Amizade improvável entre um milionário tetraplégico e um jovem senegalês
1. LICENCIATURA EM TERAPIA OCUPACIONAL
1º ANO
ANO LETIVO 2016/2017
ANÁLISE DO FILME
“AMIGOS IMPROVÁVEIS”
MARIA LUÍSA MARTINS DE BARROS
Nº 10160386
ORIENTAÇÃO DE
JOÃO PAULO PEDROSO
Escola
Superior
de Saúde
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INTRODUÇÃO
Este trabalho, elaborado no âmbito da área curricular de Ciências Sociais
e Humanas da unidade curricular 1 – Introdução à Ciência Ocupacional, visa à
análise do filme “Amigos Improváveis”, tendo em conta conceitos de Terapia
Ocupacional e de Ciências Sociais e Humanas.
“Amigos Improváveis”, filme realizado por Olivier Nakache e Eric
Toledano, é baseado numa história verídica e retrata a construção de uma
amizade entre dois indivíduos de classes sociais opostas.
Tem como personagens principais Phillippe, um milionário francês
tetraplégico, que, em contratações para arranjar um empregado que o ajudasse
no seu quotidiano, conhece um rapaz, Driss, de raça negra, que aceita o desafio.
Estes dois indivíduos, de culturas, ambientes, classes e estatutos sociais
completamente opostos, acabarão por criar uma amizade muito forte, que trará
muitas alegrias a ambos, deixando de parte as diferenças culturais e sociais que,
de outra forma, os separariam.
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DESENVOLVIMENTO
Phillippe, após um acidente de parapente, adquire tetraplegia, que se
traduz num problema a nível das estruturas do corpo, em que as suas funções
neuromusculoesqueléticas são alteradas. Esta condição física que possui, ao
diminuir significativamente as suas competências motoras, condiciona
consequentemente a sua participação ocupacional, necessitando de um
ajudante a tempo inteiro para o auxiliar nas suas atividades mais significativas e
com propósito, bem como de adaptação às diferentes ocupações que pretender
realizar. Isto porque Phillipe não consegue realizar simples tarefas como, por
exemplo, apertar os atacadores do sapato, apertar um botão, pegar numa caneta
ou abrir uma carta. A sua condição física veio alterar os seus padrões de
desempenho, isto é, os seus hábitos, rotinas e papéis de desempenho, visto que
necessita de cuidados e rotinas especiais que promovam um melhor bem-estar
e saúde (que é prejudicada pelo impacto do isolamento social que experimenta).
Driss, jovem senegalês e proveniente num bairro social, representa, deste
modo, as minorias da sociedade e a sua consequente segregação, as vítimas de
discriminação, quer racial (por ser de raça negra) quer social (por ser ex-
presidiário) e as classes sociais mais baixas (enquanto que Phillippe se assume
num estatuto social mais elevado, com um maior poder económico e social).
Driss irá ajudar Phillippe em todas as atividades do seu quotidiano, quer
as diárias, as de lazer, as de trabalho e até as atividades relacionadas com o
sono e descanso, já que este não possui competências motoras aptas para isso
(as competências de processo e de interação social mantêm-se intactas após o
acidente, sendo assim Phillipe apenas incapaz de realizar movimentos de forma
independente).
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Ambos se ajudam, embora o principal cuidador seja Driss, que auxilia em
todas as atividades de Phillippe, por este ser tetraplégico. Contudo, Phillippe
ajuda Driss, principalmente ao torná-lo mais “humano” e contribuindo para a sua
educação, no sentido em que este evolui muito o seu papel de cuidador e a nível
pessoal, desde que começou a trabalhar com Phillippe (é verificado quando no
início ameaça fisicamente um condutor que estava estacionado à frente do
portão da casa de Phillippe e no fim já pede educadamente que o indivíduo se
retire desse mesmo lugar). Driss, ao alterar os seus hábitos e rotinas para se
enquadrar na vida de Phillippe, acaba por moldar um pouco a sua identidade e
a forma de agir perante os outros, graças a processos de socialização.
Driss, com todo o seu humor, veio contribuir, essencialmente, para tornar
Phillippe mais “vivo”. Não se focou tanto em acentuar a incapacidade física de
Phillipe, mas sim em mostrar-lhe que este pode fazer tudo o que quer (Phillipe
continua a ser autónomo), necessitando apenas de adaptação.
Uma dessas situações em que o apoio de Driss não foi vinculado
meramente para a condição física de Phillippe foi quando lhe deu força para ele
conhecer Éleonore, mulher com quem se correspondia há já alguns meses.
Phillippe tinha demasiado medo de se assumir como incapaz, o que na sua ideia
ia levar a que Éleonore não se mostrasse interessada. Destaca-se, neste caso,
o conceito de preconceito que a sociedade mostra pelos portadores de
deficiência, seja ela de que tipo for. Nas sociedades atuais, as pessoas como
Phillipe, por exemplo, que possuem mobilidade reduzida, são vistas e encaradas
como se não conseguissem fazer nada e, por isso, não têm capacidade para
assumir uma relação, por exemplo.
