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“Barriga” de jornalista faz Mein Kampf “virar” best-seller
“Os jornalistas são os arautos das ilusões perdidas”, disse certa vez o
escritor, músico e professordeliteratura José Miguel Wisnik, ao referir-se
ao romance Ilusões Perdidasde Balzac. “Os jornalistas motivam ilusões
para depois desmascará-las, é esseo seu trabalho, conseguir notícias para
depois substituí-las por novas notícias.” Isso parece estar acontecendo
atualmente comas versões digitais do livro Mein Kampf(Minha Luta) de
Hitler, autobiografia que divulgou o ideário de racismo e ódio e que está na
origem do nazismo e de seus horrores. Uma “falsa” notícia de que o livro
estava sendo um best seller na internet, repassadalevianamente pela
imprensa, teria servido de divulgação mundial para a obra e conseguiu
amentar suas vendas. A inclusão do livro entre os best-sellers acabou
noticiada no mundo todo, pois ele continua proibido na Alemanha (que
detém os direitos autorais até 2015, quando caem em domínio público), e
sua pregação de ódio dá ensejo a que seja recolhido pela legislação de
vários países. Existem, entretanto, muitas edições da obra no mundo todo,
dependendo da legislação de cada país, o que acaba tornando o livro
acessível.
A notícia de que as traduções em inglês do Mein Kampf eram best-sellers
em grandes sites de vendas de livros eletrônicos como Amazonas e iTunes
nos Estados Unidos e Inglaterra foi publicada no dia 8 de janeiro, no site
Vocativ, pelo escritor e jornalista americano Chris Faraone. Ele escreveu
que o livro ocupavao primeiro lugar na lista de mais vendidos do site
Amazon na categoria Psicologia, Propaganda & Política; em outro site
usado para baixar livros, o ITune, o Mein Kampfestava em 15º lugar na
categoria Política & Atualidades. Ilustra a matéria uma foto da página de
tops de temas específicos daAmazon que mostrava, entre 16 destaques, as
capas de duas edições de ebooks do Mein Kampf(uma delas brasileira, da
editora MonteCristo).
Prato cheio para editores, pauteiros e chefes de reportagem de jornais,
revistas e portais, a notícia virou uma espécie de press release e foi
veiculada por importantes jornais e redes de televisão, que se limitaram a
reproduzir, inclusive no Brasil, as estatísticas da matéria de Chris Faraone.
No dia 16 de janeiro, entretanto, o escritor irlandês David Gaughran, que
vive em Londres, postouem seu blog (davidgaughran.wordpress.com) uma
crítica aos critérios usados porChris Faraone para definir o que é best-
seller e acusou a imprensa de ter valorizado erroneamente o livro, o que
serviu para sua divulgação desnecessária.
Gaughran consultou outros dados e tabulações da Amazon. Usando a
ferramenta KND Rastreadoranalisou o comportamento das vendas e dos
preços dos produtosao longo do tempo. Constatouque as vendas dos
ebooks do Mein Kampf eram muito baixas até outubro de 2013, quando o
preço foi reduzido para menos de US$ 1. Mesmo assim as vendas
continuaram relativamente baixas, cerca de dez exemplares por dia, o que
não caracterizaria um best seller.
O cenário mudou a partir do dia 8 de janeiro, quando foi publicada a
matéria situando o Mein Kampf entre os best-sellers. As vendas subiram
exponencialmente. Percebendo a procura, as editoras imediatamente
aumentaram os preços e as vendas foram se estabilizando num patamar
mais alto. Com novos aumentos de preço, entretanto, as vendas começaram
a despencarainda em meados do mês, depois de um pico, no dia 11 de
janeiro, quando eram comprados 200 exemplares pordia, segundo apurou
Gaughran.
O escritor irlandês frisa que o fato de a obra constar comdestaque em
algumas das centenas de sub-subcategorias de livros oferecidos da Amazon
não faz de Mein Kampf um best-seller ou top de vendas no conjunto das
categorias usadas, pois algumas vendem muito e outras muito pouco. “O
Mein Kampf não era best-seller até que a mídia o tornou um.”
De qualquer forma, a matéria de Chris Faraone postadano dia 8 já falava
da grande oferta do livro Mein Kampf na internet. Nos EUA, ele
contabilizou cem ofertas da obraimpressa em todos os formatos possíveis,
novos e usados, versões em audiobooks e apenas seis versões digitais em
inglês – justamente as que segundo ele estariam tendo aumento nas vendas.
Ele apurou que 100 mil versões gratuitas da obra tinham sido baixadas de
diversos sites – e esse fato não foi comentado porDavid Gaughran, seu
crítico irlandês.
“Porque as pessoas estão lendo Hitler em Kindles e smartphones?”,
perguntou Faraone. E aventou uma teoria: tal como acontece com a
literatura pornográfica, muita gente estaria se sentindo mais à vontade para
ler o livro no sigilo de um tablet ou smartphone. Faraone lembrou que o
livro Os 50 tons de cinza, da inglesa E L James, fez sucesso primeiro no
formato digital, que permitia seu consumo discreto. Seria uma espécie de
“voyeurismo ideológico”, aventa ele.
Em sua matéria para o site Vocativ, Faraone entrevistou Michael Ford,
presidente da Elite Minds, uma das editoras que estão vendendo os ebooks
do Mein Kampf nos EUA. Ford contou que enfrentava um dilema moral na
promoção do livro, pois prefere que ele se destine apenas aos que tiverem
interesse histórico ou acadêmico e teme que ele possasermal utilizado.
