O documento discute como os brasileiros gostam de dar palpites sobre futebol e língua, mesmo sem serem especialistas. Afirma que existem 180 milhões de "técnicos de futebol" e também 180 milhões de "linguistas" no Brasil, que propagam mitos e ideias equivocadas sobre origem de palavras e estrutura das línguas. Argumenta que lingüistas dedicam suas vidas ao estudo científico das línguas, da mesma forma que outros especialistas estudam seus campos, mas recebem menos crédito
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180 MILHÕES DE LINGÜISTAS
Publicado em Língua Portuguesa, ano 2, n.º 22, agosto de 2007
Como no futebol, em que todo torcedor é um “técnico”, já há uma tradição brasileira de
palpitar sobre questões de linguagem
Quando a lenda se torna fato, imprima-se a lenda.
John Ford, O homem que matou o facínora
Dizem que foi o saudoso narrador esportivo Geraldo José de Almeida quem disse, lá pelos idos de 1969,
que o Brasil tinha 90 milhões de técnicos de futebol. Na verdade, a constatação de que todo brasileiro –
ou quase todo – gosta de dar palpites sobre a seleção deve ser bem anterior ao Geraldo, mas parece
que foi ele quem popularizou a expressão, talvez até parodiando a famosa marchinha de Miguel
Gustavo, Pra Frente, Brasil, que exortava em tom ufanista (eram os tempos da ditadura militar): “90
milhões em ação, pra frente, Brasil do meu coração”.
Desde então, essa frase vem tentando acompanhar nossa explosão demográfica e, atualmente, os
cronistas esportivos não se cansam de repetir o clichê de que o Brasil tem 180 milhões de técnicos.
Afinal, qualquer torcedor sabe escalar a seleção melhor do que o Dunga. Qualquer tropeço da esquadra
nacional é motivo de críticas acerbas e inflamadas em todas as esquinas e mesas de bar deste país. E
todos – menos o técnico – sabem diagnosticar onde está o erro.
Pois cheguei à conclusão de que o Brasil também tem 180 milhões de lingüistas. Isso mesmo! Somos
180 milhões de cidadãos que adoram palpitar sobre as línguas em geral e sobre a língua portuguesa em
particular. E fazemos isso com a sem-cerimônia e desenvoltura de grandes experts (ou espertos) no
assunto.
Quando se trata da língua, não é raro ouvirmos os maiores disparates, eivados de preconceito e miopia
intelectual, proferidos amiúde em tom solene e professoral por pessoas que às vezes mal têm o ensino
fundamental completo.
Frases chauvinistas como “o português é a mais bela e perfeita língua do mundo”, “o francês é o idioma
da lógica e do equilíbrio” ou “só é possível filosofar em alemão” já se tornaram lugar-comum em
discussões do gênero. Mas críticas impertinentes e infundadas como “o inglês é uma língua absurda,
que põe o adjetivo antes do substantivo” ou “só uns estúpidos como os alemães podem construir
palavras tão quilométricas” também pululam nas rodas de bate-papo e revivem certos mitos que
remontam ao século 19, quando romanticamente se acreditava que as línguas eram organismos vivos,
inteligentes e, por isso, dotados de “personalidade”. Daí que o italiano é uma língua sensual, o francês é
cartesiano, o alemão é militarista, o inglês é cerimonioso, o tupi é indolente…
Quando o assunto é etimologia, então, nem se fala: todo mundo sabe exatamente de onde vieram as
palavras. Corre uma lenda, por exemplo, de que coitado deriva de coito, ato sexual, o que dá um ar
malicioso – e por isso mesmo atraente – a esse epíteto. Na verdade, coitado vem do português medieval
coita, “sofrimento”, por sua vez originário do latim vulgar cocta.
Trata-se de um caso, como muitos, de etimologia popular, em que o aspecto sugestivo da palavra
parece inspirar as pessoas a descobrirem certos estratos geológicos de sua história que jamais
existiram. E, por vezes, o achismo lingüístico é tão mais sedutor que a verdade científica que, diante de
uma explicação convincente mas fantasiosa, a dura realidade fica meio sem graça.
Falsas etimologias existem, que eu saiba, desde que o homem fala. Platão, no Crátilo, afirmou que os
heróis têm esse nome por serem fruto do amor (Eros) entre um deus e um ser mortal. Santo Isidoro de
Sevilha, o “patrono da etimologia”, sustentava, dentre outras estultices, que femina (“mulher” em latim)
proviria de fide minus, “menos fé”, e que mulier (também “mulher” em latim) viria de molior, “a mais
mole”. Mas, se naquela época tais absurdos eram toleráveis, hoje, com os enormes avanços da
pesquisa em lingüística, é deplorável que tais mitos ainda façam adeptos.
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O pior de tudo é que cidadãos leigos não se intimidam em debater sobre questões de língua com
especialistas. Embora ninguém que não seja médico ou advogado se atreva a discutir medicina com um
médico ou leis com um jurista, qualquer zé-dos-anzóis se sente à vontade para polemizar com um
lingüista sobre a origem das línguas, o melhor sistema ortográfico, a superioridade de um idioma sobre
outro… Alguns chegam a arvorar-se em legisladores da língua, sem ter mandato para tal (será que
alguém tem esse mandato?).
É que existe a crença mais ou menos generalizada de que medicina e direito são matérias de alta
especialidade, ao passo que a língua é assunto de domínio público. Afinal, nem todos clinicam ou
advogam, mas todos falam. E, portanto, qualquer um sabe “ensinar o padre-nosso ao vigário”.
Já ouvi mais de uma vez a afirmação de que o português se originou do grego – ou, pior ainda, do celta
ou do fenício –, que por sua vez descende do hindu (parece que hinduísmo agora é língua!). Trata-se de
uma tremenda mixórdia de informações desencontradas, entreouvidas aqui e ali, colhidas às vezes de
fonte não confiável, ou distorcidas pelo “ruído na comunicação”.
Além de tudo, a palavra de autores aventureiros, bem como obras de certos gramáticos e filólogos do
passado, já superados, ainda ecoam como factóides na cabeça dos leigos, que evidentemente não têm
senso crítico para discernir o que é fato e o que é lenda, o que é informação científica atual e o que é
mera especulação filosófica ultrapassada.
Some-se a isso o desprestígio em nossa sociedade das profissões ligadas às ciências humanas
(erroneamente confundidas com as “humanidades”) e à educação para entendermos porque muitos até
duvidam de que a língua possa ser objeto de estudo científico.
* * *
Voltando ao esporte bretão, acredito sinceramente que os técnicos são uns grandes injustiçados e
incompreendidos. Afinal, mesmo quando o time perde (qualquer time, não só a seleção), um treinador,
que vive e respira futebol 24 horas por dia, que já foi jogador, ou estudou educação física, ou ganha um
salário milionário, deve entender do métier mais do que um torcedor que, muitas vezes, nem sabe
chutar uma bola direito.
Pois o mesmo vale para a língua: um lingüista é um estudioso que dedica a sua vida a estudar a
estrutura, o funcionamento, o processamento cerebral, o uso social e a evolução histórica das línguas
com o mesmo rigor teórico e metodológico com que um biólogo estuda a anatomia, a fisiologia e a
evolução das espécies, ou um astrônomo estuda os astros e a história do Universo. Só que, assim
como ainda há mais pessoas que acreditam mais na astrologia do que na astronomia, também os
curiosos e palpiteiros da linguagem têm mais crédito do que os lingüistas. Pobre Dunga!
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