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Neste filme, observam-se várias situações em que se destacam
diferenças culturais entre Phillippe e Driss, mostrando ainda o que a sociedade
espera e determina que ambos façam mediante os seus papéis, competências
de desempenho e contextos pessoais, culturais e temporais. Os padrões
culturais de Driss e Phillippe em nada podem ser comparados. Sendo Phillippe
milionário e de elevado estatuto social, é legítimo para si ir visitar galerias de arte
e ouvir música clássica em salões, enquanto que para Driss ir assistir a uma
ópera, ou gastar quantidades grandes de dinheiro em quadros e pinturas não faz
muito sentido.
Estas diferenças encontram-se ainda quando Driss entra no seu novo
quarto e observa a sua casa de banho, com uma enorme admiração, espanto e
novidade, visto que nunca deve ter visto nada assim. A verdade é que Phillippe
estava consciente das diferenças entre ele e Driss e mesmo assim concede a
Driss uma “licença” para que este trabalhasse para si um mês à experiência.
A condição física de Phillippe provoca a necessidade de possuir uma
carrinha própria para transporte de pessoas com mobilidade reduzida como o
seu meio de transporte. Driss, ao ver que Phillippe se conformara com a ideia
que não havia outra hipótese senão andar naquela carrinha, mostrou-lhe logo
que há formas de adaptação, que iriam contribuir para um maior grau de
satisfação pessoal de Phillippe. Isto porque ver-se impedido de andar com o seu
automóvel e ter de ser transportado, por outros, numa carrinha especial, decerto
que abalava Phillippe, fazendo-o sentir ainda mais incapaz e com que tivesse a
sua auto-estima em baixo – consequentemente o seu bem-estar é influenciado,
bem como o seu estado de saúde.
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Driss não suporta a ideia de Phillippe ter de privar-se de andar no seu
carro por ter aquela condição física, o que o leva a arranjar uma simples forma
de o levar a passear no seu automóvel inadaptado. Mesmo com a incapacidade
física, Phillippe sente-se mais realizado por poder ter um pouco da vida que tinha
antes do acidente. Desta forma, apesar da sua condição física, o equilíbrio
ocupacional de Phillippe não chega a ser afetado, visto que continua a realizar
as suas ocupações, gerindo-as da forma que deseja, requerendo apenas ajuda
para as realizar.
Um conceito muito presente ao longo de todo o filme é o de estereótipo.
O primeiro momento de destaque deste conceito sociológico reporta à ida de
Élisa (filha de Phillippe) ao quarto de Driss e este a expulsa. A jovem,
imediatamente a seguir à ordem de Driss, começa a criticá-lo, e pergunta se este
lhe ia bater, tal como os homens fazem lá na terra dele (toma por atitudes de
Driss atitudes normalmente associadas às pessoas da mesma raça que ele).
Uma outra situação é quando Driss, após visitar uma galeria de arte, decide
gastar algum do seu tempo a pintar. Quando Phillippe e Yvonne descobrem,
ficam muito admirados como uma pessoa como ele, bastante inculta, de meios
mais pobres, de estatutos sociais com menos poder, estaria a pintar, que
normalmente é uma atividade associada a pessoas de classes sociais mais
elevadas. Já o terceiro momento consiste na ideia de que Éleonore não iria
mostrar-se interessada em Phillippe se soubesse que este é tetraplégico e
alguém completamente dependente para poder realizar as suas atividades e
ocupações (destaca-se que a discriminação e estereótipos não é influenciado
pelo estatuto social, visto que Phillippe é um homem de elevada classe social e
sofre de discriminação da mesma forma).
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Driss, ao aparecer na vida de Phillippe, veio trazer-lhe a jovialidade e
humor que Phillippe tanto precisava, como já fora referido acima. Este humor,
tão bem expressado ao longo de todo o filme, foi a característica que mais
cativou Phillippe.
Logo no início do filme, nas entrevistas que Phillippe e Magalie fazem para
escolher um novo empregado, todos os candidatos se mostram muito
experientes, informados e, principalmente, conscientes da condição física de
Phillippe e a responsabilidade que isso lhes dava. Acontece que, apesar de todos
os restantes estarem bem apresentados e mostrarem conhecimento, Phillippe
preferiu Driss por este olhar para ele como um homem que lhe podia dar uma
assinatura num papel para entregar na segurança social para receber o seu
subsídio de desemprego, e não como um homem deficiente e incapaz de fazer
alguma coisa sozinho.
Este seu humor de Driss ajuda a aliviar a tensão que poderia existir pelo
facto de Phillippe ser completamente dependente. Em várias ocasiões no filme,
Driss, sem pensar muito bem no que dizia, referia que Phillippe podia continuar
sentado, que ele mesmo ia à porta. Ou quando lhe pousa uma carta no peito e,
após ter quase saído da sala, volta para trás e diz em tom de brincadeira, que
abre a carta senão Phillippe nunca a iria abrir.