Faraone conta em seu site que Mein Kampf foi lançado na Ásia em 1999 e
já vendeu 100 mil exemplares na Índia, a mesma quantidade de vendas na
Turquia, onde foi lançado em 2005. Segundo o jornalista, a editora
Random House, que detém os direitos da tradução mais popular na
Inglaterra, já pagou mais de 1 milhão de dólares para instituições de
vítimas do holocausto, numa espécie de acordo feito há 13 anos com
entidades representativas dos judeus. Desta vez, entretanto, Robert Singer,
dirigente do Congresso Mundial Judaico, que congrega organizações
judaicas de mais de cem países, disseque espera que a Amazon “pare de
vender o livro junto com outras publicações que incentivam o ódio”. Para
ele, seria um ato de responsabilidade vindo de uma corporação “poderosae
icônica”, segundo declarou ao jornalista Faraone.
“A Amazon não vende pornografia e livros eu promovem comportamentos
como o incesto, porque alguns acham esse material ofensivo. Nós agora
estamos pedindo para que pare de lucrar com a venda de material
ofensivo”, comentou Singer no site Vocativ.
A matéria de Faraone também cita a editora brasileira MonteCristo, como
uma das que estão oferecendo o livro nos EUA. Mas ele conta que deixou
de ser atendido tanto pela Amazon como pela MonteCristo logo que
começoua pedir detalhes sobreo Mein Kampf.
A bíblia do nazismo
Mein Kampf foi escrito por Hitler no começo dos anos 20. O primeiro
volume foi escrito na cadeia em 1923 e publicado em 1925. O segundo
escrito em liberdade, foi publicado em 1926. No livro ele prega o
antissemitismo e o ódio e propõea instauração de um governo nazista. Na
data da publicação, o primeiro volume não chegou a vender 10 mil
exemplares, mas as vendas do livro completo passaram de 50 mil quando
Hitler chegou ao poderem 1933, elegendo-se chanceler e dando força para
a ideologia nazista. O próprio governo comprou6 milhões de exemplares
para distribuição à população, o que o coloca como um dos principais
instrumentos de enraizamento da ideologia nazista na Alemanha.
Como Hitler doouos direitos do livro ao Estado da Baviera, o governo
alemão proibiu sua publicação até dezembro de 2015, quando a obra cai em
domínio público e qualquer editora poderá então publicá-la, se as leis do
país assim o permitirem. Apesar da proibição, o livro e suas traduções
circulam livremente pelo mundo, pois foram impressos milhões de
exemplares.
Um grupo de historiadores alemães prometeu lançar em 2015 uma versão
anotada do livro, mas os planos foram recentemente adiados, diante do
esforço do governo de combater facções neonazistas.
Livro fácil de achar
No mundo todo, a venda das edições impressas tem sido baixas e se
mantido estáveis nas últimas décadas. Aqui no Brasil, livro podeser
comprado em muitas livrarias e sebos. Não tem sido reeditado por grandes
editoras, como acontecia nos anos 30. O site da Estante Virtual trazia no
dia 18 de janeiro 37 ofertas de edições do livro feitas em várias épocas,
com preços de R$ 70 (vendedor particular de Santa Catarina) a R$ 300
(sebo Espaço do Livro, em São Paulo), além de algumas ofertas de edições
de luxo da obra, como uma em alemão gótico, à venda no Empório da
Cultura (SP) porR$ 8.470.
A maioria dos sebos e particulares que vende o livro é de São Paulo,
Paraná e Santa Catarina. A única oferta do Mein Kampfdo Nordeste é de
um vendedor particular, que o oferece porR$ 299, anunciando ser uma
“edição rara, com suástica na capa”.
Também no Brasil, a oferta do Mein Kamp sob a forma de ebook tem sido
maior e os preços subiram, mas ainda são muito baixos, típicos de obras de
domínio público. O perfil das vendas é o mesmo dos Estados Unidos e
Inglaterra, pois a maior oferta do livro é em inglês e a edição da editora
MonteCristo uma das mais vendidas. É provável que, quando essas vendas
residuais caírem muito, o preço baixe ainda mais novamente.
No site da Amazon americana (Amazon.com), o livro em inglês no formato
Kindle da Editora MonteCristo, que estava sendo vendido a US$ 0,88,
passoupara US$ 2,13. A apresentação alerta para o conteúdo racista do
livro e suas funestas consequências, mas chama a atenção para a
importância de conhecê-lo: “Se vocêquer saber mais detalhes sobrepor
que o Holocausto aconteceu não podeevitar a leitura das palavras do
homem que foi o maior responsável poresse acontecimento” diz um
comentário de compradorposto em destaque pela Amazon, que alerta: “Se
tivessem levado o livro a sério quando foi lançado, o século 20 teria sido
muito diferente.” As versões em papel do livro estavam sendo vendidas por
US$ 13,39 (brochura) e US$ 17,49 (capa dura).
Na Inglaterra, o site da Amazon.co.uk já tinha elevado o preço da edição
em ebook vendida pela MonteCristo brasileira de 0, 77 libra para 1,88 libra.
Edições do livro em papel estavam sendo vendidas por7,19 libras em
brochura e 19,99 libras em capa dura. No iTunes, plataforma da Apple,
estava sendo vendido a US$ 2,99, disponível no iPhone, iPod, iPod touch e
Mac. A página traz capas de outros livros que os compradores desse
também compraram e que saem pelo mesmo preço:entre eles estava o
Manifesto Comunista, de Marx e Engels, e os Contos de Fadas, dos irmãos
Grimm.
