, para muitos, é a língua mais pura do mundo, sem nenhum termo de origem estrangeira, é na verdade um idioma altamente influenciado por línguas mais centrais e hegemônicas. O que ocorre é que o islandês traduz os vocábulos que lhe chegam de fora, usando material nativo. Mas, sendo a Islândia um país bem pouco industrializado e bastante periférico em termos culturais, é natural que seja muito mais um polo atrator do que disseminador de criações culturais - e de palavras. No islandês, os estrangeirismos estão apenas camuflados. Enriquecimento Portanto, quando se trata de discutir uma política de proteção do idioma contra uma suposta "invasão bárbara", é preciso, em primeiro lugar, compreender que nenhuma língua natural passa incólume às influências de outras línguas, e que isso, na maioria das vezes, é benéfico tanto para quem exporta quanto para quem importa palavras. Toda língua se vê enriquecida com contribuições externas, que sempre trazem novas visões de mundo, por vezes simplificam a comunicação e, sobretudo, tiram o idioma de uma situação de "autismo" linguístico”. Assim como viajar para o exterior é saudável e enriquecedor, acolher em nossa terra influências externas (na culinária, moda, música, tecnologia e, por que não, na língua) tem o mesmo efeito salutar. Dando por assentada a questão de que o empréstimo de palavra estrangeira é 1 “Quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor.” Fernando Pessoa
  • 2. Interpretação de Textos um fenômeno legítimo da dinâmica das línguas e, acima de tudo, inevitável, cabe então distinguir quando um empréstimo é necessário ou não, quando é oportuno ou inoportuno. Afinal, uma coisa é a introdução em nossa sociedade de um novo conceito (por exemplo, uma nova tecnologia, um fato social inédito, uma nova moda) que, por ser originário de outro país, chegue até nós acompanhado do nome que tem na língua de origem. Foi assim com o whisky (ou uísque), a pizza, o futebol (e os nomes das posições dos jogadores, depois traduzidas para o português), a informática, e assim por diante. Outra coisa é dar nomes estrangeiros a objetos que já têm nome em português, como chamar "entrega" de delivery ou "salão de beleza" de esthetic center (que muitos donos de salões, por ignorância da língua inglesa, grafam sthetic, stethic ou coisa pior). Os empréstimos oportunos acabam algumas vezes traduzidos ou aportuguesados, outras vezes não. Mas, se eles existem na nossa língua, é porque somos grandes importadores de objetos e fatos culturais inventados por outros povos. Ou seja, importamos palavras mais do que exportamos porque, no fundo, somos pouco criativos em matéria de tecnologia ou cultura, exceto talvez na música. Moda Criticam-se muito os estrangeirismos na língua, em particular no comércio, e muitos culpam uma suposta classe média emergente por querer associar-se a signos de status, como, por exemplo, palavras em inglês. Mas será que as lojas estampam sale em lugar de "liquidação" e off em vez de "desconto" por uma pressão da clientela, que só compra nessas lojas se a vitrine estiver em inglês? Ou será que foram os lojistas que inventaram essa moda besta de escrever tudo em inglês? Que me conste, o freguês deseja produtos bons e baratos, pouco importa se eles estejam sendo vendidos com desconto ou off price. Na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, existe um shopping center chamado New York City, que tem até uma réplica da Estátua da Liberdade. As estatísticas não indicam que o afluxo a esse shopping seja maior do que a outros da cidade só por causa da sua aura "ianque". Tampouco me parece que esthetic centers tenham mais clientela do que salões de beleza convencionais. Pelo menos a mim o que interessa é que o hairstylist - quer dizer, o cabeleireiro - seja competente e, de preferência, não muito caro. Ou seja, essa história de sale, off e outras patacoadas do gênero parece ser invenção de comerciantes desinformados, que acreditam aumentar os lucros com tais macaquices. O máximo que a maioria dos clientes faz em relação a isso é não fazer nada (ninguém vai deixar de comprar numa loja só porque o letreiro está em inglês, a menos que seja um nacionalista à moda do Policarpo Quaresma de Lima Barreto). E aí todos nós ficamos com a pecha de bregas, 2 “Quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor.” Fernando Pessoa
  • 3. Interpretação de Textos macacos, subservientes ao capitalismo global e toda aquela lengalenga pra lá de conhecida. Mas não estarei eu sendo ingênuo em afirmar que nenhum consumidor se sente atraído por letreiros e anúncios em inglês? Sem dúvida, há aqueles emergentes que, tendo subido de classe graças ao desenvolvimento do país e aos programas sociais do governo, são atraídos por esses sinais fúteis e enganosos de status. Eu mesmo conheço algumas pessoas assim. São, em geral, indivíduos de um nível cultural bem baixo (ainda que tenham um alto poder aquisitivo) e, por isso mesmo, altamente manipuláveis pelas estratégias de marketing. E aqui chego ao ponto-chave da questão: o emprego desses estrangeirismos estapafúrdios no comércio apela ao nosso "espírito de colônia", àquele mito altamente enraizado em nossa cultura de que tudo que é estrangeiro é melhor e, portanto, mais digno das pessoas de alto nível. "Canto da sereia" Mas insisto no ponto de que essa tendência a idolatrar as palavras estrangeiras e usá-las maciçamente para vender surge da indústria e do comércio, não de uma reivindicação dos próprios consumidores. O marketing, braço armado do capitalismo e de sua ética do vale-tudo em busca do lucro, é quem cria nas pessoas o desejo por