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João Victor Ferreira de Almeida 2021011709
A Identidade Pessoal em Locke
Parafraseando bem-humoradamente a famosa frase de Whitehead sobre
Platão, Schoemaker afirma que “a história do tema da identidade pessoal tem
sido uma série de notas de rodapé para Locke” (2008). Embora talvez ele tenha
sido um pouco hiperbólico, a importância que Schoemaker atribui ao trabalho de
Locke é confirmado por muitos outros, como Ayers:
apesar de toda a transformação de nossos motivos, na verdade, de nossa teoria
filosófica geral... o debate sobre a identidade pessoal mal avançou desde as
inovações dos séculos XVII e XVIII.
Essa importância atribuída por muitos filósofos, me motivou a escrever
sobre o capítulo 27 do livro II para a segunda edição do Ensaio Sobre o
Entendimento Humano, “Da Identidade e da diversidade”. Este artigo será
constituído de três seções: um pequeno apanhado dos problemas envolvendo
identidade pessoal identificados pela literatura analítica; uma seção sobre o
tratamento da identidade e da diversidade para perdurantes em geral no Ensaio;
e, por fim, será discutida a identidade pessoal no início do capítulo citado. A parte
final do capítulo, em que Locke desenvolve pessoa como conceito forense, é
mais um desenvolvimento da consequência prática de sua metafísica sobre a
identidade pessoal do que propriamente metafísica; portanto, de pouco interesse
para meu propósito, e será ignorada. A segunda e a primeira seções têm a
finalidade de contextualizar teoricamente o tratamento lockiano dado ao tema da
identidade pessoal.
1. Os problemas envolvendo identidade pessoal
De acordo com a entrada da Stanford Encyclopedia de autoria de E. Olson
para identidade pessoal, não há um único problema envolvendo esta noção, mas
vários. As questões elencadas por ele como “mais conhecidos” são as seguintes:
Caracterização: a questão sobre quais propriedades individuam uma pessoa,
que tornam ela mesma e não outra. O que faz de mim eu mesmo e não o Papa?
Minha história de vida, traços de personalidade, temperamento, sistema de
crenças, patrimônio genético, um conjunto deles...?
Personalidade: a questão sobre quais propriedades definem ser uma pessoa
em oposição à não-pessoa. O que faz com que eu seja uma pessoa e meu cão
não (se é que, de fato, ele não é)? Um candidato óbvio seria a capacidade de
autoconsciência. A mim parece que essa questão é particularmente interessante
para casos limítrofes, principalmente de mamíferos superiores não-humanos
(polvos e algumas aves, como corvos, parecem ser uma exceção) e crianças
muito novas, em que não é claro se estamos ou não tratando de pessoas. Se há
algo no mundo que seja uma pessoa, parece indubitável que devemos
considerar um humano adulto em condições psicológicas “normais” (não
discutirei o que dever tido como normal aqui por falta de espaço, mas é claro que
isso mesmo é um problema) um exemplo, também parece claro que não
devemos considerar rochas, cactos e oceanos, pessoas; mas para chimpanzés,
golfinhos, elefantes... não parece claro se estamos ou não tratando de pessoas.
Para resolver a questão não basta que tenhamos evidências empíricas a respeito
das faculdades cognitivas desses animais (ou qualquer outro candidato a ser
uma pessoa), é necessário determinar os critérios que tornam algo uma pessoa,
que é precisamente a questão metafísica da “personalidade”.
População: esse é o problema de saber quantas são as pessoas existentes. A
resposta pode parecer uma questão para a demografia, não para a filosofia. Mas
isso porque nossa prática linguística ordinária é chamar “pessoa” simplesmente
um organismo humano vivo depois do nascimento. Mas se o que é uma pessoa
não é tão óbvio quanto sugeri acima, a questão de saber quantas são as pessoas
torna-se menos óbvia por extensão. Eu poderia citar os mesmos exemplos que
dei para o problema anterior, mas Olson cita o caso de cérebros humanos vivos
cujos cérebros foram separados (Nagel, 1970), pessoas com personalidade
múltipla, e mesmo a posição de que organismos em situação fisiológica e
psicologicamente normais, que tem duas pessoas coexistindo num único
cérebro. A mim parece que o “problema” da população pode ser entendido como
mera extensão trivial do problema da personalidade. O número de pessoas
parece seguir necessariamente do critério que torna algo uma pessoa. Portanto,
é pelo menos duvidoso se este é realmente um problema independente que
merece ser elencado.
Persistência: Muitos de nós temos a intuição de que, embora mudemos ao
longo do tempo, conservamos nossas identidades. Intuímos que alguém que
comete uma infração deve ser punido, embora o infrator tenha mudado do tempo
da infração ao tempo da punição. O que nos faz conservar identidade ao longo
do tempo? Embora a questão possa ser vista num contexto metafísico geral da
persistência de objetos, de modo que a questão sobre a identidade pessoal deve
ser entendida como uma instância da polêmica perdurantismo vs endurantismo
vs exdurantismo, parece insuficiente alegar que uma pessoa tem partes
temporais que juntas a compõem, como as partes de sua anatomia compõem a
sua espacialidade, ou que ela toda persiste ao longo do tempo sem que haja
partes temporais. O que exatamente na pessoa tem partes temporais ou persiste
inteira? Se é que é possível reduzir a identidade pessoal a algo que persiste.
Mais radicalmente, há algo que persiste numa pessoa ou nossa noção de
persistência é mera ilusão?
Evidência: que tipo de evidência usamos para dizer que alguém continua o
mesmo ou é diferente de outro? Olson explica que essa questão deve ser
distinguida da questão da persistência. Ele exemplifica isso dizendo que as
digitais de alguém podem ser um critério adequado para identificar alguém, mas
certamente não são critérios necessários para a caracterização. Alguém que
perdeu os dedos certamente não deixa de ser ele mesmo, e distinto de outros.
Que tipo de coisa somos?
Citando Olson, algumas das principais respostas à essa questão são:
 Somos organismos biológicos (“animalismo”: Snowdon 1990, 2014, van Inwagen 1990,
Olson 1997, 2003a).
 Somos coisas materiais “constituídas por” organismos: uma pessoa pode ser feita da
mesma matéria que um determinado animal, mas são coisas diferentes porque o que é
preciso para que persistam é diferente (Baker 2000, Johnston 2007, Shoemaker 2011).
 Somos partes temporais dos animais: cada um de nós está para um organismo assim
como sua infância está para sua vida como um todo (Lewis 1976).
 Somos partes espaciais de animais: cérebros talvez (Campbell e McMahan 2010, Parfit
2012), ou partes temporais de cérebros (Hudson 2001, 2007).
 Somos substâncias imateriais sem partes – almas – como pensavam Platão, Descartes
e Leibniz (ver também Unger 2006: cap. 7), ou coisas compostas de uma alma
imaterial e um corpo material (Swinburne 1984: 21).
 Somos coleções de estados ou eventos mentais: “feixes de percepções”, como disse
Hume (1739 [1978: 252]; ver também Quinton 1962, Campbell 2006).
 Não há nada que nós somos: nós realmente não existimos (Russell 1985: 50,
Wittgenstein 1922: 5.631, Unger 1979, Sider 2013).
Embora seja conveniente que os problemas aqui listados não sejam
confundidos, eles parecem ter uma conexão tal que parece impossível não
entrelaça-los. O problema que parece que é mais evidentemente lockiano é
o da persistência da identidade pessoal, mas as questões sobre
caracterização, “que tipo de coisa nós somos?”, e personalidade também
aparecem no Ensaio. Aqui não haverá privilégio ao problema da persistência,
os problemas serão abordados conforme aparecem no texto, sem
preocupação de delimitação rígida.
2. A identidade e diversidade em Locke
O capítulo 27 do Ensaio Acerca do Entendimento Humano não é
exclusivamente sobre identidade pessoal, mas sobre a identidade e diferença
para vários tipos que perduram no tempo. Este contexto geralmente é
negligenciado na apresentação da teoria lockiana sobre identidade pessoal, por
isso achei conveniente tratar do capítulo desde o princípio.
A identidade e diversidade que interessam a Locke são caracterizadas por
ele como se segue:
Outra ocasião em que a mente frequentemente realiza comparações provém do próprio ser das
coisas, quando, considerando algo como existente num determinado tempo e lugar, nós o
comparamos a ele mesmo existindo noutro tempo e, a partir disso, formamos as ideias de
identidade e diversidade. Quando vemos algo existir num certo lugar num certo instante do
tempo, estamos seguros (seja ele o que for) de que é a mesma coisa e não outra que, ao mesmo
tempo, existe noutro lugar, por mais parecida e indistinguível que seja em todos os outros pontos.