A Iba.com.brvende a edição do Mein Kampf em inglês da MonteCristo
Editora porR$ 5,99. Na mesma página, como livro correlato, a iba oferece
a edição digital de A biblioteca esquecida de Hitler – Os livros que
moldaram a vida do Führer, de Timothy W. Ryback, da Companhia das
Letras, por R$ 34,50. No site dos supermercados Extra (extra.com.br), a
edição em inglês da MonteCristo está sendo anunciada a R$ 7,99, com um
selo destacando que é produto digital.
Na Amazon.com.br o livro da editora MonteCristo para leitura em edição
Kindle estava sendo vendido porR$ 4,99. No site da Livraria Cultura, a
mesma edição de ebook da MonteCristo custa R$ 8,69 e uma outra edição
importada, com suástica ao fundo na capa, está sendo vendida a R$ 7,11.
Entre outros livros comprados pelos mesmos consumidores do Mein
Kampf o site estava citando O que você precisa saber para nãoser um
idiota, de Olavo de Carvalho (R$ 8,69) e recomendava ainda outros livros
em inglês, como Verdadee Ficção no Código Da Vinci (Truth and Fiction
in the Da Vinci Code), de Bart D. Ehrman.
O livro Mein Kampfpodeser baixado gratuitamente em plataformas como
a Gutenberg.org, que permite acesso a milhares de clássicos mundiais de
domínio público. Versões grátis do Mein Kampfem inglês também podem
ser baixadas em sites como o da íbis (que aproveita para baixar seus
aplicativos de leitura de livros...).
Site racista patrocina versão grátis em português
Quem procura o Mein Kampf no formato ebookem português acaba se
deparando com uma única edição para baixar gratuitamente em pdfem
sites como o lelivros com e a Wikipédia. Essaversão não traz advertência,
notas ou sequer nome do tradutor. Podeser baixada no link Mein Kampf,
versão eletrônica em português brasileiro, que está no final do verbete
Mein Kampf da Wikipédia. Esse link remete para um site descaradamente
antissemita chamado Radio Islam, dirigido pelo marroquino sueco-Ahmed
Rami. A mesma Radio Islam também fornece essa versão gratuita da
tradução brasileira do livro no mecanismo de buscaGoogle, na chave (pdf)
Minha Luta – Radio Islam. É de se suporque essa versão tenha sido
copidescadapara pior e ser ainda mais nazista que o original.
Rami e seus colaboradores defendem o Hezbollah, os discursos radicais do
presidente Ahmadinejad do Irã e diz que Fernando Henrique Cardoso,
Lula e Dilma são todos judeus e participam da conspiração mundial
prevista pelos Protocolos dos Sábios do Sião, o livro antissemita decantado
por Hitler.
Distribuído para 23 línguas, inclusive português, o link que dá acesso ao
pdf de Mein Kampf seapresenta como contrário ao racismo e o
preconceito “baseado na fé, cor da pele e background étnico”. Mas diz
também que sua meta é combater o sionismo, que classifica como um tipo
de racismo. O conteúdo é altamente voltado para uma teoria conspiratória
verdadeiramente paranoica. Uma das reportagens, por exemplo, que fala
das “origens e ligações sionistas dos presidentes brasileiros”, garante que o
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso seria descendente de judeus, sua
mulher seria judia, e diz até que sua filha casoucom um judeu que é amigo
de outro judeu, citando os nomes. Do ex-presidente Lula, o site diz o
seguinte: “Descendente de cristãos novos (judeus convertidos na marra
para não morrerem na fogueira em Portugal e Espanha) oriundos do Recife
e radicados na região de Garanhuns - PE. Lula descendeda chamada ‘Casa
da Torre’. Ele, no entanto não dá a mínima para o fato e passade largo
sobreas suas origens abraâmicas.”
Editora brasileira fica famosa
O advogado Alexandre Pires Vieira, dono da Editora MonteCristo, contou
para a reportagem da Negócios da Comunicação que ficou surpreso com o
súbito aumento de vendas do Mein Kampf. A menção de sua editora na
reportagem do site de Christian Faraone atraiu a atenção da imprensa
mundial para ele. “Estourecebendo telefonemas de repórteres americanos,
franceses...”Ele transformou a tradução inglesa do Mein Kampf que está
disponívelna internet em ebookhá dois anos, como parte de seu catálogo
de livros de domínio público, que inclui a edição inglesa da Bíblia do Rei
James, clássicos da literatura, como Machado de Assis e Eça de Queirós. O
ebookcom a tradução do Mein Kampf em inglês da Editora Montecristo
passoua integrar catálogos das principais livrarias virtuais, como Amazon
e iTunes.
A meta da editora é formar uma biblioteca de clássicos e também publicar
assuntos atuais no novo formato do livro eletrônico, comseus dispositivos
próprios que facilitam a leitura. “A publicação do Mein Kampfem inglês
no formato ebookestava dentro do nosso projeto e desdeo começo tivemos
o cuidado de advertir o leitor sobreo conteúdo da obra”, explicou. “É um
documento histórico, cuja leitura podelançar luzes sobrea mentalidade da
qual surgiu o nazismo. Mas é claro que as pessoas vão ver uma obra desse
tipo com senso crítico, com um distanciamento que a História já provocou.
Quem lê esse livro não vai se tornar nazista por causa disso”.
“A MonteCristo surgiu porquesou apaixonado portecnologia e vejo que as
bibliotecas do futuro vão estar nos aparelhos de leitura dos ebooks, que são
especialmente feitos para o conforto visual”, explica.” Em 2011, quando
montou a MonteCristo, as grandes editoras brasileiras ainda não tinham e-
books e praticamente não existiam livrarias virtuais, só se podia fazer
alguma compranos sites americanos, como o da Amazon. Ele percebeu que
90% do mercado de livros digitais era controlado por três empresas:
Amazon, Apple e Google. E teve a ideia de criar uma editora virtual e
começar publicando obras de domínio público. A primeira foi a
Constituição do Brasil.
