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Rulian Emmerick
Corpo e Poder: Um Olhar Sobre
o Aborto à Luz dos Direitos
Humanos e da Democracia
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
DEPARTAMENTO DE DIREITO
Programa de Pós-Graduação em Teoria do Estado e Direito
Constitucional
Rio de Janeiro
Março de 2007
CCS – Centro de Ciências Sociais
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Rulian Emmerick
Corpo e poder: um olhar sobre a o aborto
à luz dos direitos humanos e da
democracia
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de
Pós-Graduação em Direito do Departamento de
Direito da PUC-Rio.
Orientador: Prof. João Ricardo Wanderley
Dornelles
Rio de Janeiro
Março de 2007
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0510786/CA
Rulian Emmerick
Corpo e poder: um olhar sobre o aborto à
luz dos direitos humanos e da
democracia
Dissertação apresentada como requisito parcial
para a obtenção de grau de Mestre pelo Programa
de Pós-graduação em Direito do Departamento de
Direito do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio.
Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo
assinada.
Prof. João Ricardo Wanderley Dornelles
Orientador
Departamento de Direito – PUC-Rio
Prof. José María Gómez
Departamento de Relações Internacionais – PUC-
Rio
Prof. Vera Malaguti Batista
UCAM – Universidade Cândido Mendes
Prof. João Pontes Nogueira
Coordenador
Rio de Janeiro, 28 de março de 2007.
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução
total ou parcial do trabalho sem autorização da
universidade, do autor e do orientador.
Rulian Emmerick
É Advogado. Graduou-se em Direito na PUC-Rio
(Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) em
2004. Atualmente é integrante do Observatório de
Controle Social e Sistema Punitivo e da Cátedra
Direitos Humanos e Violência: Governo e Governança,
ambos instalados no âmbito do Núcleo de Direitos
Humanos do Departamento de Direito da PUC-Rio.
Tem experiência em direito público, atuando
principalmente na área do direito constitucional e dos
direitos humanos. Atualmente atua em consultoria de
pesquisas jurídicas no campo dos direitos sexuais e
direitos reprodutivos.
Ficha Cartográfica
Emmerick, Rulian
Corpo e poder: um olhar sobre o aborto à luz dos direitos
humanos e da democracia / Rulian Ememrick; Orientador:
João Ricardo Wanderley Dornelles. – Rio de Janeiro: PUC.
Departamento de Direito, 2007.
V., 199 f: il.; 29,7 cm
1. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro, Departamento de Direito.
Inclui referências bibliográficas
1. Direito – Teses. 2. Corpo e Poder. 3. aborto. 4. Direitos
Humanos. 5. Direitos Sexuais. 6 Direitos Reprodutivos. 7.
Democracia. 8. Feminino. 9. Cidadania
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Ao meu pai Frederico, in memorian, que
apesar da vida breve, ensinou-me os
primeiros passos.
Para minha mãe, Celene, a quem devo o
meu senso de justiça. Seu exemplo de
força, de humildade, dignidade, é a minha
inspiração.
Para minha esposa, Eliza, eterna
companheira, pelo carinho, apoio e
compreensão de todos os dias. Todo o meu
amor.
Para todas e todos que fazem de suas vidas
um ideal de luta pelos historicamente
excluídos e marginalizados.
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Agradecimentos
Este trabalho não teria sido possível sem o auxílio financeiro concedido
pela CAPES - e sem o apoio de todos aqueles que sempre estiveram ao meu lado,
principalmente, nos dois anos de intensos estudos no Mestrado da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
À minha família, minha mãe, meus irmãos e sobrinhos, titulares do meu
coração.
À minha esposa, Eliza, pelo amor, apoio e compreensão, que acompanhou
e vivenciou a minha jornada diária de estudos durante os dois anos de mestrado,
principalmente, no período de construção deste trabalho. Este mérito também é
dela.
À CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior, pelos auxílios concedidos durante o curso de mestrado, sem os quais,
seria impossível ter realizado este trabalho.
Ao meu orientador, professor João Ricardo Wanderlei Dornelles, pelo
apoio e atenção de sempre. Intelectual e militante que despertou em mim o
encanto pela criminologia, por quem tem grande apreço desde os tempos de
graduação na PUC-Rio.
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À professora Vera Malaguti Batista, que contribuiu imensamente para que
este trabalho pudesse ser escrito. Sua solicitude, profissionalismo, carisma; seu
conhecimento intelectual e suas orientações e sugestões sempre me fizeram sentir
um filho, pois mais pareciam com um conselho de mãe. A tarefa de escrever este
trabalho sem suas sábias orientações, se não impossível, com certeza seria muito
mais árdua. Todo meu agradecimento, carinho, respeito, gratidão e admiração.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação do Departamento de
Direito da PUC-Rio, pelos ensinamentos nestes dois anos de mestrado. A
aprendizagem multidisciplinar e crítica ao direito posto e estabelecido, com que
tive contato durante os intensos estudos, com certeza, trouxeram imensas
contribuições para o meu eu pensante e para minha vida profissional. Esta marca
carregarei para sempre.
Agradeço do fundo d’alma ao professor Augusto Sampaio, Vice-Reitor
Comunitário, que me deu a chance de ter feito a graduação na PUC-Rio com uma
bolsa de estudos integral durante todo o curso. A minha eterna gratidão.
Para Maria Celeste Simões Marques, professora da graduação da PUC-Rio
e minha orientadora de PIBIC/CNPq nos tempos de graduação, pelo
compromisso, dedicação, compromisso, pelos ensinamentos e incentivos; por
aguçar ainda mais o meu interesse pela pesquisa. Você é umas das responsáveis
pelo profissional que sou. A minha eterna admiração.
Aos colegas da turma de mestrado 2005/2007, especialmente, a Renata
Guimarães Franco, amiga com que pude compartilhar os momentos difíceis e
angustiantes durante a elaboração do presente trabalho. Mais que uma colega de
mestrado você tornou uma grande amiga.
Aos funcionários da Secretaria da Pós-Graduação, Anderson e Carmem,
pela solicitude e compreensão de sempre.
À amiga Ângela Maria Batista, que Deus me deu o privilégio de conhecer.
Minha amiga/irmã espiritual com quem pude contar e compartilhar tantos
momentos difíceis; sua sabedoria e força é um grande exemplo a ser seguido.
Eterna Amiga.
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À Viviane Borges, grande amiga, com aprendi o jeito carioca de ser e com
quem pude sempre contar e compartilhar as durezas de um matuto vivendo na
Cidade Maravilhosa.
À Ana Paula Sciammarella, quem tive o prazer de conhecer no primeiro
estágio nos tempos de graduação em um projeto de assessoria jurídica na Rocinha,
com quem compartilho o meu ideal pela luta dos direitos humanos dos
seguimentos marginalizados e excluídos.
Aos amigos do Balcão de Direitos, da Procuradoria Geral do Estado e da
Procuradoria Geral do Município, com quem pude conviver por longo período de
estágio durante a graduação.
À ADVOCACI – Advocacia Cidadã pelos Direitos Humanos, na pessoa de
Rosana dos Santos Alcântara e Gleyde Selma da Hora, pela oportunidade que me
foi dada em atuar na instituição como advogado consultor de pesquisas no campo
dos direitos sexuais e direitos reprodutivos. Enfim, a minha atuação nesta
instituição foi a inspiração para a realização do presente trabalho. Foi lá que
aprendi na prática que sem os direitos das mulheres os direitos humanos não são
humanos.
A todos aqueles que direta ou indiretamente, acompanharam a minha
trajetória desde os tempos de peão em Bom Jardim, interior do Estado do Rio de
Janeiro, até mestrado. Familiares e amigos, que sempre tornaram a minha
caminhada menos árdua.
A todas as pessoas que, apesar dos tempos nebulosos que vivemos, onde
impera a ideologia do capital, da exclusão social e do encarceramento, resistem e
lutam por seus ideais e nos faz acreditar que é possível viver em um mundo mais
igual e mais justo.
Agradeço, acima de tudo à Luz Superior que ilumina a minha missão, que
mais comumente, denominam de Deus, mas que prefiro chamar de Oxalá.
Com toda humildade e carinho, Muito Obrigado!
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Resumo
Emmerick, Rulian. Corpo e poder: um olhar sobre o aborto à luz dos
direitos humanos e da democracia. Rio de Janeiro. 2007, 199p.
Dissertação de Mestrado – Departamento de Direito. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.
Corpo e poder: um olhar sobre o aborto à luz dos direitos humanos e da
democracia visa abordar o fenômeno do aborto e a sua criminalização na
perspectiva do direito sob a luz do Estado democrático de direito e da construção
normativa e política dos direitos sexuais e direitos reprodutivos enquanto direitos
humanos. A tarefa é demasiadamente árdua, visto ser o tema objeto de grande
polêmica na sociedade contemporânea brasileira. No presente estudo, que se
utiliza de elementos provenientes de diversas áreas do conhecimento tais como:
do direito, da sociologia, da ciência política e da criminologia, buscamos analisar
a temática sob a perspectiva do feminino. Procurou-se ressaltar que a permanência
da prática do aborto como conduta delituosa mais que uma questão de proteção da
vida, é uma questão política imbricada no jogo de poder entre determinados atores
sociais. Ao não reconhecer às mulheres o direito à autodeterminação sobre o seu
corpo, sua sexualidade e sua reprodução o Estado nada mais faz que do violar os
direitos humanos das mulheres. A criminalização de tal prática é seletiva, uma vez
que a maioria das mulheres envolvidas com o sistema penal são oriundas dos
seguimentos pobres e marginalizados da sociedade, e ineficaz, haja vista o
irrisório número de processos pela prática do aborto, se comparada com
significativas estimativas do número de abortos praticados. Conclui-se que não há
qualquer relação entre a criminalização e o número de abortos praticados e que, na
perspectiva dos direitos humanos, da democracia e da cidadania ampliada, faz-se
necessário que tal prática seja legalizada, como forma de reconhecer o feminino
enquanto sujeito moral de direito.
Palavras Chave
Corpo; poder; biopoder; criminalização; sistema penal; aborto; direitos
sexuais; direitos reprodutivos; direitos humanos; democracia.
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Abstract
Emmerick, Rulian. Corpo e poder: um olhar sobre o aborto à luz dos direitos
humanos e da democracia. Rio de Janeiro. 2007, 199p. Dissertação de
Mestrado – Departamento de Direito. Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.
Body and power: a look at abortion under a Human Rights and Democracy
perspective aims to talk about the abortion phenomenon and its criminalization
from the Law point of view under influence of the democratic Government and
the political development of sexual and reproducing rights as human rights. This
task is an extremely hard one due to the controversial character of this matter in
the Brazilian Contemporary Society. In this study (which uses elements from
different areas, such as: Law, Sociology, Political Science, and Criminology), we
analyze the theme under a female perspective. We want to point out that the
permanent practice of abortion as a criminal act is not a life protection matter, but
a political issue tangled with the political game among determined social actors.
By not recognizing women’s rights upon their body, sexuality and reproduction,
the Government is violating women’s Human Rights. The criminalization of such
practice is selective because most of the women involved with Criminal Justice
System come from poor and marginal segments of society. The judgment of this
act is also ineffective due to the insignificant number of lawsuits against abortion
practices if compared to the high estimate of practiced abortions. We conclude
that there is no relation between criminalization and the number of abortions and
also, under Human Rights, Democracy and Citizenship perspective, it is necessary
that this practice become legal as a way to recognize female as a moral individual
of rights.
Keywords
Body; power; biopower; criminalization; Criminal Justice System; abortion;
sexual rights; reproducing rights; Human Rights; Democracy.
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Sumário
1. Introdução 12
2. Sistema penal versus democracia e direitos humanos 20
2.1. Globalização, discurso penal, controle social e direitos humanos 21
2.2. Ilegitimidade do sistema penal, os conflitos sociais e o
fenômeno do aborto 39
3. Do biopoder ao controle do corpo feminino 52
3.1. O corpo e a sexualidade como objeto do poder e do biopioder 53
3.2. O Controle do corpo da mulher e imposição do poder 62
3.3. O Controle do Feminino e o aborto no direito penal brasileiro 67
4. O aborto e os direitos humanos das mulheres 74
4.1. Justificação dos direitos humanos no mundo contemporâneo 74
4.2. A construção política e normativa dos direitos sexuais
e direitos reprodutivos enquanto direitos humanos 83
4.2.1. A construção política e normativa no plano internacional 83
4.2.2. Os avanços políticos e normativos na esfera nacional 104
4.3. Criminalização do aborto e violação de direitos humanos
das mulheres 112
5. O aborto na história recente 117
5.1. A situação do aborto na América Latina e Caribe 117
5.2. Discussão política sobre o aborto no Brasil 130
5.3. O poder simbólico da criminalização do aborto 138
5.4. Histórias não contadas: a fala das mulheres processadas 153
6. Conclusão 171
7. Referências Bibliográficas 178
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Se de todo sofrimento devemos falar com
respeito e com vergonha de não fazer todo o
possível para superá-lo, com maior razão
devemos respeitar a angústia, a agonia e o
sentimento de culpa induzidos pela
criminalização do aborto em milhões de
mulheres. O caminho sábio nunca é o mero
castigo, a penalização, mas o acompanhamento
sincero, compassivo e redentor do ser que sofre.
(...) Por trás do problema de penalizar ou não o
aborto, entram em jogo também outras
realidades humanas muito graves: a dignidade
da mulher, a injustiça social, o machismo, a
ignorância quanto à sexualidade, diferentes
atitudes culturais e morais quanto à vida, o uso
de anticoncepcionais, a moral, o papel das
autoridades civis e eclesiásticas, etc. Isso
complica e de modo geral desvia o debate,
levando-o a becos sem saída.
Luiz Pérez Aguirre
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1
Introdução
Este trabalho tem sua gênese na minha inquietação diante da desigualdade
e da exclusão social e da precária ou inexistente garantia da cidadania e dos
direitos humanos aos seguimentos historicamente marginalizados e excluídos no
Brasil, dentre eles, os negros, as mulheres e as minorias sexuais.