Nisso consiste a identidade, quando as ideias às quais ela é atribuída não variam em nada do
que foram naquele momento em que consideramos sua existência anterior e ao qual
comparamos a presente, pois, nunca achando nem concebendo como possível que duas coisas
da mesma espécie existam no mesmo lugar ao mesmo tempo, corretamente concluímos que o
que quer que exista num certo lugar num certo tempo exclui todas da mesma espécie e aí se
encontra, ela mesma [it self], sozinha. Portanto, quando perguntamos se alguma coisa é ou não
a mesma, isso sempre se refere a algo que existiu num determinado tempo num determinado
lugar, acerca do qual era certo que, naquele instante, era o mesmo que ele mesmo [the same
with it self] e não outro. Disso se segue que uma coisa não pode ter dois inícios de existência,
nem duas coisas um único início, sendo impossível para duas coisas da mesma espécie ser ou
existir no mesmo instante no mesmíssimo lugar; ou uma e a mesma coisa, em diferentes lugares.
Portanto, aquela que teve um início é a mesma coisa e a que teve um início diferente daquela
no tempo e lugar não é a mesma, mas diversa. O que causou a dificuldade acerca dessa relação
foi o pouco cuidado e a pouca atenção usados para se ter noções precisas das coisas às quais
ela é atribuída.
Então temos que:
1) A identidade que interessa a Locke não é a identidade de tipo
lógico, intensional, semântica, mas o tipo de identidade que
intuímos que seres que perduram no tempo tem.
2) A identidade “provém do próprio ser das coisas”, não trata-se de
mera ficção útil; o que podemos entender como uma concepção
realista para identidade de seres que perduram.
3) A identidade que interessa a Locke é claramente o tipo que hoje
chamaríamos de identidade numérica. Ainda que A seja
indistinguível de B em todas as outras propriedades (excluídos
posição inicial no espaço-tempo como propriedade), a existência
em dois lugares diferentes num mesmo momento é suficiente para
que sejam diferentes e não o mesmo, são 2 e não 1.
4) Disso segue que A e B devem ter inícios diferentes, e A tem
somente um início e não dois. Há uma correspondência biunívoca
entre inícios e entidades.
5) A identidade se conserva ao longo do tempo, disso segue-se que
a mudança não é suficiente para fazer com que o mutante não seja
o mesmo. O homem de Heráclito que se banha no rio em t1
continua 1, o mesmo, em t2, ainda que tenha ganhado ou perdido
propriedades.
Tais princípios parecem aplicar-se a duas das três substâncias
cartesianas, que, Locke afirma, são as três que podem ser pensadas. Para Deus,
que é eterno, imutável e omnipresente, a identidade não é confundível de modo
algum. Não parece ser necessário aplicar a ele esse tipo de critério. Para
espíritos finitos e corpos, tendo para cada um tempo e lugar de início, os critérios
acima aplicam-se, embora haja especificidades que precisam ser desenvolvidas.
Há, segundo ele, critérios da identidade diferentes para a matéria
inorgânica e para a vida. Mas embora interessantes em si mesmos, esta
diferença não é interessante para meu propósito aqui. O critério que ele
estabelece para seres orgânicos é o mesmo que estabelece para humanos.
Embora humanos sejam tradicionalmente vistos como compostos de matéria e
espírito, Locke recusa-se a ver a identidade humana no espírito:
Quem localizar a identidade do homem em qualquer outra coisa senão, como a dos outros
animais, num corpo adequadamente organizado tomado num certo instante e, a partir desse
instante, mantido numa organização vital em várias partículas de matéria sucessivamente
cambiantes unidas a ele, encontrará dificuldade em fazer de um embrião e um idoso, um louco
e um sensato, o mesmo homem por meio de uma suposição que não torne possível Set, Ismael,
Sócrates, Pilatos, S. Agostinho e César Bórgia serem o mesmo homem. Se somente a identidade
da alma constitui o mesmo homem e não há nada na natureza da matéria em razão da qual o
mesmo espírito individual não possa estar unido a diferentes corpos, será possível que aqueles
homens, vivendo em épocas distantes e com diferentes temperamentos, possam ter sido o
mesmo homem. Essa maneira de falar deve provir de um uso muito estranho da palavra homem,
aplicada a uma ideia a partir da qual corpo e formato estão excluídos. Essa maneira de falar
concordaria ainda menos com as noções daqueles filósofos que admitem a transmigração e são
da opinião de que as almas dos homens podem, por causa de seus malfeitos, serem postas em
corpos de animais, como habitações adequadas, detentoras de órgãos apropriados à satisfação
de suas inclinações bestiais. Contudo, ainda assim penso que ninguém, mesmo que estivesse
seguro de que a alma de Heliogábalo estivesse num de seus porcos, diria que aquele porco era
um homem ou Heliogábalo.
À pergunta que alguns contemporâneos interessados em filosofia da
modalidade fazem, “Sócrates poderia ser um ovo frito?”, Locke parece que
responderia negativamente, mesmo que, em virtude de malfeito perpetrado por
Sócrates, sua alma transmigrasse para um ovo frito. Para a identidade de
humanos, não há dúvidas, Locke está em pleno acordo com animalistas, aqueles
que falam em continuidade física ao invés de psicológica. Deste modo, não pode
ser de modo algum negligenciada a distinção lockiana entre pessoa e humano.
Locke justifica esta distinção por aquilo que chama de “identidade
adequada à ideia”. Para julgarmos corretamente a questão da identidade,
devemos analisar que ideia a palavra que a ela se aplica representa. Uma coisa é ser a mesma
substância, outra o mesmo homem e uma terceira a mesma pessoa, se pessoa, homem e
substância são três nomes representando três diferentes ideias; pois, tal como é a ideia
pertencente ao nome, assim deve ser a identidade.
A diferença que Locke estabelece entre humano e pessoa apela à intuição
de que um organismo é de algum modo diferente de uma pessoa, e não é
necessariamente inconsistente em relação a negação do dualismo de
substância, ainda que ele mesmo estivesse envolvido num contexto cartesiano.
Mas ela pode gerar confusão, se interpretada à luz das noções fregianas
de sentido e referência, que são muito pertinentes à esse tipo de discussão sobre
identidade não tautológica que está em jogo aqui. A ideia nesse sentido lockiano
parece, prima facie, conformar-se melhor à noção fregiana de sentido,
considerando que elas podem referir-se a um mesmo referente; ao apontar para
Locke, posso estar falando do organismo Locke ou da pessoa Locke, sendo que
isso facilmente pode ser interpretado como modos de apresentação de uma
única referência, Locke. Ademais, ela parece exercer o mesmo tipo de função
que o “conceito” na teoria fregiana dos números. Para Frege, um número não
pode ser uma propriedade de um objeto físico indiferenciado. Se aponto para a
Lua, e pergunto, “qual o número daquilo?”, minha pergunta não tem sentido,
porque não está determinado a quê exatamente este número se aplica; ao
número de átomos, de moléculas, crateras, círculos celestes brilhantes
visíveis...? Mas se pergunto sobre o número de satélites naturais da Terra, agora
sim, temos uma pergunta com sentido, que pode ser corretamente respondida,
1. Por função pragmática da linguagem, geralmente entendemos a que se
adequa o número a que a pergunta se refere, mas isso porque temos um
conceito em mente implicitamente. Locke parece estar fazendo algo similar
quanto a identidade de perdurantes: sua identidade demanda uma diferenciação
conceitual. No espírito de Frege, se perguntamos se um referente r, que seja
pessoa e humana, em t1 continua a mesma em t2, esta pergunta é ambígua até
que determinemos o conceito a que a identidade deve aplicar-se, ao de humano
ou de pessoa. Então, a concepção lockiana de ideia neste contexto parece mais
adequada ao de sentido fregiana, prima facie.
Mas os critérios de identidade que Locke expõe no início do capítulo são
estritamente extensionais, não é o tipo que é definido por satisfazer um certo
conjunto de propriedades, como a identidade dos indiscerníveis leibiziana e o
critério fregiano para números. Ainda que indiscerníveis em todas as suas
propriedades, os “indiscerníveis” não são o mesmo se tem inícios distintos e
ocupam distintas posições no espaço ao mesmo tempo. Talvez, se conhecesse
a filosofia fregiana e pressionado, Locke diria que pessoa e humano são
referências distintas, dado que, embora sejam, prima facie, indicerníveis quanto
ao espaço que ocupam num momento em que a pessoa existe, e sua referência
seja fixada por um único termo (o nome próprio Locke, por exemplo); são
discerníveis quanto ao início, já que o humano tem início na concepção,
enquanto a pessoa tem início muito tempo depois, quando o organismo começa
a gerar a consciência que caracteriza a pessoa. O que sua “identidade adequada
à ideia” estaria fazendo, na verdade, é discernir referências a tipos distintos (no
espírito de Kripke, talvez), que podem ser confundidas por ocuparem o mesmo
espaço, embora sejam distintas por seu incínio. É uma lástima que o próprio
Locke não possa esclarecer isso, mas parece que o seu raciocínio funciona
melhor se considerarmos suas ideias fixando referências distintas, não sentidos
diferentes para um mesmo referente.