“Para publicar um ebookvocê precisa converter a obra para o formato e
usar uma plataforma, como a Xeriph, que faz distribuição de ebooks para
livrarias e editoras”, conta. O preço da obra é negociado com cada livraria e
a Editora MonteCristo fica com um porcentual sobrea venda que vai de
35% a 75% . Quando postouo Mein Kampfnas livrarias digitais há dois
anos, ele previa que venderia muito pouco, como alguns outros documentos
e clássicos que eram eventualmente consultados por estudiosos ou
pesquisadores.
Durante muito tempo, o livro vendeu cerca de 20 exemplares por mês,
enquanto a edição inglesa da Bíblia do Rei James chegava a 500. “O dever
do advogado, de Rui Barbosa, também vendia mais”, lembra. Mas as
vendas subiram misteriosamente em janeiro e, por alguns dias, a Editora
MonteCristo passoua vender mais de cem exemplares pordia, cerca de um
exemplar a cada meia hora.
Vieira também acha que o livro chamou a atenção por se destacar em
subclassificações bibliográficas dos sites de venda, como ideologias e
doutrinas, dando a impressão de que era uma obra procurada. “Muitos
baixaram, mas provavelmente poucos lerão.” O livro tinha toda uma aura
de probido e além disso era barato, custava menos de R$ 2. “A comodidade
de baixar as coisas pela internet, a curiosidade pelos comentários sobreo
livro e o preço baixo explicam esse repentino e efêmero sucesso.”
Ele conta que comprovouisso: “A partir da semana do dia 20 de janeiro eu
aumentei o preço do livro para tentar entender o motivo das vendas. Como
eu previa, as vendas caíram imediatamente, o que confirma que o interesse
dos compradores é bastante superficial”, conta. “Penso que estavam
comprando muito devido ao baixo preço, assim as pessoas adquiriam por
curiosidade, para ler algumas páginas do que o Hitler dizia e não porque
realmente estão interessadas em neonazismo.”
Vieira lembra que a Editora MonteCristo teve um problema coma Apple
quando pôs o Mein Kampf à venda naquela plataforma. Depois de duas
semanas no catálogo, a Apple avisou que o retirara da lista e não o venderia
porque violava a política da empresa e fazia apologia do nazismo. Vieira
respondeupara a Apple que não se tratava de apologia, mas de documento
para estudo e reflexão, como estava explicado na apresentação do livro. “A
Apple entendeu minha defesa e liberou o livro”, contouo advogado-editor.
“A proibição dá mais argumentos para os nazistas. Não concordocomo
papel da censura nos livros. A censura pressupõeque existem pessoas que
podemdefinir o que as outras devem ler ou não, pessoas superiores, o que
também é uma forma de autoritarismo.”
Ele não sabe dizer se a veiculação de livros eletrônicos como o Mein
Kampfseria alvo de controle pelo Marco Regulatório da Internet, que foi
propostoem 2011 e que ainda não foi votado pela Câmara dos Deputados.
“Eu prefiro pensar a partir de leis aprovadas e não de projetos, que podem
mudar muito.”
Vieira acha que o jornalista do site Vocativ foi sensacionalista ao afirmar
que não teve respostada Editora MonteCristo: “O Chris Faraone me enviou
um e-mail dia 20 de dezembro perguntado quem poderia falar sobreo Mein
Kampf. No dia seguinte respondique seria eu mesmo e ele me mandou um
e-mail com várias perguntas, sobre um assunto delicado. No dia 23,
praticamente véspera de Natal ele enviou outro e-mail dizendo que eu
deveria responderaté o fim do dia. Achei meio abusivo e não
respondi. Então ele publicou que a editora tinha deixado de falar com ele
‘após perguntas sobre o Mein Kampf’.”
“Esse livro já trouxe muitos problemas”
O filósofo Renato Janine Ribeiro, que leciona ética na Faculdade de
Filosofia da Universidade de São Paulo, é contra a divulgação
indiscriminada do livro: “Trata-se de uma obra que fomenta o ódio e já
colocoutantos problemas para a humanidade. Por isso deve ser alvo de
controle porparte da sociedade. Só é útil para pesquisadores. Aliás, a
incitação ao crime é consideradaela mesma um crime, de modo que
difundir propaganda racista é um ato criminoso” Para o professor, o caráter
perigoso da obra é internacionalmente reconhecido e sua divulgação fere as
leis praticamente do mundo todo:“Vimos no caso da atriz Carolina
Dickman que é possívelretirar fotos de circulação, mesmo que hospedados
em outros países, sabemos quejá existem mecanismos para esse tipo de
controle.”
Janine Ribeiro acha que o Mein Kampf deve ser considerado um
documento de leitura mais restrita, no contexto da nossasociedade de
massas, porque exige distanciamento e senso crítico na sua análise, está
cheio de conclusões falsas e de raciocínios que levam ao ódio e à violência.
“Essetexto não podesair publicado como se fosseuma banalidade. Não é
um documento que deve ser de circulação livre.”
O filósofo lembra os recentes crimes motivados por homofobia no Brasil:
“Uma sociedade que faz isso não é a sociedadeque queremos.” Ele explica
que o cenário dos livros virtuais e da comunicação eletrônica é novo, mas
já é possívelcontrolar conteúdos racistas, homofóbicos ouque incitam a
violência e a prática de crimes. “Pode-se, porexemplo, impedir que se
tenha lucro com a venda de material dessetipo.” Ele conta que nos Estados
Unidos já existem leis que impedem o autor de um crime de lucrar coma
publicação de um livro contando a história dessecrime, como acontecia
antes. “A pessoapodepublicar esse tipo de coisa, mas não podeter lucro
com isso.”