É bem provável que esta inquietação tenha se originado da minha história
de vida pessoal. Menino pobre, morador da zona rural de uma cidade do interior
do Estado do Rio de Janeiro, filhos de agricultores que, desde cedo conheceu e
conviveu com as dificuldades e as mazelas sociais daqueles que moram distante
de tudo: informação, educação, saúde, assistência social, etc., mas que ao mesmo
tempo teve acesso à educação e a oportunidade de conviver com as elites
interioranas, conhecendo e vivenciando os dois lados da “moeda social”.
Talvez, tal inquietação tenha sido ainda mais aguçada com a minha vinda
para a Cidade Maravilhosa, onde tive a oportunidade de conviver com a nata da
sociedade carioca e, concomitantemente, com as mazelas sociais das comunidades
pobres de uma grande metrópole, devido a minha atuação como estagiário na
Rocinha (uma das maiores favelas da América Latina), em um projeto de
orientação e assistência jurídica àqueles que, historicamente, sempre foram
excluídos do acesso à justiça. Foi nesse momento que também tive os meus
primeiros contatos com os direitos humanos, seja na minha atuação como
estagiário, seja na graduação em direito na PUC-Rio.
De forma específica, o interesse pelo tema aqui desenvolvido surgiu da
minha atuação enquanto advogado na ADVOCACI – Advocacia Cidadã pelos
Direitos Humanos, organização não-governamental sediada do Rio de Janeiro. Foi
em tal instituição que comecei a atuar na advocacia de interesse público e na
pesquisa jurídica no campo dos direitos sexuais e direitos reprodutivos, em
especial, em uma pesquisa sobre a criminalização da prática do aborto no Estado
do Rio de Janeiro. Atuei, ainda com assessoria jurídica em processos pela
violação de direitos humanos e na defesa de mulheres processadas pela prática do
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aborto. Foi então, que minha atuação e meus estudos no campo dos direitos
humanos passaram a levar em consideração o enfoque de Gênero.
Desde logo pude perceber que abordar a temática do aborto dentro do
paradigma do Estado democrático de direito e na perspectiva dos direitos
humanos era uma tarefa demasiadamente árdua, uma vez que imbricada a uma
gama de conflitos e controversas, seja pela polêmica e complexidade a que está
imersa a questão, seja pelos inúmeros aspectos que estão relacionados à
interrupção voluntária da gravidez: médico, científico, político, moral, religioso,
jurídico, dentre outros.
Ao mesmo tempo, percebi que abordar a questão seria algo apaixonante, e
realmente foi. As discussões a respeito do tema são sempre calorosas e cheias de
ambigüidades, onde os atores sociais, além de defenderem a sua bandeira de luta,
defendem, muitas vezes, a questão com as paixões inerentes a sua convicção
pessoal sobre o tema, seja pela perspectiva dos direitos das mulheres, seja pela
perspectiva da proteção da vida do feto. Além das disputas pessoais e morais, a
temática está no centro das relações de poder e de disputas políticas.
Assim, logo o tema me despertou paixões. Contudo, na presente
dissertação, enfrentamos uma série de obstáculos, seja pelo tempo exíguo para a
sua construção, seja pelo tema complexo e polêmico, sobre o qual paira inúmeros
debates e embates na sociedade contemporânea.
Devido à complexidade e amplitude da temática a ser abordada, nosso
enfoque será predominantemente jurídico e de forma tangencial, sociológico e
político. Desta forma, a abordagem aqui traçada toma como elementos, não os
aspectos éticos, morais e religiosos do aborto, mas o aspecto jurídico de sua
criminalização na perspectiva dos direitos humanos e da democracia, onde
prevalece o princípio maior da dignidade da pessoa humana.
A hipótese central deste trabalho é de que a criminalização do aborto, no
Brasil, na perspectiva dos direitos humanos e do Estado democrático de direito é
uma violação dos direitos das mulheres, uma vez que, o Estado, ao enfrentar um
problema de saúde pública através do sistema penal, que nunca protegeu o bem
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jurídico tutelado em questão, qual seja, a vida do feto, nada mais faz que intervir
na esfera individual e privada do feminino, indo na contramão dos direitos
fundamentais das mulheres, numa patente violação do direito à igualdade de
gênero.
O tema é relevante na medida em que há uma necessidade de reflexão
crítica acerca das diversas formas de dominação e repressão, que se exterioriza
por meio do controle dos corpos e da sexualidade dos indivíduos, notadamente do
corpo e da sexualidade da mulher. Pela necessidade de uma reflexão crítica acerca
da política de criminalização, em especial, da penalização da prática do aborto,
dentro do Estado democrático de direito e na perspectiva dos direitos humanos,
cujo princípio maior é a proteção da dignidade da pessoa humana. Relevante,
ainda, porque a temática do aborto vem, paulatinamente, deixando de ser um
assunto restrito às discussões no interior do movimento de mulheres e dos grupos
religiosos, às páginas policiais dos meios de comunicação, passando a ser tratado
em diferentes editoriais (ciência, política nacional e internacional, saúde, família,
cadernos especiais e outros).
À vista disso, para a realização do objeto a ser estudado, partir-se-á de
alguns pressupostos considerados relevantes a seguir elencados:
1. A tipificação de uma conduta como crime é uma questão de política
criminal, e que determinada conduta pode deixar ou não de ser crime,
dependendo dos interesses dominantes de cada sociedade em dado
momento histórico.
2. O aborto só passou a ser tipificado como crime no Brasil, por
acondicionamentos, históricos, sociológicos, antropológicos, econômicos,
políticos e religiosos, em um contexto de mudança de paradigma, qual
seja, o surgimento da Idade Moderna. Assim, nos perguntamos: por que o
aborto é considerado crime, qual a finalidade, a quem favorece, à vida de
quem?
3. O sistema penal carece de legitimidade para resolver os conflitos sociais,
notadamente em relação ao fenômeno do aborto, e que o mesmo é
incompatível com os direitos humanos, uma vez que estes assinalam um
programa realizador de igualdade de direitos de longo alcance, enquanto
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os sistemas penais são instrumentos de consagração ou cristalização da
desigualdade de direitos em todas as sociedades.
4. A proibição legal não inibe às mulheres a recorrer à prática do aborto. O
sistema penal é ineficaz para resolver a questão e sua aplicação é
distorcida e perversa, não impedindo a realização da prática, mas, ao
contrário, impelindo-a à clandestinidade.
5. Através de uma observação empírica, de estudos teóricos e da análise de
pesquisas, acreditamos não haver estreita relação entre o número de
abortos praticados, sua proibição e sua ilegalidade.
6. A criminalização da prática do aborto afeta desigualmente a vida das
mulheres pobres e as não-pobres, numa flagrante violação do princípio da
igualdade e do Estado democrático de direito, uma vez que os efeitos da
clandestinidade recaem, principalmente, sobre aquelas mulheres oriundas
das classes mais baixas da sociedade, que pagam muitas vezes, por tal
prática, com perda da vida ou com as seqüelas e mutilações irreversíveis.
7. O interesse do Estado em definir aquilo que é permitido ou não, o que
deve ser crime ou não, somente se justifica ao cumprir a sua finalidade, ou
seja, a realização do bem comum da coletividade. A legislação que intente
diminuir o número de abortos deve ser preventiva sob a perspectiva da
saúde sexual e reprodutiva e não punitiva, de forma a garantir a dignidade
da pessoa humana e os direitos fundamentais da mulher.
8. Nos casos de envolvimento com o sistema penal pela prática do aborto, tal
sistema “seleciona” as mulheres pobres, negras, moradoras das periferias e
comunidades pobres das grandes cidades desprovidas de qualquer
prestação social estatal, numa flagrante violação de direitos humanos.
9. Para o enfrentamento da prática do aborto será preciso lançar mão de
ferramentas outras, criando leis de outra natureza, ou seja, buscando outras
formas de intervenções sociais externas ao sistema penal.
Partindo destes pressupostos é que se buscará subsídios teóricos, empíricos
e estatísticos, para averiguar se a criminalização do aborto impede/inibe que as
mulheres recorram à tal prática, e até que ponto a referida criminalização é
incompatível com principio da dignidade da pessoa humana, com os direitos
humanos do feminino e com a agenda democrática.
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Na verdade um Estado que se diz comprometido com os direitos das
mulheres e com a verdadeira proteção da vida do feto e da vida da mulher deve ter
como patamar, os princípios basilares e a garantias dos direitos fundamentais de
homens e mulheres, incluindo acesso ao sistema público de saúde, com orientação
sobre sexualidade, planejamento familiar e informações sobre os métodos de
contracepção, e não com a criminalização do aborto.
Para a realização do estudo proposto, utilizar-se-á como referencial, a
concepção contemporânea dos direitos humanos e autores que abordam tanto,
historicamente, quanto na atualidade o biopoder e a questão do controle dos
corpos e da sexualidade como forma de dominação e repressão, em especial do
corpo feminino. Utilizaremos também obras de estudiosos da criminologia
abolicionista, da criminologia crítica, que fundamentam a ilegitimidade do
sistema penal enquanto meio eficaz para a resolução de conflitos e que postulam a
abolição total ou quase total do sistema penal.
Além das referências mencionadas, nos valeremos da pesquisa
bibliográfica multidisciplinar, fazendo uma revisão de bibliografia. Buscaremos
não só contribuições bibliográficas no âmbito do estudo do direito, mas na ciência
política, na sociologia, na criminologia e, eventualmente em outros campos do
conhecimento, uma vez que, para a compreensão do tema, faz-se necessário
compreender o contexto histórico, político, econômico, social e religioso no Brasil
e no exterior, face à nova ordem mundial globalizada em que se insere o
crescimento da exclusão social e o aumento da criminalização e algumas formas
de fundamentalismos.
Serão analisados, ainda, dados dos órgãos oficiais e de organizações da
sociedade civil, dados de pesquisas realizadas no Brasil e em outros países,
referentes á prática do aborto, bem como dados de organismos internacionais que
venham a contribuir para melhor aprofundamento, clareza e fundamentação da
questão proposta. Dar-se-á atenção ainda, a alguns casos judiciais emblemáticos
de mulheres que recorreram à prática do aborto e, conseqüentemente, viram-se
envolvidas com o sistema penal e, algumas vezes, foram presas de forma
arbitrária, em patente violação do princípio do processo legal, da democracia de
dos direitos humanos.
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Em relação ao espaço temporal trabalhar-se-á em uma perspectiva história
para que possamos constatar as permanências e rupturas em relação a
criminalização do aborto no Brasil, desde o Brasil Colônia, perpassando pelo
Brasil Império, pelo Brasil República, até a contemporaneidade. No entanto,
trabalhar-se-á, mais profundamente a questão do aborto e sua criminalização a
partir das décadas de 60 e 70 do século XX, ou seja, no contexto daquilo que
denominamos de história recente, e que é denominada por alguns autores como
sociedade pós-moderna.
Para a realização do que está sendo proposto, o trabalho será dividido em
quatro capítulos, sendo cada capítulo, composto de subitens. Com essa divisão
pretende-se dar conta do que delimitamos no presente trabalho
No primeiro capítulo abordaremos o sistema penal na perspectiva dos
direitos humanos. Para tal empreitada, inicialmente, daremos atenção ao
fenômeno da globalização e do neoliberalismo, tendo como fonte principal os
estudos de Boaventura de Souza Santos e de Zigmunt Bauman, analisando as
imbricações entre globalização, discurso penal, controle social, direitos humanos e
a questão feminina que, conforme defenderemos, são temas embicados e fazem
parte de um todo complexo, fruto das transformações sociais na sociedade
contemporânea.
A partir da observação empírica e de estudos teóricos de autores da
criminologia abolicionista e da criminologia crítica, alisaremos o porquê da
incompatibilidade do sistema penal com os direitos humanos e a ilegitimidade e
ineficácia de tal sistema em dar respostas satisfatórias na resolução dos conflitos
sociais, uma vez que a sua lógica é excludente, seletiva e controlista, sendo usado,
regra geral, para combater os desregramentos das “classes subalternas” da
sociedade. Analisaremos, ainda como em relação ao conflito do crime de aborto, o
sistema penal é ainda mais ilegítimo e ineficaz para dar conta de tal fenômeno,
uma vez que sua prática não tem relação intrínseca com a ilegalidade e
criminalização.
No capítulo II será abordado, com base em estudos historiográficos e
sociológicos e em bibliografia contemporânea, a questão do biopoder, do controle
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dos corpos e da sexualidade, com ênfase no controle sobre o corpo e a sexualidade
da mulher. Buscaremos constatar que tal controle sempre se fez presente na
história das sociedades, não passando de uma forma de dominação e repressão,
fundamentada por meio dos mais diversos discursos.
Analisaremos, ainda, o tratamento dado pelo ordenamento jurídico
brasileiro ao fenômeno do aborto desde as Ordenações de Portugal (Manuelinas
Afonsinas e Felipinas), perpassando por todos os códigos penais que já vigoraram
no Brasil até o Código Penal vigente, de 1940. Dessa forma, será possível analisar
as permanências e as rupturas em relação à criminalização do aborto, e verificar
que tal prática sempre foi utilizada pelas mulheres brasileiras para por fim a uma
gravidez indesejada. Entretanto, não foi criminalizada desde sempre, uma vez que
somente com a passagem do Brasil a categoria de Império a lei passou a dispor
sobre tal prática.
Posteriormente, no capítulo III analisaremos a construção política e
normativa dos direitos sexuais e direitos reprodutivos enquanto direitos humanos
das mulheres, para ao final abordar de que forma a permanência da prática do
aborto enquanto conduta tipificada como crime, viola tais direitos, impedindo que
as mulheres os exerçam de forma eqüitativa com os homens e tenham a garantia
da cidadania ampliada, pressuposto para a consolidação dos princípios
democráticos.
No capítulo IV analisaremos o aborto na sociedade contemporânea,
fazendo uma abordagem da criminalização de tal prática na América Latina e
Caribe, e as semelhanças entre a região e o Brasil no que diz respeito as
estimativas de abortos praticados e a respectiva criminalização.
Daremos atenção, também, à discussão política sobre o aborto nos Poderes
Legislativo, Executivo e judiciário, onde buscaremos constatar que a discussão,
não obstante a inclusão de novos atores, continua polarizada entre dois atores
sociais importantes, com posições antagônicas, ou seja, os grupos religiosos e o
movimento de mulheres.