Driss vem, assim, trazer um caráter mais casual à vida de Phillippe,
adotando algumas atitudes que constituem comportamentos desviantes. Apesar
de se desviar das normas da sociedade em que se inserem e de por vezes,
desrespeitar as leis que regem o quotidiano daquela cultura, o seu
comportamento não deve ser completamente criticado, visto que esta atitude
mais informal e menos rígida de Driss vem provocar em Phillippe uma maior
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vontade de sair, de se divertir, de passear e de poder sorrir para a vida. Poder
transgredir as normas pode ser encarado quase como que uma libertação para
Phillippe, que, ao viver agarrado à sua cadeira de rodas, consegue ter liberdade
e sentir-se, por isso, livre. Ao enganarem a polícia, quando circulavam com uma
velocidade acima do permitido por lei, ou quando ambos fumam um cigarro não
tradicional, ambos se divertem e concedem uma elevada dose de adrenalina a
Phillippe, embora legalmente não seja uma atitude correta.
Uma das questões feitas por Phillipe aos candidatos, nas suas entrevistas
enquanto potenciais empregados cuidadores, foi qual a sua motivação para
aquele emprego, e todos deram respostas dentro do esperado (um disse
dinheiro, outro disse o Homem e outro disse que era o facto de poder ajudar,
perguntando até se a resposta estava certa), excepto Driss, que se riu da
pergunta e em tom de brincadeira refere que era Magalie. Ao analisar a situação,
pode-se inferir que a motivação inicial de Driss, quando aceita o trabalho, é
praticamente nula, mas à medida que vai vendo a sua competência, e a
importância que o seu trabalho tem para o bem-estar e satisfação de Phillippe,
vai adquirindo a motivação que necessita, facto que vai ao encontro da Teoria
da Motivação Intrínseca e da Auto-Determinação, de Deci.
Devido a problemas com o irmão, Driss tem de abandonar a casa de
Phillippe para ir tratar da sua família. Esta separação é dolorosa para ambos,
evidenciado pela forma como Driss abandona a casa e a forma como Phillippe
lida com o substituto de Driss: recusa-se a comer, faz de tudo para boicotar o
trabalho do seu cuidador e chega até a recusar a sua ajuda, num dos seus
ataques noturnos. Encontra-se, assim, demonstrada a existência de empatia
entre ambos, característica fundamental que o cuidador deve procurar garantir.
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Quando chamam Driss para ajudar Phillippe, este vem sem pensar duas
vezes e Phillippe melhora substancialmente, porque tinha o seu amigo consigo,
alguém que o levava a passear quando precisava de apanhar ar para respirar
melhor, alguém com quem desabafava e contava os seus problemas, alguém
que lhe arranjava forma de ele fumar, alguém que tinha gosto de cuidar dele,
mas principalmente, alguém que mais do que cuidador, era um amigo.
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CONCLUSÃO
Este filme reflete algumas das dificuldades, ansiedades e problemas que
alguém discriminado pela sociedade tem. No caso de Phillippe, que sente o que
é ser totalmente dependente, a sociedade tende a não apresentar soluções para
as injustiças ocupacionais que muitas vezes ocorrem. Já Driss, representante
das vítimas de minorias, racismo, discriminação e preconceito, não podia
assumir-se como melhor cuidador do que foi.
Em todas as visualizações que já realizei deste filme percebi o quanto se
tenta separar as classes sociais. Cria-se uma segregação mediante as raças,
religiões e classes sociais, que muitas vezes subvaloriza o espírito humano das
pessoas. Dá-se e verifica-se uma ênfase muito grande aos aspetos culturais dos
indivíduos, acreditando que estas diferenças sejam suficientes para impedir a
sua interação social. O preconceito, a discriminação, a xenofobia e o racismo
são formas de impedir que a população de uma cidade ou país se unifique.
Embora já tivesse visualizado este filme anteriormente, é satisfatório
poder percebê-lo agora de uma outra forma, mais evoluída e mais direcionada,
devido ao contexto em que o visualizei para esta análise com base em aspetos
sociológicos e de terapia ocupacional. Contribuiu, deste modo, para a minha
aprendizagem, permitindo que fossem percebidos alguns dos aspetos inerentes
às personagens que, noutras visualizações, não atraíram tanto a minha atenção,
pela minha falta de contextualização.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Duval-Adassovsky, N., Zeitoun L., Zenou Y. (Producers). & Toledano, E.,
Nakache, O. (Directors). (2011). Intouchables [Film]. França: California Filmes
Maia, R. L. (2002). Dicionário de Sociologia. Porto: Porto Editora
Roley, S. S., Barrows, C. J., Susan Brownrigg Otr, L., Sava, D. I., Vibeke Talley
Otr, L., Kristi Voelkerding, B. S., . . . Deborah Lieberman, M. (2008). Occupational
therapy practice framework: Domain & process 2nd edition. The American journal
of occupational therapy, 62(6), 625.