coisas de que elas efetivamente não precisam. Portanto, não são os clientes das lojas que exigem que a vitrine estampe sale e 50% off, são as lojas que utilizam esses artifícios como canto da sereia para atrair consumidores pouco críticos e, portanto, vulneráveis a esse tipo de apelo. Mas existe um outro fenômeno, tão ridículo em sua artificialidade quanto chamar "liquidação" de sale ou "desconto" de off: é o excesso de purismo. Muitos textos, especialmente sites do governo ou blogs de professores de português, trazem "sítio" em vez de "site", "câmpus" em lugar de "campus" (assim mesmo, com circunflexo), "doçaria", "leitaria", "carroçaria", "joalharia", além de "linque", "blogue", e assim por diante. Grande parte dessa paranoia purista vem sendo incitada por aquilo que Marcos Bagno chamou, em seu livro Preconceito Linguístico: O que é, Como se faz, de comandos paragramaticais: professores de português (multi)midiáticos, consultores gramaticais, autores de manuais, colunistas de revistas, rádio e TV que, partindo do pressuposto de que "brasileiro não sabe falar português", se propõem corrigir a fala "espúria" do nosso povo prescrevendo arcaísmos e o aportuguesamento de termos estrangeiros que não têm a menor chance de prosperar. Ora, em questões de língua, como em tudo mais na vida, a virtude está no meio: nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Portanto, não se deve adotar nem uma postura de servilismo ao que é estrangeiro nem uma atitude chauvinista em relação ao que é nacional. Afinal, o purismo linguístico é algo tão irritantemente pedante quanto o estrangeirismo mercadológico, o gerundismo e outros tantos ismos. Aldo Bizzocchi é doutor em linguística pela USP e autor de Léxico e Ideologia na Europa Ocidental (Annablume) e Anatomia da Cultura (Palas Athena) 3 “Quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor.” Fernando Pessoa
  • 4. Interpretação de Textos EXERCÍCIOS 1. Há um tema que tem sido objeto de ampla discussões e tem envolvido até mesmo um projeto politico de controle de idioma. Sobre esse tema, o escritor se pronuncia no texto. Uma analise das considerações feitas por esse autor nos leva às seguintes conclusões: I. Convém a entrada de palavras estrangeiras na língua seja compreendida em suas causas e motivações socioculturais. Além disso, convém que a questão seja vista com equilíbrio, sem radicalismos nem simplismos reducionistas. II. O empréstimo de termos estrangeiros é um fato inevitável em um mundo que cultiva os intercâmbios comerciais, a propagação da diversidade de tendências culturais, o contato entre povos de línguas e visões de mundo diferentes. III. O fato de línguas diferentes compartilharem elementos de seu repertorio linguístico atesta uma postura de servilismo por parte de quem importa. Afinal, a necessidade de importar objetos e fatos culturais provoca insuficiência de nossa cultura. IV. Dada a legitima dinâmica das línguas, todo empréstimo é necessário e oportuno. Promove o enriquecimento da língua, além de evitar seu isolamento e afastar o risco de um autismo linguístico e cultural. V. Se admite que “nenhuma língua natural passa incólume às influencias de outras línguas”, pode-se concluir que a entrada de palavras estrangeiras em uma língua constitui um fenômeno legítimo e, não, um sinal de sua decadência. São aceitáveis as conclusões encontradas nos itens: a) I, II e V b) II, III e IV c) I, III e V d) I, II e I e) III, IV e V 2. A análise de algumas expressões do texto nos permite admitir que: I. Um “preconceito xenófobo” significa uma espécie de preconceito radical, alimentado contra toda e qualquer inovação cultural. II. A expressão “lançar ao fogo do inferno” constitui uma metáfora que exprime um sentido de radicalismo, de rejeição extrema. III. A referência a “grandes ondas migratórias” recupera, entre outros, os fatos históricos dos Descobrimentos, que puseram em contato europeus e nativos da América. 4 “Quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor.” Fernando Pessoa
  • 5. Interpretação de Textos IV. Admitir que “os estrangeirismos estão apenas camuflados”, corresponde a aceitar que eles existem, embora sejam sutis ou não perceptíveis. V. A expressão “o purismo linguístico” pressupõe que as línguas devem manter-se originais e inalteráveis, apesar de suas trajetórias de vizinhanças e contatos. Os comentários estão incorretos apenas nos itens a) II e IV b) II, IV e V c) I, III e V d) I e III e) III e V 3. As variações de um texto se justificam por muitos fatores e assumem diferentes manifestações. No caso do texto, por exemplo: I. Ficaria comprometido o potencial semântico e a função comunicativa de sua formulação, caso o autor tivesse optado por fugir à norma culta da língua portuguesa. II. O autor assume uma linguagem precisa e relevante, uma vez que oferece sustentação para argumentos apresentados. III. O autor, em dado momento, pretende mostrar-se incluído na interação com o grupo. Por isso, recorre ao uso da primeira pessoa, com em: “Se olharmos atentamente para todas as línguas, veremos que”. IV. A sequência verificada nos parágrafos é característica de um texto expositivo. Se se tratasse de um gênero narrativo – como uma noticia – o mais comum seria uma ordem cronológica. V. A finalidade prevista e os interlocutores pensados para esse texto justificam o uso de uma formulação textual distinta do padrão informal, não monitorado e distenso. As observações são aceitáveis nas alternativas a) I, II e III c) I, II e IV e) IV e V b) II, III e V d) II, III, IV e V 5 “Quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor.” Fernando Pessoa