1) A revista NORTE passa a ser distribuída gratuitamente para ampliar seu alcance e fomentar o debate cultural.
2) A edição apresenta uma exposição com obras abstratas de artistas brasileiros e venezuelanos na Fundação Iberê Camargo.
3) Um livro retrata a rivalidade entre corredores em busca de bater recordes em maratonas, tendo Amílcar Lopes Jr., conhecido como "O Portuga", como o homem a ser derrotado.
1. 14
JUNHO /JULHO
2010
DISTRIBUIÇÃO
GRATUITA
FESTFOTOPOA
A expansão do
alcance da fotografia
DANÇA
Coreografias
de Eva Schul em
retrospectiva
CASO KLIEMANN
Livro amplia
entendimento
sobre o crime
FILOSOFIA
Entrevista com
José Arthur
Giannotti
FICÇÃO
Conto inédito
de Antônio
Xerxenesky
2.
3. editorial sumário
Mais leitores curtas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4
soBrescritos
Uma mudança significativa ocorre com NORTE a partir desta Cada geração com seu estilo
edição. Adotando uma prática comum na Europa e nos Es- Sérgio Rodrigues . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6
tados Unidos e que, aos poucos, ganha adesões no Brasil, a
dança
Arquipélago Editorial resolveu eliminar o valor de capa da re-
Para dar carne à memória
vista. Isso significa que o leitor passa a contar gratuitamente
Mônica Dantas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8
com uma publicação que se destina a pensar e divulgar cultu-
ra de forma consistente, mirando além do óbvio. A novidade FotoGraFia
também representa um investimento da revista em seu leitor e A construção de um museu imaginário
na necessidade de se fomentar o debate cultural. Carolina Marquis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12
Viva Thomaz Farkas!
Os atuais assinantes não terão prejuízo com a medida. Eles Fernando Schmitt . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14
poderão optar por continuar recebendo a revista no endereço
A poética da relação com o outro
indicado. Para os leitores em geral, vamos divulgar no site da
Fernando Schmitt . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16
revista a relação dos locais onde a NORTE estará disponível.
livros • em primeira mão
A nova configuração reconhece que o debate e a divulgação Os aforismos de Karl Kraus . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18
em torno dos processos culturais precisam ser ampliados e
Ficção
qualificados. Para tanto, nossa aposta é que NORTE circule O escritor no castelo alto
mais e tenha mais leitores. Sim, o pleito é pretensioso, talvez Antônio Xerxenesky . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20
ousado, mas a ele nos lançamos.
livros • resenhas
Vitor Necchi Quem escreverá nossa história, Samuel D. Kassow
vitor@arquipelagoeditorial.com.br Felipe Pimentel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22
hq
Contos de Urbânia
Carlos André Moreira e Gilmar Fraga . . . . . . . . . 25
livros • resenhas
Binladenistão, Luiz Antônio Araujo
Gabriel Pozzobom . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
é uma publicação da Salas e abismos, Waltercio Caldas
ARQUIPÉLAGO EDITORIAL Eduardo Veras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28
Avenida Getúlio Vargas, 901/506
90150-003 — Porto Alegre — RS
Alguma poesia, Carlos Drummond de Andrade
Telefone: (51) 3012-6975 Vitor Necchi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30
www.arquipelagoeditorial.com.br
www.revistanorte.com.br jornalismo
Um crime que diagnostica a sociedade
Conselho editorial
Cristiano Ferrazzo, Fernanda Nunes Barbosa e Tito Montenegro Antonio Hohlfeldt . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32
Editor cartum
Vitor Necchi O juízo final
Colaboraram nesta edição: Antonio Hohlfeldt, Antônio Xerxenesky, Carlos Moa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
André Moreira, Carolina Marquis, Eduardo Veras, Eduardo Wolf, Felipe Pimentel,
Fernando Schmitt, Gabriel Pozzobom, Gilmar Fraga, Moa, Mônica Dantas, páGinas FilosóFicas • entrevista
Rodrigo Breunig, Sérgio Rodrigues e Tomás Adam. José Arthur Giannotti
Impressão: Edelbra Eduardo Wolf . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36
Imagem da capa: Fernando Schmitt escritório GráFico
ISSN: 1982-212X Mallarmé por Gilmar Fraga . . . . . . . . . . . . . . . . . 42
3
4. curtas
O movimento de vanguarda foi am-
plamente explorado na Europa desde as
décadas de 1920 e 1930, mas seu impacto
na produção artística na América do Sul
só foi sentido anos mais tardes, atingindo
seu ápice entre as décadas de 1940 e 1970.
Depois de despertar o interesse de impor-
tantes artistas latino-americanos, acabou
gerando uma ruptura com a antiga arte
figurativa que vigorava na produção ar-
tística dos dois países, instaurando o iní-
cio de inéditas formas de expressão. Com
isso, surgiram novos limites para a rela-
ção espectador e obra, transformando-se
em ponto de partida para o início da era
Lygia Clark, Máquina, 1962 pós-moderna na arte latina.
Fundação Iberê Camargo Serviço
O quê: Desenhar no espaço — Artistas abs-
expõe abstracionistas
tratos do Brasil e da Venezuela na Coleção
Patricia Phelps de Cisneros.
Artistas venezuelanos: Gego, Alejandro
Otero, Jesus Soto, Carlos Cruz-Diez.
Uma rara seleção de abstracionistas bra- nez, propõe um diálogo entre o percurso Artistas brasileiros: Willys de Castro, Ly-
sileiros e venezuelanos compõe a expo- abstracionista no Brasil e na Venezuela gia Clark, Mira Schendel, Hélio Oiticica,
sição Desenhar no espaço que a Funda- da década de 1940 até meados dos anos Hércules Barsotti e Judith Lauand.
ção Iberê Camargo apresenta em Porto 1970. Concebidos por dez nomes expo- Quando: de 30 de julho a 31 de outubro. De
Alegre de 30 de julho a 31 de outubro. nenciais do movimento, o significado dos terça a domingo, das 12h às 19h. Quintas-
No total, são 88 obras do acervo da Co- trabalhos vai além do diálogo sugerido e -feiras, das 12h às 21h.
leção Patricia Phelps de Cisneros, uma traça um panorama da formação das van- Onde: Fundação Iberê Camargo — Ave-
das maiores da América Latina em arte guardas e de uma era pós-moderna na nida Padre Cacique, 2000 — Porto Alegre
contemporânea. O curador, Ariel Jimé- arte sul-americana. (RS). Entrada franca.
Uma reportagem sobre o mundo da corrida
Diretor de redação das revistas Placar e Desde aquele momento, Portuga se tornou sos sociais e deixam de lado muitas horas de
Runner’s World, o jornalista Sérgio Xa- o homem a ser batido. Marcelo Apovian descanso ou de convívio familiar. Também
vier Filho faz sua estreia em livro com (o Lelo), José Augusto Urquiza (o Guto) e deixam para trás, como no caso do Lelo,
uma grande reportagem sobre o universo Tomás Awad são os mais fortes candidatos as sequelas de um acidente que quase lhe
da corrida. Embora tendo o esporte como a derrotar Amílcar no que ficou conhecido custou a perna. A marca mítica não sai da
pano de fundo, não é voltado apenas aos como o “Desafio do Portuga”. cabeça deles, o Portuga precisa ser derru-
adeptos. É “um livro sobre gente, com his- Para alcançar o objetivo, eles driblam bado. O circuito das maiores maratonas do
tórias de competição, superação e camara- agendas apertadas, desviam de compromis- mundo — Berlim, Boston, Chicago, Nova
dagem”, como diz o autor. O relato começa York e Paris — é o cenário para a busca pelo
em outubro de 2006, quando o empresário recorde. Lelo, Guto e Tomás correm o mun-
Amílcar Lopes Jr., o Portuga, realizou um do, literalmente, para derrubar o Portuga. A
feito memorável ao completar a Maratona esse grupo junta-se mais tarde Felipe Wri-
OPERAÇÃO PORTUGA
de Chicago em 2 horas 43 minutos e 50 se- ght e sua obsessão em terminar uma mara-
Sérgio Xavier Filho
gundos. A marca, extraordinária para um Arquipélago Editorial tona abaixo de 3 horas. E ele chegou lá, com
amador, fez dele uma espécie de lenda no 176 páginas a ajuda de um amigo capaz de um gesto de
circuito dos corredores de rua de São Paulo. R$ 32 pura e comovedora nobreza.