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Abordaremos, ainda, como a criminalização do aborto, no Brasil, exerce
apenas um poder simbólico, uma vez que a interrupção da gravidez é uma prática
largamente utilizada na nossa sociedade. Não obstante, há um baixo índice de
criminalização, pois a lei penal somente é aplicada em poucos e seletivos casos,
tendo como clientela, regra geral, mulheres jovens, pobres, negras ou pardas, com
baixa escolaridade, solteiras, com relações precárias de trabalho, moradoras da
periferia e bairros pobres das grandes cidades.
Apesar do baixo índice de criminalização, a ilegalidade do aborto faz com
que milhares de mulheres pobres, que não tem condições de pagar por um
procedimento ilegal, mas seguro, são levadas a praticarem o aborto nas condições
mais desumanas possíveis, numa verdadeira violação de direitos.
Por fim, da análise de alguns processos criminais onde figuram como rés,
mulheres processadas, e através de seus depoimentos perante o sistema penal
poderemos observar que a criminalização do aborto além implicar em violação
dos direitos humanos das mulheres e ser um problema de saúde pública, é um
problema de justiça social. Somente algumas mulheres já vulneradas socialmente
foram envolvidas com o sistema penal, o que nos remete a observar que a
seletividade do sistema penal também é aplicada quando o crime em questão
refere-se a prática do aborto.
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Sistema penal versus democracia e direitos humanos
No cabaré da globalização, o estado passa por um strip-
tease e no final do espetáculo é deixado apenas as
necessidades básicas: seu poder de repressão. Com sua base
material destruída, sua soberania e independência anuladas,
sua classe política apagada, a nação-estado torna-se um
mero serviço de segurança para as mega-empresas.1
Antes de iniciarmos esta parte do trabalho é preciso indagar qual a relação
existente entre globalização, discurso penal, controle social, direitos humanos e a
questão feminina, especialmente, no que diz respeito à criminalização do aborto.
Partimos da premissa de que estas questões fazem parte de um todo, estando
estritamente interligadas.
Desta forma, vislumbramos ser necessário começar abordando a questão
do medo, uma vez que este tem sido, historicamente, a porta de entrada para a
legitimação das políticas públicas de segurança autoritárias e totalitárias e para o
controle das massas empobrecidas. Em seguida, abordaremos o fenômeno da
globalização e o neoliberalismo e suas implicações no acirramento do discurso
penal, controle social e violação dos direitos humanos, e quais são os reflexos e
conseqüências dessas transformações na sociedade brasileira.
Por fim, no contexto do acirramento do controle social formal, do aumento
do poder punitivo dos Estados e do encarceramento das massas empobrecidas,
analisaremos o porquê da ilegitimidade do sistema penal para solucionar os
conflitos oriundos das relações sociais. Analisaremos, ainda a ineficiência e
ineficácia de tal sistema para prevenir e conter o suposto aumento da
criminalidade, especialmente, em relação ao fenômeno do aborto.
1
BAUMAN, Zigmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1999, p. 74.
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2.1
Globalização, discurso penal, controle social e direitos humanos
A incitação do medo sempre foi utilizada, historicamente, para a
imposição da força, da violência e para o disciplinamento dos setores
considerados perigosos nas mais deferentes sociedades. A título de exemplo pode-
se citar a inquisição, onde as mulheres foram “as preferidas”,2
a escravização dos
negros, o nazismo3
e muitos outros acontecimentos em que houve a legitimação
da barbárie, através do discurso do medo, notadamente, a partir da Era Moderna e,
em especial, no século XX.
Delumeau, em sua obra a História do Medo no Ocidente,4
aborda a
questão com brilhantismo, mostrando como a ideologia das classes dominantes
transforma-se em discursos estimulantes do medo, justificando, assim, as mais
diferentes formas de controle social e disciplinamento.
No que tange especificamente ao feminino, segundo o supracitado autor,
esta foi demonizada, seja pelo discurso da igreja, da medicina, dos juristas, seja
pela repressão do Estado, cujo objetivo último foi a sua repressão, dominação e
domesticação. Enfim, foi construído um discurso onde a mulher era associada a
um:
“mal magnífico, prazer funesto, venenosa e enganadora, a mulher foi acusada
pelo outro sexo de ter induzido na terra o pecado, a desgraça e a morte. Pandora
grega ou Eva judaica, ela cometeu a falta original ao abrir a urna que continha
todos os males ou ao comer o fruto proibido. O homem procurou um responsável
para o sofrimento, para o malogro, para o desaparecimento do paraíso terrestre, e
encontrou a mulher. Como não temer um ser que nunca é tão perigoso como
quando sorri? A caverna sexual tornou-se a fossa viscosa do inferno.” 5
Analisando a questão do medo sob a ótica do feminino, constata-se que, na
Idade Média, a incitação do medo serviu como a principal e mais eficiente forma
2
Para maior aprofundamento da questão ver: KRAMER, Heinrich, SPRENGER, James. O
martelo das feiticeiras: malleus maleficarum. 3. ed., Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos,
1991 e JULES, Michelet. A feiticeira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
3
BAUMAN, Zigmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
4
DELUMEAU, Jean, História do medo no ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
5
Ibid., p. 314.
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22
de controle das mulheres, de seus corpos e de sua sexualidade, onde a inquisição
representou o ápice de combate ao suposto perigo representado pelo feminino.6
No ocidente, em todos os contextos das relações de poder, o medo sempre
se fez presente e, através dele, sempre se justificaram os mais diversos atentados
contra a humanidade e em nome da humanidade. Massacres, guerras, genocídios,
etc., sempre foram legitimados em virtude do perigo que as classes consideradas
perigosas representam aos interesses dos detentores do poder,7
que sempre
validaram quais comportamentos eram (e são) considerados como bom e normal e
desvalidaram o que é mau, anormal e perigoso.8
É diante de perigos urgentes, que a justiça precisa ser aplicada pronta e
severamente contra os “criminosos” que, quase sempre, são identificados com os
setores marginalizados da sociedade e com as minorias étnicas, raciais e sexuais:
os índios, os negros, as mulheres, as prostitutas, as pessoas com orientação sexual
diversa da heterossexual.
Este tem sido o discurso ao longo da história, que se intensificou com o
despertar da Era Moderna, onde foram usados inúmeros instrumentos de controle
social, tais como: escola, igreja, família, mídia, etc., que estão em última instância
imbricadas ao sistema penal,9
cujo principal objetivo é a exclusão e o
confinamento de setores marginalizados da sociedade que precisam ser
controlados, disciplinados e excluídos.
6
Ver JULES, Michelet, op. cit. e KRAMER, Heinrich, SPRENGER, op. cit.
7
Para FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Ed., 1999, p.
81, “O criminoso é um inimigo interno. Esta idéia do criminoso como inimigo interno, como
indivíduo que no interior da sociedade rompeu o pacto que havia teoricamente estabelecido, é uma
definição nova e capital na história da teoria do crime e da penalidade.”
8
Esta distinção entre normal e anormal está estritamente ligada ao surgimento da Era Moderna
com os seus novos paradigmas tecnológicos e científicos.
9
Importante aqui, é salientar o surgimento das prisões. Segundo Foucault, op. cit., p. 84, “A prisão
não pertence ao projeto teórico da reforma da penalidade do século XVIII. Surge no início do
século XIX, como uma instituição de fato, quase sem justificação teórica. Não só a prisão – pena
que vai efetivamente se generalizar no século XIX – não estava prevista no programa do século
XVIII, como também a legislação penal vai sofrer uma inflexão formidável com relação ao que
estava estabelecido na teoria. Com efeito, a legislação penal, desde o início do século XIX e de
forma cada vez mais rápida e acelerada durante todo o século, vai se desviar do que podemos
chamar de utilidade social; ela não procurará mais visar ao que é socialmente útil, mas, pelo
contrário, procurará ajustar-se ao indivíduo.”
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Delumeau, em sua brilhante obra, aborda com profundidade e astúcia a
história do medo no ocidente, salientando que:
“É o medo que explica a ação persecutória em todas as direções, conduzidas pelo
poder político-religioso, na maior parte dos países da Europa no começo da Idade
Moderna. Foi preciso em seguida chegar aos totalitarismos de direita e esquerda
do século XX para reencontrar – em escala bem maior! – obsessões comparáveis
no escalão dos corpos dirigentes e inquisições de mesmo tipo no nível dos
perseguidos.”10
Para que as classes dominantes ascendam e permaneçam no poder, faz-se
necessário usar todos os mecanismos e instrumentos que estimulem a sensação de
insegurança, de perigo e de medo na sociedade e, que em conseqüência, legitimem
o uso da força, da violência, da exclusão e do extermínio, sob o argumento de
combater os perigos que rondam e assolam os “homens de bem”.11
Especificamente sobre o medo na sociedade brasileira, ilustrativa é a obra
de Vera Malaguti Batista, intitulada O Medo na Cidade do Rio de Janeiro, que
aborda as rupturas e permanências sobre a questão do medo no Brasil Império e
na sociedade contemporânea brasileira.12
Na sociedade contemporânea, a incitação do medo não se restringe mais
somente à mulher e aos seus corpos indecifráveis, uma vez que foram incluídos no
“rol dos perigosos”, os excluídos da sociedade de consumo, os consumidores
falhos,13
que são tratados como lixo humano, devendo ser depositados no
armazém de dejetos sociais, qual seja, a prisão.14
Como salienta Batista:15
“Na atual conjuntura da revolução técno-científicas observamos o
enfraquecimento do Estado com o colapso das políticas públicas, o aumento do
desemprego e do subemprego, o rebaixamento dos salários e da renda per capita.
Todo esse quadro neoliberal atinge níveis ainda mais dramáticos na
marginalização profunda das classes urbanas. Estas massas urbanas empobrecidas
num quadro de redução da classe operária, de pobreza absoluta, sem um projeto
10
DELUMEAU, Jean, História do medo no ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada, p. 394.
11
Sobre a criminalização dos tipos de perigos no Brasil ver: CABRAL, Juliana. Os tipos e a pós-
modernidade: uma contextualização histórica da proliferação dos tipos de perigo no Brasil
contemporâneo. Rio de Janeiro: Revan, 2005.
12
BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história.
Rio de Janeiro: Revan, 2003.
13
Expressão usada por BAUMAN, Zigmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
14
Ver WACQUANT, Loic. Punir os pobres, a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 2. ed.
Rio de Janeiro: Revan, 2003.
15
BATISTA, Vera Malaguti, op. cit, p. 102.
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educacional, sem condições sanitárias, sem moradia, são a clientela de um
sistema penal que reprime através do aumento de presos sem condenação, dos
fuzilamentos sem processo, da atuação constante dos grupos de extermínio.”
É neste contexto, onde impera a globalização e o neoliberalismo, com
conseqüências econômicas, políticas e sociais nefastas, que o discurso penal
ganha maior dimensão. Tal tema torna-se central na pauta de discussão (no Brasil
e na América Latina) dos políticos, dos empresários, da mídia e da sociedade
como um todo, tendo conseqüências profundas no que diz respeito ao Estado
democrático de direito e aos direitos humanos.
Se voltarmos no tempo, vitrificaremos que a origem do discurso
legitimador do sistema penal, foi, desde sempre, uma estratégia segregadora,
excludente e repressiva para a legitimação e disciplinamento de determinados
seguimentos da sociedade ocidental.16
Todavia, é no contexto do fenômeno da globalização e do neoliberalismo,
mais especificamente a partir da década de 70 do século XX, que a questão ganha
nova roupagem, notadamente, por inspiração no modelo norte americano. O
discurso penal tem sido cada vez mais intensificado na sociedade contemporânea,
cujo objetivo é dar conta dos novos conflitos sociais oriundos do agravamento da
pobreza e da desigualdade social. “Os donos do poder”, entre eles as elites
políticas, os empresários, os estudiosos de direita (e muitas vezes o de esquerda
também) e inúmeros setores da sociedade, intencionalmente e, na maior parte das
vezes, através dos meios de comunicação e outros meios de controle social,
solidificam a ideologia do sistema penal como o instrumento legítimo e eficaz
para resolver todos os conflitos e desestruturações sociais, causadas,
principalmente, pelo modelo de acumulação de capital contemporâneo.
Tal fato, como já referido, está estritamente relacionado às recentes
transformações oriundas do fenômeno da globalização, do neoliberalismo e das
novas formas de acumulação de capital, culminando na intensificação do processo
de reforma e transformação dos estados nacionais, desmantelando o tripé (o auto-
16
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.
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governo, a auto-administração e a soberania) nos quais os referidos Estados se
sustentavam.17
Segundo Wacquant:18
“A destruição deliberada do Estado social e a hipertrofia súbita do Estado penal
transatlântico no curso do último quarto de século são dois desenvolvimentos
concomitantes e complementares. (...) Prender os pobres apresenta na verdade a
imensa vantagem de ser mais ‘visível’ para o eleitorado: os resultados da
operação são tangíveis e facilmente mensuráveis (tantos prisioneiros a mais);
seus custos são poucos conhecidos e nunca submetidos a debate público,
quando não são simplesmente apresentados como ganhos pelo fato de
‘reduzirem’ o custo do crime. O tratamento penal da pobreza é além disso
dotado de uma carga moral positiva, enquanto a questão do ‘welfare’ está,
desde o início, manchada pela imoralidade.”
Esta ideologia de encarceramento em massa de setores pobres, construída
e, inicialmente, aplicada nos Estados Unidos tem sido, progressivamente,
implantada nas mais diferentes partes do mundo, inclusive na América Latina,
onde se insere o Brasil.
Todavia, antes de abordarmos especificamente a questão na sociedade
brasileira, faz-se necessário avançar sobre o que entendemos por globalização e
por neoliberalismo, uma vez que vislumbramos ser esses os principais fenômenos
responsáveis pelo agravamento da situação econômica e social de homens e
mulheres na sociedade contemporânea. Para tal abordagem, comungaremos com o
pensamento de Boaventura de Souza Santos e de Zigmunt Bauman, dois
pensadores, que a nosso ver abordam a questão de forma brilhante, atual e em
profundidade.
Para Santos,19
a globalização é um fenômeno multifacetado com
dimensões econômicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas de modo
complexo que:
17
BAUMAN, Zigmunt. A globalização: conseqüências humanas, p. 71-72, salienta que “Os três
pés do “tripé da soberania” foram quebrados sem esperança de conserto. A auto-suficiência
militar, econômica e cultural do Estado – de qualquer Estado -, sua própria auto-sustentação,
deixou de ser uma perspectiva viável. Para preservar sua capacidade de policiar a lei e a ordem, os
Estados tiveram que buscar alianças e entregar voluntariamente pedaços cada vez maiores de sua
soberania.”
