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1
Shankara
Viveka Chuda Mani
(A Jóia Suprema do Discernimento)
Índice
Índice _________________________________________________________________________ 1
Prefácio _______________________________________________________________________ 2
I Shankara_____________________________________________________________________ 3
II A Filosofia do Não-Dualismo____________________________________________________ 5
O espírito da filosofia de Shankara______________________________________________________ 5
A natureza da aparência de mundo _____________________________________________________ 6
Sobreposição, ou Maya________________________________________________________________ 7
Maya: uma declaração de fato e de princípio _____________________________________________ 7
Brahman e Iswara ___________________________________________________________________ 9
O problema do mal__________________________________________________________________ 10
A meta suprema ____________________________________________________________________ 12
Métodos e meios ____________________________________________________________________ 13
III A Jóia Suprema do Discernimento______________________________________________ 14
A senda____________________________________________________________________________ 14
O discípulo_________________________________________________________________________ 15
O mestre___________________________________________________________________________ 16
As perguntas _______________________________________________________________________ 17
Atman e não-Atman _________________________________________________________________ 19
Vigília, sono, sono sem sonhos _________________________________________________________ 20
Maya______________________________________________________________________________ 21
2
O Atman __________________________________________________________________________ 22
A mente ___________________________________________________________________________ 23
O corpo ___________________________________________________________________________ 24
Purificação_________________________________________________________________________ 25
O invólucro do intelecto ______________________________________________________________ 26
Ilusão _____________________________________________________________________________ 27
O invólucro da bem-aventurança ______________________________________________________ 28
Atman é Brahman___________________________________________________________________ 28
O universo _________________________________________________________________________ 29
Eu sou Brahman ____________________________________________________________________ 30
Isso és Tu __________________________________________________________________________ 30
Devoção ___________________________________________________________________________ 32
Falsa identificação __________________________________________________________________ 33
O ego _____________________________________________________________________________ 34
Desejos ____________________________________________________________________________ 35
Recolhimento_______________________________________________________________________ 36
Rejeição das aparências ______________________________________________________________ 36
A corda e a cobra ___________________________________________________________________ 37
Samadhi ___________________________________________________________________________ 38
Controle interior e exterior ___________________________________________________________ 39
O um______________________________________________________________________________ 40
Libertação _________________________________________________________________________ 41
O mundo fantasma __________________________________________________________________ 41
União com Brahman_________________________________________________________________ 42
Desprendimento ____________________________________________________________________ 42
Impassibilidade _____________________________________________________________________ 43
Iluminação_________________________________________________________________________ 43
A cessação do sonho _________________________________________________________________ 44
A flecha não se deterá________________________________________________________________ 45
Brahman é tudo_____________________________________________________________________ 46
O discípulo se rejubila _______________________________________________________________ 47
A jóia suprema _____________________________________________________________________ 49
IV Shankara formula e responde a algumas importantes perguntas______________________ 53
Prefácio
3
A Jóia Suprema do Discernimento é um texto clássico do Vedanta a respeito do caminho para Deus através
do conhecimento. Seu ensinamento básico é o de que só Deus é a realidade que a tudo permeia; a alma
individual não é outra senão a alma universal.
Shankara (686-718 d.C.) representa uma fonte proeminente da sabedoria oriental. Ele desfruta de enorme
popularidade devido à maneira clara e racional com que aborda temas relacionados com a religião.
No entanto, como este livro irá mostrar, ele também era capaz de grande devoção. Renúncia, discernimento,
autocontrole - são estas as suas senhas. Alguns talvez não se agradem da sua austeridade, sobretudo nas
partes iniciais do diálogo que ele mantém com um provável discípulo; mas é justamente essa severidade
que serve de valioso corretivo para os perigos do sentimentalismo fácil.
Shankara não tem ilusões a respeito deste mundo de Maya; ele condena seus aparentes prazeres com uma
franqueza brutal. Por essa razão é que ele consegue descrever com tanta intensidade a completa
transformação do universo que acontece diante dos olhos do iluminado, na qual o mundo se toma, de fato,
um paraíso. Depois de árduos embates, o discípulo da Jóia Suprema alcança a realização, e o livro de
Shankara termina com a magnífica explosão da sua alegria.
* * * * * *
Ó Senhor, que habitais em nosso íntimo
Vós sois a luz
No lótus do coração.
Om é o vosso eu,
Om, a mais sagrada das palavras,
Origem e fonte das escrituras.
Não pode a lógica descobrir-vos,
Ó Senhor, mas os iogues
Vos conhecem na meditação.
Em vós estão todas as faces de Deus,
Suas formas e aspectos;
Em vós também
Encontramos o guru.
Estais em todos os corações
E se, uma vez que seja,
Um homem abrir
Sua mente para receber-vos,
Em verdade esse homem
Será livre para sempre.
Shankara
I
Shankara
Magníficas e fantásticas nuvens de lenda cercam a figura austera, fascinante e pueril de Shankara - santo,
filósofo e poeta. Mas, historicamente falando, sabemos muito pouco sobre as circunstâncias de sua vida.
Shankara nasceu em ou por volta de 686 a.D., de pais brâmanes, em Kaládi, vilarejo do Malabar Ocidental,
no Sul da índia. Aos dez anos já era um prodígio acadêmico. Não só tinha lido e decorado todas as
escrituras como escrevera comentários sobre muitas delas e travara discussões com renomados eruditos
que de todas as partes do país acorriam para vê-lo.
4
Mas o menino estava insatisfeito. Numa época em que a maioria das crianças ainda mal começara a
estudar, já ele estava descontente com o vazio do conhecimento livresco. Ele viu que seus professores não
praticavam as sublimes verdades que pregavam. De fato, toda a sociedade em que ele vivia era materialista
e dada à busca dos prazeres. A índia estava passando por um período de decadência espiritual. Shankara,
ardendo de zelo juvenil, resolveu fazer de sua vida um exemplo que pudesse reconduzir os homens à senda
da verdade.
Por essa época, seu pai faleceu. O menino se viu às voltas com o enigma da vida e da morte, e decidiu
decifrá-lo. Iria renunciar a tudo em sua busca do significado da existência. Foi então que escreveu o poema
Moha Mudgarwn - O Fim da Ilusão. Eis uma tradução mais ou menos literal desse poema:
Quem é a esposa? Quem é o filho?
Estranhos são os caminhos deste mundo.
Quem és tu? De onde vieste?
Vasta é a ignorância, meu bem-amado.
Medita, pois, sobre essas coisas e adora o Senhor.
Vê a loucura do Homem:
Na infância ocupado com seus brinquedos,
Na juventude seduzido pelo amor,
Na maturidade curvado sob as preocupações -
E sempre negligente com o Senhor!
As horas voam, as estações passam, a vida se escoa,
Mas a brisa da esperança sopra continuamente em seu coração.
O nascimento traz a morte, a morte traz o renascimento:
Esse mal não necessita de prova.
Onde, pois, ó Homem, está a tua felicidade?
Esta vida tremula na balança
Qual orvalho numa folha de lótus -
Não obstante, o sábio pode nos mostrar, num instante,
Como atravessar esse mar de mudanças.
Quando o corpo se cobre de rugas, quando o cabelo encanece,
Quando as gengivas perdem os dentes, e o bordão do ancião
Vacila sob o seu peso como um caniço,
A taça do seu desejo ainda está cheia.
Teu filho pode trazer-te sofrimento,
Tua riqueza não te garante o céu:
Não te vanglories, pois, de tua riqueza,
Nem de tua família, nem de tua juventude –
Todas elas passam, todas hão de mudar.
Sabe isso e sê livre.
Entra na alegria do Senhor.
Não busques a paz nem a discórdia
Com amigos ou parentes.
Ó bem-amado, se queres alcançar a liberdade,
Sê igual em tudo.
Shankara então persuadiu sua mãe a deixá-lo consagrar-se à vida monástica, prometendo ir visitá-la antes
que ela morresse. Depois, tendo providenciado o indispensável às suas necessidades, partiu em busca de
um mestre.
Às margens do rio Narmada encontrou Gaudapada, célebre filósofo e vidente que alcançara o conhecimento
da Realidade. Shankara pediu ao velho sábio que se encarregasse de sua iniciação, mas Gaudapada
recusou-se a atendê-lo. Fizera voto de permanecer absorto na união com Brahman. Enviou, porém, o
menino ao seu principal discípulo, Govindapada. Govindapada iniciou-o e instruiu-o na meditação e no
inteiro processo da Ioga. Em pouco tempo Shankara alcançou a completa realização mística e começou ele
próprio a ensinar.
5
Uma manhã, quando ia banhar-se no Ganges, encontrou um Chandala, um membro da mais baixa das
castas, a dos intocáveis. O homem trazia consigo quatro cachorros, que bloqueavam o caminho de
Shankara. Por um momento, o inato preconceito de casta se fez valer. Shankara, o Bruhmin, ordenou ao
Chandala que saísse do seu caminho. Mas o Chandala retrucou: - Será um só Deus, como pode haver
muitas espécies de homens?" Shankara encheu-se de vergonha e reverência, e prostrou-se diante do
Chandala. Esse incidente inspirou um dos mais belos poemas de Shankara, o Manisha Panchaka, composto
de cinco estrofes, cada qual terminando com o refrão:
Quem aprendeu a ver em toda parte a Existência única,
Esse é o meu mestre, seja ele Brahmin ou Chandala.
Shankara começou a ensinar entre os eruditos do país, convertendo primeiro os professores, depois os
alunos destes. Um deles era o famoso filósofo Mandan Misra. Mandan Misra afirmava que a vida do chefe
de família era muito superior à do monge, e sua opinião era largamente respeitada e compartilhada em toda
a índia. Shankara resolveu discutir com ele e dirigiu-se à sua casa. Ali chegando, encontrou as portas
fechadas. Misra estava celebrando uma cerimônia religiosa e não queria ser incomodado. Shankara, com o
espírito travesso de um adolescente, subiu numa árvore próxima e dali saltou para dentro do pátio. Misra
percebeu-o no meio da multidão. Ele não gostava de monges - principalmente quando eram tão jovens - e
perguntou sarcasticamente: - De onde vem essa cabeça raspada?" - O senhor tem olhos para ver -,
respondeu Shankara com insolência. "A cabeça raspada vem do pescoço.- Misra ficou irritado, mas
Shankara continuou a provocá-lo, até que os dois concordaram em travar um debate a respeito dos méritos
concernentes às vidas do monge e do chefe de família. Ficou assentado que Shankara, se perdesse, se
tomaria chefe de família, e que Misra, se fosse ele o perdedor, se tomaria monge. O debate durou vários
dias. Bharati, a culta esposa de Misra, serviu de árbitro. Por fim, Shankara conseguiu convencer Misra da
superioridade da vida monástica e Misra tomou-se seu discípulo. Foi ele quem más tarde anotou os
comentários de Shankara sobre os Brahma-Sutras.
Shankara terminou seus dias em Kedamath, no Himalaia. Ao morrer, tinha apenas 32 anos. Durante esse
breve período, fundara vários mosteiros e criara dez ordens monásticas. Foi essa a primeira vez em que se
organizou o monasticismo na Índia, e o sistema de Shankara perdura até hoje. Shankara era mais um
reformador que um inovador. Não pregou nenhuma nova doutrina ou credo. Mas deu um novo impulso à
vida espiritual do seu tempo. Separados por intervalos de milhares de anos, como três picos formidáveis,
Buda, Shankara e Ramakrishra avultam na cordilheira da história religiosa da índia.
A produção literária de Shankara foi enorme. Não só teceu comentários sobre os Vedanta-Sutras, os
principais Upanishads e o Bhagavad-Gita como produziu duas importantes obras filosóficas, o
Upadeshasahasn e o Vívekachuda (A Jóia Suprema do Discernimento). Deixou-nos também vários poemas,
hinos, preces e obras menores sobre o Vedanta.
A Jóia Suprema do Discernimento foi escrito inteiramente em versos, provavelmente para facilitar sua
memorização pelos discípulos. Os versos são longos e a métrica é complicada. Preferimos não tentar
reproduzi-los em nossa tradução. A mensagem de Shankara é infinitamente mais importante do que sua
forma literária: a clareza foi a nossa única preocupação. Por isso não hesitamos em parafrasear e ampliar o
texto sempre que isso nos pareceu necessário. No todo, porém, a tradução permanece muito fiel ao original.
II
A Filosofia do Não-Dualismo
O espírito da filosofia de Shankara
"Brahman - a existência, o conhecimento e a aventurança absolutos - é real. O universo não é real. Brahman
e Atman (o eu profundo do homem) são unos.
Nestas palavras Shankara sintetiza sua filosofia. Quais as implicações dessa assertiva? Que entende ele
por "real" e por “irreal"?
6
Shankara só aceita como "real" aquilo que não muda nem cessa de existir. Ao formular essa definição, ele
segue os ensinamentos dos Upanishads e de Gaudapada, seu predecessor. Nenhum objeto, nenhum tipo
de conhecimento pode ser absolutamente real se sua existência for meramente temporária. A realidade
absoluta implica a existência permanente. Se considerarmos nossas múltiplas experiências durante os
estados de vigília e de sono, verificaremos que as experiências durante o sono são negadas pelas
experiências no estado de vigília e vice-versa - e que ambos os tipos de experiência cessam durante o sono
sem sonhos. Noutras palavras, qualquer objeto de conhecimento, externo ou interno - pois um pensamento
ou idéia é um objeto de conhecimento tanto quanto o mundo exterior -, está sujeito a modificação e,
portanto, segundo a definição de Shankara, é "irreal".
Qual é, então, a Realidade subjacente às nossas experiências? Só existe uma coisa que nunca nos
abandona - a consciência profunda. Este é o único aspecto constante de toda experiência. E essa
consciência é o Eu real, o Eu absoluto. Mesmo no sono sem sonhos o Eu real está presente como uma
testemunha, ao passo que a consciência do ego a que chamamos "nós mesmos", nossa individualidade,
ficou temporariamente submersa na ignorância (avidya) e desapareceu.
A filosofia Vedanta ocupa uma posição central entre o realismo e o idealismo. O realismo e o idealismo
ocidentais assentam ambos na distinção entre mente e matéria; a filosofia indiana colocou a mente e a
matéria na mesma categoria - ambas são objetos do conhecimento. Não se deve, porém, considerar
Shankara como um precursor de Berkeley: ele não diz que o mundo é irreal simplesmente porque sua
existência depende da nossa percepção. O mundo, de acordo com Shankara, "é e não é”. Sua realidade
fundamental só pode ser compreendida em relação à experiência mística final, a experiência da alma
iluminada. Quando a alma iluminada mergulha na consciência transcendental, ela percebe o Eu (o Atman)
como pura beatitude e pura inteligência, o “Um sem um segundo “. Nesse estado de consciência, toda
percepção da multiplicidade chega ao fim, toda distinção entre “meu e seu” deixa de existir; o mundo como
usualmente o conhecemos desaparece. Então o Eu resplandece como o único, a Verdade, o Brahman, a
base desta aparência de mundo.
A aparência de mundo tal como a experimentamos no estado de vigília pode ser comparada, diz Shankara,
a uma suposta cobra que, examinada mais de perto, revela ser um simples rolo de corda. Quando a verdade
é conhecida, deixamos de ser iludidos pela aparência - a aparência de cobra desaparece na realidade da
corda, o mundo desaparece em Brahman.
Outros sistema de filosofia hindu - Shankya, Yoga ou Nyaya - afirmam que o mundo fenomenal possui uma
realidade objetiva, muito embora esta possa não ser visível aos olhos de uma alma iluminada. O Advaita
Vedanta difere desses sistemas neste ponto vital: ele nega a realidade última do mundo do pensamento e
da matéria. Mente e matéria, objetos finitos e suas relações, são uma compreensão errônea de Brahman, e
nada mais - eis o que Shankara ensina.
A natureza da aparência de mundo
Quando Shankara afirma que o mundo do pensamento e da matéria não é real, não está querendo dizer que
ele não existe. A aparência de mundo é e não é. No estado de ignorância (nossa consciência de todos os
dias) ele é vivenciado, e existe tal como nos aparece. No estado de iluminação ele não é vivenciado, e deixa
de existir. Shankara não vê nenhuma experiência como inexistente enquanto ela é vivenciada, mas deduz
naturalmente uma distinção entre as ilusões particulares do indivíduo e a ilusão universal ou ilusão do
mundo. À primeira ele chama pratibhasika (ilusória); à segunda, vyavaharika (fenomenal). Por exemplo, os
sonhos de um homem são as suas ilusões particulares; quando ele acorda, elas deixam de existir. Mas a
ilusão universal - a ilusão do mundo fenomenal - persiste durante toda a vida de vigília do homem, a não ser
que ele se conscientize da Verdade mediante o conhecimento de Brahman. Além disso, Shankara
estabelece uma distinção entre esses dois tipos de ilusão e as idéias que são totalmente irreais e
imaginárias, que representam uma impossibilidade total ou uma flagrante contradição de termos - como o
filho de uma mulher estéril.
7
Estamos, pois, diante de um paradoxo - o mundo é e não é. Ele não é nem real nem inexistente. E, não
obstante, esse aparente paradoxo é simplesmente a afirmação de um fato - fato que Shankara denomina
Maya. Esse Maya, essa aparência de mundo tem sua base em Brahman, o eterno. O conceito de Maya se
aplica unicamente ao mundo fenomenal, que, segundo Shankara, consiste em nomes e formas. Ele não é
inexistente, porém difere da Realidade, Brahman, da qual depende para a sua existência. Ele não é irreal,
visto que desaparece à luz do conhecimento da sua base eterna. A aparência de inundo é Maya; só o Eu, o
Atman, é real.
Sobreposição, ou Maya
O mais difícil dentre todos os problemas filosóficos é o da relação entre o finito e o Infinito, o problema de
como este mundo finito veio a existir. Se acreditamos que o finito tem uma realidade própria absoluta e que
ele se origina do Infinito e é uma verdadeira transformação do Infinito, ou se consideramos o Infinito como
urna primeira causa transcendental do mundo fenomenal (posição sustentada pela maioria dos teólogos
cristãos), então temos de admitir que o Infinito já não é infinito. Um Deus que se transforma a Si mesmo no
universo visível está Ele próprio sujeito à transformação e à mudança - não se pode considerá-lo corno a
realidade absoluta. Um Deus que cria um mundo limita a Si mesmo pelo próprio ato da criação, e portanto
deixa de ser infinito. A pergunta "Por que Deus haveria de criar?" permanece sem resposta.
Essa dificuldade é superada, porém, se considerarmos o mundo como Maya. E esta explicação do nosso
universo está, além do mais, em perfeito acordo com as descobertas da ciência moderna - que se podem
resumir assim:
“Uma bolha de sabão com irregularidades e rugas em sua superfície é talvez a melhor imagem do novo
universo que nos foi revelado pela teoria da relatividade. O universo não é o interior da bolha de sabão, mas
a sua superfície - e a substância da qual a bolha é soprada, a película de sabão, é um espaço vazio fundido
o tempo vazio.”
1
Deste modo, só quando analisamos a natureza do Universo e o descobrimos como Maya - nem
absolutamente real, nem absolutamente inexistente - é que compreendemos como a superfície fenomenal
da bolha de sabão salvaguarda a eterna presença do Absoluto. Os Upanishads, é verdade, parecem
considerar Brahman como a causa primeira do universo, tanto material como eficiente. Afirmam eles que o
universo emana do Brahman absoluto, subsiste nele e, finalmente, funde-se com ele. Shankara nunca nega
diretamente os Upanishads, mas explica diferentemente essas afirmações. O universo, diz ele, é uma
sobreposição a Brahman. Brahman permanece eternamente infinito e imutável. Não está transformado
neste universo. Ele simplesmente aparece a nós como este universo, na nossa ignorância. Nós sobrepomos
o mundo aparente a Brahman do mesmo modo que às vezes sobrepomos urna cobra a um rolo de corda.
Essa teoria da sobreposição (vivartavada) está indissoluvelmente ligada à teoria da causalidade. A relação
causal existe no mundo da multiplicidade, que é Maya. No interior de Maya, a mente não pode funcionar
sem urna relação causal. Mas falar de causa e efeito com referência ao Absoluto é simplesmente absurdo.
Buscar saber o que causou o mundo é transcender o mundo; buscar encontrar a causa de Maya é ir além de
Maya - e, quando o fazemos, Maya desaparece, porquanto o efeito deixa de existir. Como, então, pode
haver urna causa de um efeito inexistente? Em outras palavras, a relação entre Brahman e Maya é, pela sua
própria natureza, incognoscível e indefinível por qualquer processo do intelecto humano.
Maya: uma declaração de fato e de princípio
Portanto, segundo Shankara, o mundo do pensamento e da matéria possui uma existência fenomenal ou
relativa e está sobreposto a Brahman, a realidade única, absoluta. Enquanto permanecermos na ignorância
(isto é, enquanto não tivermos realizado a consciência transcendental), continuaremos a experimentar este
mundo aparente, que é o efeito da sobreposição. Quando se realiza a consciência transcendental, a
sobreposição cessa.
1
Sir Jarnes Jeans.
8
Qual a natureza dessa sobreposição? Na introdução ao seu comentário sobre os Brahma Sutras, Shankara
nos diz que “sobreposição é a apresentação aparente à consciência, pela memória, de algo que foi
anteriormente observado em alguma outra parte”. Vemos uma cobra. Lembramo-nos dela. No dia seguinte,
vemos um rolo de corda. Sobrepomos a ela a lembrança da cobra e desse modo falseamos a sua natureza.
Shankara antecipa uma objeção à sua teoria e trata de refutá-la. Podemos desafiar a teoria da sobreposição
afirmando que Brahman não é um objeto de percepção. Como podemos sobrepor uma cobra a uma corda
que não percebemos? Como podemos sobrepor uma aparência de mundo a uma realidade que não é
visível aos nossos sentidos? “Porque todo homem sobrepõe objetos a outros objetos conforme estes se
apresentam à sua percepção (isto é, conforme entram em contato com seus órgãos sensoriais)”.- A isso
Shankara responde: “Brahman não é, replicamos nós, não-objetivo no sentido absoluto. Porque Brahman é
o objeto da idéia do ego. Sabemos perfeitamente, por intuição, que o Eu profundo existe, já que a idéia do
ego é uma representação do Eu. Nem é uma regra absoluta que objetos possam ser sobrepostos apenas a
outros objetos tal como eles se nos apresentam; porque as pessoas ignorantes sobrepõem um azul-escuro
ao céu, que não é um objeto de percepção sensorial”.
Esta afirmação requer alguma explicação adicional. Embora Brahman nunca seja visível à nossa percepção
sensorial do dia-a-dia, existe um modo no qual estamos cônscios da realidade: o Eu profundo. Brahman,
como ficou dito, é a existência, o conhecimento e a bem-aventurança absoluta. SÓ na consciência
transcendental podemos perceber isso plenamente. No entanto, Brahman é parcialmente visível também à
nossa consciência normal. Brahman é Existência, e todos sabemos que existimos. Neste sentido, cada um
de nós tem um conhecimento intuitivo do Eu profundo (o Atman, ou Brahman-dentro-da-criatura). Porém o
Eu profundo, a realidade, nunca é um objeto da percepção sensorial - porque na nossa ignorância,
sobrepomos a idéia de uma individualidade particular - a de ser o Sr. Smith ou a Sra. Jones - à nossa
percepção da Existência. Somos incapazes de compreender que a Existência não é nossa propriedade
particular, que ela é universal e absoluta. O Eu profundo, portanto, está presente na nossa consciência
normal como “o objeto da idéia do ego” tradução literal da frase de Shankara. A sobreposição da idéia do
ego à Existência constitui o nosso primeiro e mais importante ato como seres humanos. No momento em
que praticamos esse ato central de sobreposição - no momento em que dizemos “eu sou eu, sou um ente
particular, sou separado, sou um indivíduo”, estabelecemos uma espécie de reação em cadeia que torna
inevitáveis novas sobreposições. A reivindicação da nossa individualidade implica a presença da
individualidade em toda parte. Ela sobrepõe automaticamente um mundo múltiplo de criaturas e objetos à
realidade única, não-dividida, à Existência que é Brahman. Idéia do ego e aparência de mundo dependem
um do outro. Abandone a idéia do Ego na consciência transcendental, e a aparência de mundo deve
necessariamente desaparecer.