4
5. Confronto de
escritores
Está em andamento, desde o dia 10 de
junho, a primeira edição do Campeo-
nato Gaúcho de Literatura. O certame é
inspirado na Copa de Literatura, criada
no Rio de Janeiro por Lucas Murtinho e
realizada desde 2007. Na versão gaúcha,
são 27 livros concorrentes, todos de con-
tos, publicados em 2008 e 2009. Os títulos
foram divididos, por sorteio, em nove gru-
pos de três. Em cada partida, um árbitro
LUCIANO LANES
é convocado para escrever uma resenha
comparando duas obras — e, claro, deve
dar o resultado final do jogo, com placar
e tudo. O campeonato segue até dezembro
Norte conquista deste ano e pode ser acompanhado pelo
site http://gauchaodeliteratura.wordpress.
mais um prêmio
com. As partidas são publicadas sempre às
segundas e quintas-feiras.
A intenção dos organizadores é des-
tacar um gênero literário a cada ano. No
A revista NORTE recebeu, no dia 13 de A escolha dos vencedores é feita por ano que vem, a disputa se dará em torno
abril, mais uma distinção: o 4º Prêmio um conselho composto pelos coordenado- dos romances. A comissão organizadora
Joaquim Felizardo, categoria Mídia – Es- res das diversas áreas da SMC, assim como do Gauchão de Literatura é composta por
pecial, promovido pela Secretaria Muni- o secretário Sergius Gonzaga e a secretá- Ana Mello, Carlos André Moreira, Daniel
cipal da Cultura (SMC) de Porto Alegre ria-adjunta Ana Fagundes. A designação Weller, Fernando Ramos, Luciana Thomé,
para homenagear artistas e intelectuais de de Joaquim Felizardo para o nome do prê- Marcelo Spalding e Rodrigo Rosp.
diversas áreas da cultura da Capital e des- mio reconhece os valores humanistas que
tacar iniciativas de mídia e patrocinado- nortearam a atuação do historiador e pro-
res. Nesta edição, relativa ao ano de 2009, fessor que encabeçou o movimento pela
foram entregues 19 troféus. A premiação criação da SMC, da qual foi o primeiro
ocorreu no Teatro Renascença, noite em secretário, em 1986.
que Nico Nicolaiewsky interpretou ao pia- O ano passado foi pródigo para a NOR-
no algumas de suas composições. O co- TE. Além do Joaquim Felizardo, a revista
ordenador de comunicação da secretaria, já havia conquistado o Prêmio Açorianos
Marcelo Oliveira da Silva, entregou o tro- de Literatura – destaque Mídia Impressa.
féu para o editor de NORTE, Vitor Necchi. A entrega ocorreu no dia 14 de dezembro.
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5
6. soBrescritos • por sérGio rodriGues
— Quem se recusou a crescer foi você, você é que se recusou
Cada geração a ir além daquela lengalenga submautneriana de marginais he-
róis e nonsense que eu li quando tinha quinze anos, como era
mesmo o nome, Minhocas do asfalto? Não, agora lembrei: A ci-
com seu estilo dade e os cupins. Li com quinze, achei razoável, com dezesseis já
achava um lixo. Foi você que não cresceu, você que fracassou.
Tudo bem, pode ser que eu não dê em nada também, é altamente
provável, aliás. Mas tenha pelo menos a decência de esperar isso
— Crítica construtiva, tudo bem, mas eu gosto mesmo é de elo-
acontecer antes de me atirar na cara o seu fracasso.
gio, disse o jovem escritor do momento.
Seguiu-se um silêncio de cristal. O auditório estalava de tensão.
A plateia riu.
Ninguém respirava. Até que o escritor de meia-idade redarguiu:
— A boutade é boa, retrucou da poltrona ao lado o escritor de
— Viadinho!
meia-idade, seu momento perdido em algum ponto remoto dos
anos 80, mas eu sempre achei que elogio é que nem doce. Uma
E se atracaram. Os dois tiveram chance de encaixar uns tantos
delícia, e te enche de energia. Mas não faz crescer. Críticas têm
cruzados, e o escritor mais velho se distinguiu pelos potentes
proteína, elogios têm açúcar. O escritor jovem que se esbalda nos
cotovelaços, enquanto o mais moço manejava com perícia um
primeiros elogios, se lambuza neles, principalmente acredita ne-
estilete, tingindo o palco de sangue, antes que entrassem para
les, está se recusando a crescer.
separá-los. Caiu o pano.
O jovem escritor do momento ficou lívido. As juntas de seus de-
A plateia explodiu num aplauso de puro êxtase.
dos descoloriram em torno do microfone.
— Quem se recusou a crescer foi você, cara.
— Como disse?
Sobrescritos em livro
O jornalista e escritor Sérgio Rodrigues começou a publicar os
contos a que deu o nome de “Sobrescritos” no seu blog Todoprosa
(www.todoprosa.com.br). Na NORTE, aparecem desde a primei-
ra edição da revista, em novembro de 2007. Histórias do univer-
SOBRESCRITOS
so literário repletas de ironia, elas agora foram reunidas no livro
Sérgio Rodrigues
MARIA MENDES
Sobrescritos — 40 histórias de escritores, excretores e outros Arquipélago Editorial
insensatos, com ilustrações de Gilmar Fraga, que a Arquipélago 152 páginas
Editorial, que edita a NORTE, acaba de lançar. R$ 25
6
6
7. curtas
Formação em revista
de Virginia. Com uma particularidade: a
aversão aos academicismos.
Serrote trata o ensaio como um gêne-
ro que não depende de pompa e lingua-
Diante da atual aridez existente no jorna- sobre o tema “O novo ensaísmo brasilei- gem excessivamente técnica. Sem ofender
lismo cultural brasileiro, algumas inicia- ro”. O encontro gaúcho, realizado no dia a inteligência alheia, fala sobre sambas de
tivas apresentam-se como oásis de ideias 29 de março, foi capitaneado pelo editor Nelson Cavaquinho, hipergrafia, boxe e
e provocações. Na maioria das vezes, Matinas Suzuki e contou com a presença Prince of Persia com idêntica leveza tex-
contudo, a fonte não passa de uma mi- do tradutor Samuel Titan Jr. e do escritor tual. Tal característica pode explicar, em
ragem. Motivos não faltam: insustenta- Daniel Galera. parte, o sucesso comercial da revista: os
bilidade financeira, panelinhas literárias Apesar de eventuais comparações dois primeiros números já se esgotaram
autorreferentes e — elementar, meu caro com a imprensa norte-americana (leia-se e, a partir de agora, a tiragem passa de 3
editor — pobreza de conteúdo. São cada New Yorker), Serrote segue uma tradição mil para 4 mil exemplares.
vez mais raras as publicações que sobre- distinta. Publicada pelo Instituto Moreira Neste primeiro ano de vida, o saldo da
vivem no Brasil sem cometer pelo menos Salles, sua maior influência são os jour- Serrote foi duplamente positivo. Positivo
um desses deslizes. nals de ensaios editados por organizações para o mercado editorial brasileiro, que
É o caso da revista Serrote, notável culturais e acadêmicas. O próprio Suzuki, provou ainda ter um restante de fertilida-
milagre editorial dedicado a um gênero durante palestra em setembro de 2009 no de em meio a suas areias desérticas. E po-
pouco valorizado em terras tropicais: o 22º SET Universitário, evento realizado sitivo para o público leitor, que vê na re-
ensaio. Aproveitando o lançamento de pela Faculdade de Comunicação Social vista — tanto na produção própria quanto
sua quarta edição, a quadrimensal orga- (Famecos) da PUCRS, confessou que a no conteúdo traduzido — um raro instru-
nizou um périplo por cinco capitais, entre maior inspiração da revista é a The Vir- mento de formação intelectual.
elas Porto Alegre, promovendo debates
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8. dança
Para dar carne à memória
LU MENNA BARRETO
Projeto recupera quase 40 anos de produção coreográfica
de Eva Schul, nome seminal da dança contemporânea no Brasil
MÔNICA DANTAS
A partir dos anos 1920, a dança cênica começa a se estruturar Meyer e Petzhold realizaram montagens de coreografias de
no Brasil, seja por meio de brasileiros que foram estudar na repertório do balé, mas também coreografaram obras com
Europa ou de europeus que decidiram residir no país. Em Porto nítida influência da dança expressionista.
