A entrevista discute o conceito de cidades criativas e características comuns a essas cidades. As cidades criativas têm inovações, conexões entre diferentes setores e cultura que agrega valor econômico. No Brasil, falta reconhecer o impacto econômico da criatividade e focar nas singularidades locais em vez de copiar modelos estrangeiros.
Inovação e cultura para eternizar cidades be22 ago
1. 18 Brasil Econômico Segunda-feira, 22 de agosto, 2011
ECONOMIA CRIATIVA TERÇA-FEIRA
EMPREENDEDORISMO
QUARTA-FEIRA
EDUCAÇÃO/GESTÃO
Editor: Maria Luíza Filgueiras mfilgueiras@brasileconomico.com.br
ENTREVISTA ANA CARLA FONSECA REIS Consultora especializada em Economia Criativa
Inovação e Ana Carla: trunfo de cidades
é reconhecer suas singularidades,
e não copiar experiências alheias
cultura para
eternizar cidades
Conceito de municípios criativos ganha espaço para revitalizar
laço entre governo e sociedade e redefinir estratégias de negócios
“
Rafael Palmeiras sariamente uma na qual a econo-
rpalmeiras@brasileconomico.com.br mia criativa é mais pujante, mas
que sua criatividade pode impul-
A canadense Montreal é consi- Não conheço sionar outras estratégias preva-
derada a cidade do design, en- um exemplo de lentes, a exemplo do turismo.
quanto a colombiana Popayan economia criativa Do mesmo modo, a economia
foi a primeira a ser definida pela criativa pode desabrochar em
Organização das Nações Unidas no mundo que locais que não são caracteriza-
para Educação, Ciência e Cultu- funcione sem dos por cultura ou conexões.
ra (Unesco) como cidade gastro- uma governança
nômica. Na basca Bilbao, a déca- O que são essas conexões?
da de 1990 foi o momento de im- compartilhada Quais as características das
plementar uma estratégia de re- entre setor público, cidades criativas?
posicionamento que a livrasse privado e Em 2009 desenvolvi um estudo
da recessão industrial que se ar- congregando 18 autores de 13
rastava há mais de duas décadas sociedade civil países (que resultou no livro
— parte disso foi a construção Creative City Perspectives) , tão
do Museu Guggenheim, passo diversos como Taiwan, Norue-
inicial que, só no ano de inaugu- ga, África do Sul e Estados Uni-
ração, recebeu quase 1,5 milhão Incentivo fiscal dos, buscando características
de visitantes. Em Abu Dhabi, o é um instrumento comuns às cidades que se pre-
governo investe em um distrito de intervenção de tendem criativas. O que pude
cultural para tornar perene sua concluir é que, independente-
economia quando o petróleo já mercado, que tem mente de sua escala, de seu con-
não for capaz de garantir essa es- sido muito utilizado texto ou de sua situação socioe-
tabilidade. Os exemplos são para promover conômica, uma cidade criativa
abordados em livros e artigos tem ao menos três característi-
da economista Ana Carla Fonse- projetos culturais, cas: inovações (tecnológicas, so-
ca Reis, que trocou a carreira mas não tem ciais, culturais, soluções); cone-
executiva na Unilever para se relação direta com a xões (entre áreas da cidade, pú-
dedicar ao universo da econo- blico e privado, local e global) e
mia criativa e hoje consultora in- economia criativa cultura (representatividade eco-
dependente da ONU e fundado- nômica, impacto na agregação
ra da Garimpo de Soluções. En- de valor a outros setores e for-
tre os temas de sua especialida- matação de um ambiente mais
de estão as cidades criativas favorável à criatividade).
que, sem fórmula única, encon-
tram maneiras de tornarem sin- O que impede o avanço de
gulares. “Cidades criativas são cidades criativas no Brasil?
aquelas capazes de encontrar Creio que, em primeiro lugar, o
dentro de si a solução para seus reconhecimento de que criativi-
problemas”, define. dade tem impacto econômico,
No Brasil, ela destaca a atrativi- em segundo, a tendência que
dade do festival literário em Para- muitas cidades apresentam de
ty, no Rio de Janeiro, e de jazz em olhar primeiro para fora — ob-
Guaramiranga, no Ceará. Mas o servando o que dá certo em ou-
trabalho atual desenvolvido por tras cidades, para tentar copiar
Ana Carla é justamente mapear uma receita —, em vez de olhar
as cidades brasileiras como poten- para dentro de si mesmas, em
cial criativo, para que empresas e busca de suas singularidades. quem exige cumprimento, trans- criativa. Economia é feita com
governos possam traduzir esta lis- parência e continuidade. base em empreendedorismo e
ta em estratégia de negócios, Só dá para atrair interesse com incentivos a isso.
uma vez que a economia criativa para esse mercado se Mas no Brasil essa dependência
provoca reação em cadeia. Exem- houver incentivo público? não é excessiva? O que é um produto criativo
plifica com a moda brasileira que, Não conheço um exemplo de A economia criativa, no Brasil, típico do Brasil? Artesanato e
ao se disseminar pelo mundo, exi- economia criativa no mundo tem florescido em muitos casos futebol, por exemplo?