E ele acha que o controle não deve ser só econômico. “Noto que alguns
sites não estão querendo ganhar dinheiro com o livro, mas o estão usando
como propaganda de ódio, e isso também deve ser combatido.”
.

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Hitler e o mein kampf: sucesso enganoso

  • 1. 21 mil toques no total “Barriga” de jornalista faz Mein Kampf “virar” best-seller “Os jornalistas são os arautos das ilusões perdidas”, disse certa vez o escritor, músico e professordeliteratura José Miguel Wisnik, ao referir-se ao romance Ilusões Perdidasde Balzac. “Os jornalistas motivam ilusões para depois desmascará-las, é esseo seu trabalho, conseguir notícias para depois substituí-las por novas notícias.” Isso parece estar acontecendo atualmente comas versões digitais do livro Mein Kampf(Minha Luta) de Hitler, autobiografia que divulgou o ideário de racismo e ódio e que está na origem do nazismo e de seus horrores. Uma “falsa” notícia de que o livro estava sendo um best seller na internet, repassadalevianamente pela imprensa, teria servido de divulgação mundial para a obra e conseguiu amentar suas vendas. A inclusão do livro entre os best-sellers acabou noticiada no mundo todo, pois ele continua proibido na Alemanha (que detém os direitos autorais até 2015, quando caem em domínio público), e sua pregação de ódio dá ensejo a que seja recolhido pela legislação de vários países. Existem, entretanto, muitas edições da obra no mundo todo, dependendo da legislação de cada país, o que acaba tornando o livro acessível. A notícia de que as traduções em inglês do Mein Kampf eram best-sellers em grandes sites de vendas de livros eletrônicos como Amazonas e iTunes nos Estados Unidos e Inglaterra foi publicada no dia 8 de janeiro, no site Vocativ, pelo escritor e jornalista americano Chris Faraone. Ele escreveu que o livro ocupavao primeiro lugar na lista de mais vendidos do site Amazon na categoria Psicologia, Propaganda & Política; em outro site usado para baixar livros, o ITune, o Mein Kampfestava em 15º lugar na categoria Política & Atualidades. Ilustra a matéria uma foto da página de tops de temas específicos daAmazon que mostrava, entre 16 destaques, as capas de duas edições de ebooks do Mein Kampf(uma delas brasileira, da editora MonteCristo). Prato cheio para editores, pauteiros e chefes de reportagem de jornais, revistas e portais, a notícia virou uma espécie de press release e foi veiculada por importantes jornais e redes de televisão, que se limitaram a reproduzir, inclusive no Brasil, as estatísticas da matéria de Chris Faraone.
  • 2. No dia 16 de janeiro, entretanto, o escritor irlandês David Gaughran, que vive em Londres, postouem seu blog (davidgaughran.wordpress.com) uma crítica aos critérios usados porChris Faraone para definir o que é best- seller e acusou a imprensa de ter valorizado erroneamente o livro, o que serviu para sua divulgação desnecessária. Gaughran consultou outros dados e tabulações da Amazon. Usando a ferramenta KND Rastreadoranalisou o comportamento das vendas e dos preços dos produtosao longo do tempo. Constatouque as vendas dos ebooks do Mein Kampf eram muito baixas até outubro de 2013, quando o preço foi reduzido para menos de US$ 1. Mesmo assim as vendas continuaram relativamente baixas, cerca de dez exemplares por dia, o que não caracterizaria um best seller. O cenário mudou a partir do dia 8 de janeiro, quando foi publicada a matéria situando o Mein Kampf entre os best-sellers. As vendas subiram exponencialmente. Percebendo a procura, as editoras imediatamente aumentaram os preços e as vendas foram se estabilizando num patamar mais alto. Com novos aumentos de preço, entretanto, as vendas começaram a despencarainda em meados do mês, depois de um pico, no dia 11 de janeiro, quando eram comprados 200 exemplares pordia, segundo apurou Gaughran. O escritor irlandês frisa que o fato de a obra constar comdestaque em algumas das centenas de sub-subcategorias de livros oferecidos da Amazon não faz de Mein Kampf um best-seller ou top de vendas no conjunto das categorias usadas, pois algumas vendem muito e outras muito pouco. “O Mein Kampf não era best-seller até que a mídia o tornou um.” De qualquer forma, a matéria de Chris Faraone postadano dia 8 já falava da grande oferta do livro Mein Kampf na internet. Nos EUA, ele contabilizou cem ofertas da obraimpressa em todos os formatos possíveis, novos e usados, versões em audiobooks e apenas seis versões digitais em inglês – justamente as que segundo ele estariam tendo aumento nas vendas. Ele apurou que 100 mil versões gratuitas da obra tinham sido baixadas de diversos sites – e esse fato não foi comentado porDavid Gaughran, seu crítico irlandês. “Porque as pessoas estão lendo Hitler em Kindles e smartphones?”, perguntou Faraone. E aventou uma teoria: tal como acontece com a
  • 3. literatura pornográfica, muita gente estaria se sentindo mais à vontade para ler o livro no sigilo de um tablet ou smartphone. Faraone lembrou que o livro Os 50 tons de cinza, da inglesa E L James, fez sucesso primeiro no formato digital, que permitia seu consumo discreto. Seria uma espécie de “voyeurismo ideológico”, aventa ele. Em sua matéria para o site Vocativ, Faraone entrevistou Michael Ford, presidente da Elite Minds, uma das editoras que estão vendendo os ebooks do Mein Kampf nos EUA. Ford contou que enfrentava um dilema moral na promoção do livro, pois prefere que ele se destine apenas aos que tiverem interesse histórico ou acadêmico e teme que ele possasermal utilizado. Faraone conta em seu site que Mein Kampf foi lançado na Ásia em 1999 e já vendeu 100 mil exemplares na Índia, a mesma quantidade de vendas na Turquia, onde foi lançado em 2005. Segundo o