Alegre, a comunidade alemã desempenhou um importante
papel no desenvolvimento da dança como atividade artística, Naquele período, essa dança que germinava no Brasil e que
a partir da criação do Instituto de Cultura Física por Mina parecia moderna não se apresentava como uma ruptura em
Black e Nenê Dreher Bercht, em 1937. Mina havia estudado no relação ao balé, como foi o caso da Europa e mesmo dos Estados
Instituto do Ritmo Aplicado, de Jacques Dalcroze, em Hellerau, Unidos. Lya Bastian Meyer e Tony Petzhold eram modernas na
Alemanha. De lá, trouxe os princípios de trabalho da eurritmia medida em que apresentavam algo novo. A maior novidade
— sistema de treinamento da sensibilidade musical, através consistia em mostrar a dança de um modo diferente, como uma
do qual o ritmo é transformado em movimentos corporais, prática que solicitava o status de arte. No entanto, suas escolas
que influenciou fortemente a dança moderna. Do Instituto de se afirmavam tendo como base o ensino do balé, sublinhando a
Cultura Física saíram, para estudos na Alemanha, Lya Bastian primazia desta técnica para a formação de bailarinos.
Meyer e Tony Petzhold.
Até meados dos anos 1970, predominavam em Porto Alegre
Na Alemanha, em períodos diferentes, elas estudaram balé as escolas de balé e seus espetáculos de fim de ano. Em 1974
com professoras russas e conheceram a dança expressionista foi fundado o Grupo Experimental de Dança (GEDA), com
de Mary Wigman. De volta a Porto Alegre, abriram suas a finalidade de reunir os melhores alunos dessas escolas para
escolas de dança. Com seus alunos ou em trabalhos solos, promover espetáculos e proporcionar maior experiência
8
9. aos bailarinos. Embora as coreografias tivessem inspiração em colaboração com outros artistas como os músicos Toneco
moderna, os bailarinos eram formados e exercitavam-se e Carlinhos Hartlieb, além de Nico Nicolaiewsky, que também
em aulas de balé. Foi somente a partir da criação do Espaço atuava como dançarino, que Eva criou Um berro gaúcho. A
e do Grupo Mudança por Eva Schul, em 1974, que se pôde coreografia partia do mito de Sepé Tiaraju para falar de uma
identificar uma preocupação em ensinar dança a partir de identidade regional vinculada a uma perspectiva urbana, pop,
outras matrizes técnicas, que resultaram numa abordagem com ecos da contracultura.
mais contemporânea do corpo e da dança.
Em 1975, Alwin Nikolaïs convidou Eva para trabalhar em Nova
Nascida num campo de refugiados no pós-guerra, na Itália, Eva York. Durante sete anos, estudou com Nikolaïs, e principalmente
chegou ao Brasil em 1956, onde fez sua formação em balé. Após com Hanya Holm, os princípios que embasaram boa parte da
um estágio de um ano no New York City Ballet e uma formação dança moderna e pós-moderna. Holm tinha sido assistente de
em artes plásticas, Eva participou do 1° Congresso Nacional de Mary Wigman na Alemanha e estruturou uma técnica em que
Dança em Curitiba, onde descobriu a dança moderna. Decidida a descentralização e a ausência de hierarquia entre o corpo e
a compreender essa nova forma de dançar, foi estudar no suas partes resultam na premissa de que o fluxo do movimento
Uruguai e na Argentina os princípios de análise do movimento coordena-se com o fluxo da vida.
desenvolvidos por Rudolf Laban e a técnica de Martha Graham.
Essas experiências marcaram profundamente o trabalho de
De volta a Porto Alegre no início dos anos 1970, Eva criou Eva Schul. Coreografias como Ecos do silêncio, Reflexos, Jungle,
o Espaço MuDança. Dizendo-se insatisfeita com as práticas Limites da ilusão e Hall of mirrors, criadas nos anos 1980,
coreográficas que não permitiam o desenvolvimento de referenciam-se diretamente nesses princípios e procedimentos.
uma expressão própria e de um diálogo direto com a Essas coreografias foram produzidas em Curitiba, onde Eva deu
plateia, desenvolveu estratégias para permitir que o corpo aulas e coreografou para a Companhia de Ballet do Teatro Guaíra
protagonizasse livremente esse diálogo. Foi nesse ambiente, e participou da elaboração dos cursos superiores de Teatro e
9
10. dança
e Catch ou como segurar um instante (2003). O elenco deste
espetáculo é composto por jovens bailarinos, selecionados
através de audição, pois a ideia era experimentar com pessoas
detentoras de formações diversas e corpos talvez tão distintos
daqueles dos anos 1970 e 1980. Houve, portanto, diferenças
nos procedimentos de remontagem de cada obra. Catch ou
como segurar um instante e Hall of mirrors possuíam registro
em vídeo, que serviu como ponto de partida para sua recriação.
Orientados pela coreógrafa e por duas assistentes — Viviane
Lencina para Catch e Sofia Schul para Hall of mirrors —, os
bailarinos apropriaram-se destas coreografias e as fizeram suas.
Catch tem trilha sonora especialmente composta por Celau
Moreira, e Hall of mirrors utiliza música do grupo alemão
Kraftwerk. Um berro gaúcho foi completamente recriada a
Eva Schul ministrando oficina no Espaço MuDança, nos anos 1970 partir de improvisações baseadas no roteiro original e na
música composta especialmente para a coreografia por Toneco
de Dança (Fundação Teatro Guaíra/Pontifícia Universidade e Carlinhos Hartlieb nos anos 1970.
Católica do Paraná), ministrando diferentes disciplinas, além de
dirigir e coreografar o Grupo de Dança FTG/PUC. Foi quando Em junho estreou o espetáculo dar carne à memória II,
a necessidade de aplicação de seus conhecimentos fez com que a formado por solos e duos recriados por intérpretes-criadores
coreógrafa ajustasse o trabalho desenvolvido em Nova York aos que participaram da elaboração dessas obras como integrantes
seus alunos no sul do Brasil. Aos poucos, a dança de Eva Schul se da Ânima Companhia de Dança, nos anos 1990. Em cena,
tornou cada vez mais sul-brasileira e sua. Eduardo Severino em Ser animal; Cibele Sastre em O fio
partido; Mônica Dantas em Caixa de ilusões; Tatiana Rosa em
No início dos anos 1990, Eva retornou a Porto Alegre, onde Tons; Luciana Paludo em Solitude, Luciano Tavares e Viviane
criou a Ânima Companhia de Dança e montou obras como O Lencina em De um a cinco. A metodologia de recriação dessas
convidado, Caixa de ilusões, Tons, A dança da dúvida, De um a obras foi desenvolvida pelos próprios bailarinos, auxiliados
cinco, Catch ou como segurar um instante. Em Porto Alegre, Eva por Eva Schul e por Suzane Weber, que estiveram à disposição
continuou seu trabalho como formadora e afirmou sua prática dos artistas para viabilizar seus experimentos de recriação.
como pesquisadora, no melhor sentido que esse termo possa Assim, cada intérprete-criador, utilizando os recursos que
ter para a dança: fazendo do seu corpo e do corpo das pessoas achou necessário, foi recriando sua coreografia. Não havia
que estudam com ela território de investigação para a criação um compromisso com a fidedignidade à obra original, ela
coreográfica, por meio de um estudo minucioso do corpo poderia somente servir de referência para um novo trabalho
em movimento e da disseminação da improvisação como composicional. No entanto, alguns optaram por refazer suas
ferramenta de composição coreográfica e/ou como modo de se coreografias bem próximas à sua matriz original.