Quando e como ocorreu esse ato de sobreposição? Foi no nosso nascimento individual ou numa vida
anterior? Foi num momento histórico - correspondente à história da queda de Adão - em que o mundo
fenomenal veio a existir como decorrência da idéia do ego? A futilidade de semelhantes perguntas se
evidencia por si mesma. Andamos meramente à volta de um círculo. O que é essa aparência de mundo
Maya? Quem o criou? A nossa ignorância. O que é essa ignorância? Maya, igualmente. Se houve, há e
sempre haverá uma realidade imutável, como podemos admitir que Maya teve início num momento histórico
específico? Não podemos.
Devemos pois concluir, como Shankara, que Maya, a exemplo de Brahman, não teve começo. A ignorância
como causa e a aparência de mundo como efeito sempre existiram e sempre existirão. São como a
semente e a árvore. A “conexão entre o real e o irreal” produzida pela nossa ignorância é um processo
universalmente manifesto em nossa vida diária. Shankara diz: “É óbvio, e não precisa de provas, o fato de
que o objeto que é o não-ego e o sujeito que é a idéia do ego (sobreposta ao Eu) são opostos um ao outro
como a luz e as trevas. Não se pode identificá-los, e muito menos seus respectivos atributos”. No entanto, é
próprio do homem (devido ao seu conhecimento errôneo) não poder diferenciar entre essas entidades
distintas e seus respectivos atributos. Ele sobrepõe a um a natureza e os atributos do outro, ligando o real
ao irreal e servindo-se de expressões como "eu sou isto”, “isto é meu".
9
Shankara fala aqui de dois estágios inerentes ao processo de sobreposição. Primeiro a idéia do ego é
sobreposta ao Eu profundo, à existência-realidade. Depois a idéia do ego, exteriorizando-se, por assim dizer,
identifica-se com o corpo e com os atributos e as ações físicas e mentais do corpo. Dizemos, como se fosse
a coisa mais natural, “eu sou gordo”, "eu estou cansado", "eu estou andando”, “eu estou sentado”, sem nos
determos para considerar o que vem a ser esse “eu”. E vamos mais longe. Reivindicamos como nossos
objetos e condições puramente exteriores. Declaramos que "eu sou republicano" ou que “esta casa é
minha”. À medida que se multiplicam as sobreposições, afirmações insólitas tomam-se possíveis e normais -
tais como "afundamos ontem três submarinos” ou “tenho um excelente seguro”. De certo modo,
identificamos o nosso ego com cada objeto do universo. E, enquanto isso, o Eu profundo atua como
espectador, totalmente dissociado desses esgares e disposições de ânimo - mas tomando-os possíveis pelo
fato de proporcionar à mente aquela luz da consciência sem a qual Maya não poderia existir.
Que Maya não tem princípio pode ser igualmente demonstrado se retomarmos por um momento a imagem
da corda e da cobra. A sobreposição da cobra à corda só é possível se pudermos lembrar da aparência da
cobra; uma criança que nunca viu uma cobra nunca faria essa sobreposição. Como pode o recém-nascido,
então, sobrepor a “cobra” (aparência de mundo) à “corda” (Brahman)? Só poderemos responder a essa
pergunta se postularmos uma “memória da cobra” universal, comum a toda a humanidade e existente desde
um tempo sem princípio. Essa “memória da cobra" é Maya.
Maya, diz Shankara, é não apenas o universal mas também o que não tem princípio nem fim. No entanto,
deve-se fazer uma distinção entre Maya como princípio universal e a ignorância (avidya), que é individual. A
ignorância individual não tem princípio, mas pode terminar a qualquer momento: ela desaparece quando o
homem alcança a iluminação espiritual. Desse modo, o mundo pode desaparecer da consciência de um
indivíduo e ainda assim continuar a existir para o resto da humanidade. Nisso a filosofia de Shankara difere
essencialmente do idealismo subjetivo do Ocidente.
Brahman e Iswara
Em certo sentido, Brahman é a causa primordial do universo -já que, pela ação de Maya, a aparência de
mundo é sobreposta a Brahman. Brahman é a causa, Maya, o efeito. Todavia, não se pode dizer que
Brahman. se transformou no mundo ou que o criou, porque a Realidade absoluta é, por definição, incapaz
de ação ou de mudança temporal. Outra palavra, lswara, pode pois ser empregada para descrever o
princípio criativo. lswara é Brahman unido a Maya - a combinação de Brahman e seu poder que cria,
preserva e dissolve o universo num processo sem princípio e sem fim. lswara é Deus personificado, Deus
com atributos.
De acordo com o sistema de filosofia Sankhya, o universo é uma evolução da Prakriti - matéria
indiferenciada, composta de três forças chamadas gunas. A criação é uma perturbação no equilíbrio dessas
forças. As gunas começam a passar por uma enorme variedade de combinações - mais ou menos como na
teoria ocidental da estrutura atômica - e essas combinações constituem os elementos, os objetos e as
criaturas individuais. Esse conceito da Prakriti corresponde, até certo ponto, ao conceito de Maya formulado
por Shankara, mas com esta importante diferença: Prakriti é considerada distinta e independente de
Purusha (a Realidade absoluta), enquanto Maya é vista como destituída de realidade absoluta, mas como
dependente de Brahman. Portanto, é lswara, e não Prakriti, que pode ser descrita como a causa primordial
do universo.
Existem então dois Deuses - um impessoal Brahman, outro o pessoal lswara? Não - porque Brahman só
aparece como lswara quando visto pela relativa ignorância de Maya. lswara possui o mesmo grau de
realidade que Maya. Deus, a Pessoa, não é a natureza primordial de Brahman. Nas palavras de Swami
Vivekananda, “o Deus Pessoal é a leitura do Impessoal pela mente humana”.
Sri Ramakrishna, que viveu ininterruptamente na consciência do Brahman absoluto, serviu-se da seguinte
ilustração: “Brahman. pode ser comparado a um oceano infinito, sem princípio nem fim. Assim como, devido
ao frio intenso, algumas partes do oceano se congelam e a água informe parece adquirir forma, do mesmo
modo, graças ao intenso amor do devoto, Brahman parece assumir forma e personalidade. Mas a forma
toma a desaparecer quando o sol do conhecimento volta a brilhar. Então todo o universo também
desaparece e não há senão Brahman, o infinito."
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Muito embora lswara seja, em certo sentido, uma pessoa, deve-mos tomar cuidado para não considerá-lo
como semelhante ou idêntico à jiva, a alma humana individual. lswara, como jiva, é Brahman unido a Maya,
porém com esta diferença fundamental: lswara é o senhor e controlador de Maya; jiva é o servo e joguete de
Maya. Podemos pois dizer, sem paradoxo, que somos ao mesmo tempo Deus e os servos de Deus. Em
nossa natureza absoluta, somos unos com Brahman; em nossa natureza relativa, somos diferentes de
lswara e estamos sujeitos a Ele.
A devoção a lswara, o Deus Pessoal, pode levar um homem muito longe no caminho da espiritualidade,
pode transformá-lo num santo. Mas este não é o conhecimento final. Ser completamente iluminado é ir além
de lswara, é conhecer a Realidade Impessoal subjacente à Aparência divina pessoal. Podemos converter-
nos em Brahman, já que Brahman sempre está presente em nós. Mas jamais poderemos converter-nos em
Iswara, pois lswara está acima da nossa personalidade humana e dela se diferencia. Segue-se, portanto,
que nunca nos tornaremos governantes do universo - pois essa é a função de lswara. O desejo de usurpar a
função de lswara é a loucura máxima do ego. Na literatura cristã, ela é simbolizada pela lenda da queda de
Lúcifer.
Vyasa, o autor dos Brahma Sutras, diz a mesma coisa ao afirmar que ninguém poderá adquirir o poder de
criar, governar ou dissolver o universo, já que esse poder pertence unicamente a lswara. E Shankara, em
seu comentário, discute o problema da seguinte maneira: “Quando um homem, através da adoração do
Brahman qualificado (lswara), alcança o conhecimento do Supremo Governante, preservando ao mesmo
tempo sua consciência individual, seu poder é limitado ou ilimitado? A esta pergunta alguns responderão
que seu poder é ilimitado, e citarão os textos das escrituras onde se trata daqueles que alcançam o
conhecimento de lswara: 'Eles conquistam o seu próprio reino', 'Todos os deuses lhes oferecem adoração’”
'Seus desejos são realizados em todos os mundos'. Mas Vyasa responde a essa pergunta quando
acrescenta: 'sem o poder de governar o universo'. Todos os outros poderes de lswara podem ser adquiridos
pelas almas libertas, mas esse pertence unicamente a lswara. Como sabemos disso? Sabemo-lo porque Ele
é protagonista de todos os textos sagrados relativos à criação. Esses textos não fazem a menor referência
às almas libertas. Eis por que Ele é chamado 'o eternamente perfeito'. As escrituras dizem também que os
poderes das almas libertas são adquiridos através da adoração e da busca de Deus; portanto, elas não têm
lugar no governo do universo. Ainda aqui, visto que as almas libertas preservam sua consciência individual,
é possível que suas vontades difiram e que, enquanto uma deseja a criação, outra pode desejar a
destruição. A única maneira de evitar esse conflito é subordinar todas as vontades a uma vontade única.
Devemos, pois, concluir que as vontades das almas libertas dependem da von-tade do Supremo
Governante.”
Se existe uma só consciência, um só Brahman, quem vê e quem é visto? Quem vê Brahman como lswara, e
quem é jiva? São eles diferentes ou uma só coisa?
Enquanto o homem se encontra nas limitações de Maya, o único é visto como muitos. Tudo o que a
ignorância pode fazer é adorar a Aparência; e lswara é o governante de todas as aparências - a mais
elevada idéia que a mente humana pode apreender e o coração humano amar. A mente humana é incapaz
de apreender a Realidade absoluta; tudo o que ela pode fazer é inferir a sua presença e adorar uma imagem
projetada. No processo dessa adoração, a mente se purifica, a idéia do ego se dissipa como a névoa, a
sobreposição cessa e lswara e a aparência de mundo se desvanecem na chama da consciência
transcendental quando o que vê e o que é visto deixam de existir - nada mais existe senão Brahman, o Fato
único, universal, atemporal.
O problema do mal
Toda religião ou sistema de filosofia deve tratar do problema do mal - mas, infelizmente, este é um problema
que em geral é mais contornado do que explicado. "Por que", pergunta-se, "Deus permite o mal, se Ele
Próprio é só bondade?”
Uma ou duas respostas costumam ser dadas a essa pergunta pelo pensamento religioso ocidental. Às
vezes nos dizem que o mal é uma questão educacional e penal. Deus nos castiga pelos nossos pecados
visitando-nos com a guerra, a fome, os terremotos, as calamidades e as doenças. Serve-se da tentação
(quer diretamente, quer pela intervenção do Demônio) para pôr à prova e fortalecer a virtude dos homens
bons. Essa é a resposta dada pelo Antigo Testamento. Na época atual, ela repugna a muitas pessoas e
tomou-se antiquada - embora, como veremos logo adiante, contenha um certo grau de verdade, segundo a
filosofia do Vedanta.
11
A outra resposta - hoje mais geralmente aceita - é que o mal não existe em absoluto. Se encararmos a Vida
sub specie aeternitatis, veremos que o mal carece de realidade, que ele é simplesmente uma interpretação
errônea do bem.
A filosofia Vedanta discorda de ambas as teses - da segunda até mais radicalmente que da primeira. Como,
pergunta ela, o mal pode mudar-se em bem pelo simples fato de o considerarmos de uma maneira
especial? A dor e o infortúnio podem ser suportados mais facilmente se concentrarmos nossa mente em
Deus - mas, não obstante, ambos são experiências muito reais, ainda que sua duração seja limitada. O
Vedanta concorda que o mal, no sentido absoluto, é irreal. Mas lembra-nos que, desse ponto de vista,
também o bem é irreal. A Realidade absoluta está além do bem e do mal, do prazer e da dor, do sucesso e
do insucesso. Tanto o bem quanto o mal são aspectos de Maya. Enquanto Maya existir, eles existirão. No
interior de Maya eles são efetivamente reais.
Na verdade, a pergunta "Por que Deus permite o mal?" está erroneamente formulada. É tão absurda como
se perguntássemos. “Por que Deus permite o bem?" Ninguém hoje perguntaria por que a chuva "permitiu-
uma enchente catastrófica; ninguém acusaria ou louvaria o fogo porque ele queima a casa de um homem e
cozinha o jantar de outro. Tampouco se pode dizer apropriadamente que Brahman é "bom" em qualquer
sentido pessoal da palavra. Brahman não é "bom" no sentido em que Cristo o era “porque a bondade de
Cristo se encontra nos limites de Maya; sua vida expressou a luz da Realidade refletida no mundo relativo. A
Realidade em si está além de todos os fenômenos, mesmo o mais nobre. Está além da pureza, da beleza,
da felicidade, da glória ou do sucesso. Só podemos descrevê-la como “o bem” se admitirmos que a
consciência absoluta é o conhecimento absoluto e que o conhecimento absoluto é a alegria absoluta.
Mas pode ser que a questão não se refira absolutamente a Brahman. Pode ser que, nessa conexão, "Deus"
signifique lswara, o Governante de Maya. Isto posto, pode a filosofia Vedanta concordar com a afirmação do
Antigo Testamento de que Deus é o doador da lei, um pai severo e algo imprevisível, cujos caminhos não
são os nossos, cujos castigos e recompensas parecem quase sempre imerecidos, um pai que permite que
caiamos em tentação? A resposta é sim e não. A doutrina Vedanta do Karma é uma doutrina de justiça
absoluta, automática. As circunstâncias de nossas vidas, nossas dores e nossos prazeres, são o resultado
de nossas ações passadas nesta e em incontáveis existências anteriores, desde o alvorecer dos tempos. De
um ponto de vista relativo, Maya é desprovida de piedade.
Obtemos exatamente aquilo a que fazemos jus, nem mais nem menos. Se bradamos contra uma injustiça
aparente, é unicamente porque o ato que a fez recair sobre nós está profundamente sepultado no passado,
fora do alcance da nossa memória. Nascer como mendigo, rei, atleta ou como um aleijado irremediável
constitui simplesmente as conseqüências compósitas das ações de outras vidas. Não devemos agradecer
senão a nós mesmos por elas. Não adianta tentar barganhar com Iswara, ou propiciá-Lo, ou responsabilizá-
Lo pelos nossos infortúnios. Não adianta inventar um Demônio como álibi para as nossas fraquezas. Maya é
aquilo em que a transformamos - e lswara representa simplesmente o fato inexorável e solene.
De um ponto de vista relativo, este mundo de aparências é um lugar desolado e como tal nos leva muitas
vezes ao desespero. Os videntes, com seu conhecimento mais amplo, nos dizem algo bem diverso. Assim
que nos conscientizamos, ainda que vagamente, do Atman, nossa Realidade interior, o mundo assume um
aspecto muito diferente. Deixa de ser um tribunal para tornar-se unia espécie de academia de ginástica. O
bem e o mal, a dor e o prazer continuam a existir, mas assemelham-se mais às cordas, aos cavalos de pau
e às paralelas, que podem ser usados para fortalecer nosso corpo. Maya deixa de ser uma roda de dores e
prazeres a girar incessantemente para tomar-se uma escada que nos permite ascender à consciência da
Realidade. Desse ponto de vista, a ventura e a desventura são ambas “mercês" - vale dizer, oportunidades.
Toda experiência nos oferece a oportunidade de reagir construtivamente a ela - reação essa que nos ajuda
a quebrar um elo da nossa escravidão a Maya e nos leva para muito mais perto da liberdade espiritual.
Assim, Shankara distingue entre dois tipos de Maya - avidya (mal ou ignorância) e vidya (bem). Avidya é
aquilo que nos afasta do Eu real e encobre o nosso conhecimento da Verdade. Vidya é aquilo que nos
aproxima do Eu real removendo o véu da ignorância. Tanto vidya como avidya são transcendidos quando
ultrapassamos Maya e adentramos a consciência da Realidade absoluta.
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Já se disse que o princípio de Maya é a sobreposição da idéia do ego ao Atman, ao verdadeiro Eu. A idéia
do ego representa uma falsa pretensão à individualidade, a sermos diferentes do nosso próximo. Segue-se,
pois, que qualquer ato que contradiga essa pretensão nos fará adiantar um passo rumo ao correto
conhecimento, à consciência da Realidade interior. Se reconhecermos a nossa fraternidade com os nossos
semelhantes; se tentarmos relacionar-nos com eles sinceramente, verdadeiramente, caridosamente; se,
política e economicamente, lutarmos por direitos iguais, por justiça igual e pela abolição das barreiras de
raça, classe e credo, então estaremos desmentindo a idéia do ego e caminhando para a percepção da
Existência universal, não-individual. Todas essas ações e motivos pertencem àquilo que é conhecido como
o bem ético - do mesmo modo que os motivos e ações egoístas pertencem ao mal ético. Nesse sentido, e
só nesse sentido, o bem pode ser considerado mais "real", ou mais válido, do que o mal - já que as más
ações e os maus pensamentos nos enredam mais profundamente em Maya, ao passo que as boas ações e
os bons pensamentos nos afastam de Maya e nos aproximam da consciência da Realidade.
As palavras "pecado" e "virtude" são de certo modo alheias ao espírito da filosofia Vedanta, porque
estimulam necessariamente um sentimento de possessividade com respeito ao pensamento e à ação.
Quando dizemos "eu sou bom" ou "eu sou mau”, estamos apenas falando a linguagem de Maya. "Eu sou
Brahman" é a única afirmação que qualquer um de nós pode fazer. São Francisco de Sales escreveu que
"mesmo o nosso arrependimento deve ser pacífico" - querendo dizer que o remorso excessivo, tal como a
autocomplacência excessiva, simplesmente nos vincula mais fortemente à idéia do ego, à mentira de Maya.
Nunca devemos esquecer que o comportamento ético é um meio, e não um fim em si mesmo. O
conhecimento da Realidade impessoal é o único conhecimento válido. Fora disso, nossa mais profunda
sabedoria não passa de negra ignorância e nossa mais estrita retidão é inteiramente vã.
A meta suprema
Pode-se objetar que a filosofia Vedanta, a exemplo de qualquer outro sistema de pensamento religioso,
assenta numa hipótese central.
Certamente, a meta suprema da vida é conhecer Brahman - se é que Brahman existe. Mas podemos ter
certeza disso? Não é possível que não exista nenhuma realidade subjacente no universo? Não é possível
que esta vida não passe de um fluxo desprovido de significação, que morre e se transforma, em perpétua
mudança?
O que mais nos atrai no Vedanta é sua abordagem não-dogmática, seu enfoque experimental da verdade.
Shankara não nos diz que devemos aceitar a existência de Brahman como um dogma antes de podermos
ingressar na vida espiritual. Não - ele nos convida a descobrirmos por nós mesmos.
Nada - nenhum mestre, nenhuma escritura - pode fazer esse trabalho por nós. Mestres e escrituras são
apenas estímulos para o esforço pessoal. Mas, como tais, eles podem ser admiráveis. Imagine que esta é
uma ação judicial e que você é o juiz. Procure ouvir imparcialmente as testemunhas de ambos os lados.
Considere as testemunhas a favor de Brahman - os videntes e os santos que afirmam ter conhecido a
Realidade eterna. Examine suas personalidades, suas palavras, as circunstâncias de suas vidas. Pergunte a
si mesmo: esses homens são mentirosos, hipócritas ou insanos, ou estão falando a verdade? Compare as
grandes escrituras do mundo e pergunte: elas se contradizem umas às outras ou estão de acordo? Então dê
o seu veredicto.
Mas o mero assentimento, como insiste Shankara, não basta. Ele é apenas um passo preliminar em direção
à participação ativa na busca. A experiência pessoal direta é a única prova satisfatória da existência de
Brahman, e cada um de nós deve tê-la.
A ciência moderna está muito perto de confirmar a visão de mundo Vedanta. Ela admite que a consciência,
em variados graus, pode estar presente em toda parte. As diferenças entre objetos e criaturas são meras
diferenças de superfície, variadas disposições de átomos. Os elementos podem transformar-se em outros
elementos. A identidade é apenas provisória. A ciência ainda não aceita a concepção da Realidade absoluta,
mas certamente não a exclui. Shankara nada sabia a respeito da ciência moderna, mas seu método é
fundamentalmente científico. Ele se baseia na prática do discernimento - discernimento que deve ser
aplicado a nós mesmos e a cada circunstância e objeto de nossa experiência, em cada instante de nossas
vidas. Com a maior freqüência possível - milhares e milhares de vezes por dia - devemos perguntar a nós
mesmos:
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"Isto é real ou irreal, isto é fato ou fantasia, isto é natureza ou mera aparência?” Desse modo nos
aprofundaremos cada vez mais na busca da verdade.
Todos nós sabemos que existimos. Todos temos a percepção da nossa própria consciência. Mas qual é a
natureza dessa consciência, dessa existência? O discernimento logo nos provará que a idéia do ego não é a
realidade fundamental. Existe algo que está além dele. Podemos chamar esse algo de “Brahman”, mas
Brahman é apenas mais uma palavra, que não nos revela a natureza daquilo que estamos procurando.
Brahman pode ser conhecido como uma substância ou como algo que existe? Não no sentido comum do
verbo. Saber alguma coisa é obter o conhecimento objetivo dela, e esse conhecimento é relativo,
dependendo do espaço, do tempo e da causação. Não podemos conhecer a consciência absoluta desse
modo, porque a consciência absoluta é o próprio conhecimento. Brahman é a fonte de todos os demais
conhecimentos, abrangendo o conhecedor, o conhecimento e a coisa conhecida. É independente do
espaço, do tempo e da causa.
Nesse sentido, a prática do discernimento difere do método da pesquisa científica. O cientista se concentra
num determinado objeto de conhecimento e examina-o num nível que ultrapassa o campo da percepção
sensorial, com a ajuda de aparelhos, da análise química, da matemática e assim por diante. Sua pesquisa
se amplia como uma viagem, aprofundando-se cada vez mais no tempo e no espaço. O filósofo religioso
procura aniquilar o tempo e o espaço, as dimensões da idéia do ego, a fim de revelar a Realidade que está
mais próxima e é mais imediata do que o ego, o corpo ou a mente.
O filósofo religioso procura perceber aquilo que ele é agora e sempre - e essa percepção não é um aspecto
da própria consciência. O vidente iluminado não se limita a conhecer Brahman; ele é Brahman; ele é a
Existência, ele é o Conhecimento. A liberdade absoluta não é algo que deva ser atingido, o conhecimento
absoluto não é algo a ser conquistado, Brahman não é algo que deva ser encontrado. Só Maya deve ser
penetrada, só a ignorância deve ser vencida. O processo do discernimento é um processo negativo. O fato
positivo, nossa natureza real, existe eternamente. Nós somos Brahman - e só a ignorância nos separa desse
conhecimento.
A consciência transcendental, ou a união com Brahman, nunca poderá ser investigada pelos métodos da
pesquisa científica, uma vez que tal pesquisa depende, em última análise, da percepção sensorial, e
Brahman está além da percepção dos sentidos. Mas isso não quer dizer que estamos condenados à dúvida
- ou a confiar cegamente na experiência dos videntes - enquanto não tivermos atingido pessoalmente a
Meta Suprema. Mesmo um pequeno esforço na meditação e na vida espiritual haverá de recompensar-nos
com o conhecimento e a convicção de que este é realmente o caminho que leva à verdade e à paz - de que
não estamos simplesmente nos enganando ou hipnotizando a nós mesmos -, de que a Realidade está ao
nosso alcance. Teremos naturalmente nossos altos e baixos, nossos momentos de incerteza, mas sempre
retornaremos a essa convicção. Nenhuma conquista espiritual, por menor que seja, será perdida ou
desperdiçada.
