O documento descreve a vida e carreira do médico e escritor Francisco Michielin, conhecido como Chico. Ele nasceu em 1943 em Caxias do Sul e desde criança demonstrou paixão por literatura e futebol. Chico trabalhou no jornalismo antes de se tornar médico cardiologista e também atuou como professor universitário. Ele escreveu 12 livros sobre suas paixões.
1. Acadêmica: Cláudia Alessi
Perfil: Francisco Michielin
O Chico é assim
Médico cardiologista e escritor apaixonado por futebol, Francisco Michielin, 67 anos,
teve passagem marcante no jornalismo e na vida acadêmica, como professor
universitário. Torcedor fiel do Esporte Clube Juventude, Chico, como prefere ser
chamado, é casado, tem três filhos e dois netos. Apaixonado por literatura de ficção e
não ficção, escreveu 12 livros, nove deles publicados
O ônibus partia às cinco da manhã da estação rodoviária de Caxias do Sul com
destino à Rondinha, pequena praia localizada próximo a Paraíso, no litoral norte do Rio
Grande do Sul. A viagem acontecia pela região costeira, sobre a areia. Depois de
inúmeras horas, esteiras de madeira precisaram ser utilizadas para que o ônibus saísse
do atoleiro. Com um livro na mão, um menino de sete anos observava os „marmanjos‟
trabalharem pesado para dar continuidade ao passeio.
O destino reservava um hotel de madeira quente e abafado que seria o abrigo
daquele garoto que não desgrudava do “Ruth e Alberto resolveram ser turistas”, de
Cecília Meireles. O livro, por coincidência, contava a história de dois jovens que
também conheciam o mar pela primeira vez. Mais atenção lhe chamou a leitura do que o
oceano em si. O pequeno Chico foi ao mar duas ou três vezes durante suas férias que
duraram uma semana, tempo suficiente para ler e reler o romance cerca de dez vezes.
Óculos pequeno e de armação arredonda, cabelos grisalhos, olhos azuis, a
barriga saliente escondendo-se por debaixo da malha e um sorriso no rosto. Apaixonado
pela literatura desde a infância, Chico, o Francisco Michielin, 67 anos, ainda se lembra
das páginas do livro que o acompanhara nas cerca de 14 horas de viagem em sua
primeira visita ao mar.
2. Nascido no dia 17 de julho de 1943, em Caxias do Sul, Chico conta sua história
de vida junto a acontecimentos importantes que marcaram o passado da cidade. No
sábado em que nasceu estreava no Cinema Guarany, em Caxias, Cidadão Kane,
considerado por ele o „filme do século‟. “Briguei com as enfermeiras que não me
liberaram para assisti-lo”, brinca. Outro acontecimento, porém, obrigaria Chico a
„abandonar‟ o hospital antes do tempo previsto de uma semana. Dois dias depois de seu
nascimento a empresa Gazola, que trabalhava com armação de reforço de guerra,
explodiu, matando algumas pessoas e deixando várias feridas. Ainda bebê, ele cedeu a
cama do hospital aos machucados.
Uma rua dentro de casa
O pequeno Chico saiu do hospital direto para a casa onde ele costumava dizer
que nada lhe faltava. Ali ele cresceria em meio à vizinhança que até hoje se reúne para
lembrar a época. Estavam presentes seus pais e o casarão de madeira cor de marmelo
que abrigava os menores abandonados. “Os internos faziam um presépio fantástico todo
Natal, era uma obra que encantava”, lembra. Tinha também o cabaré da Tia Jovina,
velha senhora com aspectos de vovó que se debruçava na janela durante o dia para
brincar com os garotos.
Aquele lugar despertaria em Chico uma paixão que viria antes mesmo da
literatura. O menino que morava próximo ao campo do Juventude tinha afeição pelo
clube e pelo futebol. Uma das atividades preferidas do garoto era atravessar o Rio Tega
equilibrando-se em cima das estacas de madeira que davam passagem de um lado a
outro. À tarde, ele e um grupo de amigos, seus vizinhos, costumavam reunir-se e fazer
da Rua Bento Gonçalves seu próprio estádio, gastando horas a praticar o esporte.
Chico lembra que havia senhoras que não gostavam da brincadeira dos moleques
e escolhiam o horário dos jogos para ir à padaria comprar o pão do café da tarde. Dona
3. Celina era uma das que saiam à rua só para interromper a partida. “Quando elas
passavam, nós parávamos por respeito. Quando eram carros, nos achávamos no direito
de reclamar”, conta.