De qualquer modo, a distinção lockiana entre humano e pessoa continua
interessante até hoje para o problema da identidade pessoal. Como citado no
tópico “O que somos nós?”, animalistas, para quem pessoas são organismos
animais, devem esforçar-se para mostrar a invalidade da distinção lockiana; para
eles as pessoas devem ser simplesmente o que Locke entende por “humanos”.
Ou, no máximo, que a diferença é do tipo estrela da manhã e estrela da tarde.
Aqueles que estão interessados em critérios de continuidade psicológica de
modo exclusivo para a persistência por exemplo, devem defender a distinção
lockiana na versão que distingue referências.
3. O problema da identidade pessoal em Locke
a) Definição psicológica de identidade pessoal, intelectualismo e
anti-intelectualismo
Locke entende por pessoa, principalmente, um ser autoconsciente:
Pessoa, penso eu, é um ser pensante inteligente que tem razão e reflexão e pode
considerar a si mesmo como si mesmo, a mesma coisa pensante em diferentes tempos
e lugares, o que é feito somente pela consciência, que é inseparável do pensamento e,
como me parece, lhe é essencial: é impossível para qualquer um perceber sem perceber
que percebe. Quando vemos, ouvimos, cheiramos, degustamos, tocamos, meditamos
ou desejamos alguma coisa, sabemos que fazemos isso. É sempre assim nas nossas
sensações e percepções presentes e, por isso, cada um é para si mesmo [to himself] o
que chama de eu [self]. Não se considera, neste caso, se o mesmo eu [self] subsiste na
mesma ou em diversas substâncias. Dado que a consciência sempre acompanha o
pensamento e que é ela que faz cada um ser o que chama de eu [self] e, desse modo,
distinguir a si mesmo [himself] de todas as outras coisas pensantes, apenas nisso
consiste a identidade pessoal, isto é, na mesmidade do ser racional. A identidade de uma
pessoa tem um alcance tão grande quanto a consciência puder ser estendida
retrospectivamente a uma ação ou pensamento do passado: trata-se agora do mesmo
eu [self] que era antes e é pelo mesmo eu [self] do presente, que agora reflete sobre ela,
que a ação foi feita.
Sua visão é psicológica como discutimos acima, e o que há em
nossa psicologia que está envolvida em nossa identidade pessoal, é,
sobretudo, de ordem intelectual; por isso convém chamar sua posição de
intelectualista. Esta é uma concepção muito intuitiva do que é ser uma
pessoa, mas não é universalmente aceita. Em Behaviorismo, obra que
tinha, parafraseando o autor, a finalidade de expor a filosofia do
behaviorismo, B.F Skinner, caracteriza pessoa sem apelo à
autoconsciência:
Numa análise comportamental, uma pessoa é um organismo, um membro da espécie
humana que adquiriu um repertório comportamental. Ela continua sendo um organismo
para o anatomista e para o fisiologista, mas é uma pessoa para aqueles que dão
importância ao comportamento. Contingências complexas de reforço criam repertórios
complexos, e, como vimos, diferentes contingências criam diferentes pessoas dentro de
uma mesma pele, das quais as as chamadas personalidades múltiplas são apenas a
manifestação extrema. (...) Uma pessoa não é um agente que se orgine; é um lugar, um
ponto em que múltiplas condições genéticas e ambientais se reúnem num efeito
conjunto. Como tal, ela permanece indiscutivelmente única. Ninguém mais (a mesma
que se tenha gêmeo idêntico) possui sua dotação genética e, sem excessão, ninguém
mais tem sua história pessoal.
Embora comece o trecho afirmando que uma pessoa é um
organismo, o que seria um animalismo, o espírito do texto parece
concordar com a distinção lockiana entre pessoa e humano. Primeiro,
porque há uma distinção entre o organismo, considerado fisiológica e
anatomicamente, e o repertório comportamental adquirido por ele.
Segundo, porque ele admite a possibilidade de múltiplas pessoas vivendo
num mesmo organismo, e que o transtorno de múltipla personalidade é
somente um caso extremo disso, sugerindo que a personalidade humana
normal tem certa fragmentação, permitindo uma multiplicidade pessoal no
interior de um único organismo humano. Disso segue que não há uma
correspondência biunívoca entre o número de pessoas e o número de
organismos humanos, impossibilitando que sejam numericamente
idênticos. Embora o organismo seja condição necessária, ele não pode
ser idêntico à pessoa. Quanto a persistência, não parece que Skinner tem
maiores problemas; prima facie, não há maiores dificuldades com a
afirmação de que repertórios comportamentais perduram ao longo do
tempo, parece ser precisamente este o sentido em que empregamos a
noção de “hábito”.
Mas, embora ele possa endossar uma continuidade psicológica,
falar em repertório comportamental como o que caracteriza uma pessoa,
implica que a autoconsciência não é condição necessária para a
identidade pessoal. Não é necessário que alguém tenha em mente os
hábitos que perduram ao longo do tempo e fazem com que conservem
sua pessoa. A essa visão, no sentido em que é oposta à de Locke,
podemos chamar anti-intelectualista. Skinner, claro, é somente um
exemplo. Um psicanalista poderia afirmar a identidade pessoal via um
inconsciente psicodinâmico, que, aliás, teria a vantagem de ser em algum
sentido atemporal; um cognitivista, poderia falar de um inconsciente
cognitivo... o que importa é que a distinção humano/pessoa de Locke
pode ser sustentada sem apelo à autoconsciência.
Alguém que defenda essa concepção intelectualista do Locke,
poderia admitir a existência de estados mentais que estão fora da linha da
consciência, mas objetar que estes não são o que constitui uma pessoa.
Prima facie, pode parecer tão impróprio dizer que alguém é um conjunto
de hábitos ou estados mentais inconscientes, quanto dizer que alguém é
um conjunto de fatos de sua anatomia. Certamente, um fisicalista
consequente não afirmaria que uma pessoa pode existir sem hábitos e
estados mentais inconscientes em geral, (a não ser que seja uma
eliminativista); mas y ser condição necessária para x, não é condição
suficiente para y ser idêntico a x. Intuitivamente uma pessoa é diferente
de estados mentais inconscientes e hábitos. Parece que hábitos e estados
mentais inconscientes são um bom critério para a identidade e
continuidade de uma mente, mas não é nada claro que uma mente seja o
mesmo que uma pessoa. Na teoria freudiana, por exemplo, o eu não é o
todo da mente, mas somente uma de três estruturas que a constituem.
Infelizmente, não ocorreu à Locke tratar dessa possível diferença entre
identidade mental e pessoal nesses termos (a psicologia da época era
muito diferente, naturalmente).
b) A memória como condição para continuação psicológica,
identidade pessoal e de substância e o problema problema da
descontinuidade da memória em Locke
A condição para a identidade pessoal lockiana implica um recurso
à memória, já que para um autoconsciente, a identidade implica acesso
consciente a si mesmo, e este, para um estágio passado da vida de um
autoconsciente, implica que ele seja capaz de evocar memórias deste
estado. A concepção intelectualista de Locke tem a vantagem de estar em
acordo com nossa noção sobre o que é ser uma pessoa, mas tem a
desvantagem de estar, prima facie, exposta à refutação do Thomas Reid,
da qual a alternativa anti-intelectualista escapa.