levar a dança para a cena. Orientando, formando e fomentando
novos criadores, Eva Schul e a Ânima Companhia de Dança Apesar do aperfeiçoamento nas formas de registro e veiculação
engendraram um ambiente que tem permitido o surgimento e dos produtos coreográficos em diferentes mídias e das
o amadurecimento de artistas cujas obras, ações e projetos vêm possibilidades de se fazer dança em outros suportes para além
se constituindo em referenciais para a dança contemporânea. do corpo em movimento, dançar é uma das melhores maneiras
de celebrar a dança e sua história. Dançar, para se constituir
Desde janeiro deste ano, o projeto dar carne à memória, memórias da dança, tentando reencontrar no movimento
contemplado com o Prêmio Funarte Klauss Vianna de algo do sentido e da intenção com que ele foi criado. E assim,
Dança/2009, vem celebrando a obra de Eva Schul com a dar carne à memória, revisitando as produções coreográficas
recriação das suas principais coreografias, realizando, em de décadas anteriores como forma de alimentar a criação
paralelo, ações de mapeamento da sua trajetória. coreográfica atual e de revigorar nossos entendimentos sobre a
cena contemporânea. E nada mais exemplar, para tanto, do que
Em maio foi apresentado o espetáculo dar carne à memória a obra de Eva Schul. §
I, que compreendeu a recriação de três obras de períodos
distintos: Um berro gaúcho (1977), Hall of mirrors (1986) Mônica Dantas é bailarina, pesquisadora e professora da UFRGS.
10
12. FotoGraFia
DENISE HELFENSTEIN
GUSTAVO DIEHL
A construção de um
museu imaginário
O FestFotoPoA propõe, há quatro anos, expandir a fotografia
a ponto de ela virar uma expressão filosófica
CAROLINA MARqUIS
Quanto tempo dura um instante? O que é o tempo e quais são Bastava subir as escadarias do antigo prédio da Avenida Sete de
os tempos de uma fotografia? O que se enxerga em uma foto é Setembro, onde funciona o Santander Cultural, e ultrapassar
um tempo que não muda. Por isso mesmo ele está em constante as moças que vestiam camisetas cor de laranja com símbolos
transformação. que indicavam 4° FestFotoPoA para chegar ao amplo salão.
Quando se olhava para os lados, nas paredes do imponente
Algumas destas questões eram despertadas no público que salão se fazia presente o legado visual de Farkas, responsável
compareceu ao 4° Festival Internacional de Fotografia de Porto pelo início da fotografia moderna no Brasil.
Alegre (FestFotoPoA), evento que vem colocando a capital gaúcha
no roteiro dos movimentos que mostram e pensam fotografia. O tema de reflexão deste encontro foi A terceira margem
Na mais recente edição, realizada entre 7 de abril e 2 de maio, o do tempo fotográfico... o território da fotografia. O fotógrafo
homenageado foi o húngaro-brasileiro Thomas Farkas. Carlos Carvalho, curador e idealizador do evento, justifica
12
13. FERNANDO SCHMITT
TIAGO COELHO
que o festival surgiu para atender a uma demanda local Expandir a fotografia a ponto de ela virar uma expressão filosófica
de eventos de fotografia. “O FestFoto não é feito apenas é a intenção do FestFoto. “Queremos o diálogo, que o público
para profissionais da fotografia. A ideia é fazer projeções tenha acesso a discussões que não teria em qualquer lugar”, propõe
multimídia que deem lugar à fotografia contemporânea”, Carvalho. “O festival tem a fórmula aberta. O único conceito
explica. Nesta edição, 52 fotógrafos tiveram seus trabalhos que temos é de ser um festival de projeções.” O 4º FestFotoPoA,
projetados no festival. “Caso quiséssemos colocar cada patrocinado pelo Santander Cultural e pela Funarte, apresentou,
uma destas fotos enquadradas e penduradas nas paredes, além dos trabalhos de Farkas, obras de Henri Cartier-Bresson,
precisaríamos de um evento da dimensão de uma Bienal”, Hélio Oiticica, Martin Chambi, Alexandre Sequeira e Jacqueline
compara Carvalho. O festival surgiu para democratizar a arte Joner, as exposições individuais de Fernando Schmitt (17
do “momento decisivo” — conceito do francês Henri Cartier- dinheiros), Júlio Appel (3 mulheres), Larissa Madssen (Relógios
Bresson evocado na idealização do evento. de Sol), Gustavo Diehl (Re)tratos) e Tiago Coelho (D’Ana.)
e instalações, como a de Denise Helfenstein (A captura da
E se são três as margens da fotografia, como sugere a temática do paisagem). Ainda havia vídeos, exibições, projetos coletivos e os
festival, a primeira é justamente o “momento decisivo” descrito trabalhos selecionados no Fotograma Livre 2010.
por Bresson. “O tempo alongado” da experiência construtivista
tardia da modernidade brasileira é a segunda das margens. A A fotografia permite que sejam mais abertos e estejam
terceira é o tempo, palavra tão difícil de conceituar. “O tempo disponíveis para perceber o mundo aqueles que trabalhem com
é a metáfora. O tempo que passa e nos tira ou o tempo que ela. “O prosaico do cotidiano passa a ser mais interessante, e os
não passa”, conta Jacqueline Joner, expositora e co-curadora caminhos que percorremos tornam-se mais lúdicos quando a
do Festival. Em A casa vazia: fotografias do inapreensível, sua fotografia faz parte da vida”, acredita Sinara Sandri, que coordena
instalação, Jacqueline lançou diversos olhares sobre a perda e o festival ao lado de Carlos Carvalho. “A fotografia conta do
mostrou a assimilação dela a partir do tempo. estranhamento do fotógrafo com o mundo. Ela não se cala.” §
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14. FotoGraFia
Dia da inauguração de Brasília (presidente Juscelino Kubitschek), 1960
Viva Thomaz Farkas!
A obra do artista húngaro radicado no Brasil é um marco da
fotografia moderna e compõe um acervo de mais de 34 mil imagens
FERNANDO SCHMITT
A voz não tinha potência, mas claramente tratava-se de um de fatos importantes e conhecidos. Farkas assinou o livro de
brado, de uma palavra de ordem. Surgiu ao final de uma palestra fundação do Masp e foi dele a primeira exposição de fotografia
do 6º Paraty em Foco, a FLIP dos fotógrafos, como alguns no museu, em 1949. Fotografou a construção e a inauguração
moradores da cidade fluminense gostam de chamar. “Viva a de Brasília. Foi produtor e diretor de cinema, financiando
fotografia!” As pessoas próximas imediatamente replicaram, do próprio bolso a realização de uma série de documentários
aumentando o volume e o entusiasmo do manifesto. O autor sobre o Brasil, iniciativa que ficou conhecida como “Caravana
do primeiro grito chama-se Thomaz Farkas, húngaro nascido Farkas”. É membro vitalício do conselho da Fundação Bienal de
em 1924 que se naturalizou brasileiro e se tornou um dos São Paulo, conselheiro da Cinemateca Brasileira e faz parte do
personagens fundamentais da fotografia moderna no Brasil. conselho curador da Coleção Pirelli/Masp.
Em uma pesquisa rápida fica fácil descobrir porque o FestFotoPoA Mas bastaria para justificar a homenagem o fato de Farkas ser
decidiu homenageá-lo em sua quarta edição. Há uma série um grande fotógrafo, fundamental para o desenvolvimento da
14
15. fotografia no Brasil. Nos anos 1940, frequentava o Foto Clube
Bandeirantes, que se reunia no mesmo prédio da Fotoptica,
empresa de seu pai, na Rua São Bento, centro de São Paulo. Não
raro as imagens mais abstratas, fortemente geométricas, eram
desdenhadas pelos outros fotógrafos. Uma de suas fotografias
mais conhecidas, precursora da arte construtivista, um grafismo
fortemente contrastado obtido a partir de um agrupamento de
telhas, foi apelidada “costelas de minhoca”. Hoje guardada pelo
Instituto Moreira Salles (IMS), a coleção de Farkas tem mais de
34 mil imagens.
A fotografia nunca foi exclusiva na vida de Farkas, e ele nunca
se considerou um profissional. Tampouco era um amador; Imagem obtida durante a filmagem do documentário Subterrâneos do
futebol, do qual Farkas foi o fotógrafo. São Paulo, 1964.