Os garotos resolveram „fundar‟, em 1950, um time para jogar juntos, o Esporte
Clube Estrela. Como o grupo reunia, em sua essência, torcedores do Juventude, eles
fizeram um pacto de que a data de fundação seria a mesma do clube do coração, o dia
29 de junho. Embora tudo aquilo fosse fictício, o amor que sentiam pelo Ju os fez levar
a „mentira‟ adiante.
Não bastasse o time com „fundação falsa‟, eles pensaram que o time precisava
de um jornal que divulgasse o que acontecia no mundo do Estrela. Como um único
garoto do grupo sabia utilizar a máquina de escrever, a ele delegaram a função de
transcrever as matérias. O jornal era produzido pelos amigos e distribuído na
comunidade, iniciativa que despertou o gosto de Chico pelas letras.
Assim no esporte como no jornalismo
A „brincadeira‟ de apurar informação e redigir matérias ganhou maior destaque
quando Chico começou a participar do jornal bimestral do Colégio Nossa Senhora do
Carmo. Aos 14 anos, depois de colaborar por um tempo com as publicações, o jovem
passou a ser editor do jornal da escola. Paralelo a esta atuação, ele recebeu um convite
para trabalhar num dos maiores jornais da cidade, o Pioneiro.
No dia da entrevista, o chefe da redação de esportes, Artur Corrêa, que também
era linotipista e atendia pelo apelido de „Pioneiro‟, perguntou sobre o que Chico queria
escrever. “Futebol, respondi eu. Ele foi seco e direto: Todo mundo quer escrever sobre
futebol”, lembra. A saída encontrada foi cobrir um torneio de bochas que ocorreu
concomitante à Festa da Uva. O trabalho de Chico foi acompanhar os jogos e apresentar
os resultados no final, nada que o tenha cativado muito.
4. O crescimento dentro do jornal não demorou muito para aparecer. Depois de
um mês, o garoto ganhou a coluna „Apreciando e Comentando‟, que em pouco tempo se
tornaria „Ouvindo e Anotando‟. O trabalho durou de 1958 a 1961, tendo como resultado
mais de 100 crônicas, atuação em diferentes áreas e sua „conhecida‟ assinatura, que na
época levava somente as iniciais FM.
Ainda com 15 anos, Chico foi convidado por Dante Andreis, da rádio Caxias,
para ser redator do programa de esportes. Ao assumir o emprego, uma vaga de locutor
apareceu e, quando se deu conta, estava escalado para atuar na jornada de esporte.
“Com minha voz rouca ia para o campo, me posicionava atrás das goleiras e dali fazia
minha função de rádio repórter”, lembra. Chico permaneceu na rádio por dois anos,
trabalhando também como comentarista esportivo quando os titulares não podiam.
Mesmo jovem, ele era responsável e desenvolvia um trabalho sério e de
qualidade. A recompensa viria com sua indicação para ser correspondente de esporte em
Caxias, em 1959, para Cid Pinheiro Cabral, da Caldas Júnior, empresa semelhante ao
Grupo RBS. “Cabral era o „papa‟ do jornalismo esportivo, era o dono das páginas da
Folha de Esporte”, comenta Chico.
Era uma manhã fria quando ele desembarcou em Porto Alegre para se apresentar
no jornal. Tudo o que lhe pediram era que sentasse na máquina e escrevesse a situação
atual dos times caxienses. Ele entregou o texto e ao chegar na rodoviária decidiu
comprar uma Folha da Tarde, jornal que saía sempre logo depois do almoço. “Fiquei
surpreso quando vi que eles tinham publicado o texto que acabara de escrever”, revela.
Em 1960, o correspondente do Correio do Povo, que na época também pertencia
ao Caldas Júnior, abriu mão do serviço. Manuel Amorim de Albuquerque,
representando o Correio, chamou Francisco Michielin, então, para que assumisse a nova
5. vaga. Chico passou a enviar conteúdo para os dois veículos, além de assumir a função
de correspondente da Rádio Guaíba, emprego que manteria até metade de 1961.
Ainda em 1960 um fato importante marcaria a história do Clube Flamengo, atual
Ser Caxias. Embora torcedor fanático do Juventude, Chico procurava manter a
neutralidade quando estava trabalhando. Naquele ano, o Caxias disputaria a vaga que
levaria um clube da segunda divisão do Campeonato Gaúcho para a primeira série com
o Guarani de Bagé. Com o jogo empatado, o Caxias garantiu a primeira colocação.
Porém, no final do jogo os torcedores do Flamengo atiraram um foguete que atingiu o
goleiro adversário, Gainete, que sofreu traumatismo craniano.