Apresentações panorâmicas sobre o tema da persistência da
identidade apresentam a tese lockiana de que a memória é a condição
para a identidade pessoal, e a crítica reidiana, sem dar atenção à
antecipação que o próprio Locke faz do problema da descontinuidade da
memória:
Contudo, o que parece levantar dificuldade é que, sendo a consciência sempre
interrompida pelo esquecimento, não há momento nas nossas vidas em que temos a
sequência inteira de todas as nossas ações passadas perante nossos olhos numa única
visão. Até as melhores memórias perdem de vista uma parte enquanto veem outra; nós,
às vezes, e isso na maior parte de nossas vidas, não refletimos sobre nossos eus
passados [past selves], estando voltados para nossos pensamentos presentes, e, no
sono profundo, não temos pensamento algum ou, ao menos, nenhum com a consciência
que caracteriza nossos pensamentos quando estamos despertos. Em todos esses
casos, digo que, estando nossa consciência interrompida e tendo nós perdido a visão de
nossos eus passados [past selves], dúvidas podem ser levantadas se somos a mesma
coisa pensante, isto é, a mesma substância ou não, o que, por mais razoável ou não
razoável que seja, em nada diz respeito à identidade pessoal. A questão é o que constitui
a mesma pessoa e não se ela é a mesma substância idêntica, que sempre pensa na
mesma pessoa, o que, neste caso, não importa em nada. Diferentes substâncias, pela
mesma consciência (se elas realmente compartilham-na), estão unidas numa única
pessoa, assim como diferentes corpos, pela mesma vida, estão unidos num único animal,
cuja identidade é preservada, na mudança de substâncias, pela unidade de uma única
vida contínua. Sendo a mesma consciência que faz um homem ser ele mesmo para ele
mesmo [be himself to himself], a identidade pessoal depende somente disso, tanto se
ela estiver vinculada somente a uma substância individual ou puder se manter numa
sucessão de várias substâncias. Um ser inteligente é o mesmo eu pessoal [same
personal self] tanto quanto puder repetir a ideia de qualquer ação passada com a mesma
consciência que teve dela originalmente e com a mesma consciência que tem de
qualquer ação presente, pois é pela consciência que tem de seus pensamentos e ações
presentes que ele é um eu para si mesmo agora [it is self to it self now] e, assim, será o
mesmo eu [self] tanto quanto a mesma consciência puder se estender a ações passadas
ou vindouras; e não seria, pela distância no tempo ou mudança de substância, duas
pessoas mais do que um homem não é dois homens por vestir roupas diferentes hoje e
ontem com um sono longo ou curto no intervalo: a mesma consciência une essas ações
distantes na mesma pessoa, quaisquer que tenham sido as substâncias que
contribuíram para produzi-las.
Frequentemente esquecemos, e mesmo quando lembramos,
nossa lembrança é sempre parcial. O que vale para situações, também
vale para estágios temporais de nossas pessoas. Isso tem por
consequência que alguém em t2 pode não se lembrar de um estágio
temporal t1 de sua história de vida. Então como sustentar a identidade
pessoal apesar disso? Aqui é que é importante sua distinção entre
identidade pessoal e identidade quanto a “substância pensante”. A
limitação e descontinuidade da memória constitui um problema para a
afirmação de que somos sempre a mesma “coisa pensante”, “que sempre
pensa na mesma pessoa”, mas não para a identidade pessoal, sugerindo
que uma mesma pessoa pode ser constituída por muitas “substância
pensantes”. As “substâncias pensantes” estão para a pessoa como os
componentes materiais, em perpétua troca, estão para o organismo,
embora a “substâncias pensantes” sejam, diríamos hoje, partes temporais
da pessoa, sem o caráter espacial dos componentes materiais.
Mas a noção de substância pensante, como aparece aqui, é
confusa. Em primeiro lugar, por causa da inconsistência entre a definição
de pessoa como substância pensante no início da seção, e a afirmação
posterior de que a descontinuidade da memória constitui problema para a
afirmação de que permanecemos a mesma substância pensante, mas
não constitui problema para a afirmação de que somos a mesma pessoa.
Pessoa é descrita como uma coisa pensante autoconsciente, literalmente
ele diz que é “a mesma coisa pensante em diferentes tempos e lugares”.
Assim temos o resultado de que a “a pessoa é uma substância pensante
que perdura”, e a, ao mesmo tempo “a descontinuidade da memória pode
fazer com que a substância pensante não perdure, mas isso não constitui
problema para a perduração da pessoa”. Uma resposta possível é que se
tratou de um descuido vocabular, e que devemos considerar que uma
pessoa não é uma substância pensante de modo algum, mas constituída
de substâncias pensantes. Mas não é claro como, no espírito, em certo
sentido ainda cartesiano, no qual Locke está trabalhando, uma pessoa
não é uma substância pensante.
Em segundo lugar, não é claro como uma substância pensante
pode ser uma parte temporal. E aqui a ênfase está na substância. Locke
não é claro na passagem citada sobre o que exatamente é “substância
pensante”, e não dá no capítulo sobre a Identidade e Diversidade
nenhuma definição de substância pensante; para extrairmos o conceito
lockiana dessa expressão, é preciso recorrer ao capítulo XXIII, Nossas
Ideias Complexas de Substância .A noção de substância, para a qual
Locke não explicita um sentido incomum no Ensaio, é o de um suporte
para qualidades, que, enquanto tal, existe por si e não por outros, e
sustenta o que não pode existir por si. Locke mostra-se bastante crítico à
noção de substância na obra, mas quase à contragosto, continua a usa-
la. O espírito, substância que sustenta as qualidades mentais, é descrita
por ele assim:
O mesmo ocorre com respeito às operações da mente, tais como pensamento,
raciocínio, medo etc. Pelo fato de concluirmos que não podem existir por si mesmas,
nem descobrindo como podem pertencer ao corpo ou serem por ele produzidas, somos
levados a pensar que constituem atos de uma outra substância qualquer denominada
espírito; por ser evidente que, não havendo da matéria outra idéia ou noção exceto a de
algo em que as inúmeras qualidades sensíveis que afetam nossos sentidos subsistem,
e por supor uma substância em que pensamento, conhecimento, dúvida, poder de
movimento etc., subsistem, adquirimos uma noção tão clara da substância do espírito
como da do corpo. Uma é suposta (sem saber o que ela é) o substratum das idéias
simples derivadas do exterior, e a outra (com a mesma ignorância acerca do que ela é)
o substratum destas operações que experienciamos dentro de nós mesmos. E claro,
pois, que a idéia de substância corporal na matéria está tão distante de nossas
concepções e apreensões como a da substância espiritual, ou espírito; por conseguinte,
por não termos nenhuma noção da substância do espírito, não podemos concluir pela
sua não existência; do mesmo modo e por razão semelhante não podemos negar a
existência do corpo, já que é tão racional afirmar que não existe corpo, porque não
possuímos idéia clara e distinta da substância da matéria, como afirmar que não existe
espírito, porque não temos idéia clara e distinta da substância do espírito.
Como o suporte de nossas qualidades mentais, a substância
pensante, pode se perder ao longo da vida de uma pessoa, de modo que
ao longo dela muitas substância sucedem-se, compondo a temporalidade
de alguém, como átomos compõem a espacialidade de um corpo? Não à
toa a substância da metafísica tradicional é fixa face às muitas trocas de
propriedades que incidem sob os acidentes. O absurdo que a aplicação
consistente de sua noção de substância pensante face ao seu próprio uso
na citação acima implica, sugere que ele não usou a noção de substância
pensante de modo consistente, de um capítulo para o outro. A usou num
outro sentido, um tanto idiossincrático e obscuro.
Por fim, na última parte da citação ele afirma a necessidade, para
a continuação da pessoa ao longo do tempo, que ele seja capaz de
“repetir a ideia de qualquer ação passada com a mesma consciência que
teve dela originalmente e com a mesma consciência que tem de qualquer
ação presente”. A afirmação é em si muito implausível. Que ao evocar a
ideia de uma refeição feita há poucas horas alguém esteja tão consciente
de suas ações quanto estava no momento em que fazia, e tanto quanto
de uma refeição atual, já parece muito difícil de admitir; quanto mais de
uma pequena vergonha vivida há 30 anos! Mas ainda que enfraqueçamos
a exigência lockiana para a mera capacidade de evocar memórias, o
critério lockiano para a identidade pessoal não resolve bem sequer o
problema que ele mesmo propõe no princípio da citação, pelo menos não
sem fragmentar um único fluxo de experiência em muitas pessoas, que é
justamente o que que uma teoria sobre a perduração da identidade
pessoal deve evitar. Francamente não me lembro do momento em que
aprendi que 7x7=49, segundo o critério lockiano sou tão pouco idêntico
ao menino que aprendeu quanto o seu exemplo do homem platônico que
não se lembra de sua vida passada em outro mundo. O recurso à distinção
entre pessoa e substância pensante não parece fazer muito para tornar
sua teoria bem sucedida
Se Locke incluísse transitividade, sua teoria estaria em melhor
condição. Não me lembro do momento em que aprendi que 7x7=49, mas
há uma parte temporal minha que se lembra, que é lembrada por outra,
que é lembrada por outra... que é lembrada por minha parte temporal
atual, que será esquecida em algum momento, mas será lembrada por
outra, que é lembrada por outra.. que será lembrada pela minha parte
temporal que se esqueceu da minha parte temporal atual. As partes
temporais estariam ligadas umas às outras como elos, que constituem
uma única corrente, sem que cada elo esteja diretamente ligado entre si.