FOTOS: THOMAZ FARKAS / ACERVO INSTITUTO MOREIRA SALLES
amante, talvez. Teve participação ativa na empresa da família, e
as duas atividades complementavam-se. A Fotoptica publicou Se ainda faltassem argumentos que sustentassem a homenagem,
uma revista especializada em fotografia, que começou como bastaria retomar o depoimento do amigo Cristiano Mascaro no
um tabloide ainda na década de 1950, e manteve uma galeria, livro Thomaz Farkas publicado pela Edusp em 2002 e dizer que
inaugurada no fim dos anos 1970, onde gerações de fotógrafos este homem, cujo apelido é Macaco Chico, aprendeu uma receita
brasileiros puderam conviver e dar visibilidade a seus trabalhos. de dry martini com Luis Buñuel, gosta de rabanetes com mel no
E a loja da Rua Conselheiro Crispiniano tornou-se referência café da manhã e tem um gosto impecável para gravatas. §
como fornecedora de material e equipamento fotográficos e
pela qualidade de seu laboratório. Fernando Schmitt é fotógrafo.
Núcleo Bandeirante, 1957-1960
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16. FotoGraFia
A poética da relação
com o outro
Na instalação Nazaré do Mocajuba, Alexandre Sequeira estampa
retratos em tecidos impregnados pelas vidas de seus donos
FERNANDO SCHMITT
Quando se percorre a instalação Nazaré do Mocajuba, As imagens encomendadas eram entregues em um varal, assim
deparamos frontalmente com as imagens dos habitantes de o fotógrafo podia ficar por perto e acompanhar o encontro das
um vilarejo de pescadores do Pará impressas em tamanho real pessoas com suas fotografias. Ele conta que “no caso de Nazaré
sobre tecidos. A força visual e poética das imagens apresentadas do Mocajuba, a fotografia não se tratava exatamente de uma
FERNANDO SCHMITT
no 4º FestFotoPoA é suficiente para comover, mas, para novidade, mas, com certeza, um recurso raramente utilizado
compreender a densidade da obra, faz toda a diferença ouvir por qualquer uma daquelas pessoas”, e por isso chamava
Alexandre Sequeira falar de seu processo criativo. a atenção a relação de profundo respeito dos fotografados
com o ato fotográfico. Na maioria dos casos, a pose ofertada
Alexandre é um sujeito bom de conversa. Fala mansa, era absolutamente frontal, o olhar encarando diretamente a
plena de gentileza e um ritmo tranquilo de quem acredita câmera. É com esse olhar que o espectador deparava quando
que o interlocutor tem algo que vale a pena ouvir. Nas suas circulava pela instalação montada no Santander Cultural.
apresentações, o público vai sendo contaminado, pouco a
pouco, pela história de seu envolvimento com a comunidade Os pedidos de fotografias levaram aos poucos o fotógrafo
de Nazaré do Mocajuba e, não raro, a emoção transborda em para dentro das casas de seus modelos. Ali se encontrava o
lágrimas. suporte que ajudaria a dar sentido ao trabalho artístico: panos
estampados, já puídos, que faziam as vezes de porta, lençóis,
Ele foi levado ao vilarejo pela primeira vez na década de 1990. redes, mosquiteiros, toalhas de mesa — tecidos impregnados
“Ali já me senti envolvido pela paisagem e pelo carinho dos pelas vidas de seus donos, passariam a carregar também suas
moradores”, recorda. Mais tarde, quando recebeu uma bolsa imagens. Alexandre passou a propor uma troca: o tecido velho
de pesquisa em arte do Instituto de Artes do Pará, escolheu por um novo. Então ele fotografava a peça a ser trocada e ia a
desenvolver um trabalho que tratasse desse envolvimento, Belém procurar por outra de cor e estampa semelhantes.
dessa paixão por aquele lugar e pelas pessoas que ali viviam.
O processo de impressão das imagens usou a técnica da serigrafia
O trabalho começou com uma documentação quase corriqueira e, para garantir que a altura das imagens correspondesse à das
de cotidiano e paisagem, até que um dia uma senhora o procurou pessoas fotografadas, Alexandre desenvolveu uma técnica sutil e
pedindo que fizesse umas fotografias 3x4 para um documento. afetuosa. Um abraço permitia usar o próprio corpo como régua
Em seguida outras solicitações foram aparecendo e ali se deu e referência. Os tecidos impressos retornaram ao vilarejo na
uma mudança importante no rumo que o projeto tomava: forma de uma exposição ao ar livre com as imagens penduradas
Alexandre colocou-se como retratista da comunidade, criando nas árvores, e cada um dos modelos pode levar sua imagem e
uma interação com a vila por meio da fotografia, mas não a pendurá-la em sua casa por um dia. As fotografias dos tecidos
fotografia que ele vinha fazendo até então, e sim a que passava a reposicionados e ressignificados nas casas de seus modelos —
ser demandada pelos moradores de Nazaré. “Percebi que queria que também estavam expostas, completando a instalação — são
falar, através da fotografia, de uma relação construída com o lugar, comercializadas por galerias de arte, e os recursos advindos são
e aquilo era exatamente o que estava acontecendo”, reconhece. divididos meio a meio entre o artista e a vila.
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17. Sequeira estampou em cortinas e mosquiteiros os retratos de moradores de Nazaré do Mocajuba (abaixo). O trabalho foi exposto no Santander Cultural.
FOTOS: ALEXANDRE SEqUEIRA
“Percebo que, cada vez mais, o que importa para mim não é
fazer fotos de pessoas, mas trabalhar com elas a fotografia. A
fotografia torna-se um pretexto para constituir uma história
com essas pessoas”, explica Alexandre. Em seu trabalho, o
processo artístico é tão belo quanto o resultado final exposto.
Mais que na linguagem fotográfica, é no aspecto relacional, no
encontro propiciado pela fotografia, que se funda a potência da
poética visual de Nazaré do Mocajuba. §
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18. livros • em primeira mão
Os aforismos de Karl Kraus
Considerado um dos maiores satiristas de todos os tempos, Karl Maldita lei! A maioria de meus próximos é a triste consequência
Kraus (1874-1936) deixou uma obra vasta, mas ainda larga- de um aborto não feito.
mente ignorada no Brasil. São ensaios, poemas, peças teatrais e,
sobretudo, aforismos, as frases certeiras que fizeram sua fama. A Nada é mais tacanho do que o chauvinismo ou o ódio racial.
maior parte desse material apareceu nas páginas da revista Die Para mim todos os seres humanos são iguais; há idiotas em
Fackel (A Tocha), que ele fundou em 1899. Os aforismos foram toda parte e tenho o mesmo desprezo por todos. Nada de
publicados em três volumes: Ditos e contraditos, em 1909, Pro preconceitos mesquinhos!
domo et mundo, em 1912, e De noite, em 1916. Para reapre-
sentar o polemista ao leitor brasileiro, a Arquipélago Editorial, Se alguém quer me dirigir a palavra, ainda espero até o último
que edita a NORTE, lança na segunda quinzena de julho uma momento que o medo de se comprometer o impeça de fazê-lo.
seleção dos aforismos de Kraus, com organização e tradução (di- Mas as pessoas são corajosas.
reta do alemão) de Renato Zwick. A seguir, trechos do novo livro.
Muitos têm o desejo de me matar. Muitos, o desejo de ter dois
*** dedos de prosa comigo. Contra aqueles a lei me protege.
Quão pouca confiança merece uma mulher que se deixa O mundo é uma prisão em que é preferível a solitária.
apanhar numa fidelidade! Hoje ela é fiel a ti, amanhã a outro.
Quando o madeirame do telhado pega fogo não adianta rezar
Ela disse a si mesma: “Dormir com ele, tudo bem – mas nada nem esfregar o assoalho. Em todo caso, rezar é mais prático.
de intimidades!”
A democracia divide os homens em trabalhadores e
Faltava-lhe apenas um defeito para ser perfeita. preguiçosos. Ela não está preparada para aqueles que não têm
tempo para trabalhar.
Em relação às mulheres, a ordem social nos deixa apenas a
alternativa de sermos mendigos ou ladrões. Numa cabeça oca cabe muito conhecimento.