18
WACQUANT, Loic. Punir os pobres, a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 2. ed. Rio
de Janeiro: Revan, 2003, p. 55 e 87.
19
SANTOS, Boaventura de Souza. Uma concepção multicultural de direitos humanos. Lua Nova,
Revista de Cultura e Política, n. 39, p. 107, 1997, salienta “que aquilo que se designa por
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“Interage de modo muito diversificado com outras transformações no sistema
mundial que lhe são concomitantes, tais como o aumento dramático das
desigualdades entre países ricos e pobres e, no interior de cada país, entre ricos e
pobres, a sobrepopulação, a catástrofe ambiental, os conflitos étnicos, a migração
internacional massiva, a emergência de novos Estados a falência e a implosão de
outros (...).”20
A globalização não é um fenômeno linear e consensual, mas um campo de
conflitos entre grupos sociais, necessitando de um campo hegemônico imposto
através dos Estados poderosos, que atua na base de um consenso neoliberal
(Consenso de Washington), que foi imposto pelos Estados centrais do sistema
mundial. Todavia este consenso está relativamente fragilizado, diante de
divergências no interior do campo hegemônico.
“Os traços principais desta nova economia mundial são os seguintes: economia
dominada pelo sistema financeiro e pelo investimento à escala global; processos
de produção flexíveis e multilocais; baixos custos de transporte; revolução nas
tecnologias de informação e comunicação; desregulação das economias
nacionais; preeminências das agências financeiras multilaterais; emergência de
três grandes capitalismos transnacionais: o americano (...), o japonês (...) e o
europeu.”
21
Nesta perspectiva as economias nacionais devem ser transformadas a fim
de abrir-se ao mercado mundial, dando prioridade á economia de exportação,
reduzindo a inflação, a dívida pública, os gastos a serem investidos na proteção
social e, conseqüentemente, reduzindo o peso das políticas sociais no orçamento
do Estado. Para isso, impuseram-se restrições drásticas à regulação estatal,
subordinando os Estados nacionais às agências multilaterais (Banco Mundial,
Fundo Monetário Internacional, Organização Mundial do Comércio, dentre
outras).22
Dentro desse novo contexto, os países da periferia são os que mais sofrem
e os que estão mais sujeitos às novas imposições neoliberais e mais vulneráveis às
globalização são de fato, conjuntos diferenciados de relações sociais; diferentes conjuntos de
relações sociais dão origem a diferentes fenômenos de globalização.”
20
SANTOS, Boaventura de Souza. Os processos de globalização. In: __ SANTOS, Boaventura de
Souza. A globalização e as ciências sociais. São Paulo: Cortez, 2002, p. 26.
21
Ibid., p. 29.
22
Segundo BAUMAN, Zigmunt. A globalização: as conseqüências humanas, p. 76, os “Estados
fracos são precisamente o que a Nova Ordem Mundial, com muita freqüência encarada como
suspeita como uma nova desordem mundial, precisa para sustentar-se e reproduzir-se. Quase-
Estados, Estados fracos podem ser facilmente reduzidos ao (útil) papel de distritos policiais locais
que garantem o nível médio de ordem necessário para a realização de negócios, mas não precisam
ser temidos como freios eletivos á liberdade das empresas globais.”
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decisões dos centros de poder. O fenômeno da globalização tem repercutido
significativamente nos mais diferentes âmbitos das relações sociais, contribuindo
de forma demasiada para o agravamento das desigualdades sociais e para o
agravamento da precarização das condições de vida dos seguimentos,
historicamente, excluídos desses países.
“O aumento das desigualdades tem sido tão acelerado e tão grande que é
adequado ver as últimas décadas como uma revolta das elites contra as
redistribuições da riqueza com a qual se põe fim ao período de certa
democratização da riqueza iniciado no final da segunda guerra mundial. (...) Os
valores dos três mais ricos bilionários do mundo excedem a soma do produto
interno bruto de todos os países menos desenvolvidos do mundo onde vivem 600
milhões de pessoas.”
23
Vê-se assim, que a partir da implantação do modelo neoliberal, a
concentração de riqueza chegou a patamares nunca vistos na história da
humanidade, sem falar na redução dos custos salariais com a liberalização do
mercado de trabalho, onde homens e mulheres não são mais reconhecidos por seu
trabalho, mas por sua capacidade de consumir.
Isso só se fez possível com o desmantelamento do Estado-nação no que se
refere às prestações sociais, através da: 1) desnacionalização do Estado, ou seja,
houve um esvaziamento do aparelho do Estado nacional, uma perca de sua
capacidade devido às reorganizações das suas funções perante ou por imposição
da comunidade internacional; 2) a desestatização dos regimes políticos, entendida
com a transformação de um modelo de regulação social e econômica assente no
papel central do Estado, para outro, assente em parcerias e em outras formas de
associação entre organizações governamentais, para-governamentais e não-
governamentais, onde o Estado tem apenas a função de mero regulador; e 3) a
internacionalização do Estado nacional, onde este teve que se adequar ao contexto
e às exigências internacionais. Segundo Santos:24
“A tendência geral consiste em substituir até ao máximo que for possível o
princípio do Estado pelo princípio do mercado e implica pressões por parte de
países centrais e das empresas multinacionais sobre os países periféricos e
semiperiféricos no sentido de adotarem ou se adequarem às transformações
jurídicas e institucionais que estão a ocorrer no centro do sistema mundial.”
23
BAUMAN, Zigmunt. Globalização: as conseqüências humanas, p. 34.
24
SANTOS, Boaventura de Souza. Os processos de globalização. In: __ SANTOS, Boaventura de
Souza. A globalização e as ciências sociais. São Paulo: Cortez, 2002, p. 39.
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No que tange á cultura, a situação é semelhante, uma vez que se tem uma
globalização, ou melhor, uma americanização ou ocidentalização dos padrões
culturais, que impõe seus valores e costumes sobre o resto do mundo, dentre eles
o individualismo, a democracia política, a racionalidade econômica, o
utilitarismo, o primado do direito, o cinema, a publicidade, a televisão, dentre
outros. Este é um dos principais projetos da modernidade, ou seja, construir uma
cultura global.
Esta intensificação de contatos transfronteiriços de novas culturas, ao
mesmo tempo em que abre um caminho para a tolerância e para a solidariedade,
faz com que surjam novas formas de intolerância, xenofobia e imperialismo,
principalmente, quando há uma imposição de cima, notadamente, dos Estados
Unidos e de outros países centrais, que através dos meios de comunicação, ditam
o que é ou não culturalmente relevante.
Para a compreensão da nova realidade social, é preciso compreender as
mudanças ocorridas no tempo-espaço, uma vez que é com essas transformações
que o fenômeno da globalização se acelera e se difunde. Nesta nova ordem há os
que ficam preso no tempo e no espaço e os extraterritoriais, mas os primeiros,
também contribuem fortemente para os processos de globalização. Exemplo disso
são “os moradores das favelas do Rio de Janeiro, que permanecem prisioneiros da
vida urbana marginal, enquanto as suas canções e suas danças, sobretudo o samba,
constituem hoje parte de uma cultura globalizada.”25
Dentro deste contexto, na perspectiva de Boaventura, pode-se afirmar
ainda que de forma geral, que a globalização desdobra-se em quatro modos de
produção, que dão origem a quatro formas de globalização.26
A primeira forma de globalização, denominada de localismo globalizado,
ocorre quando um determinado fenômeno local é globalizado com sucesso.
25
SANTOS, Boaventura de Souza. Os processos de globalização. In: __ SANTOS, Boaventura de
Souza. A globalização e as ciências sociais. São Paulo: Cortez, 2002, p. 64.
26
Segundo Boaventura, SANTOS, Boaventura de Souza. Uma concepção multicultural de direitos
humanos. Lua Nova, Revista de Cultura e Política, n. 39, p. 111, “Neste contexto é útil distinguir
entre globalização de-baixo-para-cima, ou entre globalização hegemônica e globalização contra-
hegemônica. O que eu denomino de localismo globalizado e globalismo localizado são
globalizações de cima-para-baixo; cosmopolitismo e patrimônio comum da humanidade são
globalizações de baixo-para-cima.”
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29
“Neste modo de produção de globalização o que globaliza é o vencedor de uma
luta pela apropriação ou valorização de recursos ou pelo reconhecimento da
diferença.”27
Outra forma de globalização pode ser definida como globalismo
localizado, ou seja, como o impacto sofrido nas condições locais, pelo motivo das
imposições transnacionais. A desintegração e desestruturação das condições
locais, cujo exemplo mais claro é a eliminação do comércio local, destruição dos
recursos naturais, etc. Contudo, “Os países semiperiféricos são caracterizados pela
coexistência de localismos globalizados e de globalismo localizados e pelas
tensões entre eles. O sistema mundial em transição é uma trama de globalismo
localizados e localismo globalizados.”28
A terceira forma pode ser denominada como a globalização da resistência
aos localismos globalizados e os globalismos localizados. Localismo globalizado
pode ser traduzido por cosmopolitismo, que pode ser definido como a resistência
dos Estados-nações, regiões, classes sociais e grupos sociais vitimizados pelas
trocas desiguais e pela busca de uma globalização não excludente, isto é,
inclusiva.
Por fim, a última forma de globalização pode ser entendida como o
patrimônio comum da humanidade, ou seja, como as lutas transnacionais pela
proteção e desmercadorização de recursos, entidades, ambientes considerados
essenciais para a sobrevivência da humanidade. A principal expressão deste modo
de produção globalizado são as organizações não-governamentais de advocacia
progressista transnacional, entretanto, todos estes fenômenos são sinais de uma
sociedade civil e política global apenas emergente.
Diante dessas quatro formas de globalização, é preciso ressaltar que todas
as transformações nas esferas econômica, política e cultural, coloca-nos diante de
um sistema mundial em transição, com características próprias do sistema
mundial moderno. Pois:
27
SANTOS, Boaventura de Souza, A Globalização e as Ciências Sociais, p. 65.
28
Ibid., p. 66.
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30
“O sistema mundial em transição é muito complexo porque constituído por três
grandes constelações de práticas – práticas interestatais, práticas capitalistas
globais e práticas sociais e culturais transnacionais – profundamente entrelaçadas
segundo dinâmicas indeterminadas. Trata-se, pois, de um período de grande
abertura e indefinição, um período de bifurcação cujas transformações futuras são
imperscrutáveis. A própria natureza do sistema mundial em transição é
problemática e a ordem possível é a ordem da desordem. Mesmo admitindo que o
novo sistema se seguirá ao atual período de transição, não é possível estabelecer
uma relação determinada entre a ordem que o sustentará e a ordem caótica do
período atual ou a ordem não caótica que a precedeu e que sustentou durante
cinco séculos o sistema mundial moderno. Nestas circunstâncias, não admira que
o período atual seja objeto de várias e contraditórias leituras.”29
Dentro deste contexto globalizado multifacetado, segundo Boaventura de
Souza Santos, presencia-se uma realidade dura e alarmante, principalmente, no
que tange á pobreza e a desigualdade social, onde os historicamente
marginalizados e excluídos são controlados pelo sistema financeiro e pelo sistema
penal.
Na mesma perspectiva de Boaventura de Souza Santos, o sociólogo
polonês, Zygmunt Bauman, aborda a questão da globalização e do neoliberalismo
com grande astúcia, notadamente, ao tratar da globalização e de suas
conseqüências na sociedade contemporânea pós-moderna.
Segundo Bauman, para a compreensão da sociedade contemporânea
globalizada e neoliberal e do progressivo aumento da exclusão social faz-se
necessário compreender as transformações ocorridas no tempo e espaço, onde se
insere a mobilidade do capital. Este se move na mais alta velocidade para onde
quer, não enfrentando limites reais, deixando a própria localidade onde está e
onde sempre esteve e, muitas vezes, com conseqüências desastrosas para a
comunidade local. 30
Diante desta nova realidade, a distância se transformou em produto social,
sendo alterada pelos novos meios de transporte e principalmente pelos meios de
comunicação e de transmissão de dados. Assim, a distância perdeu o seu
significado real, distinguindo os “que se movem”, daqueles “que são movidos”.
29
SANTOS, Boaventura de Souza, A Globalização e as Ciências Sociais, p 89.
30
Segundo BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1999, p. 16, “A mobilidade adquirida por ‘pessoas que investem’ – aquelas com capital,
com o dinheiro necessário para investir – significa uma nova desconexão sem precedentes na sua
radical incondicionalidade: obrigações com os empregados, mas também com os jovens e fracos,
com as gerações futuras e como a auto-reprodução das condições gerais de vida.
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31
“Alguns podem agora mover-se para fora da localidade – qualquer localidade –
quando quiserem. Outros, observam impotentes, a única localidade que habitam
movendo-se sobre seus pés.” 31
Dentro dessa nova realidade os detentores do poder tornam-se
extraterritoriais, não precisando, assim, se preocupar com o que ocorre com os
espaços locais, onde investiram ou irão investir. Tal fato traz como conseqüência,
o isolamento de ambas as partes, ou seja, entre ricos e pobres, pois as elites
escolheram o isolamento e pagam por ele prodigamente de boa vontade, ao
contrário, o resto da população se vê afastado e forçado a pagar o pesado preço
cultural, psicológico e político do seu novo isolamento.
Com isto, progressivamente, constata-se o desaparecimento do espaço
público, a desintegração da comunidade urbana, a separação e a segregação das
classes sociais, enfim, a extraterritorialidade da nova elite e a totalidade forçada
do resto da população. Verifica-se que os espaços públicos seguiram as elites,
soltaram de suas âncoras locais. Assim, o espaço público, na sociedade
contemporânea, vem se restringindo, tendo como conseqüência, a restrição do
debate das normas sociais reguladoras, onde os valores sociais já não são mais
confrontados e negociados, o que faz com que os vereditos decretados sobre
quaisquer assuntos venham de cima, de forma inquestionável.