jornalista, a editora Random House, que detém os direitos da tradução mais popular na Inglaterra, já pagou mais de 1 milhão de dólares para instituições de vítimas do holocausto, numa espécie de acordo feito há 13 anos com entidades representativas dos judeus. Desta vez, entretanto, Robert Singer, dirigente do Congresso Mundial Judaico, que congrega organizações judaicas de mais de cem países, disseque espera que a Amazon “pare de vender o livro junto com outras publicações que incentivam o ódio”. Para ele, seria um ato de responsabilidade vindo de uma corporação “poderosae icônica”, segundo declarou ao jornalista Faraone. “A Amazon não vende pornografia e livros eu promovem comportamentos como o incesto, porque alguns acham esse material ofensivo. Nós agora estamos pedindo para que pare de lucrar com a venda de material ofensivo”, comentou Singer no site Vocativ. A matéria de Faraone também cita a editora brasileira MonteCristo, como uma das que estão oferecendo o livro nos EUA. Mas ele conta que deixou de ser atendido tanto pela Amazon como pela MonteCristo logo que começoua pedir detalhes sobreo Mein Kampf. A bíblia do nazismo Mein Kampf foi escrito por Hitler no começo dos anos 20. O primeiro volume foi escrito na cadeia em 1923 e publicado em 1925. O segundo
  • 4. escrito em liberdade, foi publicado em 1926. No livro ele prega o antissemitismo e o ódio e propõea instauração de um governo nazista. Na data da publicação, o primeiro volume não chegou a vender 10 mil exemplares, mas as vendas do livro completo passaram de 50 mil quando Hitler chegou ao poderem 1933, elegendo-se chanceler e dando força para a ideologia nazista. O próprio governo comprou6 milhões de exemplares para distribuição à população, o que o coloca como um dos principais instrumentos de enraizamento da ideologia nazista na Alemanha. Como Hitler doouos direitos do livro ao Estado da Baviera, o governo alemão proibiu sua publicação até dezembro de 2015, quando a obra cai em domínio público e qualquer editora poderá então publicá-la, se as leis do país assim o permitirem. Apesar da proibição, o livro e suas traduções circulam livremente pelo mundo, pois foram impressos milhões de exemplares. Um grupo de historiadores alemães prometeu lançar em 2015 uma versão anotada do livro, mas os planos foram recentemente adiados, diante do esforço do governo de combater facções neonazistas. Livro fácil de achar No mundo todo, a venda das edições impressas tem sido baixas e se mantido estáveis nas últimas décadas. Aqui no Brasil, livro podeser comprado em muitas livrarias e sebos. Não tem sido reeditado por grandes editoras, como acontecia nos anos 30. O site da Estante Virtual trazia no dia 18 de janeiro 37 ofertas de edições do livro feitas em várias épocas, com preços de R$ 70 (vendedor particular de Santa Catarina) a R$ 300 (sebo Espaço do Livro, em São Paulo), além de algumas ofertas de edições de luxo da obra, como uma em alemão gótico, à venda no Empório da Cultura (SP) porR$ 8.470. A maioria dos sebos e particulares que vende o livro é de São Paulo, Paraná e Santa Catarina. A única oferta do Mein Kampfdo Nordeste é de um vendedor particular, que o oferece porR$ 299, anunciando ser uma “edição rara, com suástica na capa”. Também no Brasil, a oferta do Mein Kamp sob a forma de ebook tem sido maior e os preços subiram, mas ainda são muito baixos, típicos de obras de
  • 5. domínio público. O perfil das vendas é o mesmo dos Estados Unidos e Inglaterra, pois a maior oferta do livro é em inglês e a edição da editora MonteCristo uma das mais vendidas. É provável que, quando essas vendas residuais caírem muito, o preço baixe ainda mais novamente. No site da Amazon americana (Amazon.com), o livro em inglês no formato Kindle da Editora MonteCristo, que estava sendo vendido a US$ 0,88, passoupara US$ 2,13. A apresentação alerta para o conteúdo racista do livro e suas funestas consequências, mas chama a atenção para a importância de conhecê-lo: “Se vocêquer saber mais detalhes sobrepor que o Holocausto aconteceu não podeevitar a leitura das palavras do homem que foi o maior responsável poresse acontecimento” diz um comentário de compradorposto em destaque pela Amazon, que alerta: “Se tivessem levado o livro a sério quando foi lançado, o século 20 teria sido muito diferente.” As versões em papel do livro estavam sendo vendidas por US$ 13,39 (brochura) e US$ 17,49 (capa dura). Na Inglaterra, o site da Amazon.co.uk já tinha elevado o preço da edição em ebook vendida pela MonteCristo brasileira de 0, 77 libra para 1,88 libra. Edições do livro em papel estavam sendo vendidas por7,19 libras em brochura e 19,99 libras em capa dura. No iTunes, plataforma da Apple, estava sendo vendido a US$ 2,99, disponível no iPhone, iPod, iPod touch e Mac. A página traz capas de outros livros que os compradores desse também compraram e que saem pelo mesmo preço:entre eles estava o Manifesto Comunista, de Marx e Engels, e os Contos de Fadas, dos irmãos Grimm. A Iba.com.brvende a edição do Mein Kampf em inglês da MonteCristo Editora porR$ 5,99. Na mesma página, como livro correlato, a iba oferece a edição digital de A biblioteca esquecida de Hitler – Os livros que moldaram a vida do Führer, de Timothy W. Ryback, da Companhia das Letras, por R$ 34,50. No site dos supermercados Extra (extra.com.br), a edição em inglês da MonteCristo está sendo anunciada a R$ 7,99, com um selo destacando que é produto digital. Na Amazon.com.br o livro da editora MonteCristo para leitura em edição Kindle estava sendo vendido porR$ 4,99. No site da Livraria Cultura, a mesma edição de ebook da MonteCristo custa R$ 8,69 e uma outra edição importada, com suástica ao fundo na capa, está sendo vendida a R$ 7,11.