A única coisa que importa no amor é não parecermos mais Devemos ler todos os escritores duas vezes, os bons e os ruins.
bobos do que nos fazem. Uns serão reconhecidos, e outros, desmascarados.
A abstinência sempre se vinga. Num produz pústulas; noutro, Há escritores que já conseguem dizer em vinte páginas aquilo
códigos sexuais. para o que às vezes preciso de até duas linhas.
As penas servem para intimidar aqueles que não querem De onde tiro tanto tempo para não ler tanta coisa?
cometer crimes.
O escândalo começa quando a polícia lhe dá um fim.
O cristianismo enriqueceu o banquete erótico com o
antepasto da curiosidade e o arruinou com a sobremesa do
arrependimento. AFORISMOS
Karl Kraus
Org. e trad.: Renato Zwick
O cão é fiel, não há dúvida. Mas será por isso que devemos tomá- 208 páginas
lo como exemplo? Afinal, ele é fiel ao homem e não ao cão. R$ 39
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19. Kraus fotografado por
Trude Fleischmann,
em 1928, e a primeira
edição da revista Die
Fackel, de 1899
Por que muitos escrevem? Porque não têm caráter suficiente Muitas vezes, a filosofia não é mais do que a coragem de entrar
para não escrever. num labirinto. E quem se esquecer do portão de entrada, pode
facilmente adquirir a reputação de pensador independente.
Certo sujeito disse que tentei colocá-lo contra a parede. Isso
não é verdade. Eu simplesmente consegui. A carreira é um cavalo que chega sem cavaleiro diante dos
portões da eternidade.
A boca transborda daquilo que o coração está vazio.
Um lobo em pele de lobo. Um patife sob o pretexto de sê-lo.
A medicina: passe o dinheiro e a vida!
O ódio deve se tornar produtivo. Caso contrário, é mais sensato
Símbolo moderno: a morte com a buzina. amar logo de uma vez.
O aforismo jamais coincide com a verdade; ou é uma meia Muitos têm a megalomania de ser loucos e são apenas cabeças-
verdade ou uma verdade e meia. tontas.
Eu e meu público nos entendemos muito bem: ele não ouve o Não tenho mais colaboradores. Eu tinha inveja deles. Eles
que digo e eu não digo o que ele gostaria de ouvir. afastam os leitores que eu mesmo quero perder.
Por que tantos me criticam? Porque me elogiam e apesar disso A sátira está longe de toda hostilidade e significa um benefício
os critico. para uma coletividade ideal, rumo à qual ela avança não contra,
mas através dos indivíduos reais.
Não se vive uma vida sequer uma vez.
Ainda não tentei, mas acho que para ler um romance eu
O rufião é o órgão executivo da imoralidade. O órgão executivo precisaria primeiro me encorajar e então fechar bem os olhos.
da moralidade é o chantagista.
Como o mundo é governado e conduzido à guerra? Os
Os jornalistas escrevem porque não têm nada a dizer, e têm diplomatas mentem aos jornalistas e acreditam na mentira
algo a dizer porque escrevem. quando a leem. §
19
20. Ficção
O escritor no
castelo alto
ANTÔNIO XERXENESKY
NORTE publica este conto inédito de Antônio Xerxenesky, autor
do romance Areia nos dentes (Não Editora, 2008; Rocco, 2010)
e um dos criadores da Não Editora. “O escritor no castelo alto”
faz parte do livro de contos que o autor lançará em 2011 pela
Editora Rocco.
***
Para R. B.
Para esconder o nervosismo, eu abria o livro, escancarava a
brochura e enfiava o meu nariz entre as páginas. O cheiro de
papel invadia meu sistema e me recordava de todas as horas
prazerosas que passei jogado na poltrona lendo. É um pouco
similar à culinária, quando passeando pela rua sentimos um
cheiro de curry e nos lembramos de um almoço em um restau-
rante indiano sem igual.
Naquela época, quando era mesmo, 2005? Eu não sabia que,
embora no futuro fosse migrar com rapidez para o universo do
livro digital, sentiria falta para sempre do cheiro único que cada
livro tem. Eu tentaria, na década seguinte, colocar até um es-
guicho de perfume com cheiro de papel no leitor de e-books,
apenas para me frustrar com o fato de que todos os livros, a
partir de então, passariam a ter o mesmo cheiro. Que crime! Em
que universo doente Thomas Pynchon teria o mesmo odor que
Jane Austen?
Mas claro, eu não sabia nada disso na época. Era 2005 e eu con-
gelava do lado de fora do prédio de Juan Rodriguez, em Buenos
Aires. Rodriguez era meu escritor favorito nessa idade. Eu con-
tava 21 anos, tinha breves entradas no cabelo e recém estava no
segundo ano de jornalismo, quando resolvi aproveitar aquela
viagem a Buenos Aires com meus pais para tentar conseguir
uma entrevista com ele. Após um telefonema difícil, durante o
qual suei de vergonha pelo meu espanhol rudimentar, marquei
21. um encontro na sua casa. E lá estava eu, no gelo das calles do livros. Juan diz que prefere não autografar. Eu peço por favor.
bairro Retiro, com os ombros encarangados, esperando o por- Ele diz que eu sou jovem, e por isso ainda me emociono com
teiro aparecer para me abrir a porta. esse tipo de bobagem. Ele, Juan Rodriguez, autor conhecido,
despreza autógrafos, despreza lançamento de livros. Parece, no
A arquitetura da cidade, repleta de estátuas de anjos dourados, fundo, também detestar escrever.
assombrava. Um ônibus fantasma, de estado precário, vazio de
almas, passava na ocasião. O frio invadia as frestas do casaco, e O elevador passou pelo oitavo andar. Enfiei a cara no livro de
eu me perguntava se Buenos Aires era mesmo mais segura do Rodriguez para sentir o cheiro. Era inebriante.
que Porto Alegre. Um catador de lixo amassou umas latinhas na
esquina. O único café aberto empilhava as cadeiras de madeira Juan Rodriguez abre a porta. Depois de conversar amenidades,
para sinalizar o fechamento das atividades. Mais adiante, na ave- sento no seu sofá, e ele pergunta, num repente, se eu escrevo. Eu
nida 9 de Julio, tinha bares abertos. Onde eu estava, porém, a au- tiro da minha mochila estropiada um exemplar do meu livro de
sência noturna imperava. Um anjo de falso ouro poderia descer contos, um fino volume com uma horrível capa roxa. No instan-
do alto dos prédios decadentes, que algum dia foram chiques, e te em que puxo o livro, já me arrependo de mostrá-lo. Sei que,
abrir uma bocarra lotada de dentes e me engolir. Ninguém veria mesmo estando em português, ele vai querer dar uma olhada, e
nada. Não fazia ideia do motivo que levou Rodriguez a marcar o eu vou me envergonhar para sempre de ter mostrado para um
nosso encontro para as 23 horas; ou ele queria posar de excêntri- gênio aquele amontoado de textos juvenis e mal trabalhados. Ele
co, ou fazia parte de seus hábitos desregrados de escrita. olha a capa, o título, e sorri com o canto da boca. O clássico sor-
riso amarelo daquele que, por dentro, gargalha de desprezo.
Após uma eternidade, o porteiro me deixou entrar no prédio,
e eu disse, não sem certa pompa, que o señor Rodriguez me O elevador passou pelo décimo segundo andar.
aguardava. O porteiro respondeu: 21º andar. Já na entrada, a ca-
lefação mostrava força, contrastando com o frio da rua, e eu tirei Eu toco na campainha e Juan Rodriguez não abre a porta. Será
o casaco às pressas, para não subir com o rosto avermelhado. que ele tinha se esquecido da entrevista?