Métodos e meios
Existem muitos caminhos conducentes à consciência transcendental. Em sânscrito, esses caminhos são
chamados de iogas, ou métodos de união com Brahman. As iogas variam de acordo com o tipo de pessoas.
Com efeito, cada indivíduo abordará a Realidade de um modo ligeiramente diferente.
Quatro iogas principais são geralmente reconhecidas na literatura religiosa hindu: Karma, Bhakti, Jnana e
Raja. Eis um resumo muito sucinto de suas características:
A Karma Ioga, como o próprio nome indica, está voltada para o trabalho e a ação. Trabalhando
altruisticamente pelo nosso próximo, considerando cada ação como uma oferenda sacramental a Deus,
cumprindo nosso dever sem ansiedade ou preocupação com o sucesso ou o fracasso, o elogio ou a
censura, podemos aniquilar gradualmente a idéia do ego. Através do Karma podemos transcender o Karma
e vivenciar a Realidade que está além de qualquer ação.
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Bhakti é a Ioga da devoção - devoção a lswara, o Deus pessoal, ou a um grande mestre: Cristo, Buda,
Ramakrishna. Graças a essa devoção pessoal, a esse serviço amoroso consagrado a um ideal
personificado, o devoto acabará transcendendo completamente sua personalidade. Esta é a ioga do ritual,
da adoração, dos sacramentos religiosos. O ritual desempenha aqui um papel importante, o de uma ajuda
física, para a concentração - pois os atos do ritual, como os atos da Karma Ioga, evitam que a mente se
disperse em suas distrações e ajudam a reconduzi-la firmemente ao seu objeto. Para muitos, este é o
caminho más fácil de trilhar.
A Jnana Ioga, por outro lado, é mais adequada para as pessoas cujos intelectos vigorosos e austeros
desconfiam do fervor emocional da adoração. Esta é a ioga do puro discernimento. Não requer nenhum
Iswara, nenhum altar, nenhuma imagem, nenhum ritual. Visa uma aproximação mais imediata do Brahman
Impessoal. Esse caminho pode ser talvez mais direto, mas é também árduo e íngreme e só pode ser
palmilhado por poucos.
A Raja Ioga - a ioga da meditação - combina, até certo ponto, as três outras. Não exclui a Karma Ioga e
utiliza tanto o método Bhakti quanto o Mana - já que a meditação é uma mistura de devoção e
discernimento.
Por temperamento, Shankara propendia para a Jnana Ioga, o caminho do puro discernimento - embora,
como este livro irá mostrar, também fosse capaz de grande devoção. Renúncia, discernimento, autocontrole
- tais são as suas palavras-chaves. Alguns poderão achar sua austeridade demasiado severa,
especialmente na primeira parte do diálogo; mas é precisamente essa austeridade que fornece um valioso
corretivo para os perigos de um sentimentalismo fácil, um excesso de otimismo despreocupado, uma
confusão da verdadeira devoção com a mera autoconiplacência emocional. Shankara não tinha ilusões
quanto a este mundo de Maya; ele condena seus prazeres e deleites aparentes com brutal franqueza. Por
isso mesmo era capaz de descrever tão expressivamente a completa transformação do universo que ocorre
diante dos olhos do vidente iluminado. Quando se experimenta Brahman, quando todas as criaturas e
objetos são vistos na sua verdadeira relação com o Absoluto, então este mundo é realmente um paraíso; ele
nada mais é senão Brahman, senão consciência superior, conhecimento e paz. Depois de árduos esforços,
o discípulo alcança essa realização no “Supremo Discernimento", e o livro de Shankara se fecha com a
magnificente explosão de sua alegria.
III
A Jóia Suprema do Discernimento
(Viveka-Chudamani)
Prostro-me diante de Govinda, o mestre perfeito, eternamente absorto no mais elevado estado de bem-
aventurança. Sua verdadeira natureza não pode ser conhecida nem pelos sentidos nem pela mente. Ela só
é revelada através do conhecimento das escrituras.
A senda
É difícil para qualquer criatura viva realizar o nascimento numa forma humana. A força do corpo e a vontade
são ainda mais difíceis de obter; a pureza, mais difícil ainda; mais difícil do que esses bens é o desejo de
viver unia vida espiritual; e o mais difícil de tudo é a compreensão das escrituras. Quanto ao discernimento
entre o Atman e o não-Atman, à percepção direta do próprio Atman, à união contínua com Brahman e à
libertação final - tais coisas só podem ser alcançadas através dos méritos de cem bilhões de encarnações
bem-vividas.
Só pela graça de Deus podemos obter esses três raros benefícios: o nascimento humano, a aspiração à
libertação e o discipulado junto a um mestre iluminado.
Há, porém, aqueles que de algum modo conseguem obter esse raro nascimento humano junto com a força
corporal e mental e com a compreensão das escrituras - e não obstante estão de tal forma iludidos que não
lutam pela libertação. Esses homens são suicidas. Apegam-se ao irreal e destroem a si mesmos.
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Pois haverá maior tolo do que o homem que obteve esse raro nascimento humano junto com a força
corporal e mental e ainda assim não consegue, devido à ilusão, realizar o seu bem supremo?
Os homens podem recitar as escrituras e oferecer sacrifícios aos espíritos sagrados, podem executar rituais
e adorar as divindades mas, enquanto não despertarem para o conhecimento de sua identidade com o
Atman, jamais atingirão a libertação; não, nem mesmo ao cabo de muitas centenas de séculos.
As escrituras declaram que a imortalidade não pode ser conquistada através do trabalho, nem da progênie,
nem da riqueza, mas unicamente pela renúncia. Assim, fica claro que o trabalho não nos pode trazer a
libertação.
Que o sábio, pois, renuncie à busca do prazer nas coisas exteriores e lute arduamente pela libertação. Que
procure um mestre nobre e de alma elevada e se absorva de todo o coração na verdade que lhe é ensinada.
Pela devoção ao reto discernimento ele ascenderá à suprema união com Brahman. Pelo poder do Atman ele
salvará a sua alma, que jaz imersa nas vastas águas do mundo.
Deixa que o sábio, que cresceu tranqüilo e que pratica a contemplação do Atman, se desligue de todas as
atividades mundanas e se esforce para cortar os vínculos com o mundanismo.
A ação reta ajuda a purificar o coração, mas não nos dá a percepção direta da Realidade. A Realidade é
atingida por meio do discernimento, mas não, nem no mais ínfimo grau, através de dez milhões de atos.
O discernimento correto revela-nos a verdadeira natureza de uma corda e remove o doloroso medo
ocasionado pela nossa crença ilusória de ser ela uma enorme cobra.
Um certo conhecimento da Realidade só pode ser obtido através da meditação sobre o ensinamento correto,
e não por meio de abluções sagradas, ou de esmolas, ou da prática de centenas de exercícios respiratórios.
O êxito em alcançar a meta depende sobretudo das qualificações daquele que busca. Tempo e lugar
adequados e outras circunstâncias favoráveis constituem outras tantas ajudas para se atingir a meta.
Que aquele, pois, que deseja conhecer o Atman, que é a Realidade, pratique o discernimento. Mas antes
deve aproximar-se de um mestre que seja um perfeito conhecedor de Brahman e cuja compaixão seja tão
vasta como o próprio oceano.
O discípulo
O homem deve ser inteligente e sábio, com grande poder de compreensão e capaz de superar as dúvidas
pelo exercício da razão. Quem possui essas qualificações está apto a adquirir o conhecimento do Atman.
Só pode ser considerado qualificado para buscar Brahman. o homem dotado de discernimento, cuja mente
esteja afastada de todos os prazeres, o homem que possui a tranqüilidade e as virtudes afins e que aspira
ardentemente à libertação.
Neste contexto, os sábios falaram de quatro qualificações que permitem alcançar a meta. Quando essas
qualificações estiverem presentes, a devoção à Realidade se tomará completa. Se estiverem ausentes, ela
fracassará.
A primeira é o discernimento entre o eterno e o não-eterno. Segue-se a renúncia ao gozo dos frutos da ação,
nesta e na outra vida. Em seguida vêm os seis tesouros da virtude, a começar pela tranqüilidade. E, enfim, o
anseio de libertação.
Brahman é real; o universo é irreal. A firme convicção dessa verdade denomina-se discernimento entre o
eterno e o não-eterno.
A renúncia é o abandono de todos os prazeres dos olhos, dos ouvidos e dos demais sentidos, o abandono
de todos os objetos de prazer transitório, o abandono do desejo de um corpo físico, assim como do tipo
supremo de corpo-espírito de um deus.
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Afastar a mente de todas as coisas objetivas mediante um contínuo discernimento de sua imperfeição e
dirigi-Ia resolutamente para Brahman, sua meta - a isto se chama tranqüilidade.
Afastar os dois tipos de órgãos sensoriais - os da percepção e os da ação - das coisas objetivas e deixá-los
repousar em seus respectivos centros - a isto se chama autocontrole. O verdadeiro equilíbrio mental
consiste em não permitir que a mente reaja aos estímulos externos.
Suportar todos os tipos de aflição sem revolta, sem queixa ou lamento - a isto se chama paciência.
Uma firme convicção, baseada na compreensão intelectual, de que os ensinamentos das escrituras e de um
mestre são verdadeiros - a isto os sábios chamam de fé, que leva à realização da Realidade.
Concentrar o intelecto repetidamente no puro Brahman e mantê-lo sempre fixado em Brahman - a isto se
chama submissão. O que não significa aquietar a mente, como a um bebê, com pensamentos ociosos.
O anseio de libertação é a vontade de libertar-nos dos grilhões forjados pela ignorância - começando com o
sentimento do ego e assim por diante, indo até o próprio corpo físico - mediante a compreensão da nossa
verdadeira natureza.
Embora esse anseio de libertação possa estar presente num grau leve e moderado, ele se intensificará
através dos méritos do mestre e da prática da renúncia e de virtudes como a tranqüilidade, etc. E dará os
seus frutos.
Quando a renúncia e o anseio de libertação se acham presentes num grau intenso, a prática da
tranqüilidade e das demais virtudes frutificará e conduzirá à meta.
Quando a renúncia e o anseio de libertação são fracos, a tranqüilidade e as demais virtudes constituem
mera aparência, qual miragem no deserto.
Dentre os meios de libertação, a devoção é suprema. Empenhar-nos sinceramente em conhecer a nossa
verdadeira natureza - a isso se chama devoção.
Em outras palavras, a devoção pode ser definida como a busca da realidade do nosso próprio Atman.
Aquele que busca a realidade do Atman, que possui as qualificações acima mencionadas, deve procurar um
mestre iluminado capaz de ensinar-lhe o caminho da libertação em relação a todos os tipos de servidão.
O mestre
O Mestre é um homem profundamente versado nas escrituras, puro, livre da luxúria, perfeito conhecedor de
Brahman. Mantém-se continuamente apoiado em Brahman, é calmo como a chama cujo combustível vai
sendo consumido, um oceano de amor que não conhece motivos ulteriores, um amigo de todas as pessoas
bondosas que humildemente se confiam à sua direção.
O homem que busca há de aproximar-se do mestre com reverente devoção. Então, depois de agradar-lhe
pela sua humildade, amor e serviço, perguntará tudo o que pode ser conhecido a respeito do Atman.
Ó Mestre, amigo de todos os devotos, curvo-me diante de vós. Ó ilimitada compaixão, eu caí no mar do
mundo - salvai-me com esses olhos inalteráveis que derramam graça sempiterna, como néctar.
Estou ardendo no incêndio da floresta do mundo, incêndio que ninguém pode apagar. As más ações do
passado impelem-me daqui para ali como vastos vendavais. Busquei refúgio em vós. Salvai-me da morte.
Não conheço outro abrigo.
Existem almas puras que alcançaram a paz e a magnanimidade. Elas trazem o bem à humanidade, como o
repontar da primavera. Também elas atravessaram o terrível oceano deste mundo. E agora, sem nenhum
motivo egoísta, ajudam os outros a fazer a travessia.
É próprio dessas grandes almas trabalhar espontaneamente para aliviar as atribulações de seus
semelhantes, tal como a lua refresca espontaneamente a terra crestada pelos candentes raios do sol.
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A nau dos vossos lábios mergulhou na bem-aventurança de Brahman e impregnou-se da sua doçura.
Derramai sobre mim, como gotas de néctar, as palavras de Brahman. Elas purificam, acalmam e são
aprazíveis ao ouvido. Senhor, o calor ardente desta vida mundana me consome como as labaredas de um
incêndio na floresta. Bem-aventurado aquele sobre quem vossos olhos repousam um instante que seja - é
assim que os aceitais e deles vos apropriais.
Como hei de atravessar o oceano deste mundo? Qual há de ser a minha meta? Que caminho hei de seguir?
Não conheço nenhum. Sede generoso, Senhor. Salvai-me. Dizei-me como pôr termo às misérias desta vida
terrena. Nada recuseis.
Crestado pelas ardentes labaredas da floresta do mundo, o discípulo pronuncia essas palavras. A grande
alma olha para o discípulo que assim busca refúgio e seus olhos estão úmidos de lágrimas de misericórdia.
Imediatamente, ele liberta o discípulo de seus temores.
O discípulo, que buscou sua proteção, é alguém que anseia pela libertação, que cumpriu rigorosamente
seus deveres, cujo coração se fez tranqüilo e que alcançou a serenidade da mente. Com compaixão, o
homem sábio e santo começa a instruí-lo na verdade.
Ó homem prudente, não temas! Não corres nenhum risco. Existe um meio de atravessar o oceano da vida
mundana. Vou revelar-te o método pelo qual os sábios chegaram à outra margem.
Existe um método eficaz de pôr termo ao horror desta vida mundana. Por ele poderás atravessar o oceano
do mundo e alcançar a suprema bem-aventurança.
Meditar sobre o significado da verdade, tal como a ensinam os Vedantas, conduz à suprema iluminação. Por
esse meio, a miséria da vida mundana é totalmente destruída.
Fé, devoção e união constante com Deus através da oração - estas qualidades são declaradas pelas
sagradas escrituras como o meio direto de libertação para aquele que busca. Àquele que nelas persiste,
advém a libertação do estado de servidão da consciência física que foi forjado pela ignorância.
Por estares associado com a ignorância, o supremo A~ que em ti reside parece estar subjugado pelo não-
Atman. Essa é a única causa do ciclo de nascimentos e mortes. A chama da iluminação, que se acende pelo
discernimento entre Atman e não-Atman, consumirá os efeitos da ignorância até suas próprias raízes.
As perguntas
Fala o Discípulo:
Mestre, ouvi as perguntas que vou fazer. Bem-aventurado serei se puder ouvir uma resposta de vossos
lábios.
O que é, na realidade, essa servidão? Como ela começou? Em que se enraíza? Como é o homem que dela
se libertou? O que é o não-Atman? Que é o supremo Atman? Como discernir entre eles? Por favor,
respondei-me.
Fala o Mestre:
Bem-aventurado és, de fato! Estás perto da meta. Graças a ti, toda a tua família se purificou, porque anseias
por libertar-te da servidão da ignorância e alcançar Brahman.
Os filhos podem libertar os pais de suas dívidas, mas nenhuma outra pessoa pode libertar um homem de
sua servidão: ele próprio deve fazê-lo.
Outros podem aliviar o sofrimento causado por um fardo que pesa sobre a nossa cabeça; mas o sofrimento
que deriva da fome, etc., só pode ser aliviado por nós mesmos.
O homem doente que toma remédio e observa as regras da dieta pode recuperar a saúde - mas não através
dos esforços de outrem.
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Uma clara visão da Realidade só pode ser obtida através de nossos próprios olhos, quando eles se abrirem
por meio do discernimento espiritual - mas nunca através dos olhos de outro vidente. Por nossos próprios
olhos aprendemos a ver a aparência da lua: como poderíamos aprender isso pelos olhos de outrem?
As cordas que, devido à nossa ignorância, nos amarram aos nossos desejos lascivos e aos frutos do nosso
Karma - como poderia alguém a não ser nós próprios desatá-las, mesmo no curso de inumeráveis séculos?
Nem pela prática da ioga ou da filosofia Sankhya, nem pelas boas obras, nem pelo saber nos chega a
libertação, mas unicamente pela compreensão de que Atman e Brahman são um - e de nenhuma outra
maneira.
É dever de um rei contentar o seu povo, mas nem todos os que contentam o povo são aptos a ser reis.
Porque o povo pode ser contentado pela beleza da forma de uma vina e pela habilidade com que suas
cordas são tocadas.
A erudição, o discurso bem-articulado, a riqueza de vocabulário e a capacidade de interpretar as escrituras -
tais coisas aprazem ao erudito, mas não trazem a libertação.
O estudo das escrituras será vão enquanto Brahman não tiver sido experimentado. E, depois que Brahman
foi experimentado, é inútil ler as escrituras.
Uma rede de palavras é como uma floresta densa que obriga a mente a perambular de lá para cá. Aqueles,
pois, que conhecem esta verdade devem trabalhar arduamente para vivenciar Brahman.
Quando um homem foi mordido pela cobra da ignorância, ele só pode ser curado pela realização de
Brahman. De que servem os Vedas e as escrituras, os amuletos e as ervas?
Não se cura uma doença pronunciando a palavra “remédio”. É preciso tomar o remédio. A libertação não
vem com o mero fato de pronunciar a palavra “Brahman”. Brahman deve ser realmente vivenciado.
Enquanto não permitirmos que este universo aparente desapareça da nossa consciência, enquanto não
experimentarmos Brahman, como podemos encontrar a libertação pela simples pronúncia da palavra
"Brahman"? O resultado é um mero ruído.
Enquanto não tiver destruído seus inimigos e tomado posse do esplendor e das riquezas do reino, o homem
não pode tomar-se rei dizendo simplesmente: “Eu sou um rei.”
Um tesouro enterrado não pode ser descoberto apenas pronunciando-se a palavra “apareça”. É preciso
seguir as indicações corre-tas, cavar, remover as pedras e a terra que o recobrem e então apropriar-se dele.
Do mesmo modo, a pura verdade do Atman, que está enterrada sob Maya e sob os efeitos de Maya, só
pode ser alcançada pela meditação, pela contemplação e por outras disciplinas que o conhecedor de
Brahman pode prescrever - nunca, porém, por meio de argumentos sutis.
Deve o sábio, pois, exercer todos os seus poderes para obter a libertação da servidão do mundo da mesma
forma que tomaria os remédios prescritos contra as doenças físicas.
A pergunta que hoje formulaste é muito oportuna. Ela é relevante para os ensinamentos das escrituras. Seu
significado está oculto nas profundezas, como no âmago de um aforismo. Todos aqueles que buscam a
libertação devem fazê-la.
Ouve atentamente, ó homem prudente, o que tenho a dizer. Se ouvires, serás decerto libertado dos grilhões
do mundo.
Dos passos que conduzem à libertação, o primeiro é o completo desprendimento de todas as coisas não-
eternas. Em seguida, vem a prática da tranqüilidade, do autocontrole e da paciência. E depois a completa
renúncia a todas as ações inspiradas pelo desejo pessoal, egoísta.
Então o discípulo deve ouvir a verdade do Atman e refletir a respeito dela, e meditar sobre ela
constantemente, ininterruptamente, durante longo tempo. Assim, o sábio alcança o estado supremo no qual
a consciência do sujeito e do objeto se dissolve e só a infinita consciência da unidade permanece - e então
ele conhece a bem-aventurança do Nirvana enquanto ainda vive neste mundo.
19
Atman e não-Atman
Explicarei agora o discernimento entre o Atman e o não-Atman. Ouve-me, pois. Ouve atentamente e depois
compreende a respectiva verdade em tua própria alma.
O que o vidente chama de corpo material compõe-se destas substâncias: tutano, osso, gordura, carne,
sangue, pele e epiderme. Esse corpo consiste em pernas, coxas, peito, braços, pés, costas, cabeça e outras
partes. Sabe-se que ele é a raiz da ilusão do "eu" e do "meu".
Os elementos sutis são o éter, o ar, o fogo, a água e a terra. Reunidas, as partes desses elementos formam
o corpo material.
Audição, tato, visão, paladar e olfato - estas cinco essências dos elementos são tudo o que
experimentamos. Elas existem para serem experimentadas pelo indivíduo.
Os seres iludidos que estão atados aos objetos que experimentam pela forte corda do desejo, tão difícil de
romper, permanecem sujeitos ao nascimento e à morte. São impelidos de lá para cá pelo seu próprio karma,
essa lei implacável.
O cervo, o elefante, a mariposa, o peixe a abelha - cada um desses animais caminha para a morte sob o
fascínio de apenas um dos cinco sentidos. Qual não há de ser, então, o destino que aguarda o homem
subjugado pelo fascínio dos cinco sentidos?
Os objetos percebidos pelos sentidos são ainda mais fortes em seus efeitos maléficos do que o veneno da
cobra. O veneno só mata quando é introduzido no corpo, mas esses objetos nos destroem pelo simples fato
de serem vistos com os olhos.
Só aquele que se libertou da terrível armadilha do anseio de prazeres sensoriais, aos quais é tão difícil
renunciar, está apto à libertação - e ninguém mais, ainda que seja versado nos seis sistemas de filosofia.
Aqueles que dizem buscar a libertação mas não possuem o verdadeiro espírito de renúncia tentam, ainda
assim, atravessar o oceano deste mundo. O tubarão do desejo apanha-os pela garganta, desvia-os
violentamente de sua rota e eles se afogam a meio caminho.
Aquele que matou o tubarão do desejo sensorial com a espada da verdadeira impassibilidade atravessa o
oceano deste mundo sem deparar com nenhum obstáculo.
Saiba que o homem iludido, que caminha pela terrível senda do desejo sensorial, aproxima-se a cada passo
de sua ruína. E saiba também que é verdade - que aquele que trilha o caminho indicado pelo seu mestre -
seu amigo mais leal - e pelo seu próprio discernimento colhe o fruto supremo do conhecimento de Brahman.
Se almejas realmente a libertação, mantém os objetos do gozo sensorial à distância, como um veneno, e
continua bebendo com deleite, como um néctar, as virtudes do contentamento, da compaixão, do perdão, da
sinceridade, da serenidade e do autocontrole.
O homem deve estar continuamente empenhado em libertar-se da servidão da ignorância, que não tem
começo. Aquele que negligencia esse dever e está apaixonadamente empenhado em alimentar os desejos
do corpo comete um suicídio. Porque o corpo é apenas um veículo de experiência para o espírito humano.
Aquele que procura encontrar o Atman alimentando os desejos do corpo está tentando atravessar um rio
agarrado a um crocodilo, confundindo-o com uma tábua.
O apego ao corpo, aos objetos e às pessoas é fatal para aquele que busca a libertação. Quem superou
completamente o apego está pronto para alcançar o estado de libertação.
Mata esse implacável apego ao corpo, à esposa, aos filhos e aos outros. Os videntes que o superaram
adentram a suprema morada de Vishnu, aquele que a tudo impregna.
Esse corpo que é feito de pele, carne, sangue, artérias, veias, gordura, tutano e osso está cheio de matéria
residual e de imundície, e merece o nosso desprezo.
20
Vigília, sono, sono sem sonhos
Este corpo físico é composto dos elementos materiais, que são formados pelo composto quíntuplo de seus
elementos sutis. Ele nasceu através do karma da vida anterior e é o veículo da experiência para o Atman.
Quando o universo objetivo está sendo percebido, isso é conhecido como o estado de vigília da consciência.
No estado de vigília da consciência, o homem encontra sua plena atividade no corpo. Nesse estado ele se
identifica com seu corpo, embora esteja efetivamente separado dele. Por meio dos sentidos externos ele
desfruta os objetos materiais, como grinaldas, perfumes, mulheres e assim por diante, bem como outros
objetos que proporcionam prazer sensorial.
Deves saber que esse corpo, por meio do qual o homem experimenta o mundo exterior, é como a casa de
um chefe de família.