  • 6. Entre outros livros comprados pelos mesmos consumidores do Mein Kampf o site estava citando O que você precisa saber para nãoser um idiota, de Olavo de Carvalho (R$ 8,69) e recomendava ainda outros livros em inglês, como Verdadee Ficção no Código Da Vinci (Truth and Fiction in the Da Vinci Code), de Bart D. Ehrman. O livro Mein Kampfpodeser baixado gratuitamente em plataformas como a Gutenberg.org, que permite acesso a milhares de clássicos mundiais de domínio público. Versões grátis do Mein Kampfem inglês também podem ser baixadas em sites como o da íbis (que aproveita para baixar seus aplicativos de leitura de livros...). Site racista patrocina versão grátis em português Quem procura o Mein Kampf no formato ebookem português acaba se deparando com uma única edição para baixar gratuitamente em pdfem sites como o lelivros com e a Wikipédia. Essaversão não traz advertência, notas ou sequer nome do tradutor. Podeser baixada no link Mein Kampf, versão eletrônica em português brasileiro, que está no final do verbete Mein Kampf da Wikipédia. Esse link remete para um site descaradamente antissemita chamado Radio Islam, dirigido pelo marroquino sueco-Ahmed Rami. A mesma Radio Islam também fornece essa versão gratuita da tradução brasileira do livro no mecanismo de buscaGoogle, na chave (pdf) Minha Luta – Radio Islam. É de se suporque essa versão tenha sido copidescadapara pior e ser ainda mais nazista que o original. Rami e seus colaboradores defendem o Hezbollah, os discursos radicais do presidente Ahmadinejad do Irã e diz que Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma são todos judeus e participam da conspiração mundial prevista pelos Protocolos dos Sábios do Sião, o livro antissemita decantado por Hitler. Distribuído para 23 línguas, inclusive português, o link que dá acesso ao pdf de Mein Kampf seapresenta como contrário ao racismo e o preconceito “baseado na fé, cor da pele e background étnico”. Mas diz também que sua meta é combater o sionismo, que classifica como um tipo de racismo. O conteúdo é altamente voltado para uma teoria conspiratória verdadeiramente paranoica. Uma das reportagens, por exemplo, que fala das “origens e ligações sionistas dos presidentes brasileiros”, garante que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso seria descendente de judeus, sua
  • 7. mulher seria judia, e diz até que sua filha casoucom um judeu que é amigo de outro judeu, citando os nomes. Do ex-presidente Lula, o site diz o seguinte: “Descendente de cristãos novos (judeus convertidos na marra para não morrerem na fogueira em Portugal e Espanha) oriundos do Recife e radicados na região de Garanhuns - PE. Lula descendeda chamada ‘Casa da Torre’. Ele, no entanto não dá a mínima para o fato e passade largo sobreas suas origens abraâmicas.” Editora brasileira fica famosa O advogado Alexandre Pires Vieira, dono da Editora MonteCristo, contou para a reportagem da Negócios da Comunicação que ficou surpreso com o súbito aumento de vendas do Mein Kampf. A menção de sua editora na reportagem do site de Christian Faraone atraiu a atenção da imprensa mundial para ele. “Estourecebendo telefonemas de repórteres americanos, franceses...”Ele transformou a tradução inglesa do Mein Kampf que está disponívelna internet em ebookhá dois anos, como parte de seu catálogo de livros de domínio público, que inclui a edição inglesa da Bíblia do Rei James, clássicos da literatura, como Machado de Assis e Eça de Queirós. O ebookcom a tradução do Mein Kampf em inglês da Editora Montecristo passoua integrar catálogos das principais livrarias virtuais, como Amazon e iTunes. A meta da editora é formar uma biblioteca de clássicos e também publicar assuntos atuais no novo formato do livro eletrônico, comseus dispositivos próprios que facilitam a leitura. “A publicação do Mein Kampfem inglês no formato ebookestava dentro do nosso projeto e desdeo começo tivemos o cuidado de advertir o leitor sobreo conteúdo da obra”, explicou. “É um documento histórico, cuja leitura podelançar luzes sobrea mentalidade da qual surgiu o nazismo. Mas é claro que as pessoas vão ver uma obra desse tipo com senso crítico, com um distanciamento que a História já provocou. Quem lê esse livro não vai se tornar nazista por causa disso”. “A MonteCristo surgiu porquesou apaixonado portecnologia e vejo que as bibliotecas do futuro vão estar nos aparelhos de leitura dos ebooks, que são especialmente feitos para o conforto visual”, explica.” Em 2011, quando montou a MonteCristo, as grandes editoras brasileiras ainda não tinham e- books e praticamente não existiam livrarias virtuais, só se podia fazer alguma compranos sites americanos, como o da Amazon. Ele percebeu que