Esta versão estaria sujeita à outras objeções que transcendem o escopo
deste artigo, mas seria um aperfeiçoamento em relação a Locke.
O recurso à memória para a perduração da identidade pessoal foi,
entre outros, um avanço do Locke. Mas sua teoria não foi bem sucedida.

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  • 1. João Victor Ferreira de Almeida 2021011709 A Identidade Pessoal em Locke Parafraseando bem-humoradamente a famosa frase de Whitehead sobre Platão, Schoemaker afirma que “a história do tema da identidade pessoal tem sido uma série de notas de rodapé para Locke” (2008). Embora talvez ele tenha sido um pouco hiperbólico, a importância que Schoemaker atribui ao trabalho de Locke é confirmado por muitos outros, como Ayers: apesar de toda a transformação de nossos motivos, na verdade, de nossa teoria filosófica geral... o debate sobre a identidade pessoal mal avançou desde as inovações dos séculos XVII e XVIII. Essa importância atribuída por muitos filósofos, me motivou a escrever sobre o capítulo 27 do livro II para a segunda edição do Ensaio Sobre o Entendimento Humano, “Da Identidade e da diversidade”. Este artigo será constituído de três seções: um pequeno apanhado dos problemas envolvendo identidade pessoal identificados pela literatura analítica; uma seção sobre o tratamento da identidade e da diversidade para perdurantes em geral no Ensaio; e, por fim, será discutida a identidade pessoal no início do capítulo citado. A parte final do capítulo, em que Locke desenvolve pessoa como conceito forense, é mais um desenvolvimento da consequência prática de sua metafísica sobre a identidade pessoal do que propriamente metafísica; portanto, de pouco interesse para meu propósito, e será ignorada. A segunda e a primeira seções têm a finalidade de contextualizar teoricamente o tratamento lockiano dado ao tema da identidade pessoal. 1. Os problemas envolvendo identidade pessoal De acordo com a entrada da Stanford Encyclopedia de autoria de E. Olson para identidade pessoal, não há um único problema envolvendo esta noção, mas vários. As questões elencadas por ele como “mais conhecidos” são as seguintes: Caracterização: a questão sobre quais propriedades individuam uma pessoa, que tornam ela mesma e não outra. O que faz de mim eu mesmo e não o Papa? Minha história de vida, traços de personalidade, temperamento, sistema de crenças, patrimônio genético, um conjunto deles...? Personalidade: a questão sobre quais propriedades definem ser uma pessoa em oposição à não-pessoa. O que faz com que eu seja uma pessoa e meu cão não (se é que, de fato, ele não é)? Um candidato óbvio seria a capacidade de autoconsciência. A mim parece que essa questão é particularmente interessante para casos limítrofes, principalmente de mamíferos superiores não-humanos (polvos e algumas aves, como corvos, parecem ser uma exceção) e crianças muito novas, em que não é claro se estamos ou não tratando de pessoas. Se há
  • 2. algo no mundo que seja uma pessoa, parece indubitável que devemos considerar um humano adulto em condições psicológicas “normais” (não discutirei o que dever tido como normal aqui por falta de espaço, mas é claro que isso mesmo é um problema) um exemplo, também parece claro que não devemos considerar rochas, cactos e oceanos, pessoas; mas para chimpanzés, golfinhos, elefantes... não parece claro se estamos ou não tratando de pessoas. Para resolver a questão não basta que tenhamos evidências empíricas a respeito das faculdades cognitivas desses animais (ou qualquer outro candidato a ser uma pessoa), é necessário determinar os critérios que tornam algo uma pessoa, que é precisamente a questão metafísica da “personalidade”. População: esse é o problema de saber quantas são as pessoas existentes. A resposta pode parecer uma questão para a demografia, não para a filosofia. Mas isso porque nossa prática linguística ordinária é chamar “pessoa” simplesmente um organismo humano vivo depois do nascimento. Mas se o que é uma pessoa não é tão óbvio quanto sugeri acima, a questão de saber quantas são as pessoas torna-se menos óbvia por extensão. Eu poderia citar os mesmos exemplos que dei para o problema anterior, mas Olson cita o caso de cérebros humanos vivos cujos cérebros foram separados (Nagel, 1970), pessoas com personalidade múltipla, e mesmo a posição de que organismos em situação fisiológica e psicologicamente normais, que tem duas pessoas coexistindo num único cérebro. A mim parece que o “problema” da população pode ser entendido como mera extensão trivial do problema da personalidade. O número de pessoas parece seguir necessariamente do critério que torna algo uma pessoa. Portanto, é pelo menos duvidoso se este é realmente um problema independente que merece ser elencado. Persistência: Muitos de nós temos a intuição de que, embora mudemos ao longo do tempo, conservamos nossas identidades. Intuímos que alguém que comete uma infração deve ser punido, embora o infrator tenha mudado do tempo da infração ao tempo da punição. O que nos faz conservar identidade ao longo do tempo? Embora a questão possa ser vista num contexto metafísico geral da persistência de objetos, de modo que a questão sobre a identidade pessoal deve ser entendida como uma instância da polêmica perdurantismo vs endurantismo vs exdurantismo, parece insuficiente alegar que uma pessoa tem partes temporais que juntas a compõem, como as partes de sua anatomia compõem a sua espacialidade, ou que ela toda persiste ao longo do tempo sem que haja partes temporais. O que exatamente na pessoa tem partes temporais ou persiste inteira? Se é que é possível reduzir a identidade pessoal a algo que persiste. Mais radicalmente, há algo que persiste numa pessoa ou nossa noção de persistência é mera ilusão? Evidência: que tipo de evidência usamos para dizer que alguém continua o mesmo ou é diferente de outro? Olson explica que essa questão deve ser distinguida da questão da persistência. Ele exemplifica isso dizendo que as digitais de alguém podem ser um critério adequado para identificar alguém, mas certamente não são critérios necessários para a caracterização. Alguém que perdeu os dedos certamente não deixa de ser ele mesmo, e distinto de outros.