Neste contexto, faz-se necessário que os indivíduos hajam de acordo com
as normas impostas dentro dos “padrões de normalidade”; aqueles que não
conseguem adaptar-se aos padrões estabelecidos devem ser confinados em prisões
ou em áreas distantes de modo a não perturbar a “normalidade”, o ideal da “cidade
perfeita”, numa total rejeição de sua história e demolição de todos os seus
vestígios palpáveis. O resultado deste modelo de sociedade tem como
conseqüência, a intolerância face à diferença, o ressentimento com os estranhos e
a exigência de isolá-los e bani-los e, por fim, a paranóica preocupação com a “lei
31
Segundo BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1999, p. 25.
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e a ordem”, que segrega e exclui os “fora da lei”: negros, pobres, mulheres e
minorias sexuais e étnicas. Para Bauman: 32
“A garantia de segurança tende a se configurar na ausência de vizinhos com
pensamentos, atitudes e aparência diferentes. A uniformidade alimenta a
conformidade e a outra face da conformidade é a intolerância. Numa localidade
homogênea é extremamente difícil adquirir as qualidades de caráter e habilidades
necessárias para lidar com a diferença humana e situações de incerteza; e na
ausência dessas habilidades e qualidades é facílimo temer o outro, simplesmente
por ser outro.”
O medo e a insegurança na sociedade contemporânea não são
compreendidos como problema coletivo, mas sim como problema individual.
Exemplo disso é a construção dos bairros fechados e vigiados, dos espaços
públicos com ampla proteção para afastar os concidadãos indesejados e
“perigosos”, tornando-se uma estratégia extremamente segregadora,
principalmente nos grandes centros urbanos.
Neste cenário, a única forma de inclusão é através da capacidade de
consumo, que são avaliadas através de informações eletrônicas; avaliam-se os
consumidores confiáveis, eliminando todo o restante que não deve ser levado em
conta no jogo do consumo.
Na atual sociedade de consumo há um dilema se é necessário consumir
para viver ou se o homem vive para consumir. Contudo, “Todo mundo pode ser
lançado na moda do consumo; todo mundo pode desejar ser um consumidor e
aproveitar as oportunidades que esse modo de vida oferece. Mas nem todo mundo
pode ser um consumidor.” 33
O que se constata é uma grande diferenciação entre o
mundo daqueles chamados cosmopolitas e extraterritoriais, ou seja, os homens de
negócio, os controladores do capital e da cultura, onde não há fronteiras, e aqueles
presos à localidade, vigiados pelos controles de imigração e pelas políticas
públicas de “tolerância zero”.
Sobre esta questão Bauman faz uma brilhante associação da figura
daqueles que “se movem” e dos que “são movidos”, respectivamente, com a
figura do turista e do vagabundo, afirmando que não há turistas sem vagabundos,
32
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 1999, p. 55.
33
, Ibidm, p. 94.
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33
e os turistas não podem ficar à solta se os vagabundos não forem presos. Para o
autor: 34
“Os turistas ficam ou se vão a seu bel-prazer. Deixam um lugar quando novas
oportunidades ainda não experimentadas acenam de outra parte. Os vagabundos
sabem que não ficarão muito tempo num lugar, por mais que o desejem, pois
provavelmente em nenhum lugar onde pousem serão bem-sucedidos.”
Constata-se, assim, que na sociedade contemporânea há uma segregação
extrema entre turistas e vagabundos, ou melhor, entre ricos e pobres, aqueles cada
vez mais ricos e estes cada vez mais pobres e indesejados por aqueles, “Os turistas
têm horror dos vagabundos pela mesmíssima razão que os vagabundos encaram
os turistas como gurus e ídolos: na sociedade dos viajantes, na sociedade viajante,
o turismo e a vagabundagem são as duas faces da mesma moeda.”35
Assim, o mundo sonhado seria um mundo sem “vagabundos”, um mundo
no qual vigorasse a paz tão sonhada, sem perturbações e sem inseguranças,
imperando a lei e a ordem, já que:
“A política da sociedade dos turistas pode ser em grande parte explicada – como
a obsessão com ‘a lei e a ordem’, a criminalização da pobreza, o recorrente
extermínio dos parasitas etc. – como um esforço contínuo e obstinado para elevar
a realidade social, contra todas as evidências, ao nível dessa utopia.”36
Com esta nova divisão entre elite e povo, rico e pobre, turista e vagabundo,
oriunda, principalmente, dos efeitos da globalização e do neoliberalismo,
constata-se uma grande desestruturação das relações sociais no seio da sociedade.
Para a solução de tal problema, o principal instrumento de controle social a ser
colocado em prática é o sistema penal, criminalizando e excluindo os pobres.
Nesta nova realidade, para a liberdade de uns (da elite) faz-se imperativo a
supressão da liberdade de outros (dos pobres e excluídos). A supressão da
liberdade destes se dá, primordialmente, através do confinamento espacial, do
encarceramento sob os variados graus de severidade e rigor. É como se tivesse
descoberto a fórmula mágica para lidar com os setores inassimiláveis e
34
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas, p. 101.
35
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas, p. 105.
36
Ibid., p. 106.
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34
problemáticos da população, difíceis de controlar.”37
Este meio de controle social
é o mais usado para reagir à diferença, particularmente, à diferença que não pode
ser acomodada na rede habitual das relações sociais.
Na sociedade disciplinar teorizada por Foucault,38
o controle social
expressava-se através do disciplinamento, inspirado no panóptico, onde as prisões
e as casas de correção são os exemplos mais significativos, cujo propósito era a
recuperação moral para o retorno ao convívio na sociedade normal, combater a
preguiça, a indiferença pelas normas sociais, etc. As casas panópticas de
confinamento eram fábricas de trabalho disciplinado, e sempre foi discutido esse
propósito de reabilitação dos presos. Na sociedade contemporânea com as novas
técnicas de controle social e dominação, as prisões e o confinamento não são mais
usados com o falso objetivo reabilitador, mas, expressamente, como exclusão
social daqueles que não assimilam as políticas públicas de “lei e ordem” impostas.
Pois:
“Nas atuais circunstâncias, o confinamento é antes uma alternativa ao emprego,
uma maneira de utilizar ou neutralizar uma parcela considerável da população
que não é necessária à produção e para qual não há trabalho ao qual se
reintegrar.(...) A prisão tem hoje a função de exclusão de pessoas habituadas a
sua condição de excluídas. A marca dos excluídos na era da compreensão espaço-
temporal é a imobilidade.(...) A questão é tanto mais preocupante do ponto de
vista ético pelo fato de que aqueles que punimos são em larga medida pessoas
pobres e extremamente estigmatizadas que precisam mais de assistência do que
punição.”39
No mundo contemporâneo cresce o número de pessoas na prisão, em quase
todos os países, e os gastos com o aparato policial e com as “forças de lei e
ordem” crescem em todo planeta, o que mostra que há amplos setores da
população visados por ameaçarem a nova ordem social estabelecida. O
encarceramento das massas empobrecidas e excluídas tem sido usado como
instrumento de controle social eficiente para neutralizar ou acalmar a ansiedade
pública, provocada pela ameaça de setores “desviados” da população.
Outro fator importante é o espetáculo que se faz nos meios de
comunicação quando o tema é violência ou (in)segurança. A estratégia é criar uma
37
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas, p. 114.
38
Para maior aprofundamento sobre a sociedade disciplinar ver: FOUCAULT, Michel. Vigiar e
punir: nascimento da prisão. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.
39
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas, p. 123.
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sensação de perigo e medo constantes, amedrontando e aterrorizando a população,
cujo objetivo último, é legitimar a criação de políticas públicas de segurança
repressivas e militarizadas, violando os direitos humanos das massas
empobrecidas e excluídas do novo modelo de acumulação de capital. Como
salienta Bauman: 40
“Ninguém os acusaria também de indolência e de não fazer nada relevante pelas
ansiedades humanas ao ver diariamente os documentários, dramas, docudramas e
dramas cuidadosamente encenados sob o disfarce de documentários contando
histórias de novas e melhoradas armas da polícia, fechaduras high-tech de prisão,
alarmes contra assalto e roubo de carros, tortura de criminosos com choques
curtos e fortes e os corajosos agentes e detetives arriscando as vidas para que o
restante das pessoas possam dormir em paz.”
Nesta perspectiva, crescem, progressivamente, as infrações tipificadas
como crime e puníveis com prisão, sem falar no aumento das penas dos crimes
considerados como hediondos, onde o criminoso, regra geral, cumpre,
integralmente, a pena em regime fechado nos “presídios de segurança máxima”.
Dentre muitas outras questões, as políticas de “tolerância zero” e as estratégias de
segurança máxima têm o condão de aumentar a popularidade dos governos, pois
mostra que os governantes ainda são capazes de fazer algo pela segurança da
população. Isso porque:
“No mundo das finanças globais, os governos detêm pouco mais que o papel de
distritos policiais superdimensionados; a quantidade e qualidade dos policiais em
serviço, varrendo os mendigos, perturbadores e ladrões das ruas, e a firmeza dos
muros das prisões assomam entre os principais fatores de ‘confiança dos
investidores’ e, portanto, entre os dados principais considerados quando são
tomadas decisões de investir ou de retirar um investimento. Fazer o melhor
policial possível é a melhor coisa que o Estado pode fazer para atrair o capital
nômade a investir no bem-estar dos seus súditos.”
41
Todo este ambiente de “lei e ordem”, fortemente manipulado pela mídia,
cujo objetivo maior é criar uma constante sensação de perigo, tem como principal
conseqüência tornar as pessoas entusiastas naturais das sentenças de prisão e de
condenações com penas cada vez mais altas. Tudo combina muito bem e restaura
a lógica ao caos da existência. Todavia, há uma seletividade desta política de “lei
e ordem”, pois “as ações mais prováveis de serem cometidas por pessoas para as
40
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas, p. 127.
41
Ibid, p. 128.
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36
quais não há lugar na ordem, pelos pobres diabos tiranizados, têm a melhor
chance de aparecer no código criminal.”42
Enfim, na sociedade contemporânea, denominada pós-moderna, há um
recrudescimento penal sobre os “fora da ordem”, ao passo que os grandes
fraudadores e outros crimes de colarinho branco não são alvos de espetáculo como
se faz nos julgamentos de pobres coitados, dos consumidores falhos.
É neste contexto da sociedade contemporânea globalizada e multifacetada
que insere a América Latina, região em desenvolvimento, com um triste passado
de autoritarismo, de desigualdade e de exclusão social.
No diz que respeito ao Brasil, país que compõe a referida região, a
situação não é diversa do restante dos países da América Latina. Neste país, a
desigualdade e a exclusão social são uma das mais graves do mundo. Diante
disso, os princípios da democracia e a garantia da cidadania e dos direitos
humanos são constantemente colocados em questão, principalmente, pelo
fortalecimento dos mecanismos penais. O que se presencia, assim, é progressiva
erosão do Estado prestacional, no Brasil, e a implantação de Estado penal
máximo, onde a solução para os problemas sociais é a adoção de uma política de
encarceramento em massa dos setores pobres da população, considerados
indesejáveis e perigosos. A violência e a criminalidade são encaradas como um
problema a ser resolvido pelo sistema penal e pela “mão invisível” do mercado.
Para a solução dos complexos desajustes sociais da sociedade contemporânea,
lança-se mão do mercado ou do aprisionamento como as únicas possibilidades de
“salvação”, ou seja, de garantir a segurança e a paz social, algo cada dia mais
exigido pelas classes dominantes brasileiras, e talvez por toda a sociedade.43
O Brasil, enquanto país periférico e em desenvolvimento, bem como em
toda América Latina, as conseqüências da globalização e do neoliberalismo
fizeram-se mais expressivas, refletindo intensamente nas prestações sociais às
quais os Estados estão legalmente obrigados. Os exemplos mais significativos
42
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas, p. 131.
43
Ver WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001,
WACQUANT, Loic. Os condenados da cidade: estudos sobre marginalidade avançada. Rio de
Janeiro: Revan/FASE, 2001, 2. ed. Setembro de 2005 e WACQUANT, Loic. Punir os pobres, a
nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
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destas conseqüências são a flexibilização e precarização da força de trabalho,
resultando em graves desestruturações sociais, aumentos da exclusão e da
desigualdade social. Acrescente a isso, os desmantelamentos dos serviços
públicos, principalmente, saúde, educação e assistência social, causados pelos
ajustes fiscais em prol do fortalecimento da estabilidade econômica.
Para controlar os desajustes sociais da nossa sociedade usa-se, também,
como remédio, o encarceramento dos setores pobres da sociedade, que em nossas
prisões pode ser percebido a olho nu, independente das estatísticas dos órgãos de
segurança pública. Basta que se olhe para as nossas instituições prisionais, para se
constatar que estão povoadas de pobres, em sua maioria negros, afro-descendentes
e migrantes nordestinos. Tal questão está associada à reforma do Estado
brasileiro, cujo objetivo maior foi cumprir as exigências internacionais. Contudo,
parece que estamos diante de um paradoxo, uma vez que tal processo de
encarceramento se dá, concomitantemente, com o processo de redemocratização e
consolidação da democracia no Brasil,
Acreditamos, assim, que as transformações ocorridas nas esferas da
produção e do consumo e, conseqüentemente, nas políticas de segurança têm
efeitos sobre a democracia, a cidadania, a criminalidade e os direitos humanos,
uma vez que o novo ponto referencial para a tomada de decisões políticas não é
mais a pessoa humana, mas os interesses do mercado e, respectivamente, do lucro.
Paradoxalmente, no Brasil, o que se presencia, principalmente nas duas últimas
décadas do século XX, no contexto da promulgação da Constituição Federal de
1988 e da democratização, é a permanência da violação dos direitos fundamentais,
da cidadania e dos direitos humanos.
Em nosso país as políticas neoliberais tentam não só diminuir o poder do
Estado, mas redesenhar os novos papéis desse Estado e da sociedade civil, pondo
na mesa outra vez o contrato social, tentando excluir as ordens mais baixas de sua
órbita, pois, aos pobres, na grande maioria das vezes, somente é garantida a
cidadania negativa,44
já que estes somente são reconhecidos pelo Estado através
44
BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 57, comenta que o termo cidadania negativa foi usado por Nilo
Batista. Segundo a autora a concepção de cidadania negativa “se restringe ao conhecimento e
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dos órgãos policiais/judiciários e, quase nunca, pela prestação adequada de
serviços de educação, saúde, assistência social, etc. Em suma, o que se presencia é
o desmantelamento do Estado prestacional e o fortalecimento do Estado penal
máximo, cujo objetivo é a criminalização da miséria e, que em última instância,
pode nos conduzir a um Estado totalitário.