ge do setor têxtil uma diferencia- que funcione sem uma gover- apesar da ausência de uma estra- Artesanato é um dos setores
ção. “Afeta até mesmo o produ- nança compartilhada entre go- tégia de governo, salvo raras ex- criativos. Não há um consenso,
tor de algodão, que pode buscar verno, setor privado e socieda- ceções. Incentivo fiscal é um mas esportes costumam ficar
formas inovadoras de plantio e de civil. Governo porque é instrumento de intervenção de alheios à definição de indústrias
melhoramento do produto.” quem traça uma estratégia de mercado, que tem sido muito criativas, pois não são setores
longo prazo, setor privado por- utilizado para promover proje- econômicos com especial agre-
O que é uma cidade criativa? que economia não se faz por de- tos culturais, mas isso não tem gação de valor. O Brasil tam-
Uma cidade criativa não é neces- creto, e sociedade civil porque é relação direta com a economia bém é muito caracterizado pela
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QUINTA-FEIRA SEXTA-FEIRA
SUSTENTABILIDADE TECNOLOGIA
MARIA LUÍZA
FILGUEIRAS
Henrique Manreza Editora de Finanças e
“
Inovação em Gestão
Entre experiências
de cidades de países
tão diversos quanto
Taiwan, Noruega,
África do Sul e
Estados Unidos,
o que pude
Experiências singulares
concluir é que, Quando cheguei a Paris, pronta para me decepcionar
independentemente tamanha a expectativa, obviamente me apaixonei pela
cidade. Não bastasse o que todo mundo adora — a aura
de sua escala, da cidade, os bistrôs do Marais, o jardim de Luxembur-
de seu contexto ou go e uma lista que pode se tornar muito longa — fui to-
de sua situação mada de arrombo por uma sensação inédita ao entrar
no Museu L’Orangerie. Ele fica ali discreto, em uma das
socioeconômica, alças da longa e estreita praça que se faz de tapete para
uma cidade criativa o Louvre. Eis que, na primeira sala oval, estão as quatro
tem ao menos três paredes cobertas pelas Ninfeias de Monet. Somando-se
às telas, de 2 a 16 metros, a música ambiente compõe
características: um clima que, por piegas que pareça, me fez chorar. A
inovações, conexões guia justificou que a disposição dos quadros foi defini-
e cultura da pelo próprio artista, quando os doou ao governo
francês, conforme o impacto que queria causar.
Tinha vindo a São Paulo, em 1997, ver a exposição
das telas de Monet. Apesar de emocionante, não che-
gou aos pés da sensação que tive no L’Orangerie, pelo ar-
ranjo das peças, pela música de fundo ou quem sabe pe-
lo ar parisiense. Não foi única. Repetiu-se quatro anos
depois, na despretensiosa cidade espanhola de Córdo-
ba. A construção original era uma mesquita e, com a
conversão espanhola ao cristianismo, foi engolida por
uma catedral. Os esti-
los são distintos, as co-
Cidades res, os materiais, a pe-
draria e as colunas da
conquistam com mesquita árabe com o
o que não se pode dourado e madeira escu-
replicar, seja a ra da igreja — e, por in-
emoção provocada crível que pareça, com-
pletam-se e convivem
por Monet em harmoniosamente, ape-
Paris ou a sar do peso da história,
criando uma simbiose
mistura religiosa de religiões como deve-
de Córdoba ria ser. A visita noturna
ao templo é organizada
pela arquidiocese da re-
gião de Andaluzia e, no jogo de luzes e sons, resulta em
nó na garganta e lágrima nos olhos. Patrimônio Mun-
dial da Unesco, é universalismo cultural puro.
O que essas duas experiências, apesar de muito pes-
soais, mostram é como uma cidade pode ser arrebatado-
ra — e tirar proveito financeiro e social disso. A defini-
ção de cidade criativa passa pelos complexos urbanos
que usufruem de atividades culturais diversas como
componente integral de seu funcionamento econômi-
co, segundo a Unctad, ou que tem um número relevan-
te de pessoas empregadas ou gerando receita nessa in-
dústria. Ou seja, atraem público e investimentos por
conta disso. Na prática, o que os exemplos mal e bem
sucedidos têm mostrado é que não basta ter um acervo,
mas criar uma atmosfera, proporcionar experiências.
Mais de 60 cidades no mundo inteiro já se definem
como criativas ou elaboraram estratégias específicas
para ganhar essa pecha. A ideia surgiu na década de
80, com esforços municipais para se destacar e manter
música, pela moda, pelo de- Os direitos de propriedade inte- culturas próprias bem como agregar novas, em um
sign, mas há enormes discre- lectual, que, para além de direi- contexto de padronização global. E está ligada ainda a
pâncias geográficas e, infeliz- tos autorais, incorporam indica- quão incentivadas as pessoas e governos são, em seu
mente, carecemos de uma base ções geográficas, marcas regis- ambiente, a criar, pensar, imaginar, experimentar.
de dados que nos permita apro- tradas, patentes, desenhos in- A especialista Ana Carla Fonseca Reis ressalta que
fundar essa discussão. dustriais, são para muitos a não se trata de seguir fórmulas, mas aproveitar singu-
moeda da economia criativa e laridades e potenciais, contrapondo às fraquezas. Se
Quando se fala em têm por objetivo remunerar o Paris dependesse da simpatia dos parisienses, prova-
profissionalização da cultura, criador, o que é fundamental. Is- velmente seus indicadores de turismo perderiam vita-
falamos de avanço de direitos so não significa que a única for- lidade. Não é missão simples. Em seu relatório sobre o
autorais, ao mesmo tempo ma de funcionamento dos direi- tema, a Unctad destaca justamente que “ser criativo
em que, na era da internet, tos de propriedade intelectual enquanto indivíduo ou organização é relativamente
a cultura está ligada à seja a que hoje vigora. Esse é o fácil, mas ser criativo enquanto cidade é uma proposi-
propriedade coletiva. Como ponto que me parece que temos ção diferente, dado o amálgama de culturas e interes-
essas pontas se relacionam? que reformular. ■ ses que envolve.” ■