Quando pisei no elevador, descobri que o 21º era o último an- O elevador passou pelo décimo quinto andar.
dar do prédio. O elevador à moda antiga, de madeira, fechava
manualmente com uma grade de ferro. Apertei o botão e ob- Juan Rodriguez abre a porta, e junto com ele estão Rodrigo
servei a lentidão com que se movia. Fresán e Alan Pauls, dois dos melhores escritores argentinos
contemporâneos. Eles me convidam para entrar e viramos a
Juan Rodriguez abre a porta e eu sinto vinho em seu hálito. Ele noite bebendo tequila e discutindo se Bartleby é melhor do
contorce o rosto, como se passasse por uma dor excruciante na que Moby Dick ou não. Monto uma amalucada entrevista com
tentativa de me reconhecer, e então pergunta quem diabos sou os três e pego seus endereços. Fico de enviar para todos uma
eu. Respondo meu nome, digo que sou estudante de jornalis- cópia, assim que for publicado, do romance que eu estava es-
mo e que tinha marcado uma entrevista com ele. Rodriguez crevendo, uma história bizarra cheia de metalinguagem que se
resmunga: “no me acuerdo” — e bate a porta na minha cara. passa no velho oeste e que, no fundo, era sobre meu pai.
O elevador recém passou pelo terceiro andar e eu já sinto mi- O elevador passou pelo décimo oitavo andar, décimo nono,
nhas mãos tremerem. Minha imaginação se tumultuava com a vigésimo, vigésimo primeiro. Saí dele e fiquei um tempo em
possibilidade de um encontro horrível. Ela era tão vívida que silêncio no corredor escuro e vazio. Acendi a luz. O aparta-
pude sentir o cheiro de álcool. mento 214 ficava à direita. Toquei a campainha e enfiei as mãos
no bolso para fingir que a tremedeira era frio, e não nervosis-
CAMILA DOMINGUES
Juan Rodriguez abre a porta. Ele me convida para entrar. Está mo. Juan Rodriguez abre a porta. Ele diz: “Buenas noches”. Seu
bem barbeado e parece recém saído do banho. Eu sento no seu rosto é um pouco diferente das fotos que coloca nas orelhas de
sofá verde desbotado e ele me oferece café. Antes de começar a seus livros. As bochechas mais gordas, a calvície mais avança-
entrevista, eu decido pedir um autógrafo em cada um dos seus da, os cabelos mais grisalhos. Eu respondo: “Buenas noches”. §
21
22. livros • resenhas
Quem escreverá com maior ou menor aceitação (inclusive naqueles sobre os
quais pouco se fala, como a França e mesmo a Inglaterra);
nossa história? 5. Reducionismo etiológico: as tentativas de explicação do an-
Samuel D. Kassow tissemitismo nazista do Reich do entreguerras que o reduzem
a determinado traço do judaísmo devem ser descartadas, vis-
to que a literatura e o jornalismo da época demonstram como
mais de um ponto do judaísmo era repudiado (veja-se o caso
de Nietzsche, profundamente antissemita e antigermânico);
Companhia das Letras 6. O desconhecimento de época: já passou o tempo (pelo me-
632 páginas nos entre as pessoas razoáveis) em que se argumentava que os
R$ 62,50
crimes do Reich eram desconhecidos pela população, já que mi-
lhares de evidências provam o contrário, desde as informações
FELIPE PIMENTEL liberadas pela BBC ainda em 1943, o lançamento de O grande
ditador (1940), de Charles Chaplin, as fugas em massa dos ju-
Algumas vezes, ao ver um lançamento, livro ou filme, sobre deus mais abastados ainda na década de 1930 ou mesmo inúme-
o nazismo, me dá certo cansaço. Dois motivos: primeiro, tem ros relatos de época colhidos posteriormente e hoje disponíveis;
dias que desejo fingir que a vida é bela e não quero topar com
isso; segundo, há muita leviandade no trato com o tema. 7. O endeusamento estadístico do nazismo: se nos damos o
trabalho de ler o Mein Kampf, poderemos ver como Hitler
O primeiro motivo, de foro íntimo, não merece dissertação, ao acreditava ser o Estado o maior inimigo do homem, e aí dei-
passo que o segundo deve ser explicado. Após 65 anos do fim xaríamos de atrelar excesso de Estado com fascismo, visto que
da Segunda Guerra Mundial e de estudos sobre tal, qualquer sua proposta central era construir um povo eticamente perfei-
estudioso minimamente sério do nazismo precisa ter claros os to (segundo seus próprios parâmetros, razoavelmente compar-
seguintes parâmetros: tilhados com uma parcela do povo alemão — aquela que lhe
apoiou) que, por conseguinte, não precisaria de um Estado,
1. Fracasso das teses personalistas: nenhuma loucura indivi- mas a única forma de fazê-lo seria por meio do Estado;
dual dos líderes da Alemanha é capaz de ser a mola propulsora
do evento, muito menos da manipulação de toda uma nação, 8. O darwinismo grotesco do nazismo: ainda no Mein Kampf,
pois nem as massas são um objeto amorfo, nem aquela massa podemos ver como a derrota na guerra (ou mesmo episódios
deixou de desejar o fascismo (Reich foi o primeiro a dizê-lo); famosos como a vitória dos atletas negros nas Olimpíadas de
1936, em Munique) não representaria para os nazistas a ratifi-
2. Espetacularização do evento: tomado como evento extraordi- cação de uma espécie de “inferioridade” do seu povo, visto que
nário, o nazismo é pouco compreendido e também pouco com- a ideia de superioridade da raça ariana está sempre atrelada às
batido, visto que seu modo de funcionamento — a suposição de capacidades intelectuais;
que o outro deve ser eliminado, tanto física quanto subjetivamen-
te — é um mecanismo corriqueiro (e o fato de existirem estra- 9. O ponto central do Mein kampf: a sedução que provoca em
tégias industriais e instituições para tal é mais cotidiano ainda); muitas pessoas esse livro, supondo-se que nele há coisas extraor-
dinariamente bizarras, deve ser descartada, pois sua ideia central é
3. Revisionismo: qualquer interpretação que procure mitigar a proposta de construção de uma nação ordenada, composta por
os efeitos do desastre ou reescrever o nazismo deve ser despre- cidadãos respeitadores das leis e trabalhadores em prol da nação,
zada, porque está posto que os ataques às etnias perseguidas, todos absolutos exemplos morais. No estágio inicial, as institui-
iniciados em 1935 (Leis de Nuremberg), estenderam-se até a ções de vigilância, legislação e aplicação de pena seriam necessá-
Endschloss (solução final), tomada no inverno de 1942 e regis- rias, mas, ao longo do tempo, seriam dissolvidas. Ou seja, a ideia é
trada no Protocolo de Wannsee; simples e, pode-se dizer, comum, o difícil é a responsabilização de
determinado grupo e a resolução com os supostos “não exemplos”.
4. Nazismo às avessas: a análise que atrela nazismo e germanis-
mo repete o funcionamento básico do próprio nazismo, sobre- Estes são parâmetros mínimos de debate sobre o nazismo. Sem
tudo porque o fascismo ocorreu em muitos países da Europa, eles, rumamos para o lado errado na interpretação. Com eles,
22
23. Destruição do Gueto
de Varsóvia (1943)
podemos, acima de tudo, direcionar nossa atenção, nosso es- que seu povo passava, agregando intelectuais para discutirem o
tudo e nossa pesquisa sobre o tema. Mas então, o que restou? evento e jornalistas para entrevistarem as pessoas comuns, com
o intento de postergar à humanidade o terror que passavam.
Restou pouca interpretação e muito arquivamento. O nazismo e Os documentos foram enterrados em doze caixas de ferro no
suas bases estão suficientemente explicados. Do ponto de vista dos gueto. Ringelblum acabou morto no levante.
seus fundamentos, devemos estar preocupados com os neonazis-
mos. O que nos deve motivar a ler e pesquisar agora são os relatos, Hersch Wasser, economista de formação, sobreviveu às mais in-
os documentos e os arquivos que poderão devolver às vítimas do tensas perseguições: quando da invasão do Reich, fugiu de Lodz,
nazismo — que sofreram a perversidade de se verem despidas de no centro da Polônia, em um trem em que soldados alemães
sua humanidade inclusive na hora da morte — a sua subjetivida- espancavam os passageiros, e chegou a Varsóvia, de onde foi
de e sua singularidade no mundo. Os documentos que poderão enviado ao gueto. Posteriormente, quando do levante do gueto,
descrever a luta, muitas vezes inglória, daqueles que combateram acabou preso e mandado para Treblinka, quando saltou do trem
o nazismo até o último minuto e que servirão de exemplo e polí- que o levava para a morte. Conseguiu retornar para Varsóvia,
tica para seus descendentes, reais ou simbólicos. Os arquivos que tendo seu esconderijo descoberto pelos alemães, e salvou-se de
darão um nome para o corpo da vala coletiva, os arquivos que uma chacina. Wasser sobreviveu à guerra, retornou em 1946 e
denunciarão os criminosos, os arquivos que mostrarão a desuma- comunicou onde estavam as caixas com o arquivo.
nidade. Os arquivos — que dão vida àquelas retiradas.