  • 3. Que tipo de coisa somos? Citando Olson, algumas das principais respostas à essa questão são:  Somos organismos biológicos (“animalismo”: Snowdon 1990, 2014, van Inwagen 1990, Olson 1997, 2003a).  Somos coisas materiais “constituídas por” organismos: uma pessoa pode ser feita da mesma matéria que um determinado animal, mas são coisas diferentes porque o que é preciso para que persistam é diferente (Baker 2000, Johnston 2007, Shoemaker 2011).  Somos partes temporais dos animais: cada um de nós está para um organismo assim como sua infância está para sua vida como um todo (Lewis 1976).  Somos partes espaciais de animais: cérebros talvez (Campbell e McMahan 2010, Parfit 2012), ou partes temporais de cérebros (Hudson 2001, 2007).  Somos substâncias imateriais sem partes – almas – como pensavam Platão, Descartes e Leibniz (ver também Unger 2006: cap. 7), ou coisas compostas de uma alma imaterial e um corpo material (Swinburne 1984: 21).  Somos coleções de estados ou eventos mentais: “feixes de percepções”, como disse Hume (1739 [1978: 252]; ver também Quinton 1962, Campbell 2006).  Não há nada que nós somos: nós realmente não existimos (Russell 1985: 50, Wittgenstein 1922: 5.631, Unger 1979, Sider 2013). Embora seja conveniente que os problemas aqui listados não sejam confundidos, eles parecem ter uma conexão tal que parece impossível não entrelaça-los. O problema que parece que é mais evidentemente lockiano é o da persistência da identidade pessoal, mas as questões sobre caracterização, “que tipo de coisa nós somos?”, e personalidade também aparecem no Ensaio. Aqui não haverá privilégio ao problema da persistência, os problemas serão abordados conforme aparecem no texto, sem preocupação de delimitação rígida. 2. A identidade e diversidade em Locke O capítulo 27 do Ensaio Acerca do Entendimento Humano não é exclusivamente sobre identidade pessoal, mas sobre a identidade e diferença para vários tipos que perduram no tempo. Este contexto geralmente é negligenciado na apresentação da teoria lockiana sobre identidade pessoal, por isso achei conveniente tratar do capítulo desde o princípio. A identidade e diversidade que interessam a Locke são caracterizadas por ele como se segue:
  • 4. Outra ocasião em que a mente frequentemente realiza comparações provém do próprio ser das coisas, quando, considerando algo como existente num determinado tempo e lugar, nós o comparamos a ele mesmo existindo noutro tempo e, a partir disso, formamos as ideias de identidade e diversidade. Quando vemos algo existir num certo lugar num certo instante do tempo, estamos seguros (seja ele o que for) de que é a mesma coisa e não outra que, ao mesmo tempo, existe noutro lugar, por mais parecida e indistinguível que seja em todos os outros pontos. Nisso consiste a identidade, quando as ideias às quais ela é atribuída não variam em nada do que foram naquele momento em que consideramos sua existência anterior e ao qual comparamos a presente, pois, nunca achando nem concebendo como possível que duas coisas da mesma espécie existam no mesmo lugar ao mesmo tempo, corretamente concluímos que o que quer que exista num certo lugar num certo tempo exclui todas da mesma espécie e aí se encontra, ela mesma [it self], sozinha. Portanto, quando perguntamos se alguma coisa é ou não a mesma, isso sempre se refere a algo que existiu num determinado tempo num determinado lugar, acerca do qual era certo que, naquele instante, era o mesmo que ele mesmo [the same with it self] e não outro. Disso se segue que uma coisa não pode ter dois inícios de existência, nem duas coisas um único início, sendo impossível para duas coisas da mesma espécie ser ou existir no mesmo instante no mesmíssimo lugar; ou uma e a mesma coisa, em diferentes lugares. Portanto, aquela que teve um início é a mesma coisa e a que teve um início diferente daquela no tempo e lugar não é a mesma, mas diversa. O que causou a dificuldade acerca dessa relação foi o pouco cuidado e a pouca atenção usados para se ter noções precisas das coisas às quais ela é atribuída. Então temos que: 1) A identidade que interessa a Locke não é a identidade de tipo lógico, intensional, semântica, mas o tipo de identidade que intuímos que seres que perduram no tempo tem. 2) A identidade “provém do próprio ser das coisas”, não trata-se de mera ficção útil; o que podemos entender como uma concepção realista para identidade de seres que perduram. 3) A identidade que interessa a Locke é claramente o tipo que hoje chamaríamos de identidade numérica. Ainda que A seja indistinguível de B em todas as outras propriedades (excluídos posição inicial no espaço-tempo como propriedade), a existência em dois lugares diferentes num mesmo momento é suficiente para que sejam diferentes e não o mesmo, são 2 e não 1. 4) Disso segue que A e B devem ter inícios diferentes, e A tem somente um início e não dois. Há uma correspondência biunívoca entre inícios e entidades. 5) A identidade se conserva ao longo do tempo, disso segue-se que a mudança não é suficiente para fazer com que o mutante não seja o mesmo. O homem de Heráclito que se banha no rio em t1 continua 1, o mesmo, em t2, ainda que tenha ganhado ou perdido propriedades.
  • 5. Tais princípios parecem aplicar-se a duas das três substâncias cartesianas, que, Locke afirma, são as três que podem ser pensadas. Para Deus, que é eterno, imutável e omnipresente, a identidade não é confundível de modo algum. Não parece ser necessário aplicar a ele esse tipo de critério. Para espíritos finitos e corpos, tendo para cada um tempo e lugar de início, os critérios acima aplicam-se, embora haja especificidades que precisam ser desenvolvidas. Há, segundo ele, critérios da identidade diferentes para a matéria inorgânica e para a vida. Mas embora interessantes em si mesmos, esta diferença não é interessante para meu propósito aqui. O critério que ele estabelece para seres orgânicos é o mesmo que estabelece para humanos. Embora humanos sejam tradicionalmente vistos como compostos de matéria e espírito, Locke recusa-se a ver a identidade humana no espírito: Quem localizar a identidade do homem em qualquer outra coisa senão, como a dos outros animais, num corpo adequadamente organizado tomado num certo instante e, a partir desse instante, mantido numa organização vital em várias partículas de matéria sucessivamente cambiantes unidas a ele, encontrará dificuldade em fazer de um embrião e um idoso, um louco e um sensato, o mesmo homem por meio de uma suposição que não torne possível Set, Ismael, Sócrates, Pilatos, S. Agostinho e César Bórgia serem o mesmo homem. Se somente a identidade da alma constitui o mesmo homem e não há nada na natureza da matéria em razão da qual o mesmo espírito individual não possa estar unido a diferentes corpos, será possível que aqueles homens, vivendo em épocas distantes e com diferentes temperamentos, possam ter sido o mesmo homem. Essa maneira de falar deve provir de um uso muito estranho da palavra homem, aplicada a uma ideia a partir da qual corpo e formato estão excluídos. Essa maneira de falar concordaria ainda menos com as noções daqueles filósofos que admitem a transmigração e são da opinião de que as almas dos homens podem, por causa de seus malfeitos, serem postas em corpos de animais, como habitações adequadas, detentoras de órgãos apropriados à satisfação de suas inclinações bestiais. Contudo, ainda assim penso que ninguém, mesmo que estivesse seguro de que a alma de Heliogábalo estivesse num de seus porcos, diria que aquele porco era um homem ou Heliogábalo. À pergunta que alguns contemporâneos interessados em filosofia da modalidade fazem, “Sócrates poderia ser um ovo frito?”, Locke parece que responderia negativamente, mesmo que, em virtude de malfeito perpetrado por Sócrates, sua alma transmigrasse para um ovo frito. Para a identidade de humanos, não há dúvidas, Locke está em pleno acordo com animalistas, aqueles que falam em continuidade física ao invés de psicológica. Deste modo, não pode ser de modo algum negligenciada a distinção lockiana entre pessoa e humano. Locke justifica esta distinção por aquilo que chama de “identidade adequada à ideia”. Para julgarmos corretamente a questão da identidade, devemos analisar que ideia a palavra que a ela se aplica representa. Uma coisa é ser a mesma substância, outra o mesmo homem e uma terceira a mesma pessoa, se pessoa, homem e substância são três nomes representando três diferentes ideias; pois, tal como é a ideia pertencente ao nome, assim deve ser a identidade. A diferença que Locke estabelece entre humano e pessoa apela à intuição de que um organismo é de algum modo diferente de uma pessoa, e não é
  • 6. necessariamente inconsistente em relação a negação do dualismo de substância, ainda que ele mesmo estivesse envolvido num contexto cartesiano. Mas ela pode gerar confusão, se interpretada à luz das noções fregianas de sentido e referência, que são muito pertinentes à esse tipo de discussão sobre identidade não tautológica que está em jogo aqui. A ideia nesse sentido lockiano parece, prima facie, conformar-se melhor à noção fregiana de sentido, considerando que elas podem referir-se a um mesmo referente; ao apontar para Locke, posso estar falando do organismo Locke ou da pessoa Locke, sendo que isso facilmente pode ser interpretado como modos de apresentação de uma única referência, Locke. Ademais, ela parece exercer o mesmo tipo de função que o “conceito” na teoria fregiana dos números. Para Frege, um número não pode ser uma propriedade de um objeto físico indiferenciado. Se aponto para a Lua, e pergunto, “qual o número daquilo?”, minha pergunta não tem sentido, porque não está determinado a quê exatamente este número se aplica; ao número de átomos, de moléculas, crateras, círculos celestes brilhantes visíveis...? Mas se pergunto sobre o número de satélites naturais da Terra, agora sim, temos uma pergunta com sentido, que pode ser corretamente respondida, 1. Por função pragmática da linguagem, geralmente entendemos a que se adequa o número a que a pergunta se refere, mas isso porque temos um conceito em mente implicitamente. Locke parece estar fazendo algo similar quanto a identidade de perdurantes: sua identidade demanda uma diferenciação conceitual. No espírito de Frege, se perguntamos se um referente r, que seja pessoa e humana, em t1 continua a mesma em t2, esta pergunta é ambígua até que determinemos o conceito a que a identidade deve aplicar-se, ao de humano ou de pessoa. Então, a concepção lockiana de ideia neste contexto parece mais adequada ao de sentido fregiana, prima facie. Mas os critérios de identidade que Locke expõe no início do capítulo são estritamente extensionais, não é o tipo que é definido por satisfazer um certo conjunto de propriedades, como a identidade dos indiscerníveis leibiziana e o critério fregiano para números. Ainda que indiscerníveis em todas as suas propriedades, os “indiscerníveis” não são o mesmo se tem inícios distintos e ocupam distintas posições no espaço ao mesmo tempo. Talvez, se conhecesse a filosofia fregiana e pressionado, Locke diria que pessoa e humano são referências distintas, dado que, embora sejam, prima facie, indicerníveis quanto ao espaço que ocupam num momento em que a pessoa existe, e sua referência seja fixada por um único termo (o nome próprio Locke, por exemplo); são discerníveis quanto ao início, já que o humano tem início na concepção, enquanto a pessoa tem início muito tempo depois, quando o organismo começa a gerar a consciência que caracteriza a pessoa. O que sua “identidade adequada à ideia” estaria fazendo, na verdade, é discernir referências a tipos distintos (no espírito de Kripke, talvez), que podem ser confundidas por ocuparem o mesmo espaço, embora sejam distintas por seu incínio. É uma lástima que o próprio Locke não possa esclarecer isso, mas parece que o seu raciocínio funciona melhor se considerarmos suas ideias fixando referências distintas, não sentidos diferentes para um mesmo referente.