As características inerentes a esse corpo material são o nascimento, o declínio e a morte. Ele está sujeito a
variadas condições, como a gordura ou a magreza; e a vários estágios de desenvolvimento, como a infância
e a juventude. É controlado pelos preceitos de casta e pelos preceitos das quatro ordens da vida. Está
sujeito a várias doenças e a diferentes tipos de tratamento, como a adoração, a afronta ou o respeito.
Seus órgãos de percepção são os ouvidos, a pele, os olhos, o nariz e a língua: por eles conhecemos os
objetos.
Seus órgãos de ação são os órgãos vocais, as mãos, as pernas e os órgãos de excreção e reprodução.
Esses órgãos nos envolvem na ação.
O órgão mental compreende a mente, o intelecto, o ego e a natureza emocional. Estes se distinguem pelas
suas diferentes funções. A função da mente é examinar os vários aspectos de um objeto. A função do
intelecto é determinar a verdadeira natureza de um objeto.
O ego é a autoconsciência que surge quando o órgão mental se identifica com o corpo. A tendência da
natureza emocional é atrair-nos para aquilo que é agradável.
A força vital se divide de acordo com suas cinco diferentes funções. A -respiração- é a função da força vital
utilizada na respiração. A “respiração descendente” é usada na excreção. A “respiração distributiva” controla
os processos da digestão e da assimilação. A “respiração difusa” está presente em todo o corpo, resistindo
à desintegração e unindo-o em todas as suas partes. A “respiração ascendente” é usada na eructação.
Assim como o ouro é conhecido por diferentes nomes quando é moldado para diversos ornamentos, assim
como a água assume a forma de ondas, espuma, etc., também a força vital única recebe esses cinco
nomes diferentes segundo suas cinco diferentes funções.
Oito grupos compõem o corpo sutil: cinco órgãos de percepção, cinco órgãos de ação, cinco funções da
força vital, cinco elementos sutis e o órgão mental, junto com a ignorância, os desejos e o karma.
O corpo sutil é composto pelos elementos sutis antes que eles entrem em seus compostos quíntuplos. É a
sede de nossos desejos. É o campo no qual os frutos do karma são experimentados. Devido à ignorância
humana, esse corpo sutil foi sobreposto ao Atman desde um tempo sem princípio.
O estado de sonho pertence eminentemente ao corpo sutil. Durante os sonhos, ele cria a sua própria
matéria e brilha com a sua própria luz. O órgão mental é um depósito das numerosas impressões deixadas
pelos desejos que experimentamos no estado de vigília. Nos sonhos, o órgão mental se identifica com a
consciência do ego e está à mercê dessas impressões. Porém o Atman permanece além, como sempre, em
sua própria consciência auto-iluminada. Durante esse tempo, o órgão mental é o seu único invólucro. O
Atman testemunha tudo, mas não se deixa contaminar por nossas experiências oníricas, mantendo-se
eternamente livre e intacto. Nenhum karma criado pelos corpos que o recobrem pode contaminá-lo, ainda
que no mais ínfimo grau.
O corpo sutil é como unia ferramenta afiada na mão do carpinteiro. Ele é o instrumento de toda a atividade
do Atman, que é infinita sabedoria. Portanto, o próprio Atman está livre de qualquer mácula.
21
As condições de cegueira, fraqueza e visão aguçada pertencem aos olhos e são causadas pelas suas
qualidades e defeitos. Do mesmo modo, a surdez e a mudez são condições dos ouvidos e da língua - mas
não do Atman, o conhecedor.
A inalação, a exalação, o bocejo, o espirro, a descarga de saliva e o abandono do corpo por ocasião da
morte são considerados, por aqueles que sabem, como as várias funções da força vital. A fome e a sede
são também funções da força vital.
O órgão mental identifica-se com os órgãos da percepção e da ação, assim como com o corpo físico. Desse
modo, surge o sentimento de individualidade, que leva o homem a viver e a agir. Sua consciência é um
reflexo da infinita consciência do Atman.
Aquele que acredita que está agindo ou experimentando é reconhecido como o ego, o homem individual.
Identificando-se com as gunas, ele passa pelos três estados de consciência - a vigília, o sonho e o sono sem
sonhos.
Quando os objetos da experiência são agradáveis, ele é feliz. Quando são desagradáveis, é infeliz. O prazer
e a dor são característicos do indivíduo, e não do Atman, que é sempre bem-aventurado.
O objeto da experiência é digno de amor - não por si mesmo, mas porque serve ao Atman. Porém o próprio
Atman deve ser amado acima de todas as coisas.
No sono sem sonhos, quando não há nenhum objeto de experiência, sente-se a alegria do Atman. Isso é
confirmado pela nossa própria experiência, assim como pelas escrituras, pela tradição e pela lógica.
Maya
Maya, no seu aspecto virtual, é o poder divino de Deus. Não tem começo. Composta por três gunas, é sutil e
está além da percepção. É dos efeitos que ela produz que sua existência é inferida pelo sábio. É ela que dá
origem a todo o universo.
Não é nem um ser nem um não-ser, nem uma mistura de ambos. Não é nem divisível nem indivisível, nem
uma mistura de ambos. Não é nem um todo indivisível nem uma soma de partes, nem uma mistura de
ambos. É estranhíssima. Sua natureza é inexplicável.
Assim como a percepção de que uma corda é uma corda destrói a ilusão de ser ela uma cobra, também
Maya é destruída pela experiência direta de Brahman - o puro, o livre, o primeiro sem um segundo. Maya é
composta pelas gunas - as forças conhecidas como rajas, tamas e sattwa. Essas forças têm características
distintas.
Rajas tem o poder de projeção: sua natureza é a atividade. Graças a esse poder, o mundo fenomenal, que
está envolvido em Maya, começa a evoluir. O apego, o desejo e outras qualidades semelhantes são
causadas por seu poder, assim como a tristeza e outras disposições da mente.
A luxúria, a cólera, a cobiça, a arrogância, o ciúme, o egotismo, a inveja e outros vícios similares são as
piores características de rajas. Quando um homem é dominado por ela, fica apegado às ações mundanas.
Por isso rajas é a causa da servidão.
Tamas tem o poder de encobrir a verdadeira natureza de um objeto, fazendo-o parecer diferente do que é. É
a causa da contínua sujeição do homem à roda de nascimento e morte. Além disso, é ela que torna possível
a operação do poder de rajas.
Um homem pode ser inteligente, talentoso e culto. Pode ter a faculdade da auto-análise perspicaz. Mas, se
for dominado por tamas, não poderá compreender a verdadeira natureza do Atman, ainda que ela lhe seja
claramente explicada de várias maneiras. Ele toma a aparência, que é o produto de sua ignorância, pela
realidade - e com isso se apega às ilusões. Infelizmente, esse obscuro poder da terrível tamas é muito
grande.
22
Incapacidade de perceber o objeto real, ver algo como diferente do que ele de fato é, vacilação da mente,
tomar as ilusões por realidades - tais são as características de tamas. Enquanto estiver apegado a tamas, o
homem nunca se libertará delas. E também rajas irá perturbá-lo incessantemente.
Tamas tem mais estas características: ignorância, preguiça, entorpecimento, sono, ilusão e estupidez. O
homem que se encontra sob a influência dessas características não consegue compreender coisa alguma.
Vive como um sonâmbulo ou como uma tora inconsciente.
Sattwa é pureza. Mesmo quando está misturada com rajas e tamas, como água misturada com água,
ilumina o caminho da libertação. Sattwa revela o Atman tal como o sol revela o mundo objetivo.
Sattwa, quando misturada com as outras gunas, tem estas características: ausência de orgulho, pureza,
contentamento, austeridade, desejo de estudar as escrituras, submissão a Deus, inocência, veracidade,
continência, ausência de cobiça, fé, devoção, anseio de libertação, aversão às coisas deste mundo, e as
demais virtudes que levam a Deus.
Sattwa no seu estado puro tem as seguintes características: serenidade, percepção direta do Atman, paz
absoluta, contentamento, alegria e constante devoção ao Atman. Graças a essas qualidades, o homem que
busca goza de eterna beatitude.
Maya foi definida como um composto das três gunas. É o corpo causal do Atman. O sono sem sonhos
pertence eminentemente ao corpo causal. Nesse estado, as atividades da mente e dos órgãos sensoriais
estão suspensas.
No sono sem sonhos não há nenhum tipo de cognição. Porém a mente continua a existir na sua forma sutil,
como unia semente. A prova disso pode ser encontrada na experiência de todo indivíduo -ao acordar, a
mente ainda se lembra: “Não percebi nada.”
Existem o corpo, os órgãos sensoriais, a força vital, a mente, o ego e suas funções, os objetos de gozo, os
prazeres e todos os outros tipos de experiência, os elementos densos e os sutis - em suma, todo o universo
objetivo e Maya, que é a sua causa. Nada disso é Atman.
Deves saber que Maya e todos os seus efeitos - do intelecto cósmico ao corpo denso - não são o Atman.
São todos irreais, qual miragem no deserto.
O Atman
Agora vou explicar-te a natureza do Atman. Se a compreenderes, estarás livre dos grilhões da ignorância e
alcançarás a libertação.
Há uma Realidade que existe por si mesma e que constitui a base da nossa consciência do ego. Essa
Realidade é a testemunha dos três estados da nossa consciência e difere dos cinco invólucros corporais.
Essa Realidade é o conhecedor em todos os estados de consciência - vigília, sonho e sono sem sonhos. Ela
está cônscia da presença ou da ausência da mente e suas funções. É o Atman.
A Realidade vê tudo pela sua própria luz. Ninguém pode vê-Ia. Ela dá inteligência à mente e ao intelecto,
mas ninguém lhe dá luz.
A Realidade permeia o universo, mas ninguém pode penetrá-la. Ela brilha por si mesma. O universo brilha
com o reflexo da Sua luz.
Graças à Sua presença, o corpo, os sentidos, a mente e o intelecto se aplicam às suas respectivas funções,
como se obedecessem ao Seu comando.
Sua natureza é a eterna consciência. Ela conhece todas as coisas, da consciência do ego ao próprio corpo.
É o conhecedor do prazer e da dor e dos objetos dos sentidos. Conhece tudo objetivamente - tal como um
homem conhece a existência objetiva de um jarro.
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Essa Realidade é o Atman, o Ser Supremo, o imemorial, que nunca cessa de sentir infinita alegria. Ele é
sempre o mesmo. É a própria consciência. Os órgãos e as energias vitais funcionam sob o seu comando.
Aqui, dentro deste corpo, na mente pura, na câmara secreta da inteligência, no universo infinito do coração,
o Atman reflete no seu esplendor fascinante, como o sol do meio-dia. Pela sua luz o universo é revelado.
Ele é o conhecedor das atividades da mente e do homem individual. É a testemunha de todas as ações do
corpo, dos órgãos sensoriais e da energia vital. Parece identificar-se com todos estes, tal como o fogo
parece identificar-se com uma esfera de ferro, mas não age nem está sujeito à mais ligeira mudança.
O Atman não conhece o nascimento nem morte. Não evolui nem declina. É imutável, eterno. Não se
dissolve quando o corpo se dissolve. Deixará o éter de existir quando se quebra o recipiente que o contém?
O Atman é distinto de Maya, a causa primeira, e de seu efeito, o universo. A natureza do Atman é a pura
consciência. O Atman reve-la todo este universo da mente e da matéria. Não se pode defini-lo. Dentro e
através dos vários estados de consciência - a vigília, o sonho e o sono - ele mantém nossa ininterrupta
consciência de identidade, manifestando-se como a testemunha da inteligência.
A mente
Com uma mente disciplinada e um intelecto que alcançou a pureza e a serenidade, deves conhecer o Atman
diretamente, no teu íntimo. Reconhece o Atman como o Eu real. Desse modo atravessarás o oceano
ilimitado da mundanidade, cujas ondas são o nascimento e a morte. Vive sempre no conhecimento da
identidade com Brahman * sê bem-aventurado.
O homem está em servidão porque confunde o não-Atman com o seu verdadeiro Eu. Isto é causado pela
ignorância. Daí decorre a miséria do nascimento e da morte. Pela ignorância o homem identifica o Atman
com o corpo, tomando o perecível pelo real. Por isso ele alimenta esse corpo, unge-o e o protege
cuidadosamente. Enreda-o nas coisas dos sentidos como uma lagarta nos fios do seu casulo.
Iludido pela sua ignorância, o homem confunde uma coisa com outra. A falta de discernimento levará o
homem a pensar que uma cobra é unia corda. Se a apanhar com essa crença, correrá grande risco. A
aceitação do irreal como real constitui o estado de servidão. Presta atenção a isso, amigo.
O Atman é indivisível, eterno, o primeiro sem um segundo. Manifesta-se eternamente pelo poder do seu
próprio conhecimento. Suas glórias são infinitas. O véu de tamas encobre a verdadeira natureza do Atman,
tal como um eclipse encobre os raios do sol.
Quando os puros raios do Atman estão assim encobertos, o homem iludido se identifica com o seu corpo,
que é não-Atman. Então rajas, que tem o poder de projetar formas ilusórias, aflige-o dolorosamente.
Acorrenta-o com os grilhões da luxúria, da cólera e das demais paixões.
Sua mente toma-se pervertida. Sua consciência do Atman é devorada pelo tubarão da total ignorância.
Submetendo-se ao poder de rajas, ele se identifica com os numerosos movimentos e mudanças da mente e
assim é arrastado de lá para cá, ora aflorando, ora afundando no oceano ilimitado do nascimento e da
morte, cujas, águas estão cheias do veneno dos objetos sensoriais. Este é um destino realmente miserável.
Os raios do sol produzem camadas de nuvem. Por elas o sol é encoberto, e então parece que só as nuvens
existem. Do mesmo modo, o ego, produzido pelo Atman, encobre a verdadeira natureza do Atman, e então
parece que só o ego existe.
Num dia tempestuoso o sol é encoberto por espessas nuvens, e essas nuvens são fustigadas por violentas
e gélidas rajadas de vento. Do mesmo modo, quando o Atman é envolvido pelas espessas trevas de ta7ms,
o terrível poder de rajas fustiga o homem iludido com todos os tipos de aflições.
A servidão do homem é provocada pelo poder de tamas e rajas. Iludido por ela, o homem toma o corpo pelo
Atman e extravia-se no caminho que leva à morte e ao renascimento.
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A vida do homem neste mundo relativo pode ser comparada a uma árvore. Tamas é a semente. A
identificação do Atman com o corpo, o seu crescimento. Os desejos são as folhas. O trabalho é a seiva. O
corpo, o tronco. As forças vitais são os galhos. Os órgãos sensoriais, os rebentos. Os objetos dos sentidos,
as flores. Os frutos, os sofrimentos causados por várias ações. O homem individual é o pássaro que come
os frutos da árvore da vida.
A sujeição do Atman ao não-Atman provém da ignorância. Não tem uma causa externa. Não tendo princípio,
perdurará indefinidamente enquanto o homem não alcançar a iluminação. Enquanto o homem permanecer
nessa servidão, ela o sujeitará a um longo cortejo de misérias - nascimento, morte, doença, decrepitude e
assim por diante.
Essa servidão não pode ser vencida nem pelas armas, nem pelo vento, nem pelo fogo, nem por milhões de
atos. SÓ a espada cortante do conhecimento pode extirpá-la. Esta é forjada pelo discernimento e aguçada
pela pureza do coração mediante a graça divina.
O homem deve cumprir com fidelidade e devoção os deveres prescritos pelas escrituras. Isso lhe purifica o
coração. O homem de coração puro realiza o supremo Atman. Desse modo, ele destrói sua servidão ao
mundo, arrancando-a pela raiz.
Envolto em seus cinco invólucros, a começar pelo corpo físico, que são os produtos de sua própria Maya, o
Atman permanece oculto, tal como a água de um lago é recoberta por um véu de espuma.
Quando se remove a espuma, a água pura é vista claramente. Ela sacia a sede do homem, refresca-o
imediatamente e torna-o feliz.
Quando se removem todos os cinco invólucros, o puro Atman é revelado como o Deus que habita em nosso
íntimo, como infinita e genuína bem-aventurança, como o Ente supremo e auto-iluminado.
O sábio que busca libertar-se da servidão há de discernir entre Atman e não-Atman. SÓ assim ele pode
compreender o Atman, que é o Ser Infinito, a Sabedoria Infinita e o Amor Infinito. SÓ assim ele encontra a
felicidade.
O Atman habita em nosso íntimo, livre do apego e para além de toda ação. O homem deve separar esse
Atman de todo objeto da experiência, tal como uma haste de erva é separada de seu invólucro. Então ele
deve dissolver no Atman todas as aparências que constituem o mundo do nome e da forma. Livre é a alma
que assim pode permanecer no Atman.
O corpo
Este corpo é um "invólucro físico". O alimento possibilita o seu nascimento; com alimento ele vive; sem
alimento, ele morre. Esse corpo consiste em epiderme, pele, carne, sangue, ossos e água. Não pode ser o
Atman, o eternamente puro, o que existe por si só.
Ele não existia antes do nascimento e não existirá depois da morte. Existe apenas por um breve lapso de
tempo, no intervalo entre ambos. Sua natureza é transitória e sujeita a mudança. Ele é um composto, e não
um elemento. Sua vitalidade é um simples reflexo. É um objeto sensorial, que pode ser percebido como um
jarro. Como há de ser ele o Atman, o experimentador de todas as experiências?
O corpo consiste em braços, pernas e outros membros. Ele não é o Atman - pois quando um desses
membros é amputado, o homem pode continuar vivendo e funcionando por meio de órgãos remanescentes.
O corpo é controlado por outrem. Não pode ser o Atman, o controlador.
O Atman observa o corpo, com suas variadas características, ações e estágios de desenvolvimento. Que
esse Atman, que é a realidade permanente, tem uma natureza distinta da do corpo é um fato que se
evidencia por si mesmo.
O corpo é um feixe de ossos ligados pela carne. É sujo e cheio de imundícies. O corpo nunca pode ser
identificado com o Atman, o conhecedor, o que existe por si só. A natureza do Atman é absolutamente
distinta da do corpo.
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Só o homem ignorante se identifica com o corpo, que é um composto de pele, carne, gordura, ossos e
imundícies. O homem que possui o discernimento espiritual sabe que o Atman, seu verdadeiro ser, a única
realidade suprema, é diferente do corpo.
O tolo pensa: "Eu sou o corpo.- O homem inteligente pensa: “Eu sou uma alma individual unida ao corpo."
Mas o sábio, na grandeza do seu conhecimento e discernimento espiritual, vê o Atman como a realidade e
pensa: "Eu sou o Brahman."
Ó tolos, parai de identificar-vos com essa massa de pele, carne, gordura, ossos e imundícies. Identificai-vos
com Brahman, o Absoluto, o Atman imanente a todos os seres. Só assim podereis atingir a paz suprema.
O homem inteligente pode ser versado no Vedanta e nas leis morais. Mas não tem a mínima possibilidade
de libertar-se enquanto não deixar de se identificar com o corpo e os órgãos sensoriais. Essa identificação é
produzida pela ilusão.
Nunca vos identificais com a sombra projetada pelo vosso corpo, nem com o seu reflexo, nem com o corpo
que vedes num sonho ou em vossa imaginação. Por isso não deveis identificar-vos com esse corpo vivo.
Aqueles que vivem na ignorância identificam o corpo com o Atman. Essa ignorância é a causa e a origem do
nascimento, da morte e do renascimento. Por isso deveis empenhar-vos diligentemente para destruí-la.
Quando vosso coração estiver livre dessa ignorância, já não haverá nenhuma possibilidade de
renascimento. Tereis alcançado a imortalidade.
O invólucro do Atman chamado de "invólucro vital” é composto pela força vital e pelos cinco órgãos da ação.
O corpo é chamado "invólucro físico” e começa a existir quando é recoberto pelo invólucro vital. É assim que
o corpo se envolve na ação.
Esse invólucro vital não é o Atman - pois que se compõe meramente dos ares vitais. Semelhante ao ar, ele
entra e sai do corpo. Não sabe o que é bom ou ruim para si mesmo ou para os outros. É sempre
dependente do Atman.
Purificação
A mente, ao lado dos órgãos da percepção, forma o "invólucro mental". É ela que produz a consciência do
“eu” e do "meu". É ela, também, que nos permite discernir os objetos. É dotada do poder e da faculdade de
diferenciar os objetos nomeando-os. É manifesta, envolvendo o "invólucro vital".
O invólucro mental pode ser comparado ao fogo sacrificial. É alimentado pelo combustível de muitos
desejos. Os cinco órgãos da percepção atuam como sacerdotes. Os objetos do desejo se derramam sobre
ele como um fluxo continuo de oblações. É assim que este universo fenomenal começa a existir.
A ignorância não está em parte alguma a não ser na mente. A mente está repleta de ignorância, e esta
produz a servidão do nascimento e da morte. Quando, no conhecimento do Atman, o homem transcende a
mente, o universo fenomenal desaparece de sua consciência. Quando o homem vive no domínio da
ignorância mental, o universo fenomenal existe para ele.
No sonho, a mente está desprovida do universo objetivo, mas cria por seu próprio poder um universo
completo de sujeito e objeto. O estado de vigília não passa de um sonho prolongado. O universo fenomenal
existe na mente.
No sono sem sonhos, quando a mente não está funcionando, nada existe. Esta é nossa experiência
universal. O homem parece estar submetido ao nascimento e à morte. Isso é uma criação fictícia da mente,
e não uma realidade.
O vento acumula as nuvens, e o vento torna a dispersá-las. A mente cria a servidão, e a mente também
remove a servidão.
A mente cria o apego ao corpo e às coisas deste mundo. Com isso ela amarra o homem, tal como um
animal é amarrado por uma corda. Mas é também a mente que cria no homem uma profunda repugnância
pelos objetos dos sentidos, como por um veneno. Desse modo, ela o liberta de sua servidão.
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A mente, portanto, é a causa da servidão do homem e também da sua libertação. Ela produz a servidão
quando é obscurecida por rajas, mas produz a libertação quando se desembaraça de rajas e tamas e se
purifica.
Quando se pratica o discernimento e a impassibilidade, com exclusão de tudo o mais, a mente se purifica e
caminha para a libertação. Assim, o homem sábio que busca a libertação deve desenvolver essas duas
qualidades em seu íntimo.
O terrível tigre chamado mente impura ronda a floresta dos objetos dos sentidos. O homem sábio que busca
a libertação não deve ir lá.
A mente do experimentador cria todos os objetos que ele experimenta no estado de vigília ou de sonho.
Incessantemente, ela cria diferenças nos corpos, na cor, na condição social e na raça dos homens. Cria as
variações dos gunas. Cria desejos, ações e os frutos das ações.
O homem é puro espírito, livre de qualquer apego. A mente o ilude. Acorrenta-o com os grilhões do corpo,
dos órgãos sensoriais e da respiração vital. Cria nele a consciência do "eu" e do “meu”. Faz com que
perambule, interminavelmente, entre os frutos das ações que ele produziu.
O erro de identificar Atman com não-Atman é a causa da roda do nascimento, morte e renascimento do
homem. Essa falsa identificação é produzida pela mente. Portanto, é a mente que causa a miséria da roda
do nascimento, morte e renascimento para o homem desprovido de discernimento e maculado por rajas e
tamas.
Por isso o sábio, que conhece a Realidade, declarou estar a mente repleta de ignorância. Devido a essa
ignorância, todas as criaturas do universo são irremediavelmente impelidas de lá para cá, como nuvens
fustigadas pelo vento.
Por isso, aquele que busca a libertação deve trabalhar arduamente para purificar a mente. Quando a mente
se purificou, a libertação é tão fácil de colher quanto o fruto que jaz a um palmo da nossa mão.
Procura sinceramente a libertação, e tua cobiça dos objetos sensoriais será arrancada pela raiz. Pratica o
desapego em relação a todas as ações. Crê na Realidade. Devota-te à prática das disciplinas espirituais,
tais como ouvir a palavra de Brahman, refletir e meditar sobre ela. Desse modo a mente se libertará do mal
de rajas.
O "invólucro mental” não pode, pois, ser o Atman. Ele tem princípio e fim, e está sujeito à mudança. É a
morada da dor. É um objeto da experiência. Aquele que vê não pode ser a coisa que é vista.