Com a atrofia do Estado prestacional e a hipertrofia do Estado penal,
presencia-se, no Brasil, a adoção de uma política pública de segurança inspirada
na política do “tolerância zero”, nos moldes americanos, onde há o
aprisionamento maciço dos pobres, dos inúteis e dos submissos, dos consumidores
falhos. Neste contexto, presencia-se a permanência das mais diversas violações
dos direitos de cidadania e dos direitos humanos, em patente afronta ao Estado
democrático de direito.
As transformações presenciadas em nossa sociedade, notadamente, nas
últimas duas décadas, têm repercussões dramáticas para os setores historicamente
pobres e excluídos. Tudo leva a crer que essas transformações têm afetado de
forma ainda mais acentuada as mulheres, que histórica e culturalmente, sempre
foram as mais excluídas e sofreram, mais acentuadamente, as conseqüências da
pobreza, da exclusão social e das precárias políticas públicas de saúde, educação,
assistência social, etc.
Assim, em que pese as conquistas obtidas pelas mulheres no que diz
respeito aos direitos humanos e à cidadania, nas últimas décadas, seu status
enquanto sujeito de direito ainda é desfavorável e, por sua vez, as transformações
econômicas sociais, fruto do fenômeno da globalização e do neoliberalismo, vem
repercutindo de forma negativa nas suas vidas e em seus direitos. Tal fato torna-se
ainda mais complexo e desfavorável às mulheres na medida em que os Estados
vem perdendo, progressivamente, a sua capacidade de prestação social.
Tal questão torna-se ainda mais agravada quando se fala na garantia dos
direitos sexuais e direitos reprodutivos das mulheres, que demandam políticas
públicas específicas no sentido de garantir tais direitos. Deste modo, como as
exercício dos limites formais à intervenção do Estado. Esses setores vulneráveis, ontem escravos,
hoje massas marginais urbanas, só conhecem a cidadania pelo avesso, na ‘trincheira auto-
defensiva’ da opressão dos organismos do nosso sistema penal.”
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garantias sociais vêm sendo substituídas pelo controle social formal, torna-se
ainda, mais difícil avançar no enfrentamento do fenômeno do aborto enquanto
questão de saúde pública. Assim, a criminalização de tal prática mostra-se,
simbolicamente, como o mecanismo para a prevenção de tal conduta delituosa,
resultando em conseqüências negativas significativas no que diz respeito aos
princípios democráticos e à promoção e garantia da cidadania e dos direitos
humanos.
2.2
Ilegitimidade do sistema penal, os conflitos sociais e o fenômeno do
aborto
Conforme tivemos oportunidade de abordar acima, presencia-se,
progressivamente, nas últimas duas décadas o desmantelamento das bases dos
Estados nacionais e, em conseqüência, o declínio das prestações sociais, o
aumento da pobreza, da exclusão social, o crescimento das políticas de segurança
pública autoritárias/totalitárias e o aumento progressivo do encarceramento das
massas empobrecidas como a solução para conter e solucionar os desajustes e
conflitos sociais.
No contexto de insegurança econômica e social em que se presencia
grandes desajustes nas relações sociais, a intensificação dos instrumentos de
controle social é o meio simbólico mais eficaz de afirmar a necessidade de se
impor a lei e a ordem, justificando, assim, o progressivo aumento do poder de
punição dos Estados, regra geral, dos seguimentos pobres, já condenados pela
impossibilidade de acesso às necessidades básicas de acesso à moradia, saúde,
educação trabalho, assistência social. Enfim, já condenados pela miséria.
Na sociedade contemporânea, presencia-se uma falaciosa crença que o
sistema penal seria o mecanismo eficiente e eficaz para a solução dos conflitos
sociais.45
Tal fato se dá no contexto do discurso ideológico do aumento
progressivo da criminalização em detrimento das políticas sociais (veiculada,
45
Ver ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal
brasileiro. Parte geral, 5. ed., rev. e atual. São Paulo: Editora Revistas dos Tribunais, 2004 e
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema
penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.
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principalmente pelos meios de comunicação) e seu falso argumento, perpassa toda
a sociedade, fazendo parte do senso comum da grande maioria dos indivíduos.
Esse discurso (do direito penal máximo) vem sendo usado como o único ou
principal discurso, seja nos crimes em geral, seja em relação ao crime de aborto,
crime esse, polêmico, que envolve não só questões jurídicas, mas também
questões éticas, morais e religiosas. Como brilhantemente salienta Karam:46
“A associação da idéia de crime a algo misterioso, poderoso e incontrolável por
meios regulares, através da manipulação da linguagem, decerto, não é nova. O
discurso demonizador que, hoje, se vale especialmente das ocas expressões
‘criminalidade organizada’ e ‘narcotráfico’, para viabilizar legislações de
exceção, outrora já se valeu das expressões ‘bruxarias’ e ‘heresia’, que, na sua
época, eram igualmente apresentadas como um ‘mal universal’, a ser enfrentado
com medidas excepcionais. A novidade nestes tempos pós-modernos, é o
significativo reforço distorcido, dramático e demonizador discurso da repressão
penal, dado pelo eco advindo da intensificada divulgação pelos meios massivos
de informação de condutas socialmente negativas ou conflituosas qualificadas
como crime.”
Acreditamos que este contexto de aumento da hipertrofia do sistema penal
é um paradoxo dentro do paradigma da democracia e dos direitos humanos. Desta
forma, comungando com o pensamento de estudiosos e pensadores da
criminologia crítica e da criminologia abolicionista, partiremos da premissa de
que o sistema penal é ilegítimo e ineficaz para resolver os desajustes e conflitos
sociais, oriundos da sociedade contemporânea.
A lógica do referido sistema é excludente e segregadora, sendo
incompatível com os princípios e a filosofia de promoção e proteção de direitos
humanos e com os pressupostos fundamentais do Estado democrático de direito.
Assim, a ampliação do poder punitivo do Estado tem implicações relacionadas
com os regimes de exceção que se expressa através da produção de leis que
violam as garantias e direitos fundamentais dispostos na Constituição.47
Não podemos nos esquecer, ainda, que a tipificação de uma conduta como
crime não é algo natural, imutável e absoluto, mas é, antes de tudo, uma questão
de política criminal. Um determinado comportamento social passa ou deixa de ser
46
KARAM, Maria Lúcia. Pela abolição do sistema penal. In: __ PASSETI, Edson (coord.). Curso
livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 77.
47
Para maior aprofundamento sobre tema Estado de exceção ver: AGAMBEN, Giorgio. Estado de
exceção. São Paulo: Boitempo, 2005.
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crime de acordo com os interesses dominantes em diferentes momentos históricos.
Isso porque o conceito de ordem, desordem, crime e castigo são conceitos
dinâmicos, construídos nos diferentes momentos históricos, de acordo com os
interesses políticos e econômicos da classe dominante que, regra geral, tipificam
como crime os atos que são mais comumente praticados pelos seguimentos
desprivilegiados da sociedade.48
Sendo assim, consideramos o sistema penal como um instrumento formal
de controle social e da manutenção do status quo, que funciona de forma eficiente
em seu objetivo oculto de selecionar e excluir os seguimentos despossuídos da
sociedade. É sobre os historicamente pobres e excluídos que sempre foi aplicado o
rigor da lei penal e o rigor das ações do sistema penal, pois mais relevante do que
a prática da conduta criminosa, é quem a praticou e contra quem se praticou, pois
isso é que sempre determinou o grau de zelo e de eficiência na aplicação da pena.
O sistema penal sempre se mostrou ineficaz em cumprir os falsos objetivos
de pacificação social, de ressocialização e instrumento de justiça. Desde a sua
criação nos moldes em que o conhecemos, nenhum desses propósitos se
realizaram nem mesmo de forma precária, pois logo após a sua criação já foi
denunciado o fracasso da justiça penal, uma vez que “as prisões não diminuem a
taxa de criminalidade: pode-se aumentá-las, multiplicá-las ou transformá-las, a
quantidade de crimes e de criminosos permanece estável, ou, ainda pior, aumenta.
Se isso se fizer verdade qual o sentido de sua manutenção.”49
Desta forma
devemos:
“(...) nos perguntar para que serve o fracasso da prisão; qual é a utilidade desses
diversos fenômenos que a crítica, continuamente, denuncia: manutenção da
delinqüência, indução em reincidência, transformação do infrator ocasional em
delinqüênte. Talvez devamos procurar o que se esconde sob o aparente cinismo
da instituição penal que, depois de ter feito os condenados pagar sua pena,
continua a segui-los através de toda uma série de marcações e que persegue assim
como ‘delinqüente’ aquele que quitou sua punição como infrator? Não podemos
ver aí mais que uma contradição, uma conseqüência? Deveríamos então supor
que a prisão e de uma maneira geral, sem dúvida, os castigos, não se destinam a
suprimir as infrações; mas antes a distingui-las, a distribuí-las, a utilizá-las; que
visam, não tanto tornar dóceis os que estão prontos a transgredir as leis, mas que
48
DORNELLES, João Ricardo W. O que é crime. Rio de Janeiro: 2 ed., Editora Brasiliense, 1998.
p. 14.
49
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 1987, p.
221.
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tendem a organizar a transgressão das leis numa tática geral de sujeições. A
penalidade seria então uma maneira de gerir as ilegalidades, de riscar os limites
de tolerância, de dar terreno a alguns, de fazer pressão sobre outros, de excluir
uma parte, de tornar útil outra, de neutralizar estes, de tirar proveito daqueles
(...).”50
Como se depreende do pensamento de Foucault, o sistema penal não passa
de um instrumento de dominação e controle social, especialmente das massas
empobrecidas, uma vez que as primeiras vítimas de tal sistema são, regra geral, as
classes pobres. A pena de prisão em vez de coibir a prática de crimes é
constitutiva de delinqüência, mostrando ao delinqüente que ele pertence ao mundo
diverso da vida cotidiana. Enfim, a função da pena é punir e castigar, numa
patente associação da figura do crime com a figura do pecado, já que todo pecador
deve sofrer as penas por ter violado as leis de Deus, pois:
“O ‘programa’ de atribuição da pena, típico da justiça criminal é cópia fiel da
doutrina do ‘juízo universal’ e do ‘purgatório’, que encontramos em algumas
doutrinas teológicas da cristandade ocidental. É também marcado pelas
características de ‘centralidade’ e de ‘totalitarismo’, específicas destas doutrinas.
Obviamente, tal origem – a ‘velha’ racionalidade – se esconde por trás de
palavras novas: ‘Deus’ é substituído pela ‘lei’ e a ‘assembléia do povo’ por
‘nós’.”51
Outro autor que fundamenta a deslegitimação do sistema penal de forma
muito convincente é Zaffaroni, um dos maiores estudiosos do direito penal e da
criminologia da América Latina. O referido autor traz grandes contribuições para
a abordagem da questão na perspectiva de nossa realidade periférica e em
desenvolvimento. Em profundo estudo, Zaffaroni mostra que, apesar do
crescimento do discurso penal, o mesmo está em crise, uma vez que é com base
no discurso da pena que se legitima a violência, o autoritarismo e a violação dos
direitos humanos, a fim de defender os interesses de determinado seguimento
social.
Para o referido autor, a legitimidade e a racionalidade do sistema penal
tornaram-se utópicas e atemporais, pois não se realizaram em qualquer lugar e em
qualquer tempo, pois tal sistema não atua, regra geral, de acordo com a legalidade,
uma vez que a própria lei permite o exercício arbitrário do poder no que tange à
50
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 1987, p.
226.
51
HULSMAN, Louk. Alternativas à justiça criminal. In: __ PASSETI, Edson (coord.). Curso livre
de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 46.
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estigmatização, prisões ilegais, buscas irregulares, etc. Exemplo disso é a atuação
da polícia nas comunidades pobres e favelas, onde se justifica grandes atrocidades
e violações de direito em nome do combate ao tráfico de drogas e da caça aos
“marginais”. Assim, segundo Zaffaroni:52
“(...) a deslegitimação do sistema penal é resultante da evidência dos próprios
fatos. No entanto, se há alguns anos, pretendia-se legitimar o exercício de poder
do sistema penal em nome de nebulosas e futuras adaptações do mesmo à
legalidade, a atual deslegitimação desenvolvida pela teoria sociológica central e
pela criminologia da reação social fechou a antiga legitimante ao destruir a ilusão
na qual se assentava (...)”.
Comungando do pensamento do referido autor, acreditamos que o sistema
perdeu por completo (se é que algum dia teve) a sua eficácia e legitimidade para
resolver os conflitos sociais e, que, na sociedade contemporânea tal sistema não
passa de instrumento de legitimação do poder, de controle social, de exclusão e
segregação social dos seguimentos historicamente marginalizados da sociedade.
Desta forma, acreditamos que dois caminhos teóricos são possíveis para se
construir uma alternativa ao sistema penal hoje existente. A primeira alternativa
seria trilhar o caminho da intervenção penal mínima (minimalismo penal),
denominada por Ferrajolli (um de seus principais teóricos) de garantismo penal,
que nega a legitimidade do sistema penal, tal como aplicado na sociedade
contemporânea, mas propõe uma intervenção penal mínima que considera, apesar
de não ser o ideal, ser o necessário. A segunda, seria trilhar o caminho do
abolicionismo penal. A criminologia abolicionista nega o sistema penal e a pena
de prisão hoje aplicada, negando, ainda, regra geral, a legitimação de qualquer
outro sistema penal, postulando assim, a abolição total dos sistemas penais e
propondo a solução dos conflitos sociais por outros mecanismos informais de
composição.53
As duas mencionadas teorias alternativas ao sistema penal na sociedade
contemporânea, na sua essência, têm alguns pontos em comum, ou seja,
reconhecem que o sistema penal é fragmentário e seletivo, uma vez que atua de
52
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema
penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 67
53
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema
penal, p.89.