Enquanto a mídia noticiava somente o incidente ocorrido e o risco do clube
perder os pontos que obtivera na partida, Lautério Peccini, presidente do Flamengo,
convidou Chico para uma conversa em seu hotel. O garoto se encontrou com a diretoria
do clube à meia-noite e permaneceu lá até às três da manhã, de onde o texto foi
encaminhado direto para a capital. “A matéria saiu fresquinha naquele mesmo dia,
exatamente como a enviei. Na foto, eu e a diretoria do clube discutindo o outro lado da
notícia”, relata.
O acúmulo de empregos, porém, não duraria muito tempo. Chico estava prestes
a terminar o ensino médio e tinha o sonho de cursar medicina. Sem opções em Caxias
do Sul, ele precisava se preparar para o vestibular e a nova vida na capital gaúcha. “Fui
largando os empregos aos poucos e no fim fiquei só com a Folha da Tarde Esportiva, já
que ela era mais específica”, sustenta.
Um brinde à medicina
Entre o jornalismo e a medicina, Chico optou por seguir carreira na profissão
que fazia seu coração bater mais forte desde os nove anos de idade. O tio Darwin
Gazzana, que fora criado pelos pais de Chico, era médico pediatra. No dia de sua
6. formatura ele convidara dona Diva, a mãe de Chico, já viúva, e ele para participarem.
De manhã, antes que as cerimônias tivessem início, o tio precisou passar no Hospital
Santa Casa e levou o menino consigo. “Aquele cheiro de remédio e doença me invadiu e
me fez tão bem que a partir daquele momento eu disse que queria ser médico”, conta.
O emprego na Folha da Tarde foi largado no primeiro ano do curso na Fundação
Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre, pois as matérias e as
disciplinas juntas começaram a pesar muito. “Gostava dos dois, mas pensei em escolher
um e fazer bem feito. Naquele momento a medicina era prioridade”, afirma. Ele, porém,
não abandonou o apego e a paixão pelas letras, participando e vencendo alguns
concursos literários abertos a todos os acadêmicos.
Em 1970, já com residência em cardiologia, Chico voltou para Caxias do Sul.
Dois anos depois casou-se com a rainha da Festa da Uva de 1969, Elizabeth Maria
Menetrier, a Beti, com quem teve três filhos, Francisco Filho, 39, e João Henrique, 37,
hoje cardiologistas, e Letícia, 31, que atualmente vive em Buenos Aires e trabalha com
jornalismo e publicidade e propaganda.
Como ainda não existia uma Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) na cidade e
sua especialização restringia seu trabalho, Chico fundou a primeira urgência médica do
município no Hospital Saúde, em 1973. Em 1975 fundou a PROCOR (Pronto Socorro
Clínico Cardiológico), o primeiro serviço de cardiologia oferecido fora de um
consultório e que até hoje funciona no Hospital Dr. Del Mese, onde os dois filhos
cardiologistas trabalham.
Uma bolsa de estudos em Milão, na Itália, fez com que Chico deixasse a cidade
novamente, agora por seis meses, para aprimorar seu conhecimento no Centro de
Cardiologia de Bombardier, no Hospital Maggiore. Ao retornar, ele continuou atuando
na área da medicina cardiológica, mas não se envolveu mais com implantação de novos
7. serviços, pois esse já não era mais o seu objetivo. Além dos consultórios, as salas de
aula da Universidade de Caxias do Sul (UCS) também abrigariam Chico, que atuou
como professor durante 39 anos, encerrando suas atividades na instituição há dois.
Da paixão que o une à medicina e também ao jornalismo brotam algumas de
suas aventuras. “Existem duas coisas que não posso deixar de visitar quando viajo:
hospitais e jornais”, revela. Chico foi para a Suíça em 2003 e, enquanto a mulher o
aguardava do lado de fora, entrou em um hospital de mansinho. Ao perceber que não
tinha sido notado pela recepção, seguiu as placas de indicação até o andar da
cardiologia. Bateu na porta de uma sala onde se encontravam médicos e algumas
enfermeiras. “Elas faziam sinal indicando que não podia entrar e eu insistia do lado de
fora”, conta. Quando conseguiu entrar, explicou que era cardiologista e passou a
conversar com os profissionais. “Saí de lá com um vasto material de literatura médica”,
revela.
Uma vez para sempre
Chico continua exercendo sua profissão de cardiologista, embora o amor pela
literatura e o futebol ainda permaneçam. Prova dessa paixão verídica é a „segunda‟
profissão do médico atualmente: escritor. Depois de ter passagem como cronista no
Pioneiro, Chico partiu para a literatura de ficção e não ficção, escrevendo 12 livros até
hoje, nove deles publicados.