  • 7. De qualquer modo, a distinção lockiana entre humano e pessoa continua interessante até hoje para o problema da identidade pessoal. Como citado no tópico “O que somos nós?”, animalistas, para quem pessoas são organismos animais, devem esforçar-se para mostrar a invalidade da distinção lockiana; para eles as pessoas devem ser simplesmente o que Locke entende por “humanos”. Ou, no máximo, que a diferença é do tipo estrela da manhã e estrela da tarde. Aqueles que estão interessados em critérios de continuidade psicológica de modo exclusivo para a persistência por exemplo, devem defender a distinção lockiana na versão que distingue referências. 3. O problema da identidade pessoal em Locke a) Definição psicológica de identidade pessoal, intelectualismo e anti-intelectualismo Locke entende por pessoa, principalmente, um ser autoconsciente: Pessoa, penso eu, é um ser pensante inteligente que tem razão e reflexão e pode considerar a si mesmo como si mesmo, a mesma coisa pensante em diferentes tempos e lugares, o que é feito somente pela consciência, que é inseparável do pensamento e, como me parece, lhe é essencial: é impossível para qualquer um perceber sem perceber que percebe. Quando vemos, ouvimos, cheiramos, degustamos, tocamos, meditamos ou desejamos alguma coisa, sabemos que fazemos isso. É sempre assim nas nossas sensações e percepções presentes e, por isso, cada um é para si mesmo [to himself] o que chama de eu [self]. Não se considera, neste caso, se o mesmo eu [self] subsiste na mesma ou em diversas substâncias. Dado que a consciência sempre acompanha o pensamento e que é ela que faz cada um ser o que chama de eu [self] e, desse modo, distinguir a si mesmo [himself] de todas as outras coisas pensantes, apenas nisso consiste a identidade pessoal, isto é, na mesmidade do ser racional. A identidade de uma pessoa tem um alcance tão grande quanto a consciência puder ser estendida retrospectivamente a uma ação ou pensamento do passado: trata-se agora do mesmo eu [self] que era antes e é pelo mesmo eu [self] do presente, que agora reflete sobre ela, que a ação foi feita. Sua visão é psicológica como discutimos acima, e o que há em nossa psicologia que está envolvida em nossa identidade pessoal, é, sobretudo, de ordem intelectual; por isso convém chamar sua posição de intelectualista. Esta é uma concepção muito intuitiva do que é ser uma pessoa, mas não é universalmente aceita. Em Behaviorismo, obra que tinha, parafraseando o autor, a finalidade de expor a filosofia do behaviorismo, B.F Skinner, caracteriza pessoa sem apelo à autoconsciência: Numa análise comportamental, uma pessoa é um organismo, um membro da espécie humana que adquiriu um repertório comportamental. Ela continua sendo um organismo para o anatomista e para o fisiologista, mas é uma pessoa para aqueles que dão importância ao comportamento. Contingências complexas de reforço criam repertórios complexos, e, como vimos, diferentes contingências criam diferentes pessoas dentro de uma mesma pele, das quais as as chamadas personalidades múltiplas são apenas a manifestação extrema. (...) Uma pessoa não é um agente que se orgine; é um lugar, um ponto em que múltiplas condições genéticas e ambientais se reúnem num efeito conjunto. Como tal, ela permanece indiscutivelmente única. Ninguém mais (a mesma
  • 8. que se tenha gêmeo idêntico) possui sua dotação genética e, sem excessão, ninguém mais tem sua história pessoal. Embora comece o trecho afirmando que uma pessoa é um organismo, o que seria um animalismo, o espírito do texto parece concordar com a distinção lockiana entre pessoa e humano. Primeiro, porque há uma distinção entre o organismo, considerado fisiológica e anatomicamente, e o repertório comportamental adquirido por ele. Segundo, porque ele admite a possibilidade de múltiplas pessoas vivendo num mesmo organismo, e que o transtorno de múltipla personalidade é somente um caso extremo disso, sugerindo que a personalidade humana normal tem certa fragmentação, permitindo uma multiplicidade pessoal no interior de um único organismo humano. Disso segue que não há uma correspondência biunívoca entre o número de pessoas e o número de organismos humanos, impossibilitando que sejam numericamente idênticos. Embora o organismo seja condição necessária, ele não pode ser idêntico à pessoa. Quanto a persistência, não parece que Skinner tem maiores problemas; prima facie, não há maiores dificuldades com a afirmação de que repertórios comportamentais perduram ao longo do tempo, parece ser precisamente este o sentido em que empregamos a noção de “hábito”. Mas, embora ele possa endossar uma continuidade psicológica, falar em repertório comportamental como o que caracteriza uma pessoa, implica que a autoconsciência não é condição necessária para a identidade pessoal. Não é necessário que alguém tenha em mente os hábitos que perduram ao longo do tempo e fazem com que conservem sua pessoa. A essa visão, no sentido em que é oposta à de Locke, podemos chamar anti-intelectualista. Skinner, claro, é somente um exemplo. Um psicanalista poderia afirmar a identidade pessoal via um inconsciente psicodinâmico, que, aliás, teria a vantagem de ser em algum sentido atemporal; um cognitivista, poderia falar de um inconsciente cognitivo... o que importa é que a distinção humano/pessoa de Locke pode ser sustentada sem apelo à autoconsciência. Alguém que defenda essa concepção intelectualista do Locke, poderia admitir a existência de estados mentais que estão fora da linha da consciência, mas objetar que estes não são o que constitui uma pessoa. Prima facie, pode parecer tão impróprio dizer que alguém é um conjunto de hábitos ou estados mentais inconscientes, quanto dizer que alguém é um conjunto de fatos de sua anatomia. Certamente, um fisicalista consequente não afirmaria que uma pessoa pode existir sem hábitos e estados mentais inconscientes em geral, (a não ser que seja uma eliminativista); mas y ser condição necessária para x, não é condição suficiente para y ser idêntico a x. Intuitivamente uma pessoa é diferente de estados mentais inconscientes e hábitos. Parece que hábitos e estados mentais inconscientes são um bom critério para a identidade e continuidade de uma mente, mas não é nada claro que uma mente seja o
  • 9. mesmo que uma pessoa. Na teoria freudiana, por exemplo, o eu não é o todo da mente, mas somente uma de três estruturas que a constituem. Infelizmente, não ocorreu à Locke tratar dessa possível diferença entre identidade mental e pessoal nesses termos (a psicologia da época era muito diferente, naturalmente). b) A memória como condição para continuação psicológica, identidade pessoal e de substância e o problema problema da descontinuidade da memória em Locke A condição para a identidade pessoal lockiana implica um recurso à memória, já que para um autoconsciente, a identidade implica acesso consciente a si mesmo, e este, para um estágio passado da vida de um autoconsciente, implica que ele seja capaz de evocar memórias deste estado. A concepção intelectualista de Locke tem a vantagem de estar em acordo com nossa noção sobre o que é ser uma pessoa, mas tem a desvantagem de estar, prima facie, exposta à refutação do Thomas Reid, da qual a alternativa anti-intelectualista escapa. Apresentações panorâmicas sobre o tema da persistência da identidade apresentam a tese lockiana de que a memória é a condição para a identidade pessoal, e a crítica reidiana, sem dar atenção à antecipação que o próprio Locke faz do problema da descontinuidade da memória: Contudo, o que parece levantar dificuldade é que, sendo a consciência sempre interrompida pelo esquecimento, não há momento nas nossas vidas em que temos a sequência inteira de todas as nossas ações passadas perante nossos olhos numa única visão. Até as melhores memórias perdem de vista uma parte enquanto veem outra; nós, às vezes, e isso na maior parte de nossas vidas, não refletimos sobre nossos eus passados [past selves], estando voltados para nossos pensamentos presentes, e, no sono profundo, não temos pensamento algum ou, ao menos, nenhum com a consciência que caracteriza nossos pensamentos quando estamos despertos. Em todos esses casos, digo que, estando nossa consciência interrompida e tendo nós perdido a visão de nossos eus passados [past selves], dúvidas podem ser levantadas se somos a mesma coisa pensante, isto é, a mesma substância ou não, o que, por mais razoável ou não razoável que seja, em nada diz respeito à identidade pessoal. A questão é o que constitui a mesma pessoa e não se ela é a mesma substância idêntica, que sempre pensa na mesma pessoa, o que, neste caso, não importa em nada. Diferentes substâncias, pela mesma consciência (se elas realmente compartilham-na), estão unidas numa única pessoa, assim como diferentes corpos, pela mesma vida, estão unidos num único animal, cuja identidade é preservada, na mudança de substâncias, pela unidade de uma única vida contínua. Sendo a mesma consciência que faz um homem ser ele mesmo para ele mesmo [be himself to himself], a identidade pessoal depende somente disso, tanto se ela estiver vinculada somente a uma substância individual ou puder se manter numa sucessão de várias substâncias. Um ser inteligente é o mesmo eu pessoal [same personal self] tanto quanto puder repetir a ideia de qualquer ação passada com a mesma consciência que teve dela originalmente e com a mesma consciência que tem de qualquer ação presente, pois é pela consciência que tem de seus pensamentos e ações presentes que ele é um eu para si mesmo agora [it is self to it self now] e, assim, será o mesmo eu [self] tanto quanto a mesma consciência puder se estender a ações passadas ou vindouras; e não seria, pela distância no tempo ou mudança de substância, duas pessoas mais do que um homem não é dois homens por vestir roupas diferentes hoje e