O invólucro do intelecto
A faculdade do discernimento com seus poderes de inteligência, junto com os órgãos da percepção, é
conhecida como o "invólucro do intelecto”. Sua qualidade característica é a de ser o agente da ação. É ele
que causa o nascimento, a morte e o renascimento do homem.
O poder de inteligência inerente ao "invólucro do intelecto- é um reflexo do Atman, a pura consciência. O
"invólucro do intelecto" é um efeito de Maya. Ele possui a faculdade de conhecer e de agir e identifica-se
inteiramente com o corpo, os órgãos sensoriais, etc.
Não tem começo, caracteriza-se pela sua consciência do ego e constitui o homem individual. É o indicador
de todas as ações e empreendimentos. Impelido pelas tendências e impressões formadas em nascimentos
anteriores, ele pratica ações virtuosas ou pecaminosas e sofre suas conseqüências.
O "invólucro do intelecto" acumula experiências passando por muitos ventres de grau superior ou inferior.
Pertencem-lhe os estados de vigília e de sonho. É objeto de dores e alegrias.
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  • 1. 1 Shankara Viveka Chuda Mani (A Jóia Suprema do Discernimento) Índice Índice _________________________________________________________________________ 1 Prefácio _______________________________________________________________________ 2 I Shankara_____________________________________________________________________ 3 II A Filosofia do Não-Dualismo____________________________________________________ 5 O espírito da filosofia de Shankara______________________________________________________ 5 A natureza da aparência de mundo _____________________________________________________ 6 Sobreposição, ou Maya________________________________________________________________ 7 Maya: uma declaração de fato e de princípio _____________________________________________ 7 Brahman e Iswara ___________________________________________________________________ 9 O problema do mal__________________________________________________________________ 10 A meta suprema ____________________________________________________________________ 12 Métodos e meios ____________________________________________________________________ 13 III A Jóia Suprema do Discernimento______________________________________________ 14 A senda____________________________________________________________________________ 14 O discípulo_________________________________________________________________________ 15 O mestre___________________________________________________________________________ 16 As perguntas _______________________________________________________________________ 17 Atman e não-Atman _________________________________________________________________ 19 Vigília, sono, sono sem sonhos _________________________________________________________ 20 Maya______________________________________________________________________________ 21
  • 2. 2 O Atman __________________________________________________________________________ 22 A mente ___________________________________________________________________________ 23 O corpo ___________________________________________________________________________ 24 Purificação_________________________________________________________________________ 25 O invólucro do intelecto ______________________________________________________________ 26 Ilusão _____________________________________________________________________________ 27 O invólucro da bem-aventurança ______________________________________________________ 28 Atman é Brahman___________________________________________________________________ 28 O universo _________________________________________________________________________ 29 Eu sou Brahman ____________________________________________________________________ 30 Isso és Tu __________________________________________________________________________ 30 Devoção ___________________________________________________________________________ 32 Falsa identificação __________________________________________________________________ 33 O ego _____________________________________________________________________________ 34 Desejos ____________________________________________________________________________ 35 Recolhimento_______________________________________________________________________ 36 Rejeição das aparências ______________________________________________________________ 36 A corda e a cobra ___________________________________________________________________ 37 Samadhi ___________________________________________________________________________ 38 Controle interior e exterior ___________________________________________________________ 39 O um______________________________________________________________________________ 40 Libertação _________________________________________________________________________ 41 O mundo fantasma __________________________________________________________________ 41 União com Brahman_________________________________________________________________ 42 Desprendimento ____________________________________________________________________ 42 Impassibilidade _____________________________________________________________________ 43 Iluminação_________________________________________________________________________ 43 A cessação do sonho _________________________________________________________________ 44 A flecha não se deterá________________________________________________________________ 45 Brahman é tudo_____________________________________________________________________ 46 O discípulo se rejubila _______________________________________________________________ 47 A jóia suprema _____________________________________________________________________ 49 IV Shankara formula e responde a algumas importantes perguntas______________________ 53 Prefácio
  • 3. 3 A Jóia Suprema do Discernimento é um texto clássico do Vedanta a respeito do caminho para Deus através do conhecimento. Seu ensinamento básico é o de que só Deus é a realidade que a tudo permeia; a alma individual não é outra senão a alma universal. Shankara (686-718 d.C.) representa uma fonte proeminente da sabedoria oriental. Ele desfruta de enorme popularidade devido à maneira clara e racional com que aborda temas relacionados com a religião. No entanto, como este livro irá mostrar, ele também era capaz de grande devoção. Renúncia, discernimento, autocontrole - são estas as suas senhas. Alguns talvez não se agradem da sua austeridade, sobretudo nas partes iniciais do diálogo que ele mantém com um provável discípulo; mas é justamente essa severidade que serve de valioso corretivo para os perigos do sentimentalismo fácil. Shankara não tem ilusões a respeito deste mundo de Maya; ele condena seus aparentes prazeres com uma franqueza brutal. Por essa razão é que ele consegue descrever com tanta intensidade a completa transformação do universo que acontece diante dos olhos do iluminado, na qual o mundo se toma, de fato, um paraíso. Depois de árduos embates, o discípulo da Jóia Suprema alcança a realização, e o livro de Shankara termina com a magnífica explosão da sua alegria. * * * * * * Ó Senhor, que habitais em nosso íntimo Vós sois a luz No lótus do coração. Om é o vosso eu, Om, a mais sagrada das palavras, Origem e fonte das escrituras. Não pode a lógica descobrir-vos, Ó Senhor, mas os iogues Vos conhecem na meditação. Em vós estão todas as faces de Deus, Suas formas e aspectos; Em vós também Encontramos o guru. Estais em todos os corações E se, uma vez que seja, Um homem abrir Sua mente para receber-vos, Em verdade esse homem Será livre para sempre. Shankara I Shankara Magníficas e fantásticas nuvens de lenda cercam a figura austera, fascinante e pueril de Shankara - santo, filósofo e poeta. Mas, historicamente falando, sabemos muito pouco sobre as circunstâncias de sua vida. Shankara nasceu em ou por volta de 686 a.D., de pais brâmanes, em Kaládi, vilarejo do Malabar Ocidental, no Sul da índia. Aos dez anos já era um prodígio acadêmico. Não só tinha lido e decorado todas as escrituras como escrevera comentários sobre muitas delas e travara discussões com renomados eruditos que de todas as partes do país acorriam para vê-lo.
  • 4. 4 Mas o menino estava insatisfeito. Numa época em que a maioria das crianças ainda mal começara a estudar, já ele estava descontente com o vazio do conhecimento livresco. Ele viu que seus professores não praticavam as sublimes verdades que pregavam. De fato, toda a sociedade em que ele vivia era materialista e dada à busca dos prazeres. A índia estava passando por um período de decadência espiritual. Shankara, ardendo de zelo juvenil, resolveu fazer de sua vida um exemplo que pudesse reconduzir os homens à senda da verdade. Por essa época, seu pai faleceu. O menino se viu às voltas com o enigma da vida e da morte, e decidiu decifrá-lo. Iria renunciar a tudo em sua busca do significado da existência. Foi então que escreveu o poema Moha Mudgarwn - O Fim da Ilusão. Eis uma tradução mais ou menos literal desse poema: Quem é a esposa? Quem é o filho? Estranhos são os caminhos deste mundo. Quem és tu? De onde vieste? Vasta é a ignorância, meu bem-amado. Medita, pois, sobre essas coisas e adora o Senhor. Vê a loucura do Homem: Na infância ocupado com seus brinquedos, Na juventude seduzido pelo amor, Na maturidade curvado sob as preocupações - E sempre negligente com o Senhor! As horas voam, as estações passam, a vida se escoa, Mas a brisa da esperança sopra continuamente em seu coração. O nascimento traz a morte, a morte traz o renascimento: Esse mal não necessita de prova. Onde, pois, ó Homem, está a tua felicidade? Esta vida tremula na balança Qual orvalho numa folha de lótus - Não obstante, o sábio pode nos mostrar, num instante, Como atravessar esse mar de mudanças. Quando o corpo se cobre de rugas, quando o cabelo encanece, Quando as gengivas perdem os dentes, e o bordão do ancião Vacila sob o seu peso como um caniço, A taça do seu desejo ainda está cheia. Teu filho pode trazer-te sofrimento, Tua riqueza não te garante o céu: Não te vanglories, pois, de tua riqueza, Nem de tua família, nem de tua juventude – Todas elas passam, todas hão de mudar. Sabe isso e sê livre. Entra na alegria do Senhor. Não busques a paz nem a discórdia Com amigos ou parentes. Ó bem-amado, se queres alcançar a liberdade, Sê igual em tudo. Shankara então persuadiu sua mãe a deixá-lo consagrar-se à vida monástica, prometendo ir visitá-la antes que ela morresse. Depois, tendo providenciado o indispensável às suas necessidades, partiu em busca de um mestre. Às margens do rio Narmada encontrou Gaudapada, célebre filósofo e vidente que alcançara o conhecimento da Realidade. Shankara pediu ao velho sábio que se encarregasse de sua iniciação, mas Gaudapada recusou-se a atendê-lo. Fizera voto de permanecer absorto na união com Brahman. Enviou, porém, o menino ao seu principal discípulo, Govindapada. Govindapada iniciou-o e instruiu-o na meditação e no inteiro processo da Ioga. Em pouco tempo Shankara alcançou a completa realização mística e começou ele próprio a ensinar.
  • 5. 5 Uma manhã, quando ia banhar-se no Ganges, encontrou um Chandala, um membro da mais baixa das castas, a dos intocáveis. O homem trazia consigo quatro cachorros, que bloqueavam o caminho de Shankara. Por um momento, o inato preconceito de casta se fez valer. Shankara, o Bruhmin, ordenou ao Chandala que saísse do seu caminho. Mas o Chandala retrucou: - Será um só Deus, como pode haver muitas espécies de homens?" Shankara encheu-se de vergonha e reverência, e prostrou-se diante do Chandala. Esse incidente inspirou um dos mais belos poemas de Shankara, o Manisha Panchaka, composto de cinco estrofes, cada qual terminando com o refrão: Quem aprendeu a ver em toda parte a Existência única, Esse é o meu mestre, seja ele Brahmin ou Chandala. Shankara começou a ensinar entre os eruditos do país, convertendo primeiro os professores, depois os alunos destes. Um deles era o famoso filósofo Mandan Misra. Mandan Misra afirmava que a vida do chefe de família era muito superior à do monge, e sua opinião era largamente respeitada e compartilhada em toda a índia. Shankara resolveu discutir com ele e dirigiu-se à sua casa. Ali chegando, encontrou as portas fechadas. Misra estava celebrando uma cerimônia religiosa e não queria ser incomodado. Shankara, com o espírito travesso de um adolescente, subiu numa árvore próxima e dali saltou para dentro do pátio. Misra percebeu-o no meio da multidão. Ele não gostava de monges - principalmente quando eram tão jovens - e perguntou sarcasticamente: - De onde vem essa cabeça raspada?" - O senhor tem olhos para ver -, respondeu Shankara com insolência. "A cabeça raspada vem do pescoço.- Misra ficou irritado, mas Shankara continuou a provocá-lo, até que os dois concordaram em travar um debate a respeito dos méritos concernentes às vidas do monge e do chefe de família. Ficou assentado que Shankara, se perdesse, se tomaria chefe de família, e que Misra, se fosse ele o perdedor, se tomaria monge. O debate durou vários dias. Bharati, a culta esposa de Misra, serviu de árbitro. Por fim, Shankara conseguiu convencer Misra da superioridade da vida monástica e Misra tomou-se seu discípulo. Foi ele quem más tarde anotou os comentários de Shankara sobre os Brahma-Sutras. Shankara terminou seus dias em Kedamath, no Himalaia. Ao morrer, tinha apenas 32 anos. Durante esse breve período, fundara vários mosteiros e criara dez ordens monásticas. Foi essa a primeira vez em que se organizou o monasticismo na Índia, e o sistema de Shankara perdura até hoje. Shankara era mais um reformador que um inovador. Não pregou nenhuma nova doutrina ou credo. Mas deu um novo impulso à vida espiritual do seu tempo. Separados por intervalos de milhares de anos, como três picos formidáveis, Buda, Shankara e Ramakrishra avultam na cordilheira da história religiosa da índia. A produção literária de Shankara foi enorme. Não só teceu comentários sobre os Vedanta-Sutras, os principais Upanishads e o Bhagavad-Gita como produziu duas importantes obras filosóficas, o Upadeshasahasn e o Vívekachuda (A Jóia Suprema do Discernimento). Deixou-nos também vários poemas, hinos, preces e obras menores sobre o Vedanta. A Jóia Suprema do Discernimento foi escrito inteiramente em versos, provavelmente para facilitar sua memorização pelos discípulos. Os versos são longos e a métrica é complicada. Preferimos não tentar reproduzi-los em nossa tradução. A mensagem de Shankara é infinitamente mais importante do que sua forma literária: a clareza foi a nossa única preocupação. Por isso não hesitamos em parafrasear e ampliar o texto sempre que isso nos pareceu necessário. No todo, porém, a tradução permanece muito fiel ao original. II A Filosofia do Não-Dualismo O espírito da filosofia de Shankara "Brahman - a existência, o conhecimento e a aventurança absolutos - é real. O universo não é real. Brahman e Atman (o eu profundo do homem) são unos. Nestas palavras Shankara sintetiza sua filosofia. Quais as implicações dessa assertiva? Que entende ele por "real" e por “irreal"?
  • 6. 6 Shankara só aceita como "real" aquilo que não muda nem cessa de existir. Ao formular essa definição, ele segue os ensinamentos dos Upanishads e de Gaudapada, seu predecessor. Nenhum objeto, nenhum tipo de conhecimento pode ser absolutamente real se sua existência for meramente temporária. A realidade absoluta implica a existência permanente. Se considerarmos nossas múltiplas experiências durante os estados de vigília e de sono, verificaremos que as experiências durante o sono são negadas pelas experiências no estado de vigília e vice-versa - e que ambos os tipos de experiência cessam durante o sono sem sonhos. Noutras palavras, qualquer objeto de conhecimento, externo ou interno - pois um pensamento ou idéia é um objeto de conhecimento tanto quanto o mundo exterior -, está sujeito a modificação e, portanto, segundo a definição de Shankara, é "irreal". Qual é, então, a Realidade subjacente às nossas experiências? Só existe uma coisa que nunca nos abandona - a consciência profunda. Este é o único aspecto constante de toda experiência. E essa consciência é o Eu real, o Eu absoluto. Mesmo no sono sem sonhos o Eu real está presente como uma testemunha, ao passo que a consciência do ego a que chamamos "nós mesmos", nossa individualidade, ficou temporariamente submersa na ignorância (avidya) e desapareceu. A filosofia Vedanta ocupa uma posição central entre o realismo e o idealismo. O realismo e o idealismo ocidentais assentam ambos na distinção entre mente e matéria; a filosofia indiana colocou a mente e a matéria na mesma categoria - ambas são objetos do conhecimento. Não se deve, porém, considerar Shankara como um precursor de Berkeley: ele não diz que o mundo é irreal simplesmente porque sua existência depende da nossa percepção. O mundo, de acordo com Shankara, "é e não é”. Sua realidade fundamental só pode ser compreendida em relação à experiência mística final, a experiência da alma iluminada. Quando a alma iluminada mergulha na consciência transcendental, ela percebe o Eu (o Atman) como pura beatitude e pura inteligência, o “Um sem um segundo “. Nesse estado de consciência, toda percepção da multiplicidade chega ao fim, toda distinção entre “meu e seu” deixa de existir; o mundo como usualmente o conhecemos desaparece. Então o Eu resplandece como o único, a Verdade, o Brahman, a base desta aparência de mundo. A aparência de mundo tal como a experimentamos no estado de vigília pode ser comparada, diz Shankara, a uma suposta cobra que, examinada mais de perto, revela ser um simples rolo de corda. Quando a verdade é conhecida, deixamos de ser iludidos pela aparência - a aparência de cobra desaparece na realidade da corda, o mundo desaparece em Brahman. Outros sistema de filosofia hindu - Shankya, Yoga ou Nyaya - afirmam que o mundo fenomenal possui uma realidade objetiva, muito embora esta possa não ser visível aos olhos de uma alma iluminada. O Advaita Vedanta difere desses sistemas neste ponto vital: ele nega a realidade última do mundo do pensamento e da matéria. Mente e matéria, objetos finitos e suas relações, são uma compreensão errônea de Brahman, e nada mais - eis o que Shankara ensina. A natureza da aparência de mundo Quando Shankara afirma que o mundo do pensamento e da matéria não é real, não está querendo dizer que ele não existe. A aparência de mundo é e não é. No estado de ignorância (nossa consciência de todos os dias) ele é vivenciado, e existe tal como nos aparece. No estado de iluminação ele não é vivenciado, e deixa de existir. Shankara não vê nenhuma experiência como inexistente enquanto ela é vivenciada, mas deduz naturalmente uma distinção entre as ilusões particulares do indivíduo e a ilusão universal ou ilusão do mundo. À primeira ele chama pratibhasika (ilusória); à segunda, vyavaharika (fenomenal). Por exemplo, os sonhos de um homem são as suas ilusões particulares; quando ele acorda, elas deixam de existir. Mas a ilusão universal - a ilusão do mundo fenomenal - persiste durante toda a vida de vigília do homem, a não ser que ele se conscientize da Verdade mediante o conhecimento de Brahman. Além disso, Shankara estabelece uma distinção entre esses dois tipos de ilusão e as idéias que são totalmente irreais e imaginárias, que representam uma impossibilidade total ou uma flagrante contradição de termos - como o filho de uma mulher estéril.
  • 7. 7 Estamos, pois, diante de um paradoxo - o mundo é e não é. Ele não é nem real nem inexistente. E, não obstante, esse aparente paradoxo é simplesmente a afirmação de um fato - fato que Shankara denomina Maya. Esse Maya, essa aparência de mundo tem sua base em Brahman, o eterno. O conceito de Maya se aplica unicamente ao mundo fenomenal, que, segundo Shankara, consiste em nomes e formas. Ele não é inexistente, porém difere da Realidade, Brahman, da qual depende para a sua existência. Ele não é irreal, visto que desaparece à luz do conhecimento da sua base eterna. A aparência de inundo é Maya; só o Eu, o Atman, é real. Sobreposição, ou Maya O mais difícil dentre todos os problemas filosóficos é o da relação entre o finito e o Infinito, o problema de como este mundo finito veio a existir. Se acreditamos que o finito tem uma realidade própria absoluta e que ele se origina do Infinito e é uma verdadeira transformação do Infinito, ou se consideramos o Infinito como urna primeira causa transcendental do mundo fenomenal (posição sustentada pela maioria dos teólogos cristãos), então temos de admitir que o Infinito já não é infinito. Um Deus que se transforma a Si mesmo no universo visível está Ele próprio sujeito à transformação e à mudança - não se pode considerá-lo corno a realidade absoluta. Um Deus que cria um mundo limita a Si mesmo pelo próprio ato da criação, e portanto deixa de ser infinito. A pergunta "Por que Deus haveria de criar?" permanece sem resposta. Essa dificuldade é superada, porém, se considerarmos o mundo como Maya. E esta explicação do nosso universo está, além do mais, em perfeito acordo com as descobertas da ciência moderna - que se podem resumir assim: “Uma bolha de sabão com irregularidades e rugas em sua superfície é talvez a melhor imagem do novo universo que nos foi revelado pela teoria da relatividade. O universo não é o interior da bolha de sabão, mas a sua superfície - e a substância da qual a bolha é soprada, a película de sabão, é um espaço vazio fundido o tempo vazio.” 1 Deste modo, só quando analisamos a natureza do Universo e o descobrimos como Maya - nem absolutamente real, nem absolutamente inexistente - é que compreendemos como a superfície fenomenal da bolha de sabão salvaguarda a eterna presença do Absoluto. Os Upanishads, é verdade, parecem considerar Brahman como a causa primeira do universo, tanto material como eficiente. Afirmam eles que o universo emana do Brahman absoluto, subsiste nele e, finalmente, funde-se com ele. Shankara nunca nega diretamente os Upanishads, mas explica diferentemente essas afirmações. O universo, diz ele, é uma sobreposição a Brahman. Brahman permanece eternamente infinito e imutável. Não está transformado neste universo. Ele simplesmente aparece a nós como este universo, na nossa ignorância. Nós sobrepomos o mundo aparente a Brahman do mesmo modo que às vezes sobrepomos urna cobra a um rolo de corda. Essa teoria da sobreposição (vivartavada) está indissoluvelmente ligada à teoria da causalidade. A relação causal existe no mundo da multiplicidade, que é Maya. No interior de Maya, a mente não pode funcionar sem urna relação causal. Mas falar de causa e efeito com referência ao Absoluto é simplesmente absurdo. Buscar saber o que causou o mundo é transcender o mundo; buscar encontrar a causa de Maya é ir além de Maya - e, quando o fazemos, Maya desaparece, porquanto o efeito deixa de existir. Como, então, pode haver urna causa de um efeito inexistente? Em outras palavras, a relação entre Brahman e Maya é, pela sua própria natureza, incognoscível e indefinível por qualquer processo do intelecto humano. Maya: uma declaração de fato e de princípio Portanto, segundo Shankara, o mundo do pensamento e da matéria possui uma existência fenomenal ou relativa e está sobreposto a Brahman, a realidade única, absoluta. Enquanto permanecermos na ignorância (isto é, enquanto não tivermos realizado a consciência transcendental), continuaremos a experimentar este mundo aparente, que é o efeito da sobreposição. Quando se realiza a consciência transcendental, a sobreposição cessa. 1 Sir Jarnes Jeans.
  • 8. 8 Qual a natureza dessa sobreposição? Na introdução ao seu comentário sobre os Brahma Sutras, Shankara nos diz que “sobreposição é a apresentação aparente à consciência, pela memória, de algo que foi anteriormente observado em alguma outra parte”. Vemos uma cobra. Lembramo-nos dela. No dia seguinte, vemos um rolo de corda. Sobrepomos a ela a lembrança da cobra e desse modo falseamos a sua natureza. Shankara antecipa uma objeção à sua teoria e trata de refutá-la. Podemos desafiar a teoria da sobreposição afirmando que Brahman não é um objeto de percepção. Como podemos sobrepor uma cobra a uma corda que não percebemos? Como podemos sobrepor uma aparência de mundo a uma realidade que não é visível aos nossos sentidos? “Porque todo homem sobrepõe objetos a outros objetos conforme estes se apresentam à sua percepção (isto é, conforme entram em contato com seus órgãos sensoriais)”.- A isso Shankara responde: “Brahman não é, replicamos nós, não-objetivo no sentido absoluto. Porque Brahman é o objeto da idéia do ego. Sabemos perfeitamente, por intuição, que o Eu profundo existe, já que a idéia do ego é uma representação do Eu. Nem é uma regra absoluta que objetos possam ser sobrepostos apenas a outros objetos tal como eles se nos apresentam; porque as pessoas ignorantes sobrepõem um azul-escuro ao céu, que não é um objeto de percepção sensorial”. Esta afirmação requer alguma explicação adicional. Embora Brahman nunca seja visível à nossa percepção sensorial do dia-a-dia, existe um modo no qual estamos cônscios da realidade: o Eu profundo. Brahman, como ficou dito, é a existência, o conhecimento e a bem-aventurança absoluta. SÓ na consciência transcendental podemos perceber isso plenamente. No entanto, Brahman é parcialmente visível também à nossa consciência normal. Brahman é Existência, e todos sabemos que existimos. Neste sentido, cada um de nós tem um conhecimento intuitivo do Eu profundo (o Atman, ou Brahman-dentro-da-criatura). Porém o Eu profundo, a realidade, nunca é um objeto da percepção sensorial - porque na nossa ignorância, sobrepomos a idéia de uma individualidade particular - a de ser o Sr. Smith ou a Sra. Jones - à nossa percepção da Existência. Somos incapazes de compreender que a Existência não é nossa propriedade particular, que ela é universal e absoluta. O Eu profundo, portanto, está presente na nossa consciência normal como “o objeto da idéia do ego” tradução literal da frase de Shankara. A sobreposição da idéia do ego à Existência constitui o nosso primeiro e mais importante ato como seres humanos. No momento em que praticamos esse ato central de sobreposição - no momento em que dizemos “eu sou eu, sou um ente particular, sou separado, sou um indivíduo”, estabelecemos uma espécie de reação em cadeia que torna inevitáveis novas sobreposições. A reivindicação da nossa individualidade implica a presença da individualidade em toda parte. Ela sobrepõe automaticamente um mundo múltiplo de criaturas e objetos à realidade única, não-dividida, à Existência que é Brahman. Idéia do ego e aparência de mundo dependem um do outro. Abandone a idéia do Ego na consciência transcendental, e a aparência de mundo deve necessariamente desaparecer. Quando e como ocorreu esse ato de sobreposição? Foi no nosso nascimento individual ou numa vida anterior? Foi num momento histórico - correspondente à história da queda de Adão - em que o mundo fenomenal veio a existir como decorrência da idéia do ego? A futilidade de semelhantes perguntas se evidencia por si mesma. Andamos meramente à volta de um círculo. O que é essa aparência de mundo Maya? Quem o criou? A nossa ignorância. O que é essa ignorância? Maya, igualmente. Se houve, há e sempre haverá uma realidade imutável, como podemos admitir que Maya teve início num momento histórico específico? Não podemos. Devemos pois concluir, como Shankara, que Maya, a exemplo de Brahman, não teve começo. A ignorância como causa e a aparência de mundo como efeito sempre existiram e sempre existirão. São como a semente e a árvore. A “conexão entre o real e o irreal” produzida pela nossa ignorância é um processo universalmente manifesto em nossa vida diária. Shankara diz: “É óbvio, e não precisa de provas, o fato de que o objeto que é o não-ego e o sujeito que é a idéia do ego (sobreposta ao Eu) são opostos um ao outro como a luz e as trevas. Não se pode identificá-los, e muito menos seus respectivos atributos”. No entanto, é próprio do homem (devido ao seu conhecimento errôneo) não poder diferenciar entre essas entidades distintas e seus respectivos atributos. Ele sobrepõe a um a natureza e os atributos do outro, ligando o real ao irreal e servindo-se de expressões como "eu sou isto”, “isto é meu".