Rachel Auerbach, judia de participação política ativa no
É nesse quadro que tomo com satisfação a obra Quem escreverá pré-guerra, escrevia críticas literárias em revistas iídiches.
nossa história?, de Samuel D. Kassow, professor de História no Durante a guerra, após escapar dezenas de vezes da morte,
Trinity College, em Connecticut (EUA). A história do livro é conseguiu fugir para o lado ariano, onde clandestinamente,
mágica. carregando dinheiro e documentos dentro de uma cesta de
frutas, registrou os horrores nazistas. Sobrevivente à guerra,
Emanuel Ringelblum, historiador de origem judia e polonês de dedicou-se à defesa do patrimônio histórico judaico.
nascimento, esteve envolvido com todas as querelas políticas
do judaísmo do início do século 20, participou do Poalei Sion Eles são três dos milhares de atores dessa história. Não pode-
de esquerda (partido sionista polaco) e do Alleynhilf (a orga- mos dizer “os mais importantes”, “os mais ativistas”. Outros
nização de auxílio aos judeus no gueto de Varsóvia), foi preso lutaram, outros fugiram. Alguns cuidaram de crianças, alguns
quando da invasão da Polônia pelo Reich em setembro de 1939 doaram dinheiro. Vários serviram comida para os pobres, vá-
e enviado para o Gueto de Varsóvia. Ele organizou a forma- rios morreram. A história do arquivo, o Oyneg Shabes, é a his-
ção de um arquivo (o Oyneg Shabes) para documentar tudo o tória de todos esses.
23
24. livros • resenhas
gueto, em um alto cargo no Aleynhilf. E é durante o gueto que
Ringelblum organiza o Oyneg Shabes, reunindo dezenas de pes-
soas para documentar os horrores que passavam. Neste ponto,
o livro (por conta da própria situação histórica) torna-se mais
denso afetivamente, pois passamos a ver o esforço sobre-huma-
no de um povo: são milhares de pequenas ações, desde doações
em dinheiro e facilitações de fuga até a organização de uma sopa
comunitária para alimentar os famintos. O Judenrat, organismo
nazista responsável pela questão judaica, iniciou as parówki (de-
sinfecções), as deportações, os extermínios. Aí, milhares de rela-
tos de época, absolutamente terríveis, ganham corpo. São relatos
de ex-operários, de intelectuais, de mães de família:
(falando sobre seu estômago) ele não pensa. Ele grita, é de
matar! Ele exige, ele me provoca. Por que você está gritando
assim? Porque eu quero. Porque eu, seu estômago, estou com
fome. Você entende isso agora? Quem está falando com você
assim? Você é dois. Arke. É uma mentira. Uma pose. Não seja
convencido. Esse tipo de divisão valia quando a pessoa estava
saciada. Aí sim, era possível dizer: duas pessoas estão lutando
dentro de mim, e podia se fazer uma cara dramática e marti-
rizada. É, esse tipo de coisa se encontra muito na literatura.
Samuel D. Kassow Mas hoje? Não diga bobagem — é você e seu estômago. É seu
estômago e você. É noventa por cento do seu estômago e um
O livro de Kassow é praticamente uma micro-história (no sen- pouquinho você. Um pequeno resto, um resto insignificante
tido teórico da escola historiográfica). A partir da trajetória de de Arke que existia antes (182).
Emanuel Ringelblum, idealizador do arquivo, podemos acom-
panhar toda a história dos judeus do leste europeu (majorita- Daí em diante, o livro praticamente deixa de ser o que pare-
riamente da Polônia) desde o fim do século 19 até a Segunda cia, um romance, um livro histórico, para assumir a dimensão
Guerra Mundial. Podemos acompanhar as querelas teóricas de documento, de arquivo. É como se fosse o próprio Oyneg
que o movimento sionista encontrou, os debates entre secu- Shabes: relatos e mais relatos, entrevistas, crônicas, diários e
larização e sacralização da luta do povo judaico contra a Di- biografias de pessoas fadadas ao martírio que, através de Rin-
áspora, a formação dos partidos políticos no tenso período do gelblum, e de Kassow, adquirem humanidade e a única eterni-
entreguerras, a discussão sobre os traços culturais judaicos e a dade possível, um alívio a seu temor maior, não mais a morte,
adaptação ou não às nações pertencentes, a defesa do iídiche visto que certa, mas um temor outro, que este texto de Lewin,
ou do hebraico frente às línguas nacionais, a literatura e a arte preso no gueto, apresenta:
judaica, os pogroms, as mortes.
Como é terrível que uma geração inteira — milhões de judeus
No decorrer desses impasses, Ringelblum trabalhou ativamen- — tenha de súbito se transformado numa comunidade de
te pela causa judaica: aliou-se ao Poalei Sion de esquerda, par- ‘mártires’, que têm de morrer de maneira tão cruel, degradante
tido sionista cujo grande líder Ber Borochov defendia o atre- e dolorosa e passar pelos tormentos do inferno antes de ir para
lamento de marxismo e sionismo; participou da fundação do o cadafalso. Terra, terra, não recubra nosso sangue e não silen-
Instituto Científico Iídiche (o Yivo); escreveu em dezenas de cie, para que nosso sangue grite até o final dos tempos e clame
revistas iídiches; organizou congressos sobre sionismo. Mas foi por vingança por este crime sem paralelo na nossa história e
a guerra que lhe exigiu mais. em toda a história da humanidade (218).
Quando da invasão do Reich, Ringelblum não abandonou Var- Cumpre dizer, refutando Adorno e seu dito “não se faz poe-
sóvia, tampouco o gueto, e iniciou o seu trabalho de assistente sia depois de Auschwitz”, que a própria não deixou de ser uma
social: primeiramente, no Joint Distribution Committee (JDC), arma, ainda que solitária e ineficaz no plano efetivo, de luta. Ao
a principal entidade assistencial judaica na Polônia, e depois no menos de luta contra a finitude e contra o corpo que agoniza. §
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25. Por 10 anos, Louis
Beegles manteve o
hábito de passear no
Parque Municipal de
Urbânia, olhando a esmo
os mendigos-poetas de
chapéu coco no chão
O VIAJANTE com uma única nota
de dinheiro dentro,
as suaves ciclistas
de shorts minúsculos
e os namorados que
exibiam os vários
estágios do romantismo.
Um dia, Beegles cruzou com um estranho
na avenida central do parque e, ao passar
por ele, estava enxergando pelos olhos
do desconhecido. Assustado, viu que
agora vestia outras roupas, segurava
uma pasta que antes não possuía e sentia
dor nos pés pelos sapatos apertados.
Duas horas depois,
ainda atônito, Por meses,
descobriu-se em seu Beegles voltava
próprio corpo, jogado ao parque aos
sobre o cascalho no domingos, e em
outro extremo do todos eles, sem
parque. Suas pernas explicação ou Assustado um dia decidiu
haviam se deslocado lógica, passava não ir ao parque, como
sem ele e caíra. duas horas no sempre, e sim a uma praça
corpo de outra à beira do rio Fluvium.
pessoa. Em todas Toda a tarde, foi assaltado
essas ocasiões, pela impressão angustiada
acordava de que estava perdendo
machucado pelos algo, ou que precisava
acidentes que desesperadamente
seu corpo estar em outra parte.
sofria sem ele.
Até que aconteceu.
Piscou os olhos andando
e, ao abri-los outra vez,
estava sentado em um
ônibus em direção à zona
Leste de Urbânia.
Ao olhar seu relógio,
notou, abismado, que duas
horas de sua vida haviam
se passado sem que ele
tivesse percebido.
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