Duas de suas obras foram dedicadas à turma de medicina que se formou com
Chico em 1969. Um deles contou a história de sua própria infância. Alguns reuniram
conhecimento científico sobre medicina e cardiologia. Entretanto, o que o escritor mais
gosta é de falar sobre futebol e é a ele que os últimos títulos fazem referência. “Sou
apaixonado pela escrita e por futebol. Resolvi unir as duas paixões em uma única
atividade”, diz.
8. O maior problema que Chico enfrenta como escritor é negociar com as editoras.
“Tenho três livros „engavetados‟ aguardando publicação. É difícil lidar com o sistema
das editoras”, afirma. O médico garante que a atividade é um „hobby‟ para ele e afirma
a dificuldade de se manter financeiramente com a profissão. “Temos a cultura, em
Caxias de pagar caro para „comer bem‟ e exibir „camionetões‟. Livros, ninguém
compra”, desabafa.
O amante das letras guarda um acervo incrível em sua biblioteca pessoal,
reunindo aproximadamente 5 mil livros e cerca de 500 diferentes exemplares de revistas
ilustradas. “Me considero um rato de livraria, feira do livro e sebo”, brinca. A coleção
de revistas reúne as melhores de esporte ilustradas do Brasil e do mundo. Prova disso é
a assinatura que Chico mantém há 76 anos da semanal italiana, agora mensal, Guerin
Sportivo.
O Juventude é outra paixão que persiste na vida de Francisco. Com os olhos
brilhando, o avô da Valentina, 4 anos, e o Tiago, 8 meses, conta como foi a primeira ida
do neto ao Alfredo Jaconi. “Eu estava atrás das goleiras, meu lugar preferido, quando
meu filho Francisco chegou com a Valentina e o Tiago”, diz. A aventura do pequenino
durou pouco. Depois de 20 minutos o pai precisou abandonar o estádio. “Valeu a pena”.
As aventuras de Mr. Chico (Box 1)
Ao voltar de uma viagem com sua esposa Bete, Chico degustou a cidade até o
fim e atrasou-se para embarcar no avião, precisando correr para não perder o voo. Ao
sentar-se e acomodar-se, ele pediu a aeromoça uma cerveja. Bete sentava na ponta, ele
no meio e na poltrona da janela estava um espanhol. Com muita sede, ele apressou-se a
abrir a lata de cerveja, ficando com o anel na mão e um pequeno furo na embalagem. A
ajuda que a esposa ofereceu foi recusada e Chico começou a apertar a latinha para o
líquido encher o copo. Vendo que o trabalho não progredia, resolveu erguer a cabeça e
9. verificar o que estava errado. “Quando me dei conta, o espanhol do meu lado estava
„lavado‟ de cerveja. Naquela hora, língua nenhuma me vinha à mente. Peguei um
guardanapo e passei a limpá-lo”, conta. Depois que o voo decolou, o homem ao seu
lado levantou-se e procurou outro lugar para se sentar. “Resultado: eu e a Bete ficamos
com mais espaço livre”, brinca. Outra grande confusão aconteceu no final de uma
partida de futebol em que o Juventude perdeu o jogo para o Internacional com um gol
de pênalti „arranjado‟ pelo juiz. Chico e mais alguns torcedores esperaram na porta do
estádio a saída dos árbitros. Em meio ao tumulto, ele foi agredido com um cassetete por
um dos seguranças. Já em casa, ao vestir seu pijama, a esposa notou o hematoma preto
em sua barriga. “Bati na torneira do banheiro enquanto tomava banho, menti a ela”,
confessa. No dia seguinte, seus amigos encontraram Beti e perguntaram se a agressão
que Chico havia sofrido tinha lhe ferido muito. “Eu nasci para ser Mr. Bean”, finaliza,
rindo.
Livros publicados (Box 2)
Um misto de ficção e não ficção resumem a obra de Francisco Michielin. Seus
livros retomam a história do personagem que ainda menino foi jornalista e amante da
bola e do Juventude. Médico cardiologista, professor universitário e „dono‟ das letras,
Chico deixa um pedaço de si, de Caxias, da medicina e do futebol em suas obras.
Confira abaixo os nove livros já publicados pelo escritor:
- 1988: Nós éramos assim
- 1991: Uma rua dentro de casa
- 1994: Assim na terra como no céu
- 1997: Depois da última lua
- 2003: Doenças do coração
- 2007: Um brinde à saúde
- 2008: Para voar, voamos
- 2008: A primeira vez do Brasil