  • 9. 9 Shankara fala aqui de dois estágios inerentes ao processo de sobreposição. Primeiro a idéia do ego é sobreposta ao Eu profundo, à existência-realidade. Depois a idéia do ego, exteriorizando-se, por assim dizer, identifica-se com o corpo e com os atributos e as ações físicas e mentais do corpo. Dizemos, como se fosse a coisa mais natural, “eu sou gordo”, "eu estou cansado", "eu estou andando”, “eu estou sentado”, sem nos determos para considerar o que vem a ser esse “eu”. E vamos mais longe. Reivindicamos como nossos objetos e condições puramente exteriores. Declaramos que "eu sou republicano" ou que “esta casa é minha”. À medida que se multiplicam as sobreposições, afirmações insólitas tomam-se possíveis e normais - tais como "afundamos ontem três submarinos” ou “tenho um excelente seguro”. De certo modo, identificamos o nosso ego com cada objeto do universo. E, enquanto isso, o Eu profundo atua como espectador, totalmente dissociado desses esgares e disposições de ânimo - mas tomando-os possíveis pelo fato de proporcionar à mente aquela luz da consciência sem a qual Maya não poderia existir. Que Maya não tem princípio pode ser igualmente demonstrado se retomarmos por um momento a imagem da corda e da cobra. A sobreposição da cobra à corda só é possível se pudermos lembrar da aparência da cobra; uma criança que nunca viu uma cobra nunca faria essa sobreposição. Como pode o recém-nascido, então, sobrepor a “cobra” (aparência de mundo) à “corda” (Brahman)? Só poderemos responder a essa pergunta se postularmos uma “memória da cobra” universal, comum a toda a humanidade e existente desde um tempo sem princípio. Essa “memória da cobra" é Maya. Maya, diz Shankara, é não apenas o universal mas também o que não tem princípio nem fim. No entanto, deve-se fazer uma distinção entre Maya como princípio universal e a ignorância (avidya), que é individual. A ignorância individual não tem princípio, mas pode terminar a qualquer momento: ela desaparece quando o homem alcança a iluminação espiritual. Desse modo, o mundo pode desaparecer da consciência de um indivíduo e ainda assim continuar a existir para o resto da humanidade. Nisso a filosofia de Shankara difere essencialmente do idealismo subjetivo do Ocidente. Brahman e Iswara Em certo sentido, Brahman é a causa primordial do universo -já que, pela ação de Maya, a aparência de mundo é sobreposta a Brahman. Brahman é a causa, Maya, o efeito. Todavia, não se pode dizer que Brahman. se transformou no mundo ou que o criou, porque a Realidade absoluta é, por definição, incapaz de ação ou de mudança temporal. Outra palavra, lswara, pode pois ser empregada para descrever o princípio criativo. lswara é Brahman unido a Maya - a combinação de Brahman e seu poder que cria, preserva e dissolve o universo num processo sem princípio e sem fim. lswara é Deus personificado, Deus com atributos. De acordo com o sistema de filosofia Sankhya, o universo é uma evolução da Prakriti - matéria indiferenciada, composta de três forças chamadas gunas. A criação é uma perturbação no equilíbrio dessas forças. As gunas começam a passar por uma enorme variedade de combinações - mais ou menos como na teoria ocidental da estrutura atômica - e essas combinações constituem os elementos, os objetos e as criaturas individuais. Esse conceito da Prakriti corresponde, até certo ponto, ao conceito de Maya formulado por Shankara, mas com esta importante diferença: Prakriti é considerada distinta e independente de Purusha (a Realidade absoluta), enquanto Maya é vista como destituída de realidade absoluta, mas como dependente de Brahman. Portanto, é lswara, e não Prakriti, que pode ser descrita como a causa primordial do universo. Existem então dois Deuses - um impessoal Brahman, outro o pessoal lswara? Não - porque Brahman só aparece como lswara quando visto pela relativa ignorância de Maya. lswara possui o mesmo grau de realidade que Maya. Deus, a Pessoa, não é a natureza primordial de Brahman. Nas palavras de Swami Vivekananda, “o Deus Pessoal é a leitura do Impessoal pela mente humana”. Sri Ramakrishna, que viveu ininterruptamente na consciência do Brahman absoluto, serviu-se da seguinte ilustração: “Brahman. pode ser comparado a um oceano infinito, sem princípio nem fim. Assim como, devido ao frio intenso, algumas partes do oceano se congelam e a água informe parece adquirir forma, do mesmo modo, graças ao intenso amor do devoto, Brahman parece assumir forma e personalidade. Mas a forma toma a desaparecer quando o sol do conhecimento volta a brilhar. Então todo o universo também desaparece e não há senão Brahman, o infinito."
  • 10. 10 Muito embora lswara seja, em certo sentido, uma pessoa, deve-mos tomar cuidado para não considerá-lo como semelhante ou idêntico à jiva, a alma humana individual. lswara, como jiva, é Brahman unido a Maya, porém com esta diferença fundamental: lswara é o senhor e controlador de Maya; jiva é o servo e joguete de Maya. Podemos pois dizer, sem paradoxo, que somos ao mesmo tempo Deus e os servos de Deus. Em nossa natureza absoluta, somos unos com Brahman; em nossa natureza relativa, somos diferentes de lswara e estamos sujeitos a Ele. A devoção a lswara, o Deus Pessoal, pode levar um homem muito longe no caminho da espiritualidade, pode transformá-lo num santo. Mas este não é o conhecimento final. Ser completamente iluminado é ir além de lswara, é conhecer a Realidade Impessoal subjacente à Aparência divina pessoal. Podemos converter- nos em Brahman, já que Brahman sempre está presente em nós. Mas jamais poderemos converter-nos em Iswara, pois lswara está acima da nossa personalidade humana e dela se diferencia. Segue-se, portanto, que nunca nos tornaremos governantes do universo - pois essa é a função de lswara. O desejo de usurpar a função de lswara é a loucura máxima do ego. Na literatura cristã, ela é simbolizada pela lenda da queda de Lúcifer. Vyasa, o autor dos Brahma Sutras, diz a mesma coisa ao afirmar que ninguém poderá adquirir o poder de criar, governar ou dissolver o universo, já que esse poder pertence unicamente a lswara. E Shankara, em seu comentário, discute o problema da seguinte maneira: “Quando um homem, através da adoração do Brahman qualificado (lswara), alcança o conhecimento do Supremo Governante, preservando ao mesmo tempo sua consciência individual, seu poder é limitado ou ilimitado? A esta pergunta alguns responderão que seu poder é ilimitado, e citarão os textos das escrituras onde se trata daqueles que alcançam o conhecimento de lswara: 'Eles conquistam o seu próprio reino', 'Todos os deuses lhes oferecem adoração’” 'Seus desejos são realizados em todos os mundos'. Mas Vyasa responde a essa pergunta quando acrescenta: 'sem o poder de governar o universo'. Todos os outros poderes de lswara podem ser adquiridos pelas almas libertas, mas esse pertence unicamente a lswara. Como sabemos disso? Sabemo-lo porque Ele é protagonista de todos os textos sagrados relativos à criação. Esses textos não fazem a menor referência às almas libertas. Eis por que Ele é chamado 'o eternamente perfeito'. As escrituras dizem também que os poderes das almas libertas são adquiridos através da adoração e da busca de Deus; portanto, elas não têm lugar no governo do universo. Ainda aqui, visto que as almas libertas preservam sua consciência individual, é possível que suas vontades difiram e que, enquanto uma deseja a criação, outra pode desejar a destruição. A única maneira de evitar esse conflito é subordinar todas as vontades a uma vontade única. Devemos, pois, concluir que as vontades das almas libertas dependem da von-tade do Supremo Governante.” Se existe uma só consciência, um só Brahman, quem vê e quem é visto? Quem vê Brahman como lswara, e quem é jiva? São eles diferentes ou uma só coisa? Enquanto o homem se encontra nas limitações de Maya, o único é visto como muitos. Tudo o que a ignorância pode fazer é adorar a Aparência; e lswara é o governante de todas as aparências - a mais elevada idéia que a mente humana pode apreender e o coração humano amar. A mente humana é incapaz de apreender a Realidade absoluta; tudo o que ela pode fazer é inferir a sua presença e adorar uma imagem projetada. No processo dessa adoração, a mente se purifica, a idéia do ego se dissipa como a névoa, a sobreposição cessa e lswara e a aparência de mundo se desvanecem na chama da consciência transcendental quando o que vê e o que é visto deixam de existir - nada mais existe senão Brahman, o Fato único, universal, atemporal. O problema do mal Toda religião ou sistema de filosofia deve tratar do problema do mal - mas, infelizmente, este é um problema que em geral é mais contornado do que explicado. "Por que", pergunta-se, "Deus permite o mal, se Ele Próprio é só bondade?” Uma ou duas respostas costumam ser dadas a essa pergunta pelo pensamento religioso ocidental. Às vezes nos dizem que o mal é uma questão educacional e penal. Deus nos castiga pelos nossos pecados visitando-nos com a guerra, a fome, os terremotos, as calamidades e as doenças. Serve-se da tentação (quer diretamente, quer pela intervenção do Demônio) para pôr à prova e fortalecer a virtude dos homens bons. Essa é a resposta dada pelo Antigo Testamento. Na época atual, ela repugna a muitas pessoas e tomou-se antiquada - embora, como veremos logo adiante, contenha um certo grau de verdade, segundo a filosofia do Vedanta.
  • 11. 11 A outra resposta - hoje mais geralmente aceita - é que o mal não existe em absoluto. Se encararmos a Vida sub specie aeternitatis, veremos que o mal carece de realidade, que ele é simplesmente uma interpretação errônea do bem. A filosofia Vedanta discorda de ambas as teses - da segunda até mais radicalmente que da primeira. Como, pergunta ela, o mal pode mudar-se em bem pelo simples fato de o considerarmos de uma maneira especial? A dor e o infortúnio podem ser suportados mais facilmente se concentrarmos nossa mente em Deus - mas, não obstante, ambos são experiências muito reais, ainda que sua duração seja limitada. O Vedanta concorda que o mal, no sentido absoluto, é irreal. Mas lembra-nos que, desse ponto de vista, também o bem é irreal. A Realidade absoluta está além do bem e do mal, do prazer e da dor, do sucesso e do insucesso. Tanto o bem quanto o mal são aspectos de Maya. Enquanto Maya existir, eles existirão. No interior de Maya eles são efetivamente reais. Na verdade, a pergunta "Por que Deus permite o mal?" está erroneamente formulada. É tão absurda como se perguntássemos. “Por que Deus permite o bem?" Ninguém hoje perguntaria por que a chuva "permitiu- uma enchente catastrófica; ninguém acusaria ou louvaria o fogo porque ele queima a casa de um homem e cozinha o jantar de outro. Tampouco se pode dizer apropriadamente que Brahman é "bom" em qualquer sentido pessoal da palavra. Brahman não é "bom" no sentido em que Cristo o era “porque a bondade de Cristo se encontra nos limites de Maya; sua vida expressou a luz da Realidade refletida no mundo relativo. A Realidade em si está além de todos os fenômenos, mesmo o mais nobre. Está além da pureza, da beleza, da felicidade, da glória ou do sucesso. Só podemos descrevê-la como “o bem” se admitirmos que a consciência absoluta é o conhecimento absoluto e que o conhecimento absoluto é a alegria absoluta. Mas pode ser que a questão não se refira absolutamente a Brahman. Pode ser que, nessa conexão, "Deus" signifique lswara, o Governante de Maya. Isto posto, pode a filosofia Vedanta concordar com a afirmação do Antigo Testamento de que Deus é o doador da lei, um pai severo e algo imprevisível, cujos caminhos não são os nossos, cujos castigos e recompensas parecem quase sempre imerecidos, um pai que permite que caiamos em tentação? A resposta é sim e não. A doutrina Vedanta do Karma é uma doutrina de justiça absoluta, automática. As circunstâncias de nossas vidas, nossas dores e nossos prazeres, são o resultado de nossas ações passadas nesta e em incontáveis existências anteriores, desde o alvorecer dos tempos. De um ponto de vista relativo, Maya é desprovida de piedade. Obtemos exatamente aquilo a que fazemos jus, nem mais nem menos. Se bradamos contra uma injustiça aparente, é unicamente porque o ato que a fez recair sobre nós está profundamente sepultado no passado, fora do alcance da nossa memória. Nascer como mendigo, rei, atleta ou como um aleijado irremediável constitui simplesmente as conseqüências compósitas das ações de outras vidas. Não devemos agradecer senão a nós mesmos por elas. Não adianta tentar barganhar com Iswara, ou propiciá-Lo, ou responsabilizá- Lo pelos nossos infortúnios. Não adianta inventar um Demônio como álibi para as nossas fraquezas. Maya é aquilo em que a transformamos - e lswara representa simplesmente o fato inexorável e solene. De um ponto de vista relativo, este mundo de aparências é um lugar desolado e como tal nos leva muitas vezes ao desespero. Os videntes, com seu conhecimento mais amplo, nos dizem algo bem diverso. Assim que nos conscientizamos, ainda que vagamente, do Atman, nossa Realidade interior, o mundo assume um aspecto muito diferente. Deixa de ser um tribunal para tornar-se unia espécie de academia de ginástica. O bem e o mal, a dor e o prazer continuam a existir, mas assemelham-se mais às cordas, aos cavalos de pau e às paralelas, que podem ser usados para fortalecer nosso corpo. Maya deixa de ser uma roda de dores e prazeres a girar incessantemente para tomar-se uma escada que nos permite ascender à consciência da Realidade. Desse ponto de vista, a ventura e a desventura são ambas “mercês" - vale dizer, oportunidades. Toda experiência nos oferece a oportunidade de reagir construtivamente a ela - reação essa que nos ajuda a quebrar um elo da nossa escravidão a Maya e nos leva para muito mais perto da liberdade espiritual. Assim, Shankara distingue entre dois tipos de Maya - avidya (mal ou ignorância) e vidya (bem). Avidya é aquilo que nos afasta do Eu real e encobre o nosso conhecimento da Verdade. Vidya é aquilo que nos aproxima do Eu real removendo o véu da ignorância. Tanto vidya como avidya são transcendidos quando ultrapassamos Maya e adentramos a consciência da Realidade absoluta.
  • 12. 12 Já se disse que o princípio de Maya é a sobreposição da idéia do ego ao Atman, ao verdadeiro Eu. A idéia do ego representa uma falsa pretensão à individualidade, a sermos diferentes do nosso próximo. Segue-se, pois, que qualquer ato que contradiga essa pretensão nos fará adiantar um passo rumo ao correto conhecimento, à consciência da Realidade interior. Se reconhecermos a nossa fraternidade com os nossos semelhantes; se tentarmos relacionar-nos com eles sinceramente, verdadeiramente, caridosamente; se, política e economicamente, lutarmos por direitos iguais, por justiça igual e pela abolição das barreiras de raça, classe e credo, então estaremos desmentindo a idéia do ego e caminhando para a percepção da Existência universal, não-individual. Todas essas ações e motivos pertencem àquilo que é conhecido como o bem ético - do mesmo modo que os motivos e ações egoístas pertencem ao mal ético. Nesse sentido, e só nesse sentido, o bem pode ser considerado mais "real", ou mais válido, do que o mal - já que as más ações e os maus pensamentos nos enredam mais profundamente em Maya, ao passo que as boas ações e os bons pensamentos nos afastam de Maya e nos aproximam da consciência da Realidade. As palavras "pecado" e "virtude" são de certo modo alheias ao espírito da filosofia Vedanta, porque estimulam necessariamente um sentimento de possessividade com respeito ao pensamento e à ação. Quando dizemos "eu sou bom" ou "eu sou mau”, estamos apenas falando a linguagem de Maya. "Eu sou Brahman" é a única afirmação que qualquer um de nós pode fazer. São Francisco de Sales escreveu que "mesmo o nosso arrependimento deve ser pacífico" - querendo dizer que o remorso excessivo, tal como a autocomplacência excessiva, simplesmente nos vincula mais fortemente à idéia do ego, à mentira de Maya. Nunca devemos esquecer que o comportamento ético é um meio, e não um fim em si mesmo. O conhecimento da Realidade impessoal é o único conhecimento válido. Fora disso, nossa mais profunda sabedoria não passa de negra ignorância e nossa mais estrita retidão é inteiramente vã. A meta suprema Pode-se objetar que a filosofia Vedanta, a exemplo de qualquer outro sistema de pensamento religioso, assenta numa hipótese central. Certamente, a meta suprema da vida é conhecer Brahman - se é que Brahman existe. Mas podemos ter certeza disso? Não é possível que não exista nenhuma realidade subjacente no universo? Não é possível que esta vida não passe de um fluxo desprovido de significação, que morre e se transforma, em perpétua mudança? O que mais nos atrai no Vedanta é sua abordagem não-dogmática, seu enfoque experimental da verdade. Shankara não nos diz que devemos aceitar a existência de Brahman como um dogma antes de podermos ingressar na vida espiritual. Não - ele nos convida a descobrirmos por nós mesmos. Nada - nenhum mestre, nenhuma escritura - pode fazer esse trabalho por nós. Mestres e escrituras são apenas estímulos para o esforço pessoal. Mas, como tais, eles podem ser admiráveis. Imagine que esta é uma ação judicial e que você é o juiz. Procure ouvir imparcialmente as testemunhas de ambos os lados. Considere as testemunhas a favor de Brahman - os videntes e os santos que afirmam ter conhecido a Realidade eterna. Examine suas personalidades, suas palavras, as circunstâncias de suas vidas. Pergunte a si mesmo: esses homens são mentirosos, hipócritas ou insanos, ou estão falando a verdade? Compare as grandes escrituras do mundo e pergunte: elas se contradizem umas às outras ou estão de acordo? Então dê o seu veredicto. Mas o mero assentimento, como insiste Shankara, não basta. Ele é apenas um passo preliminar em direção à participação ativa na busca. A experiência pessoal direta é a única prova satisfatória da existência de Brahman, e cada um de nós deve tê-la. A ciência moderna está muito perto de confirmar a visão de mundo Vedanta. Ela admite que a consciência, em variados graus, pode estar presente em toda parte. As diferenças entre objetos e criaturas são meras diferenças de superfície, variadas disposições de átomos. Os elementos podem transformar-se em outros elementos. A identidade é apenas provisória. A ciência ainda não aceita a concepção da Realidade absoluta, mas certamente não a exclui. Shankara nada sabia a respeito da ciência moderna, mas seu método é fundamentalmente científico. Ele se baseia na prática do discernimento - discernimento que deve ser aplicado a nós mesmos e a cada circunstância e objeto de nossa experiência, em cada instante de nossas vidas. Com a maior freqüência possível - milhares e milhares de vezes por dia - devemos perguntar a nós mesmos:
  • 13. 13 "Isto é real ou irreal, isto é fato ou fantasia, isto é natureza ou mera aparência?” Desse modo nos aprofundaremos cada vez mais na busca da verdade. Todos nós sabemos que existimos. Todos temos a percepção da nossa própria consciência. Mas qual é a natureza dessa consciência, dessa existência? O discernimento logo nos provará que a idéia do ego não é a realidade fundamental. Existe algo que está além dele. Podemos chamar esse algo de “Brahman”, mas Brahman é apenas mais uma palavra, que não nos revela a natureza daquilo que estamos procurando. Brahman pode ser conhecido como uma substância ou como algo que existe? Não no sentido comum do verbo. Saber alguma coisa é obter o conhecimento objetivo dela, e esse conhecimento é relativo, dependendo do espaço, do tempo e da causação. Não podemos conhecer a consciência absoluta desse modo, porque a consciência absoluta é o próprio conhecimento. Brahman é a fonte de todos os demais conhecimentos, abrangendo o conhecedor, o conhecimento e a coisa conhecida. É independente do espaço, do tempo e da causa. Nesse sentido, a prática do discernimento difere do método da pesquisa científica. O cientista se concentra num determinado objeto de conhecimento e examina-o num nível que ultrapassa o campo da percepção sensorial, com a ajuda de aparelhos, da análise química, da matemática e assim por diante. Sua pesquisa se amplia como uma viagem, aprofundando-se cada vez mais no tempo e no espaço. O filósofo religioso procura aniquilar o tempo e o espaço, as dimensões da idéia do ego, a fim de revelar a Realidade que está mais próxima e é mais imediata do que o ego, o corpo ou a mente. O filósofo religioso procura perceber aquilo que ele é agora e sempre - e essa percepção não é um aspecto da própria consciência. O vidente iluminado não se limita a conhecer Brahman; ele é Brahman; ele é a Existência, ele é o Conhecimento. A liberdade absoluta não é algo que deva ser atingido, o conhecimento absoluto não é algo a ser conquistado, Brahman não é algo que deva ser encontrado. Só Maya deve ser penetrada, só a ignorância deve ser vencida. O processo do discernimento é um processo negativo. O fato positivo, nossa natureza real, existe eternamente. Nós somos Brahman - e só a ignorância nos separa desse conhecimento. A consciência transcendental, ou a união com Brahman, nunca poderá ser investigada pelos métodos da pesquisa científica, uma vez que tal pesquisa depende, em última análise, da percepção sensorial, e Brahman está além da percepção dos sentidos. Mas isso não quer dizer que estamos condenados à dúvida - ou a confiar cegamente na experiência dos videntes - enquanto não tivermos atingido pessoalmente a Meta Suprema. Mesmo um pequeno esforço na meditação e na vida espiritual haverá de recompensar-nos com o conhecimento e a convicção de que este é realmente o caminho que leva à verdade e à paz - de que não estamos simplesmente nos enganando ou hipnotizando a nós mesmos -, de que a Realidade está ao nosso alcance. Teremos naturalmente nossos altos e baixos, nossos momentos de incerteza, mas sempre retornaremos a essa convicção. Nenhuma conquista espiritual, por menor que seja, será perdida ou desperdiçada. Métodos e meios Existem muitos caminhos conducentes à consciência transcendental. Em sânscrito, esses caminhos são chamados de iogas, ou métodos de união com Brahman. As iogas variam de acordo com o tipo de pessoas. Com efeito, cada indivíduo abordará a Realidade de um modo ligeiramente diferente. Quatro iogas principais são geralmente reconhecidas na literatura religiosa hindu: Karma, Bhakti, Jnana e Raja. Eis um resumo muito sucinto de suas características: A Karma Ioga, como o próprio nome indica, está voltada para o trabalho e a ação. Trabalhando altruisticamente pelo nosso próximo, considerando cada ação como uma oferenda sacramental a Deus, cumprindo nosso dever sem ansiedade ou preocupação com o sucesso ou o fracasso, o elogio ou a censura, podemos aniquilar gradualmente a idéia do ego. Através do Karma podemos transcender o Karma e vivenciar a Realidade que está além de qualquer ação.