  • 10. ontem com um sono longo ou curto no intervalo: a mesma consciência une essas ações distantes na mesma pessoa, quaisquer que tenham sido as substâncias que contribuíram para produzi-las. Frequentemente esquecemos, e mesmo quando lembramos, nossa lembrança é sempre parcial. O que vale para situações, também vale para estágios temporais de nossas pessoas. Isso tem por consequência que alguém em t2 pode não se lembrar de um estágio temporal t1 de sua história de vida. Então como sustentar a identidade pessoal apesar disso? Aqui é que é importante sua distinção entre identidade pessoal e identidade quanto a “substância pensante”. A limitação e descontinuidade da memória constitui um problema para a afirmação de que somos sempre a mesma “coisa pensante”, “que sempre pensa na mesma pessoa”, mas não para a identidade pessoal, sugerindo que uma mesma pessoa pode ser constituída por muitas “substância pensantes”. As “substâncias pensantes” estão para a pessoa como os componentes materiais, em perpétua troca, estão para o organismo, embora a “substâncias pensantes” sejam, diríamos hoje, partes temporais da pessoa, sem o caráter espacial dos componentes materiais. Mas a noção de substância pensante, como aparece aqui, é confusa. Em primeiro lugar, por causa da inconsistência entre a definição de pessoa como substância pensante no início da seção, e a afirmação posterior de que a descontinuidade da memória constitui problema para a afirmação de que permanecemos a mesma substância pensante, mas não constitui problema para a afirmação de que somos a mesma pessoa. Pessoa é descrita como uma coisa pensante autoconsciente, literalmente ele diz que é “a mesma coisa pensante em diferentes tempos e lugares”. Assim temos o resultado de que a “a pessoa é uma substância pensante que perdura”, e a, ao mesmo tempo “a descontinuidade da memória pode fazer com que a substância pensante não perdure, mas isso não constitui problema para a perduração da pessoa”. Uma resposta possível é que se tratou de um descuido vocabular, e que devemos considerar que uma pessoa não é uma substância pensante de modo algum, mas constituída de substâncias pensantes. Mas não é claro como, no espírito, em certo sentido ainda cartesiano, no qual Locke está trabalhando, uma pessoa não é uma substância pensante. Em segundo lugar, não é claro como uma substância pensante pode ser uma parte temporal. E aqui a ênfase está na substância. Locke não é claro na passagem citada sobre o que exatamente é “substância pensante”, e não dá no capítulo sobre a Identidade e Diversidade nenhuma definição de substância pensante; para extrairmos o conceito lockiana dessa expressão, é preciso recorrer ao capítulo XXIII, Nossas Ideias Complexas de Substância .A noção de substância, para a qual Locke não explicita um sentido incomum no Ensaio, é o de um suporte para qualidades, que, enquanto tal, existe por si e não por outros, e sustenta o que não pode existir por si. Locke mostra-se bastante crítico à
  • 11. noção de substância na obra, mas quase à contragosto, continua a usa- la. O espírito, substância que sustenta as qualidades mentais, é descrita por ele assim: O mesmo ocorre com respeito às operações da mente, tais como pensamento, raciocínio, medo etc. Pelo fato de concluirmos que não podem existir por si mesmas, nem descobrindo como podem pertencer ao corpo ou serem por ele produzidas, somos levados a pensar que constituem atos de uma outra substância qualquer denominada espírito; por ser evidente que, não havendo da matéria outra idéia ou noção exceto a de algo em que as inúmeras qualidades sensíveis que afetam nossos sentidos subsistem, e por supor uma substância em que pensamento, conhecimento, dúvida, poder de movimento etc., subsistem, adquirimos uma noção tão clara da substância do espírito como da do corpo. Uma é suposta (sem saber o que ela é) o substratum das idéias simples derivadas do exterior, e a outra (com a mesma ignorância acerca do que ela é) o substratum destas operações que experienciamos dentro de nós mesmos. E claro, pois, que a idéia de substância corporal na matéria está tão distante de nossas concepções e apreensões como a da substância espiritual, ou espírito; por conseguinte, por não termos nenhuma noção da substância do espírito, não podemos concluir pela sua não existência; do mesmo modo e por razão semelhante não podemos negar a existência do corpo, já que é tão racional afirmar que não existe corpo, porque não possuímos idéia clara e distinta da substância da matéria, como afirmar que não existe espírito, porque não temos idéia clara e distinta da substância do espírito. Como o suporte de nossas qualidades mentais, a substância pensante, pode se perder ao longo da vida de uma pessoa, de modo que ao longo dela muitas substância sucedem-se, compondo a temporalidade de alguém, como átomos compõem a espacialidade de um corpo? Não à toa a substância da metafísica tradicional é fixa face às muitas trocas de propriedades que incidem sob os acidentes. O absurdo que a aplicação consistente de sua noção de substância pensante face ao seu próprio uso na citação acima implica, sugere que ele não usou a noção de substância pensante de modo consistente, de um capítulo para o outro. A usou num outro sentido, um tanto idiossincrático e obscuro. Por fim, na última parte da citação ele afirma a necessidade, para a continuação da pessoa ao longo do tempo, que ele seja capaz de “repetir a ideia de qualquer ação passada com a mesma consciência que teve dela originalmente e com a mesma consciência que tem de qualquer ação presente”. A afirmação é em si muito implausível. Que ao evocar a ideia de uma refeição feita há poucas horas alguém esteja tão consciente de suas ações quanto estava no momento em que fazia, e tanto quanto de uma refeição atual, já parece muito difícil de admitir; quanto mais de uma pequena vergonha vivida há 30 anos! Mas ainda que enfraqueçamos a exigência lockiana para a mera capacidade de evocar memórias, o critério lockiano para a identidade pessoal não resolve bem sequer o problema que ele mesmo propõe no princípio da citação, pelo menos não sem fragmentar um único fluxo de experiência em muitas pessoas, que é justamente o que que uma teoria sobre a perduração da identidade pessoal deve evitar. Francamente não me lembro do momento em que aprendi que 7x7=49, segundo o critério lockiano sou tão pouco idêntico ao menino que aprendeu quanto o seu exemplo do homem platônico que
  • 12. não se lembra de sua vida passada em outro mundo. O recurso à distinção entre pessoa e substância pensante não parece fazer muito para tornar sua teoria bem sucedida Se Locke incluísse transitividade, sua teoria estaria em melhor condição. Não me lembro do momento em que aprendi que 7x7=49, mas há uma parte temporal minha que se lembra, que é lembrada por outra, que é lembrada por outra... que é lembrada por minha parte temporal atual, que será esquecida em algum momento, mas será lembrada por outra, que é lembrada por outra.. que será lembrada pela minha parte temporal que se esqueceu da minha parte temporal atual. As partes temporais estariam ligadas umas às outras como elos, que constituem uma única corrente, sem que cada elo esteja diretamente ligado entre si. Esta versão estaria sujeita à outras objeções que transcendem o escopo deste artigo, mas seria um aperfeiçoamento em relação a Locke. O recurso à memória para a perduração da identidade pessoal foi, entre outros, um avanço do Locke. Mas sua teoria não foi bem sucedida.