  • 8. 90% do mercado de livros digitais era controlado por três empresas: Amazon, Apple e Google. E teve a ideia de criar uma editora virtual e começar publicando obras de domínio público. A primeira foi a Constituição do Brasil. “Para publicar um ebookvocê precisa converter a obra para o formato e usar uma plataforma, como a Xeriph, que faz distribuição de ebooks para livrarias e editoras”, conta. O preço da obra é negociado com cada livraria e a Editora MonteCristo fica com um porcentual sobrea venda que vai de 35% a 75% . Quando postouo Mein Kampfnas livrarias digitais há dois anos, ele previa que venderia muito pouco, como alguns outros documentos e clássicos que eram eventualmente consultados por estudiosos ou pesquisadores. Durante muito tempo, o livro vendeu cerca de 20 exemplares por mês, enquanto a edição inglesa da Bíblia do Rei James chegava a 500. “O dever do advogado, de Rui Barbosa, também vendia mais”, lembra. Mas as vendas subiram misteriosamente em janeiro e, por alguns dias, a Editora MonteCristo passoua vender mais de cem exemplares pordia, cerca de um exemplar a cada meia hora. Vieira também acha que o livro chamou a atenção por se destacar em subclassificações bibliográficas dos sites de venda, como ideologias e doutrinas, dando a impressão de que era uma obra procurada. “Muitos baixaram, mas provavelmente poucos lerão.” O livro tinha toda uma aura de probido e além disso era barato, custava menos de R$ 2. “A comodidade de baixar as coisas pela internet, a curiosidade pelos comentários sobreo livro e o preço baixo explicam esse repentino e efêmero sucesso.” Ele conta que comprovouisso: “A partir da semana do dia 20 de janeiro eu aumentei o preço do livro para tentar entender o motivo das vendas. Como eu previa, as vendas caíram imediatamente, o que confirma que o interesse dos compradores é bastante superficial”, conta. “Penso que estavam comprando muito devido ao baixo preço, assim as pessoas adquiriam por curiosidade, para ler algumas páginas do que o Hitler dizia e não porque realmente estão interessadas em neonazismo.” Vieira lembra que a Editora MonteCristo teve um problema coma Apple quando pôs o Mein Kampf à venda naquela plataforma. Depois de duas semanas no catálogo, a Apple avisou que o retirara da lista e não o venderia porque violava a política da empresa e fazia apologia do nazismo. Vieira
  • 9. respondeupara a Apple que não se tratava de apologia, mas de documento para estudo e reflexão, como estava explicado na apresentação do livro. “A Apple entendeu minha defesa e liberou o livro”, contouo advogado-editor. “A proibição dá mais argumentos para os nazistas. Não concordocomo papel da censura nos livros. A censura pressupõeque existem pessoas que podemdefinir o que as outras devem ler ou não, pessoas superiores, o que também é uma forma de autoritarismo.” Ele não sabe dizer se a veiculação de livros eletrônicos como o Mein Kampfseria alvo de controle pelo Marco Regulatório da Internet, que foi propostoem 2011 e que ainda não foi votado pela Câmara dos Deputados. “Eu prefiro pensar a partir de leis aprovadas e não de projetos, que podem mudar muito.” Vieira acha que o jornalista do site Vocativ foi sensacionalista ao afirmar que não teve respostada Editora MonteCristo: “O Chris Faraone me enviou um e-mail dia 20 de dezembro perguntado quem poderia falar sobreo Mein Kampf. No dia seguinte respondique seria eu mesmo e ele me mandou um e-mail com várias perguntas, sobre um assunto delicado. No dia 23, praticamente véspera de Natal ele enviou outro e-mail dizendo que eu deveria responderaté o fim do dia. Achei meio abusivo e não respondi. Então ele publicou que a editora tinha deixado de falar com ele ‘após perguntas sobre o Mein Kampf’.” “Esse livro já trouxe muitos problemas” O filósofo Renato Janine Ribeiro, que leciona ética na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, é contra a divulgação indiscriminada do livro: “Trata-se de uma obra que fomenta o ódio e já colocoutantos problemas para a humanidade. Por isso deve ser alvo de controle porparte da sociedade. Só é útil para pesquisadores. Aliás, a incitação ao crime é consideradaela mesma um crime, de modo que difundir propaganda racista é um ato criminoso” Para o professor, o caráter perigoso da obra é internacionalmente reconhecido e sua divulgação fere as leis praticamente do mundo todo:“Vimos no caso da atriz Carolina Dickman que é possívelretirar fotos de circulação, mesmo que hospedados em outros países, sabemos quejá existem mecanismos para esse tipo de controle.”
  • 10. Janine Ribeiro acha que o Mein Kampf deve ser considerado um documento de leitura mais restrita, no contexto da nossasociedade de massas, porque exige distanciamento e senso crítico na sua análise, está cheio de conclusões falsas e de raciocínios que levam ao ódio e à violência. “Essetexto não podesair publicado como se fosseuma banalidade. Não é um documento que deve ser de circulação livre.” O filósofo lembra os recentes crimes motivados por homofobia no Brasil: “Uma sociedade que faz isso não é a sociedadeque queremos.” Ele explica que o cenário dos livros virtuais e da comunicação eletrônica é novo, mas já é possívelcontrolar conteúdos racistas, homofóbicos ouque incitam a violência e a prática de crimes. “Pode-se, porexemplo, impedir que se tenha lucro com a venda de material dessetipo.” Ele conta que nos Estados Unidos já existem leis que impedem o autor de um crime de lucrar coma publicação de um livro contando a história dessecrime, como acontecia antes. “A pessoapodepublicar esse tipo de coisa, mas não podeter lucro com isso.” E ele acha que o controle não deve ser só econômico. “Noto que alguns sites não estão querendo ganhar dinheiro com o livro, mas o estão usando como propaganda de ódio, e isso também deve ser combatido.” .