  • 14. 14 Bhakti é a Ioga da devoção - devoção a lswara, o Deus pessoal, ou a um grande mestre: Cristo, Buda, Ramakrishna. Graças a essa devoção pessoal, a esse serviço amoroso consagrado a um ideal personificado, o devoto acabará transcendendo completamente sua personalidade. Esta é a ioga do ritual, da adoração, dos sacramentos religiosos. O ritual desempenha aqui um papel importante, o de uma ajuda física, para a concentração - pois os atos do ritual, como os atos da Karma Ioga, evitam que a mente se disperse em suas distrações e ajudam a reconduzi-la firmemente ao seu objeto. Para muitos, este é o caminho más fácil de trilhar. A Jnana Ioga, por outro lado, é mais adequada para as pessoas cujos intelectos vigorosos e austeros desconfiam do fervor emocional da adoração. Esta é a ioga do puro discernimento. Não requer nenhum Iswara, nenhum altar, nenhuma imagem, nenhum ritual. Visa uma aproximação mais imediata do Brahman Impessoal. Esse caminho pode ser talvez mais direto, mas é também árduo e íngreme e só pode ser palmilhado por poucos. A Raja Ioga - a ioga da meditação - combina, até certo ponto, as três outras. Não exclui a Karma Ioga e utiliza tanto o método Bhakti quanto o Mana - já que a meditação é uma mistura de devoção e discernimento. Por temperamento, Shankara propendia para a Jnana Ioga, o caminho do puro discernimento - embora, como este livro irá mostrar, também fosse capaz de grande devoção. Renúncia, discernimento, autocontrole - tais são as suas palavras-chaves. Alguns poderão achar sua austeridade demasiado severa, especialmente na primeira parte do diálogo; mas é precisamente essa austeridade que fornece um valioso corretivo para os perigos de um sentimentalismo fácil, um excesso de otimismo despreocupado, uma confusão da verdadeira devoção com a mera autoconiplacência emocional. Shankara não tinha ilusões quanto a este mundo de Maya; ele condena seus prazeres e deleites aparentes com brutal franqueza. Por isso mesmo era capaz de descrever tão expressivamente a completa transformação do universo que ocorre diante dos olhos do vidente iluminado. Quando se experimenta Brahman, quando todas as criaturas e objetos são vistos na sua verdadeira relação com o Absoluto, então este mundo é realmente um paraíso; ele nada mais é senão Brahman, senão consciência superior, conhecimento e paz. Depois de árduos esforços, o discípulo alcança essa realização no “Supremo Discernimento", e o livro de Shankara se fecha com a magnificente explosão de sua alegria. III A Jóia Suprema do Discernimento (Viveka-Chudamani) Prostro-me diante de Govinda, o mestre perfeito, eternamente absorto no mais elevado estado de bem- aventurança. Sua verdadeira natureza não pode ser conhecida nem pelos sentidos nem pela mente. Ela só é revelada através do conhecimento das escrituras. A senda É difícil para qualquer criatura viva realizar o nascimento numa forma humana. A força do corpo e a vontade são ainda mais difíceis de obter; a pureza, mais difícil ainda; mais difícil do que esses bens é o desejo de viver unia vida espiritual; e o mais difícil de tudo é a compreensão das escrituras. Quanto ao discernimento entre o Atman e o não-Atman, à percepção direta do próprio Atman, à união contínua com Brahman e à libertação final - tais coisas só podem ser alcançadas através dos méritos de cem bilhões de encarnações bem-vividas. Só pela graça de Deus podemos obter esses três raros benefícios: o nascimento humano, a aspiração à libertação e o discipulado junto a um mestre iluminado. Há, porém, aqueles que de algum modo conseguem obter esse raro nascimento humano junto com a força corporal e mental e com a compreensão das escrituras - e não obstante estão de tal forma iludidos que não lutam pela libertação. Esses homens são suicidas. Apegam-se ao irreal e destroem a si mesmos.
  • 15. 15 Pois haverá maior tolo do que o homem que obteve esse raro nascimento humano junto com a força corporal e mental e ainda assim não consegue, devido à ilusão, realizar o seu bem supremo? Os homens podem recitar as escrituras e oferecer sacrifícios aos espíritos sagrados, podem executar rituais e adorar as divindades mas, enquanto não despertarem para o conhecimento de sua identidade com o Atman, jamais atingirão a libertação; não, nem mesmo ao cabo de muitas centenas de séculos. As escrituras declaram que a imortalidade não pode ser conquistada através do trabalho, nem da progênie, nem da riqueza, mas unicamente pela renúncia. Assim, fica claro que o trabalho não nos pode trazer a libertação. Que o sábio, pois, renuncie à busca do prazer nas coisas exteriores e lute arduamente pela libertação. Que procure um mestre nobre e de alma elevada e se absorva de todo o coração na verdade que lhe é ensinada. Pela devoção ao reto discernimento ele ascenderá à suprema união com Brahman. Pelo poder do Atman ele salvará a sua alma, que jaz imersa nas vastas águas do mundo. Deixa que o sábio, que cresceu tranqüilo e que pratica a contemplação do Atman, se desligue de todas as atividades mundanas e se esforce para cortar os vínculos com o mundanismo. A ação reta ajuda a purificar o coração, mas não nos dá a percepção direta da Realidade. A Realidade é atingida por meio do discernimento, mas não, nem no mais ínfimo grau, através de dez milhões de atos. O discernimento correto revela-nos a verdadeira natureza de uma corda e remove o doloroso medo ocasionado pela nossa crença ilusória de ser ela uma enorme cobra. Um certo conhecimento da Realidade só pode ser obtido através da meditação sobre o ensinamento correto, e não por meio de abluções sagradas, ou de esmolas, ou da prática de centenas de exercícios respiratórios. O êxito em alcançar a meta depende sobretudo das qualificações daquele que busca. Tempo e lugar adequados e outras circunstâncias favoráveis constituem outras tantas ajudas para se atingir a meta. Que aquele, pois, que deseja conhecer o Atman, que é a Realidade, pratique o discernimento. Mas antes deve aproximar-se de um mestre que seja um perfeito conhecedor de Brahman e cuja compaixão seja tão vasta como o próprio oceano. O discípulo O homem deve ser inteligente e sábio, com grande poder de compreensão e capaz de superar as dúvidas pelo exercício da razão. Quem possui essas qualificações está apto a adquirir o conhecimento do Atman. Só pode ser considerado qualificado para buscar Brahman. o homem dotado de discernimento, cuja mente esteja afastada de todos os prazeres, o homem que possui a tranqüilidade e as virtudes afins e que aspira ardentemente à libertação. Neste contexto, os sábios falaram de quatro qualificações que permitem alcançar a meta. Quando essas qualificações estiverem presentes, a devoção à Realidade se tomará completa. Se estiverem ausentes, ela fracassará. A primeira é o discernimento entre o eterno e o não-eterno. Segue-se a renúncia ao gozo dos frutos da ação, nesta e na outra vida. Em seguida vêm os seis tesouros da virtude, a começar pela tranqüilidade. E, enfim, o anseio de libertação. Brahman é real; o universo é irreal. A firme convicção dessa verdade denomina-se discernimento entre o eterno e o não-eterno. A renúncia é o abandono de todos os prazeres dos olhos, dos ouvidos e dos demais sentidos, o abandono de todos os objetos de prazer transitório, o abandono do desejo de um corpo físico, assim como do tipo supremo de corpo-espírito de um deus.
  • 16. 16 Afastar a mente de todas as coisas objetivas mediante um contínuo discernimento de sua imperfeição e dirigi-Ia resolutamente para Brahman, sua meta - a isto se chama tranqüilidade. Afastar os dois tipos de órgãos sensoriais - os da percepção e os da ação - das coisas objetivas e deixá-los repousar em seus respectivos centros - a isto se chama autocontrole. O verdadeiro equilíbrio mental consiste em não permitir que a mente reaja aos estímulos externos. Suportar todos os tipos de aflição sem revolta, sem queixa ou lamento - a isto se chama paciência. Uma firme convicção, baseada na compreensão intelectual, de que os ensinamentos das escrituras e de um mestre são verdadeiros - a isto os sábios chamam de fé, que leva à realização da Realidade. Concentrar o intelecto repetidamente no puro Brahman e mantê-lo sempre fixado em Brahman - a isto se chama submissão. O que não significa aquietar a mente, como a um bebê, com pensamentos ociosos. O anseio de libertação é a vontade de libertar-nos dos grilhões forjados pela ignorância - começando com o sentimento do ego e assim por diante, indo até o próprio corpo físico - mediante a compreensão da nossa verdadeira natureza. Embora esse anseio de libertação possa estar presente num grau leve e moderado, ele se intensificará através dos méritos do mestre e da prática da renúncia e de virtudes como a tranqüilidade, etc. E dará os seus frutos. Quando a renúncia e o anseio de libertação se acham presentes num grau intenso, a prática da tranqüilidade e das demais virtudes frutificará e conduzirá à meta. Quando a renúncia e o anseio de libertação são fracos, a tranqüilidade e as demais virtudes constituem mera aparência, qual miragem no deserto. Dentre os meios de libertação, a devoção é suprema. Empenhar-nos sinceramente em conhecer a nossa verdadeira natureza - a isso se chama devoção. Em outras palavras, a devoção pode ser definida como a busca da realidade do nosso próprio Atman. Aquele que busca a realidade do Atman, que possui as qualificações acima mencionadas, deve procurar um mestre iluminado capaz de ensinar-lhe o caminho da libertação em relação a todos os tipos de servidão. O mestre O Mestre é um homem profundamente versado nas escrituras, puro, livre da luxúria, perfeito conhecedor de Brahman. Mantém-se continuamente apoiado em Brahman, é calmo como a chama cujo combustível vai sendo consumido, um oceano de amor que não conhece motivos ulteriores, um amigo de todas as pessoas bondosas que humildemente se confiam à sua direção. O homem que busca há de aproximar-se do mestre com reverente devoção. Então, depois de agradar-lhe pela sua humildade, amor e serviço, perguntará tudo o que pode ser conhecido a respeito do Atman. Ó Mestre, amigo de todos os devotos, curvo-me diante de vós. Ó ilimitada compaixão, eu caí no mar do mundo - salvai-me com esses olhos inalteráveis que derramam graça sempiterna, como néctar. Estou ardendo no incêndio da floresta do mundo, incêndio que ninguém pode apagar. As más ações do passado impelem-me daqui para ali como vastos vendavais. Busquei refúgio em vós. Salvai-me da morte. Não conheço outro abrigo. Existem almas puras que alcançaram a paz e a magnanimidade. Elas trazem o bem à humanidade, como o repontar da primavera. Também elas atravessaram o terrível oceano deste mundo. E agora, sem nenhum motivo egoísta, ajudam os outros a fazer a travessia. É próprio dessas grandes almas trabalhar espontaneamente para aliviar as atribulações de seus semelhantes, tal como a lua refresca espontaneamente a terra crestada pelos candentes raios do sol.
  • 17. 17 A nau dos vossos lábios mergulhou na bem-aventurança de Brahman e impregnou-se da sua doçura. Derramai sobre mim, como gotas de néctar, as palavras de Brahman. Elas purificam, acalmam e são aprazíveis ao ouvido. Senhor, o calor ardente desta vida mundana me consome como as labaredas de um incêndio na floresta. Bem-aventurado aquele sobre quem vossos olhos repousam um instante que seja - é assim que os aceitais e deles vos apropriais. Como hei de atravessar o oceano deste mundo? Qual há de ser a minha meta? Que caminho hei de seguir? Não conheço nenhum. Sede generoso, Senhor. Salvai-me. Dizei-me como pôr termo às misérias desta vida terrena. Nada recuseis. Crestado pelas ardentes labaredas da floresta do mundo, o discípulo pronuncia essas palavras. A grande alma olha para o discípulo que assim busca refúgio e seus olhos estão úmidos de lágrimas de misericórdia. Imediatamente, ele liberta o discípulo de seus temores. O discípulo, que buscou sua proteção, é alguém que anseia pela libertação, que cumpriu rigorosamente seus deveres, cujo coração se fez tranqüilo e que alcançou a serenidade da mente. Com compaixão, o homem sábio e santo começa a instruí-lo na verdade. Ó homem prudente, não temas! Não corres nenhum risco. Existe um meio de atravessar o oceano da vida mundana. Vou revelar-te o método pelo qual os sábios chegaram à outra margem. Existe um método eficaz de pôr termo ao horror desta vida mundana. Por ele poderás atravessar o oceano do mundo e alcançar a suprema bem-aventurança. Meditar sobre o significado da verdade, tal como a ensinam os Vedantas, conduz à suprema iluminação. Por esse meio, a miséria da vida mundana é totalmente destruída. Fé, devoção e união constante com Deus através da oração - estas qualidades são declaradas pelas sagradas escrituras como o meio direto de libertação para aquele que busca. Àquele que nelas persiste, advém a libertação do estado de servidão da consciência física que foi forjado pela ignorância. Por estares associado com a ignorância, o supremo A~ que em ti reside parece estar subjugado pelo não- Atman. Essa é a única causa do ciclo de nascimentos e mortes. A chama da iluminação, que se acende pelo discernimento entre Atman e não-Atman, consumirá os efeitos da ignorância até suas próprias raízes. As perguntas Fala o Discípulo: Mestre, ouvi as perguntas que vou fazer. Bem-aventurado serei se puder ouvir uma resposta de vossos lábios. O que é, na realidade, essa servidão? Como ela começou? Em que se enraíza? Como é o homem que dela se libertou? O que é o não-Atman? Que é o supremo Atman? Como discernir entre eles? Por favor, respondei-me. Fala o Mestre: Bem-aventurado és, de fato! Estás perto da meta. Graças a ti, toda a tua família se purificou, porque anseias por libertar-te da servidão da ignorância e alcançar Brahman. Os filhos podem libertar os pais de suas dívidas, mas nenhuma outra pessoa pode libertar um homem de sua servidão: ele próprio deve fazê-lo. Outros podem aliviar o sofrimento causado por um fardo que pesa sobre a nossa cabeça; mas o sofrimento que deriva da fome, etc., só pode ser aliviado por nós mesmos. O homem doente que toma remédio e observa as regras da dieta pode recuperar a saúde - mas não através dos esforços de outrem.
  • 18. 18 Uma clara visão da Realidade só pode ser obtida através de nossos próprios olhos, quando eles se abrirem por meio do discernimento espiritual - mas nunca através dos olhos de outro vidente. Por nossos próprios olhos aprendemos a ver a aparência da lua: como poderíamos aprender isso pelos olhos de outrem? As cordas que, devido à nossa ignorância, nos amarram aos nossos desejos lascivos e aos frutos do nosso Karma - como poderia alguém a não ser nós próprios desatá-las, mesmo no curso de inumeráveis séculos? Nem pela prática da ioga ou da filosofia Sankhya, nem pelas boas obras, nem pelo saber nos chega a libertação, mas unicamente pela compreensão de que Atman e Brahman são um - e de nenhuma outra maneira. É dever de um rei contentar o seu povo, mas nem todos os que contentam o povo são aptos a ser reis. Porque o povo pode ser contentado pela beleza da forma de uma vina e pela habilidade com que suas cordas são tocadas. A erudição, o discurso bem-articulado, a riqueza de vocabulário e a capacidade de interpretar as escrituras - tais coisas aprazem ao erudito, mas não trazem a libertação. O estudo das escrituras será vão enquanto Brahman não tiver sido experimentado. E, depois que Brahman foi experimentado, é inútil ler as escrituras. Uma rede de palavras é como uma floresta densa que obriga a mente a perambular de lá para cá. Aqueles, pois, que conhecem esta verdade devem trabalhar arduamente para vivenciar Brahman. Quando um homem foi mordido pela cobra da ignorância, ele só pode ser curado pela realização de Brahman. De que servem os Vedas e as escrituras, os amuletos e as ervas? Não se cura uma doença pronunciando a palavra “remédio”. É preciso tomar o remédio. A libertação não vem com o mero fato de pronunciar a palavra “Brahman”. Brahman deve ser realmente vivenciado. Enquanto não permitirmos que este universo aparente desapareça da nossa consciência, enquanto não experimentarmos Brahman, como podemos encontrar a libertação pela simples pronúncia da palavra "Brahman"? O resultado é um mero ruído. Enquanto não tiver destruído seus inimigos e tomado posse do esplendor e das riquezas do reino, o homem não pode tomar-se rei dizendo simplesmente: “Eu sou um rei.” Um tesouro enterrado não pode ser descoberto apenas pronunciando-se a palavra “apareça”. É preciso seguir as indicações corre-tas, cavar, remover as pedras e a terra que o recobrem e então apropriar-se dele. Do mesmo modo, a pura verdade do Atman, que está enterrada sob Maya e sob os efeitos de Maya, só pode ser alcançada pela meditação, pela contemplação e por outras disciplinas que o conhecedor de Brahman pode prescrever - nunca, porém, por meio de argumentos sutis. Deve o sábio, pois, exercer todos os seus poderes para obter a libertação da servidão do mundo da mesma forma que tomaria os remédios prescritos contra as doenças físicas. A pergunta que hoje formulaste é muito oportuna. Ela é relevante para os ensinamentos das escrituras. Seu significado está oculto nas profundezas, como no âmago de um aforismo. Todos aqueles que buscam a libertação devem fazê-la. Ouve atentamente, ó homem prudente, o que tenho a dizer. Se ouvires, serás decerto libertado dos grilhões do mundo. Dos passos que conduzem à libertação, o primeiro é o completo desprendimento de todas as coisas não- eternas. Em seguida, vem a prática da tranqüilidade, do autocontrole e da paciência. E depois a completa renúncia a todas as ações inspiradas pelo desejo pessoal, egoísta. Então o discípulo deve ouvir a verdade do Atman e refletir a respeito dela, e meditar sobre ela constantemente, ininterruptamente, durante longo tempo. Assim, o sábio alcança o estado supremo no qual a consciência do sujeito e do objeto se dissolve e só a infinita consciência da unidade permanece - e então ele conhece a bem-aventurança do Nirvana enquanto ainda vive neste mundo.
  • 19. 19 Atman e não-Atman Explicarei agora o discernimento entre o Atman e o não-Atman. Ouve-me, pois. Ouve atentamente e depois compreende a respectiva verdade em tua própria alma. O que o vidente chama de corpo material compõe-se destas substâncias: tutano, osso, gordura, carne, sangue, pele e epiderme. Esse corpo consiste em pernas, coxas, peito, braços, pés, costas, cabeça e outras partes. Sabe-se que ele é a raiz da ilusão do "eu" e do "meu". Os elementos sutis são o éter, o ar, o fogo, a água e a terra. Reunidas, as partes desses elementos formam o corpo material. Audição, tato, visão, paladar e olfato - estas cinco essências dos elementos são tudo o que experimentamos. Elas existem para serem experimentadas pelo indivíduo. Os seres iludidos que estão atados aos objetos que experimentam pela forte corda do desejo, tão difícil de romper, permanecem sujeitos ao nascimento e à morte. São impelidos de lá para cá pelo seu próprio karma, essa lei implacável. O cervo, o elefante, a mariposa, o peixe a abelha - cada um desses animais caminha para a morte sob o fascínio de apenas um dos cinco sentidos. Qual não há de ser, então, o destino que aguarda o homem subjugado pelo fascínio dos cinco sentidos? Os objetos percebidos pelos sentidos são ainda mais fortes em seus efeitos maléficos do que o veneno da cobra. O veneno só mata quando é introduzido no corpo, mas esses objetos nos destroem pelo simples fato de serem vistos com os olhos. Só aquele que se libertou da terrível armadilha do anseio de prazeres sensoriais, aos quais é tão difícil renunciar, está apto à libertação - e ninguém mais, ainda que seja versado nos seis sistemas de filosofia. Aqueles que dizem buscar a libertação mas não possuem o verdadeiro espírito de renúncia tentam, ainda assim, atravessar o oceano deste mundo. O tubarão do desejo apanha-os pela garganta, desvia-os violentamente de sua rota e eles se afogam a meio caminho. Aquele que matou o tubarão do desejo sensorial com a espada da verdadeira impassibilidade atravessa o oceano deste mundo sem deparar com nenhum obstáculo. Saiba que o homem iludido, que caminha pela terrível senda do desejo sensorial, aproxima-se a cada passo de sua ruína. E saiba também que é verdade - que aquele que trilha o caminho indicado pelo seu mestre - seu amigo mais leal - e pelo seu próprio discernimento colhe o fruto supremo do conhecimento de Brahman. Se almejas realmente a libertação, mantém os objetos do gozo sensorial à distância, como um veneno, e continua bebendo com deleite, como um néctar, as virtudes do contentamento, da compaixão, do perdão, da sinceridade, da serenidade e do autocontrole. O homem deve estar continuamente empenhado em libertar-se da servidão da ignorância, que não tem começo. Aquele que negligencia esse dever e está apaixonadamente empenhado em alimentar os desejos do corpo comete um suicídio. Porque o corpo é apenas um veículo de experiência para o espírito humano. Aquele que procura encontrar o Atman alimentando os desejos do corpo está tentando atravessar um rio agarrado a um crocodilo, confundindo-o com uma tábua. O apego ao corpo, aos objetos e às pessoas é fatal para aquele que busca a libertação. Quem superou completamente o apego está pronto para alcançar o estado de libertação. Mata esse implacável apego ao corpo, à esposa, aos filhos e aos outros. Os videntes que o superaram adentram a suprema morada de Vishnu, aquele que a tudo impregna. Esse corpo que é feito de pele, carne, sangue, artérias, veias, gordura, tutano e osso está cheio de matéria residual e de imundície, e merece o nosso desprezo.
  • 20. 20 Vigília, sono, sono sem sonhos Este corpo físico é composto dos elementos materiais, que são formados pelo composto quíntuplo de seus elementos sutis. Ele nasceu através do karma da vida anterior e é o veículo da experiência para o Atman. Quando o universo objetivo está sendo percebido, isso é conhecido como o estado de vigília da consciência. No estado de vigília da consciência, o homem encontra sua plena atividade no corpo. Nesse estado ele se identifica com seu corpo, embora esteja efetivamente separado dele. Por meio dos sentidos externos ele desfruta os objetos materiais, como grinaldas, perfumes, mulheres e assim por diante, bem como outros objetos que proporcionam prazer sensorial. Deves saber que esse corpo, por meio do qual o homem experimenta o mundo exterior, é como a casa de um chefe de família. As características inerentes a esse corpo material são o nascimento, o declínio e a morte. Ele está sujeito a variadas condições, como a gordura ou a magreza; e a vários estágios de desenvolvimento, como a infância e a juventude. É controlado pelos preceitos de casta e pelos preceitos das quatro ordens da vida. Está sujeito a várias doenças e a diferentes tipos de tratamento, como a adoração, a afronta ou o respeito. Seus órgãos de percepção são os ouvidos, a pele, os olhos, o nariz e a língua: por eles conhecemos os objetos. Seus órgãos de ação são os órgãos vocais, as mãos, as pernas e os órgãos de excreção e reprodução. Esses órgãos nos envolvem na ação. O órgão mental compreende a mente, o intelecto, o ego e a natureza emocional. Estes se distinguem pelas suas diferentes funções. A função da mente é examinar os vários aspectos de um objeto. A função do intelecto é determinar a verdadeira natureza de um objeto. O ego é a autoconsciência que surge quando o órgão mental se identifica com o corpo. A tendência da natureza emocional é atrair-nos para aquilo que é agradável. A força vital se divide de acordo com suas cinco diferentes funções. A -respiração- é a função da força vital utilizada na respiração. A “respiração descendente” é usada na excreção. A “respiração distributiva” controla os processos da digestão e da assimilação. A “respiração difusa” está presente em todo o corpo, resistindo à desintegração e unindo-o em todas as suas partes. A “respiração ascendente” é usada na eructação. Assim como o ouro é conhecido por diferentes nomes quando é moldado para diversos ornamentos, assim como a água assume a forma de ondas, espuma, etc., também a força vital única recebe esses cinco nomes diferentes segundo suas cinco diferentes funções. Oito grupos compõem o corpo sutil: cinco órgãos de percepção, cinco órgãos de ação, cinco funções da força vital, cinco elementos sutis e o órgão mental, junto com a ignorância, os desejos e o karma. O corpo sutil é composto pelos elementos sutis antes que eles entrem em seus compostos quíntuplos. É a sede de nossos desejos. É o campo no qual os frutos do karma são experimentados. Devido à ignorância humana, esse corpo sutil foi sobreposto ao Atman desde um tempo sem princípio. O estado de sonho pertence eminentemente ao corpo sutil. Durante os sonhos, ele cria a sua própria matéria e brilha com a sua própria luz. O órgão mental é um depósito das numerosas impressões deixadas pelos desejos que experimentamos no estado de vigília. Nos sonhos, o órgão mental se identifica com a consciência do ego e está à mercê dessas impressões. Porém o Atman permanece além, como sempre, em sua própria consciência auto-iluminada. Durante esse tempo, o órgão mental é o seu único invólucro. O Atman testemunha tudo, mas não se deixa contaminar por nossas experiências oníricas, mantendo-se eternamente livre e intacto. Nenhum karma criado pelos corpos que o recobrem pode contaminá-lo, ainda que no mais ínfimo grau. O corpo sutil é como unia ferramenta afiada na mão do carpinteiro. Ele é o instrumento de toda a atividade do Atman, que é infinita sabedoria. Portanto, o próprio Atman está livre de qualquer mácula.
  • 21. 21 As condições de cegueira, fraqueza e visão aguçada pertencem aos olhos e são causadas pelas suas qualidades e defeitos. Do mesmo modo, a surdez e a mudez são condições dos ouvidos e da língua - mas não do Atman, o conhecedor. A inalação, a exalação, o bocejo, o espirro, a descarga de saliva e o abandono do corpo por ocasião da morte são considerados, por aqueles que sabem, como as várias funções da força vital. A fome e a sede são também funções da força vital. O órgão mental identifica-se com os órgãos da percepção e da ação, assim como com o corpo físico. Desse modo, surge o sentimento de individualidade, que leva o homem a viver e a agir. Sua consciência é um reflexo da infinita consciência do Atman. Aquele que acredita que está agindo ou experimentando é reconhecido como o ego, o homem individual. Identificando-se com as gunas, ele passa pelos três estados de consciência - a vigília, o sonho e o sono sem sonhos. Quando os objetos da experiência são agradáveis, ele é feliz. Quando são desagradáveis, é infeliz. O prazer e a dor são característicos do indivíduo, e não do Atman, que é sempre bem-aventurado. O objeto da experiência é digno de amor - não por si mesmo, mas porque serve ao Atman. Porém o próprio Atman deve ser amado acima de todas as coisas. No sono sem sonhos, quando não há nenhum objeto de experiência, sente-se a alegria do Atman. Isso é confirmado pela nossa própria experiência, assim como pelas escrituras, pela tradição e pela lógica. Maya Maya, no seu aspecto virtual, é o poder divino de Deus. Não tem começo. Composta por três gunas, é sutil e está além da percepção. É dos efeitos que ela produz que sua existência é inferida pelo sábio. É ela que dá origem a todo o universo. Não é nem um ser nem um não-ser, nem uma mistura de ambos. Não é nem divisível nem indivisível, nem uma mistura de ambos. Não é nem um todo indivisível nem uma soma de partes, nem uma mistura de ambos. É estranhíssima. Sua natureza é inexplicável. Assim como a percepção de que uma corda é uma corda destrói a ilusão de ser ela uma cobra, também Maya é destruída pela experiência direta de Brahman - o puro, o livre, o primeiro sem um segundo. Maya é composta pelas gunas - as forças conhecidas como rajas, tamas e sattwa. Essas forças têm características distintas. Rajas tem o poder de projeção: sua natureza é a atividade. Graças a esse poder, o mundo fenomenal, que está envolvido em Maya, começa a evoluir. O apego, o desejo e outras qualidades semelhantes são causadas por seu poder, assim como a tristeza e outras disposições da mente. A luxúria, a cólera, a cobiça, a arrogância, o ciúme, o egotismo, a inveja e outros vícios similares são as piores características de rajas. Quando um homem é dominado por ela, fica apegado às ações mundanas. Por isso rajas é a causa da servidão. Tamas tem o poder de encobrir a verdadeira natureza de um objeto, fazendo-o parecer diferente do que é. É a causa da contínua sujeição do homem à roda de nascimento e morte. Além disso, é ela que torna possível a operação do poder de rajas. Um homem pode ser inteligente, talentoso e culto. Pode ter a faculdade da auto-análise perspicaz. Mas, se for dominado por tamas, não poderá compreender a verdadeira natureza do Atman, ainda que ela lhe seja claramente explicada de várias maneiras. Ele toma a aparência, que é o produto de sua ignorância, pela realidade - e com isso se apega às ilusões. Infelizmente, esse obscuro poder da terrível tamas é muito grande.
  • 22. 22 Incapacidade de perceber o objeto real, ver algo como diferente do que ele de fato é, vacilação da mente, tomar as ilusões por realidades - tais são as características de tamas. Enquanto estiver apegado a tamas, o homem nunca se libertará delas. E também rajas irá perturbá-lo incessantemente. Tamas tem mais estas características: ignorância, preguiça, entorpecimento, sono, ilusão e estupidez. O homem que se encontra sob a influência dessas características não consegue compreender coisa alguma. Vive como um sonâmbulo ou como uma tora inconsciente. Sattwa é pureza. Mesmo quando está misturada com rajas e tamas, como água misturada com água, ilumina o caminho da libertação. Sattwa revela o Atman tal como o sol revela o mundo objetivo. Sattwa, quando misturada com as outras gunas, tem estas características: ausência de orgulho, pureza, contentamento, austeridade, desejo de estudar as escrituras, submissão a Deus, inocência, veracidade, continência, ausência de cobiça, fé, devoção, anseio de libertação, aversão às coisas deste mundo, e as demais virtudes que levam a Deus. Sattwa no seu estado puro tem as seguintes características: serenidade, percepção direta do Atman, paz absoluta, contentamento, alegria e constante devoção ao Atman. Graças a essas qualidades, o homem que busca goza de eterna beatitude. Maya foi definida como um composto das três gunas. É o corpo causal do Atman. O sono sem sonhos pertence eminentemente ao corpo causal. Nesse estado, as atividades da mente e dos órgãos sensoriais estão suspensas. No sono sem sonhos não há nenhum tipo de cognição. Porém a mente continua a existir na sua forma sutil, como unia semente. A prova disso pode ser encontrada na experiência de todo indivíduo -ao acordar, a mente ainda se lembra: “Não percebi nada.” Existem o corpo, os órgãos sensoriais, a força vital, a mente, o ego e suas funções, os objetos de gozo, os prazeres e todos os outros tipos de experiência, os elementos densos e os sutis - em suma, todo o universo objetivo e Maya, que é a sua causa. Nada disso é Atman. Deves saber que Maya e todos os seus efeitos - do intelecto cósmico ao corpo denso - não são o Atman. São todos irreais, qual miragem no deserto. O Atman Agora vou explicar-te a natureza do Atman. Se a compreenderes, estarás livre dos grilhões da ignorância e alcançarás a libertação. Há uma Realidade que existe por si mesma e que constitui a base da nossa consciência do ego. Essa Realidade é a testemunha dos três estados da nossa consciência e difere dos cinco invólucros corporais. Essa Realidade é o conhecedor em todos os estados de consciência - vigília, sonho e sono sem sonhos. Ela está cônscia da presença ou da ausência da mente e suas funções. É o Atman. A Realidade vê tudo pela sua própria luz. Ninguém pode vê-Ia. Ela dá inteligência à mente e ao intelecto, mas ninguém lhe dá luz. A Realidade permeia o universo, mas ninguém pode penetrá-la. Ela brilha por si mesma. O universo brilha com o reflexo da Sua luz. Graças à Sua presença, o corpo, os sentidos, a mente e o intelecto se aplicam às suas respectivas funções, como se obedecessem ao Seu comando. Sua natureza é a eterna consciência. Ela conhece todas as coisas, da consciência do ego ao próprio corpo. É o conhecedor do prazer e da dor e dos objetos dos sentidos. Conhece tudo objetivamente - tal como um homem conhece a existência objetiva de um jarro.
  • 23. 23 Essa Realidade é o Atman, o Ser Supremo, o imemorial, que nunca cessa de sentir infinita alegria. Ele é sempre o mesmo. É a própria consciência. Os órgãos e as energias vitais funcionam sob o seu comando. Aqui, dentro deste corpo, na mente pura, na câmara secreta da inteligência, no universo infinito do coração, o Atman reflete no seu esplendor fascinante, como o sol do meio-dia. Pela sua luz o universo é revelado. Ele é o conhecedor das atividades da mente e do homem individual. É a testemunha de todas as ações do corpo, dos órgãos sensoriais e da energia vital. Parece identificar-se com todos estes, tal como o fogo parece identificar-se com uma esfera de ferro, mas não age nem está sujeito à mais ligeira mudança. O Atman não conhece o nascimento nem morte. Não evolui nem declina. É imutável, eterno. Não se dissolve quando o corpo se dissolve. Deixará o éter de existir quando se quebra o recipiente que o contém? O Atman é distinto de Maya, a causa primeira, e de seu efeito, o universo. A natureza do Atman é a pura consciência. O Atman reve-la todo este universo da mente e da matéria. Não se pode defini-lo. Dentro e através dos vários estados de consciência - a vigília, o sonho e o sono - ele mantém nossa ininterrupta consciência de identidade, manifestando-se como a testemunha da inteligência. A mente Com uma mente disciplinada e um intelecto que alcançou a pureza e a serenidade, deves conhecer o Atman diretamente, no teu íntimo. Reconhece o Atman como o Eu real. Desse modo atravessarás o oceano ilimitado da mundanidade, cujas ondas são o nascimento e a morte. Vive sempre no conhecimento da identidade com Brahman * sê bem-aventurado. O homem está em servidão porque confunde o não-Atman com o seu verdadeiro Eu. Isto é causado pela ignorância. Daí decorre a miséria do nascimento e da morte. Pela ignorância o homem identifica o Atman com o corpo, tomando o perecível pelo real. Por isso ele alimenta esse corpo, unge-o e o protege cuidadosamente. Enreda-o nas coisas dos sentidos como uma lagarta nos fios do seu casulo. Iludido pela sua ignorância, o homem confunde uma coisa com outra. A falta de discernimento levará o homem a pensar que uma cobra é unia corda. Se a apanhar com essa crença, correrá grande risco. A aceitação do irreal como real constitui o estado de servidão. Presta atenção a isso, amigo. O Atman é indivisível, eterno, o primeiro sem um segundo. Manifesta-se eternamente pelo poder do seu próprio conhecimento. Suas glórias são infinitas. O véu de tamas encobre a verdadeira natureza do Atman, tal como um eclipse encobre os raios do sol. Quando os puros raios do Atman estão assim encobertos, o homem iludido se identifica com o seu corpo, que é não-Atman. Então rajas, que tem o poder de projetar formas ilusórias, aflige-o dolorosamente. Acorrenta-o com os grilhões da luxúria, da cólera e das demais paixões. Sua mente toma-se pervertida. Sua consciência do Atman é devorada pelo tubarão da total ignorância. Submetendo-se ao poder de rajas, ele se identifica com os numerosos movimentos e mudanças da mente e assim é arrastado de lá para cá, ora aflorando, ora afundando no oceano ilimitado do nascimento e da morte, cujas, águas estão cheias do veneno dos objetos sensoriais. Este é um destino realmente miserável. Os raios do sol produzem camadas de nuvem. Por elas o sol é encoberto, e então parece que só as nuvens existem. Do mesmo modo, o ego, produzido pelo Atman, encobre a verdadeira natureza do Atman, e então parece que só o ego existe. Num dia tempestuoso o sol é encoberto por espessas nuvens, e essas nuvens são fustigadas por violentas e gélidas rajadas de vento. Do mesmo modo, quando o Atman é envolvido pelas espessas trevas de ta7ms, o terrível poder de rajas fustiga o homem iludido com todos os tipos de aflições. A servidão do homem é provocada pelo poder de tamas e rajas. Iludido por ela, o homem toma o corpo pelo Atman e extravia-se no caminho que leva à morte e ao renascimento.
  • 24. 24 A vida do homem neste mundo relativo pode ser comparada a uma árvore. Tamas é a semente. A identificação do Atman com o corpo, o seu crescimento. Os desejos são as folhas. O trabalho é a seiva. O corpo, o tronco. As forças vitais são os galhos. Os órgãos sensoriais, os rebentos. Os objetos dos sentidos, as flores. Os frutos, os sofrimentos causados por várias ações. O homem individual é o pássaro que come os frutos da árvore da vida. A sujeição do Atman ao não-Atman provém da ignorância. Não tem uma causa externa. Não tendo princípio, perdurará indefinidamente enquanto o homem não alcançar a iluminação. Enquanto o homem permanecer nessa servidão, ela o sujeitará a um longo cortejo de misérias - nascimento, morte, doença, decrepitude e assim por diante. Essa servidão não pode ser vencida nem pelas armas, nem pelo vento, nem pelo fogo, nem por milhões de atos. SÓ a espada cortante do conhecimento pode extirpá-la. Esta é forjada pelo discernimento e aguçada pela pureza do coração mediante a graça divina. O homem deve cumprir com fidelidade e devoção os deveres prescritos pelas escrituras. Isso lhe purifica o coração. O homem de coração puro realiza o supremo Atman. Desse modo, ele destrói sua servidão ao mundo, arrancando-a pela raiz. Envolto em seus cinco invólucros, a começar pelo corpo físico, que são os produtos de sua própria Maya, o Atman permanece oculto, tal como a água de um lago é recoberta por um véu de espuma. Quando se remove a espuma, a água pura é vista claramente. Ela sacia a sede do homem, refresca-o imediatamente e torna-o feliz. Quando se removem todos os cinco invólucros, o puro Atman é revelado como o Deus que habita em nosso íntimo, como infinita e genuína bem-aventurança, como o Ente supremo e auto-iluminado. O sábio que busca libertar-se da servidão há de discernir entre Atman e não-Atman. SÓ assim ele pode compreender o Atman, que é o Ser Infinito, a Sabedoria Infinita e o Amor Infinito. SÓ assim ele encontra a felicidade. O Atman habita em nosso íntimo, livre do apego e para além de toda ação. O homem deve separar esse Atman de todo objeto da experiência, tal como uma haste de erva é separada de seu invólucro. Então ele deve dissolver no Atman todas as aparências que constituem o mundo do nome e da forma. Livre é a alma que assim pode permanecer no Atman. O corpo Este corpo é um "invólucro físico". O alimento possibilita o seu nascimento; com alimento ele vive; sem alimento, ele morre. Esse corpo consiste em epiderme, pele, carne, sangue, ossos e água. Não pode ser o Atman, o eternamente puro, o que existe por si só. Ele não existia antes do nascimento e não existirá depois da morte. Existe apenas por um breve lapso de tempo, no intervalo entre ambos. Sua natureza é transitória e sujeita a mudança. Ele é um composto, e não um elemento. Sua vitalidade é um simples reflexo. É um objeto sensorial, que pode ser percebido como um jarro. Como há de ser ele o Atman, o experimentador de todas as experiências? O corpo consiste em braços, pernas e outros membros. Ele não é o Atman - pois quando um desses membros é amputado, o homem pode continuar vivendo e funcionando por meio de órgãos remanescentes. O corpo é controlado por outrem. Não pode ser o Atman, o controlador. O Atman observa o corpo, com suas variadas características, ações e estágios de desenvolvimento. Que esse Atman, que é a realidade permanente, tem uma natureza distinta da do corpo é um fato que se evidencia por si mesmo. O corpo é um feixe de ossos ligados pela carne. É sujo e cheio de imundícies. O corpo nunca pode ser identificado com o Atman, o conhecedor, o que existe por si só. A natureza do Atman é absolutamente distinta da do corpo.
  • 25. 25 Só o homem ignorante se identifica com o corpo, que é um composto de pele, carne, gordura, ossos e imundícies. O homem que possui o discernimento espiritual sabe que o Atman, seu verdadeiro ser, a única realidade suprema, é diferente do corpo. O tolo pensa: "Eu sou o corpo.- O homem inteligente pensa: “Eu sou uma alma individual unida ao corpo." Mas o sábio, na grandeza do seu conhecimento e discernimento espiritual, vê o Atman como a realidade e pensa: "Eu sou o Brahman." Ó tolos, parai de identificar-vos com essa massa de pele, carne, gordura, ossos e imundícies. Identificai-vos com Brahman, o Absoluto, o Atman imanente a todos os seres. Só assim podereis atingir a paz suprema. O homem inteligente pode ser versado no Vedanta e nas leis morais. Mas não tem a mínima possibilidade de libertar-se enquanto não deixar de se identificar com o corpo e os órgãos sensoriais. Essa identificação é produzida pela ilusão. Nunca vos identificais com a sombra projetada pelo vosso corpo, nem com o seu reflexo, nem com o corpo que vedes num sonho ou em vossa imaginação. Por isso não deveis identificar-vos com esse corpo vivo. Aqueles que vivem na ignorância identificam o corpo com o Atman. Essa ignorância é a causa e a origem do nascimento, da morte e do renascimento. Por isso deveis empenhar-vos diligentemente para destruí-la. Quando vosso coração estiver livre dessa ignorância, já não haverá nenhuma possibilidade de renascimento. Tereis alcançado a imortalidade. O invólucro do Atman chamado de "invólucro vital” é composto pela força vital e pelos cinco órgãos da ação. O corpo é chamado "invólucro físico” e começa a existir quando é recoberto pelo invólucro vital. É assim que o corpo se envolve na ação. Esse invólucro vital não é o Atman - pois que se compõe meramente dos ares vitais. Semelhante ao ar, ele entra e sai do corpo. Não sabe o que é bom ou ruim para si mesmo ou para os outros. É sempre dependente do Atman. Purificação A mente, ao lado dos órgãos da percepção, forma o "invólucro mental". É ela que produz a consciência do “eu” e do "meu". É ela, também, que nos permite discernir os objetos. É dotada do poder e da faculdade de diferenciar os objetos nomeando-os. É manifesta, envolvendo o "invólucro vital". O invólucro mental pode ser comparado ao fogo sacrificial. É alimentado pelo combustível de muitos desejos. Os cinco órgãos da percepção atuam como sacerdotes. Os objetos do desejo se derramam sobre ele como um fluxo continuo de oblações. É assim que este universo fenomenal começa a existir. A ignorância não está em parte alguma a não ser na mente. A mente está repleta de ignorância, e esta produz a servidão do nascimento e da morte. Quando, no conhecimento do Atman, o homem transcende a mente, o universo fenomenal desaparece de sua consciência. Quando o homem vive no domínio da ignorância mental, o universo fenomenal existe para ele. No sonho, a mente está desprovida do universo objetivo, mas cria por seu próprio poder um universo completo de sujeito e objeto. O estado de vigília não passa de um sonho prolongado. O universo fenomenal existe na mente. No sono sem sonhos, quando a mente não está funcionando, nada existe. Esta é nossa experiência universal. O homem parece estar submetido ao nascimento e à morte. Isso é uma criação fictícia da mente, e não uma realidade. O vento acumula as nuvens, e o vento torna a dispersá-las. A mente cria a servidão, e a mente também remove a servidão. A mente cria o apego ao corpo e às coisas deste mundo. Com isso ela amarra o homem, tal como um animal é amarrado por uma corda. Mas é também a mente que cria no homem uma profunda repugnância pelos objetos dos sentidos, como por um veneno. Desse modo, ela o liberta de sua servidão.
  • 26. 26 A mente, portanto, é a causa da servidão do homem e também da sua libertação. Ela produz a servidão quando é obscurecida por rajas, mas produz a libertação quando se desembaraça de rajas e tamas e se purifica. Quando se pratica o discernimento e a impassibilidade, com exclusão de tudo o mais, a mente se purifica e caminha para a libertação. Assim, o homem sábio que busca a libertação deve desenvolver essas duas qualidades em seu íntimo. O terrível tigre chamado mente impura ronda a floresta dos objetos dos sentidos. O homem sábio que busca a libertação não deve ir lá. A mente do experimentador cria todos os objetos que ele experimenta no estado de vigília ou de sonho. Incessantemente, ela cria diferenças nos corpos, na cor, na condição social e na raça dos homens. Cria as variações dos gunas. Cria desejos, ações e os frutos das ações. O homem é puro espírito, livre de qualquer apego. A mente o ilude. Acorrenta-o com os grilhões do corpo, dos órgãos sensoriais e da respiração vital. Cria nele a consciência do "eu" e do “meu”. Faz com que perambule, interminavelmente, entre os frutos das ações que ele produziu. O erro de identificar Atman com não-Atman é a causa da roda do nascimento, morte e renascimento do homem. Essa falsa identificação é produzida pela mente. Portanto, é a mente que causa a miséria da roda do nascimento, morte e renascimento para o homem desprovido de discernimento e maculado por rajas e tamas. Por isso o sábio, que conhece a Realidade, declarou estar a mente repleta de ignorância. Devido a essa ignorância, todas as criaturas do universo são irremediavelmente impelidas de lá para cá, como nuvens fustigadas pelo vento. Por isso, aquele que busca a libertação deve trabalhar arduamente para purificar a mente. Quando a mente se purificou, a libertação é tão fácil de colher quanto o fruto que jaz a um palmo da nossa mão. Procura sinceramente a libertação, e tua cobiça dos objetos sensoriais será arrancada pela raiz. Pratica o desapego em relação a todas as ações. Crê na Realidade. Devota-te à prática das disciplinas espirituais, tais como ouvir a palavra de Brahman, refletir e meditar sobre ela. Desse modo a mente se libertará do mal de rajas. O "invólucro mental” não pode, pois, ser o Atman. Ele tem princípio e fim, e está sujeito à mudança. É a morada da dor. É um objeto da experiência. Aquele que vê não pode ser a coisa que é vista. O invólucro do intelecto A faculdade do discernimento com seus poderes de inteligência, junto com os órgãos da percepção, é conhecida como o "invólucro do intelecto”. Sua qualidade característica é a de ser o agente da ação. É ele que causa o nascimento, a morte e o renascimento do homem. O poder de inteligência inerente ao "invólucro do intelecto- é um reflexo do Atman, a pura consciência. O "invólucro do intelecto" é um efeito de Maya. Ele possui a faculdade de conhecer e de agir e identifica-se inteiramente com o corpo, os órgãos sensoriais, etc. Não tem começo, caracteriza-se pela sua consciência do ego e constitui o homem individual. É o indicador de todas as ações e empreendimentos. Impelido pelas tendências e impressões formadas em nascimentos anteriores, ele pratica ações virtuosas ou pecaminosas e sofre suas conseqüências. O "invólucro do intelecto" acumula experiências passando por muitos ventres de grau superior ou inferior. Pertencem-lhe os estados de vigília e de sonho. É objeto de dores e alegrias.