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forma quase exclusiva sobre as classes sociais historicamente marginalizadas e
excluídas, sendo indiferente à violência estrutural e favorecendo a impunidade dos
seguimentos detentores do poder.54
Por sua vez, as duas teorias têm algumas carências em dar respostas
efetivas para a superação da aplicação do referido sistema. O Principal problema
da teoria do “direito penal mínimo” é a sua solução de superação do sistema penal
existente, partindo do próprio sistema penal que, como já mencionado, tem como
objetivo principal a garantia de interesses do seguimento dominante da sociedade
e que sempre foi aplicado de acordo com os princípios da seletividade, da
exclusão e da segregação social. Por sua vez o abolicionismo penal carece de
respostas práticas para a superação do direito penal aplicado na sociedade
contemporânea.
Não obstante a segunda alternativa parecer utópica, acreditamos que esta é
o melhor caminho a ser trilhado em busca da superação do sistema penal hoje
existente, pois as características desse sistema é o seu caráter controlador,
segregador e excludente, pois sem isso a sua aplicação não atingiria os objetivos
de satisfação dos interesses dos seguimentos detentores do poder na sociedade.
Contra o argumento de que o abolicionismo penal é uma utopia, acreditamos que
“(...) não há razão alguma para se crer que seja menos utópico um modelo de
sociedade na qual não existe invulnerabilidade penal para os poderosos do que um
modelo de sociedade no qual seja abolido o sistema penal.”55
A teoria do “direito penal mínimo” parte da premissa de que o direito
penal deveria intervir minimamente nos conflitos sociais, devendo haver a
descriminalização de grande parte das condutas tipificadas como delituosas e uma
radical redução da pena de prisão. Segundo Zaffaroni, para Ferrajoli:
“Um direito penal mínimo legitima-se, unicamente, através de razões utilitárias,
ou seja, pela prevenção de uma reação formal ou informal mais violenta contra o
delito. Em outros termos, para esse direito penal mínimo, o objetivo da pena seria
54
Ressalte-se que, apesar dos pontos em comum, as duas teorias possuem diferenças
fundamentais, pois parte de pressupostos completamente diferentes e trilham caminhos diversos.
55
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema
penal, p.108.
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a minimização da reação violenta conta o delito. Esse direito penal seria,
portanto, justificado como um instrumento impeditivo de vingança.”56
Nesta perspectiva teórica, o direito penal teria a função de defender o mais
fraco contra o mais forte, ou seja, teria como justificativa a ponderação entre o
custo do direito penal e o custo de uma anarquia punitiva, evitando, assim,
alternativas piores que o direito penal.
Um dos maiores ícones do minimalismo penal foi Baratta,57
grande
criminólogo alemão e uns maiores teóricos da criminologia crítica, fundamenta
que o direito penal deve ser limitado a um mínimo para que o mesmo deixe de
estar a serviço dos detentores do poder e deixe de ser um instrumento de violência
institucional que limita e viola o direitos fundamentais dos indivíduos, mediante
ação legal ou ilegal do sistema penal.
Diferentemente, a teoria do abolicionismo penal é uma proposta político-
criminal de abolição radical do sistema penal ou da pena de prisão e sua
substituição por outras instâncias de solução de conflito. Enfim:
“O abolicionismo penal não é só uma utopia que constata exclusões e
discriminações; é uma prática de liberdade que não desconhece o poder dos
juízes, promotores, advogados, técnicos das humanidades, pais, educadores,
administradores e carcereiros. (...) O abolicionismo penal é mais do que a
abolição do direito penal ou da prisão moderna. Ele problematiza a sociabilidade
autoritária que funda e atravessa o ocidente como pedagogia do castigo em que,
sob diversas conformações históricas, atribui-se a um superior o mando sobre o
outro. (...) A abolição do castigo é a valoração de novos costumes, como
resposta-percurso para situações-problemas. Não é apenas um efeito ou derivação
do direito penal. Sua existência é o reconhecimento que nossa cultura se funda
numa sociabilidade autoritária que nenhum regime democrático consegue conter
ou dissipar.”58
A criminologia abolicionista teoriza e fundamenta as bases para a
construção de um novo modelo de sociedade, onde os desajustes sociais possam
ser vistos com outras lentes que não seja as do direito penal e que os conflitos
sociais possam ser resolvidos sem a aplicação do direito penal e da pena de prisão.
56
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema
penal, p.95.
57
Para maior aprofundamento do assunto ver: BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e
crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 3 ed., Rio de Janeiro: Editora
Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002.
58
PASSETI, Edson. A atualidade do abolicionismo penal. In: __PASSETI, Edson (coord.)., Curso
livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 16 e 33.
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  • 1. Rulian Emmerick Corpo e Poder: Um Olhar Sobre o Aborto à Luz dos Direitos Humanos e da Democracia DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DEPARTAMENTO DE DIREITO Programa de Pós-Graduação em Teoria do Estado e Direito Constitucional Rio de Janeiro Março de 2007 CCS – Centro de Ciências Sociais PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 2. Rulian Emmerick Corpo e poder: um olhar sobre a o aborto à luz dos direitos humanos e da democracia Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito do Departamento de Direito da PUC-Rio. Orientador: Prof. João Ricardo Wanderley Dornelles Rio de Janeiro Março de 2007 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 3. Rulian Emmerick Corpo e poder: um olhar sobre o aborto à luz dos direitos humanos e da democracia Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção de grau de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Direito do Departamento de Direito do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada. Prof. João Ricardo Wanderley Dornelles Orientador Departamento de Direito – PUC-Rio Prof. José María Gómez Departamento de Relações Internacionais – PUC- Rio Prof. Vera Malaguti Batista UCAM – Universidade Cândido Mendes Prof. João Pontes Nogueira Coordenador Rio de Janeiro, 28 de março de 2007. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 4. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador. Rulian Emmerick É Advogado. Graduou-se em Direito na PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) em 2004. Atualmente é integrante do Observatório de Controle Social e Sistema Punitivo e da Cátedra Direitos Humanos e Violência: Governo e Governança, ambos instalados no âmbito do Núcleo de Direitos Humanos do Departamento de Direito da PUC-Rio. Tem experiência em direito público, atuando principalmente na área do direito constitucional e dos direitos humanos. Atualmente atua em consultoria de pesquisas jurídicas no campo dos direitos sexuais e direitos reprodutivos. Ficha Cartográfica Emmerick, Rulian Corpo e poder: um olhar sobre o aborto à luz dos direitos humanos e da democracia / Rulian Ememrick; Orientador: João Ricardo Wanderley Dornelles. – Rio de Janeiro: PUC. Departamento de Direito, 2007. V., 199 f: il.; 29,7 cm 1. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Direito. Inclui referências bibliográficas 1. Direito – Teses. 2. Corpo e Poder. 3. aborto. 4. Direitos Humanos. 5. Direitos Sexuais. 6 Direitos Reprodutivos. 7. Democracia. 8. Feminino. 9. Cidadania PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 5. Ao meu pai Frederico, in memorian, que apesar da vida breve, ensinou-me os primeiros passos. Para minha mãe, Celene, a quem devo o meu senso de justiça. Seu exemplo de força, de humildade, dignidade, é a minha inspiração. Para minha esposa, Eliza, eterna companheira, pelo carinho, apoio e compreensão de todos os dias. Todo o meu amor. Para todas e todos que fazem de suas vidas um ideal de luta pelos historicamente excluídos e marginalizados. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 6. Agradecimentos Este trabalho não teria sido possível sem o auxílio financeiro concedido pela CAPES - e sem o apoio de todos aqueles que sempre estiveram ao meu lado, principalmente, nos dois anos de intensos estudos no Mestrado da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. À minha família, minha mãe, meus irmãos e sobrinhos, titulares do meu coração. À minha esposa, Eliza, pelo amor, apoio e compreensão, que acompanhou e vivenciou a minha jornada diária de estudos durante os dois anos de mestrado, principalmente, no período de construção deste trabalho. Este mérito também é dela. À CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pelos auxílios concedidos durante o curso de mestrado, sem os quais, seria impossível ter realizado este trabalho. Ao meu orientador, professor João Ricardo Wanderlei Dornelles, pelo apoio e atenção de sempre. Intelectual e militante que despertou em mim o encanto pela criminologia, por quem tem grande apreço desde os tempos de graduação na PUC-Rio. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 7. À professora Vera Malaguti Batista, que contribuiu imensamente para que este trabalho pudesse ser escrito. Sua solicitude, profissionalismo, carisma; seu conhecimento intelectual e suas orientações e sugestões sempre me fizeram sentir um filho, pois mais pareciam com um conselho de mãe. A tarefa de escrever este trabalho sem suas sábias orientações, se não impossível, com certeza seria muito mais árdua. Todo meu agradecimento, carinho, respeito, gratidão e admiração. Aos professores do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Direito da PUC-Rio, pelos ensinamentos nestes dois anos de mestrado. A aprendizagem multidisciplinar e crítica ao direito posto e estabelecido, com que tive contato durante os intensos estudos, com certeza, trouxeram imensas contribuições para o meu eu pensante e para minha vida profissional. Esta marca carregarei para sempre. Agradeço do fundo d’alma ao professor Augusto Sampaio, Vice-Reitor Comunitário, que me deu a chance de ter feito a graduação na PUC-Rio com uma bolsa de estudos integral durante todo o curso. A minha eterna gratidão. Para Maria Celeste Simões Marques, professora da graduação da PUC-Rio e minha orientadora de PIBIC/CNPq nos tempos de graduação, pelo compromisso, dedicação, compromisso, pelos ensinamentos e incentivos; por aguçar ainda mais o meu interesse pela pesquisa. Você é umas das responsáveis pelo profissional que sou. A minha eterna admiração. Aos colegas da turma de mestrado 2005/2007, especialmente, a Renata Guimarães Franco, amiga com que pude compartilhar os momentos difíceis e angustiantes durante a elaboração do presente trabalho. Mais que uma colega de mestrado você tornou uma grande amiga. Aos funcionários da Secretaria da Pós-Graduação, Anderson e Carmem, pela solicitude e compreensão de sempre. À amiga Ângela Maria Batista, que Deus me deu o privilégio de conhecer. Minha amiga/irmã espiritual com quem pude contar e compartilhar tantos momentos difíceis; sua sabedoria e força é um grande exemplo a ser seguido. Eterna Amiga. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 8. À Viviane Borges, grande amiga, com aprendi o jeito carioca de ser e com quem pude sempre contar e compartilhar as durezas de um matuto vivendo na Cidade Maravilhosa. À Ana Paula Sciammarella, quem tive o prazer de conhecer no primeiro estágio nos tempos de graduação em um projeto de assessoria jurídica na Rocinha, com quem compartilho o meu ideal pela luta dos direitos humanos dos seguimentos marginalizados e excluídos. Aos amigos do Balcão de Direitos, da Procuradoria Geral do Estado e da Procuradoria Geral do Município, com quem pude conviver por longo período de estágio durante a graduação. À ADVOCACI – Advocacia Cidadã pelos Direitos Humanos, na pessoa de Rosana dos Santos Alcântara e Gleyde Selma da Hora, pela oportunidade que me foi dada em atuar na instituição como advogado consultor de pesquisas no campo dos direitos sexuais e direitos reprodutivos. Enfim, a minha atuação nesta instituição foi a inspiração para a realização do presente trabalho. Foi lá que aprendi na prática que sem os direitos das mulheres os direitos humanos não são humanos. A todos aqueles que direta ou indiretamente, acompanharam a minha trajetória desde os tempos de peão em Bom Jardim, interior do Estado do Rio de Janeiro, até mestrado. Familiares e amigos, que sempre tornaram a minha caminhada menos árdua. A todas as pessoas que, apesar dos tempos nebulosos que vivemos, onde impera a ideologia do capital, da exclusão social e do encarceramento, resistem e lutam por seus ideais e nos faz acreditar que é possível viver em um mundo mais igual e mais justo. Agradeço, acima de tudo à Luz Superior que ilumina a minha missão, que mais comumente, denominam de Deus, mas que prefiro chamar de Oxalá. Com toda humildade e carinho, Muito Obrigado! PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 9. Resumo Emmerick, Rulian. Corpo e poder: um olhar sobre o aborto à luz dos direitos humanos e da democracia. Rio de Janeiro. 2007, 199p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Direito. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Corpo e poder: um olhar sobre o aborto à luz dos direitos humanos e da democracia visa abordar o fenômeno do aborto e a sua criminalização na perspectiva do direito sob a luz do Estado democrático de direito e da construção normativa e política dos direitos sexuais e direitos reprodutivos enquanto direitos humanos. A tarefa é demasiadamente árdua, visto ser o tema objeto de grande polêmica na sociedade contemporânea brasileira. No presente estudo, que se utiliza de elementos provenientes de diversas áreas do conhecimento tais como: do direito, da sociologia, da ciência política e da criminologia, buscamos analisar a temática sob a perspectiva do feminino. Procurou-se ressaltar que a permanência da prática do aborto como conduta delituosa mais que uma questão de proteção da vida, é uma questão política imbricada no jogo de poder entre determinados atores sociais. Ao não reconhecer às mulheres o direito à autodeterminação sobre o seu corpo, sua sexualidade e sua reprodução o Estado nada mais faz que do violar os direitos humanos das mulheres. A criminalização de tal prática é seletiva, uma vez que a maioria das mulheres envolvidas com o sistema penal são oriundas dos seguimentos pobres e marginalizados da sociedade, e ineficaz, haja vista o irrisório número de processos pela prática do aborto, se comparada com significativas estimativas do número de abortos praticados. Conclui-se que não há qualquer relação entre a criminalização e o número de abortos praticados e que, na perspectiva dos direitos humanos, da democracia e da cidadania ampliada, faz-se necessário que tal prática seja legalizada, como forma de reconhecer o feminino enquanto sujeito moral de direito. Palavras Chave Corpo; poder; biopoder; criminalização; sistema penal; aborto; direitos sexuais; direitos reprodutivos; direitos humanos; democracia. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 10. Abstract Emmerick, Rulian. Corpo e poder: um olhar sobre o aborto à luz dos direitos humanos e da democracia. Rio de Janeiro. 2007, 199p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Direito. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Body and power: a look at abortion under a Human Rights and Democracy perspective aims to talk about the abortion phenomenon and its criminalization from the Law point of view under influence of the democratic Government and the political development of sexual and reproducing rights as human rights. This task is an extremely hard one due to the controversial character of this matter in the Brazilian Contemporary Society. In this study (which uses elements from different areas, such as: Law, Sociology, Political Science, and Criminology), we analyze the theme under a female perspective. We want to point out that the permanent practice of abortion as a criminal act is not a life protection matter, but a political issue tangled with the political game among determined social actors. By not recognizing women’s rights upon their body, sexuality and reproduction, the Government is violating women’s Human Rights. The criminalization of such practice is selective because most of the women involved with Criminal Justice System come from poor and marginal segments of society. The judgment of this act is also ineffective due to the insignificant number of lawsuits against abortion practices if compared to the high estimate of practiced abortions. We conclude that there is no relation between criminalization and the number of abortions and also, under Human Rights, Democracy and Citizenship perspective, it is necessary that this practice become legal as a way to recognize female as a moral individual of rights. Keywords Body; power; biopower; criminalization; Criminal Justice System; abortion; sexual rights; reproducing rights; Human Rights; Democracy. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 11. Sumário 1. Introdução 12 2. Sistema penal versus democracia e direitos humanos 20 2.1. Globalização, discurso penal, controle social e direitos humanos 21 2.2. Ilegitimidade do sistema penal, os conflitos sociais e o fenômeno do aborto 39 3. Do biopoder ao controle do corpo feminino 52 3.1. O corpo e a sexualidade como objeto do poder e do biopioder 53 3.2. O Controle do corpo da mulher e imposição do poder 62 3.3. O Controle do Feminino e o aborto no direito penal brasileiro 67 4. O aborto e os direitos humanos das mulheres 74 4.1. Justificação dos direitos humanos no mundo contemporâneo 74 4.2. A construção política e normativa dos direitos sexuais e direitos reprodutivos enquanto direitos humanos 83 4.2.1. A construção política e normativa no plano internacional 83 4.2.2. Os avanços políticos e normativos na esfera nacional 104 4.3. Criminalização do aborto e violação de direitos humanos das mulheres 112 5. O aborto na história recente 117 5.1. A situação do aborto na América Latina e Caribe 117 5.2. Discussão política sobre o aborto no Brasil 130 5.3. O poder simbólico da criminalização do aborto 138 5.4. Histórias não contadas: a fala das mulheres processadas 153 6. Conclusão 171 7. Referências Bibliográficas 178 PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 12. Se de todo sofrimento devemos falar com respeito e com vergonha de não fazer todo o possível para superá-lo, com maior razão devemos respeitar a angústia, a agonia e o sentimento de culpa induzidos pela criminalização do aborto em milhões de mulheres. O caminho sábio nunca é o mero castigo, a penalização, mas o acompanhamento sincero, compassivo e redentor do ser que sofre. (...) Por trás do problema de penalizar ou não o aborto, entram em jogo também outras realidades humanas muito graves: a dignidade da mulher, a injustiça social, o machismo, a ignorância quanto à sexualidade, diferentes atitudes culturais e morais quanto à vida, o uso de anticoncepcionais, a moral, o papel das autoridades civis e eclesiásticas, etc. Isso complica e de modo geral desvia o debate, levando-o a becos sem saída. Luiz Pérez Aguirre PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 13. 1 Introdução Este trabalho tem sua gênese na minha inquietação diante da desigualdade e da exclusão social e da precária ou inexistente garantia da cidadania e dos direitos humanos aos seguimentos historicamente marginalizados e excluídos no Brasil, dentre eles, os negros, as mulheres e as minorias sexuais. É bem provável que esta inquietação tenha se originado da minha história de vida pessoal. Menino pobre, morador da zona rural de uma cidade do interior do Estado do Rio de Janeiro, filhos de agricultores que, desde cedo conheceu e conviveu com as dificuldades e as mazelas sociais daqueles que moram distante de tudo: informação, educação, saúde, assistência social, etc., mas que ao mesmo tempo teve acesso à educação e a oportunidade de conviver com as elites interioranas, conhecendo e vivenciando os dois lados da “moeda social”. Talvez, tal inquietação tenha sido ainda mais aguçada com a minha vinda para a Cidade Maravilhosa, onde tive a oportunidade de conviver com a nata da sociedade carioca e, concomitantemente, com as mazelas sociais das comunidades pobres de uma grande metrópole, devido a minha atuação como estagiário na Rocinha (uma das maiores favelas da América Latina), em um projeto de orientação e assistência jurídica àqueles que, historicamente, sempre foram excluídos do acesso à justiça. Foi nesse momento que também tive os meus primeiros contatos com os direitos humanos, seja na minha atuação como estagiário, seja na graduação em direito na PUC-Rio. De forma específica, o interesse pelo tema aqui desenvolvido surgiu da minha atuação enquanto advogado na ADVOCACI – Advocacia Cidadã pelos Direitos Humanos, organização não-governamental sediada do Rio de Janeiro. Foi em tal instituição que comecei a atuar na advocacia de interesse público e na pesquisa jurídica no campo dos direitos sexuais e direitos reprodutivos, em especial, em uma pesquisa sobre a criminalização da prática do aborto no Estado do Rio de Janeiro. Atuei, ainda com assessoria jurídica em processos pela violação de direitos humanos e na defesa de mulheres processadas pela prática do PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 14. 13 aborto. Foi então, que minha atuação e meus estudos no campo dos direitos humanos passaram a levar em consideração o enfoque de Gênero. Desde logo pude perceber que abordar a temática do aborto dentro do paradigma do Estado democrático de direito e na perspectiva dos direitos humanos era uma tarefa demasiadamente árdua, uma vez que imbricada a uma gama de conflitos e controversas, seja pela polêmica e complexidade a que está imersa a questão, seja pelos inúmeros aspectos que estão relacionados à interrupção voluntária da gravidez: médico, científico, político, moral, religioso, jurídico, dentre outros. Ao mesmo tempo, percebi que abordar a questão seria algo apaixonante, e realmente foi. As discussões a respeito do tema são sempre calorosas e cheias de ambigüidades, onde os atores sociais, além de defenderem a sua bandeira de luta, defendem, muitas vezes, a questão com as paixões inerentes a sua convicção pessoal sobre o tema, seja pela perspectiva dos direitos das mulheres, seja pela perspectiva da proteção da vida do feto. Além das disputas pessoais e morais, a temática está no centro das relações de poder e de disputas políticas. Assim, logo o tema me despertou paixões. Contudo, na presente dissertação, enfrentamos uma série de obstáculos, seja pelo tempo exíguo para a sua construção, seja pelo tema complexo e polêmico, sobre o qual paira inúmeros debates e embates na sociedade contemporânea. Devido à complexidade e amplitude da temática a ser abordada, nosso enfoque será predominantemente jurídico e de forma tangencial, sociológico e político. Desta forma, a abordagem aqui traçada toma como elementos, não os aspectos éticos, morais e religiosos do aborto, mas o aspecto jurídico de sua criminalização na perspectiva dos direitos humanos e da democracia, onde prevalece o princípio maior da dignidade da pessoa humana. A hipótese central deste trabalho é de que a criminalização do aborto, no Brasil, na perspectiva dos direitos humanos e do Estado democrático de direito é uma violação dos direitos das mulheres, uma vez que, o Estado, ao enfrentar um problema de saúde pública através do sistema penal, que nunca protegeu o bem PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 15. 14 jurídico tutelado em questão, qual seja, a vida do feto, nada mais faz que intervir na esfera individual e privada do feminino, indo na contramão dos direitos fundamentais das mulheres, numa patente violação do direito à igualdade de gênero. O tema é relevante na medida em que há uma necessidade de reflexão crítica acerca das diversas formas de dominação e repressão, que se exterioriza por meio do controle dos corpos e da sexualidade dos indivíduos, notadamente do corpo e da sexualidade da mulher. Pela necessidade de uma reflexão crítica acerca da política de criminalização, em especial, da penalização da prática do aborto, dentro do Estado democrático de direito e na perspectiva dos direitos humanos, cujo princípio maior é a proteção da dignidade da pessoa humana. Relevante, ainda, porque a temática do aborto vem, paulatinamente, deixando de ser um assunto restrito às discussões no interior do movimento de mulheres e dos grupos religiosos, às páginas policiais dos meios de comunicação, passando a ser tratado em diferentes editoriais (ciência, política nacional e internacional, saúde, família, cadernos especiais e outros). À vista disso, para a realização do objeto a ser estudado, partir-se-á de alguns pressupostos considerados relevantes a seguir elencados: 1. A tipificação de uma conduta como crime é uma questão de política criminal, e que determinada conduta pode deixar ou não de ser crime, dependendo dos interesses dominantes de cada sociedade em dado momento histórico. 2. O aborto só passou a ser tipificado como crime no Brasil, por acondicionamentos, históricos, sociológicos, antropológicos, econômicos, políticos e religiosos, em um contexto de mudança de paradigma, qual seja, o surgimento da Idade Moderna. Assim, nos perguntamos: por que o aborto é considerado crime, qual a finalidade, a quem favorece, à vida de quem? 3. O sistema penal carece de legitimidade para resolver os conflitos sociais, notadamente em relação ao fenômeno do aborto, e que o mesmo é incompatível com os direitos humanos, uma vez que estes assinalam um programa realizador de igualdade de direitos de longo alcance, enquanto PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 16. 15 os sistemas penais são instrumentos de consagração ou cristalização da desigualdade de direitos em todas as sociedades. 4. A proibição legal não inibe às mulheres a recorrer à prática do aborto. O sistema penal é ineficaz para resolver a questão e sua aplicação é distorcida e perversa, não impedindo a realização da prática, mas, ao contrário, impelindo-a à clandestinidade. 5. Através de uma observação empírica, de estudos teóricos e da análise de pesquisas, acreditamos não haver estreita relação entre o número de abortos praticados, sua proibição e sua ilegalidade. 6. A criminalização da prática do aborto afeta desigualmente a vida das mulheres pobres e as não-pobres, numa flagrante violação do princípio da igualdade e do Estado democrático de direito, uma vez que os efeitos da clandestinidade recaem, principalmente, sobre aquelas mulheres oriundas das classes mais baixas da sociedade, que pagam muitas vezes, por tal prática, com perda da vida ou com as seqüelas e mutilações irreversíveis. 7. O interesse do Estado em definir aquilo que é permitido ou não, o que deve ser crime ou não, somente se justifica ao cumprir a sua finalidade, ou seja, a realização do bem comum da coletividade. A legislação que intente diminuir o número de abortos deve ser preventiva sob a perspectiva da saúde sexual e reprodutiva e não punitiva, de forma a garantir a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais da mulher. 8. Nos casos de envolvimento com o sistema penal pela prática do aborto, tal sistema “seleciona” as mulheres pobres, negras, moradoras das periferias e comunidades pobres das grandes cidades desprovidas de qualquer prestação social estatal, numa flagrante violação de direitos humanos. 9. Para o enfrentamento da prática do aborto será preciso lançar mão de ferramentas outras, criando leis de outra natureza, ou seja, buscando outras formas de intervenções sociais externas ao sistema penal. Partindo destes pressupostos é que se buscará subsídios teóricos, empíricos e estatísticos, para averiguar se a criminalização do aborto impede/inibe que as mulheres recorram à tal prática, e até que ponto a referida criminalização é incompatível com principio da dignidade da pessoa humana, com os direitos humanos do feminino e com a agenda democrática. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 17. 16 Na verdade um Estado que se diz comprometido com os direitos das mulheres e com a verdadeira proteção da vida do feto e da vida da mulher deve ter como patamar, os princípios basilares e a garantias dos direitos fundamentais de homens e mulheres, incluindo acesso ao sistema público de saúde, com orientação sobre sexualidade, planejamento familiar e informações sobre os métodos de contracepção, e não com a criminalização do aborto. Para a realização do estudo proposto, utilizar-se-á como referencial, a concepção contemporânea dos direitos humanos e autores que abordam tanto, historicamente, quanto na atualidade o biopoder e a questão do controle dos corpos e da sexualidade como forma de dominação e repressão, em especial do corpo feminino. Utilizaremos também obras de estudiosos da criminologia abolicionista, da criminologia crítica, que fundamentam a ilegitimidade do sistema penal enquanto meio eficaz para a resolução de conflitos e que postulam a abolição total ou quase total do sistema penal. Além das referências mencionadas, nos valeremos da pesquisa bibliográfica multidisciplinar, fazendo uma revisão de bibliografia. Buscaremos não só contribuições bibliográficas no âmbito do estudo do direito, mas na ciência política, na sociologia, na criminologia e, eventualmente em outros campos do conhecimento, uma vez que, para a compreensão do tema, faz-se necessário compreender o contexto histórico, político, econômico, social e religioso no Brasil e no exterior, face à nova ordem mundial globalizada em que se insere o crescimento da exclusão social e o aumento da criminalização e algumas formas de fundamentalismos. Serão analisados, ainda, dados dos órgãos oficiais e de organizações da sociedade civil, dados de pesquisas realizadas no Brasil e em outros países, referentes á prática do aborto, bem como dados de organismos internacionais que venham a contribuir para melhor aprofundamento, clareza e fundamentação da questão proposta. Dar-se-á atenção ainda, a alguns casos judiciais emblemáticos de mulheres que recorreram à prática do aborto e, conseqüentemente, viram-se envolvidas com o sistema penal e, algumas vezes, foram presas de forma arbitrária, em patente violação do princípio do processo legal, da democracia de dos direitos humanos. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 18. 17 Em relação ao espaço temporal trabalhar-se-á em uma perspectiva história para que possamos constatar as permanências e rupturas em relação a criminalização do aborto no Brasil, desde o Brasil Colônia, perpassando pelo Brasil Império, pelo Brasil República, até a contemporaneidade. No entanto, trabalhar-se-á, mais profundamente a questão do aborto e sua criminalização a partir das décadas de 60 e 70 do século XX, ou seja, no contexto daquilo que denominamos de história recente, e que é denominada por alguns autores como sociedade pós-moderna. Para a realização do que está sendo proposto, o trabalho será dividido em quatro capítulos, sendo cada capítulo, composto de subitens. Com essa divisão pretende-se dar conta do que delimitamos no presente trabalho No primeiro capítulo abordaremos o sistema penal na perspectiva dos direitos humanos. Para tal empreitada, inicialmente, daremos atenção ao fenômeno da globalização e do neoliberalismo, tendo como fonte principal os estudos de Boaventura de Souza Santos e de Zigmunt Bauman, analisando as imbricações entre globalização, discurso penal, controle social, direitos humanos e a questão feminina que, conforme defenderemos, são temas embicados e fazem parte de um todo complexo, fruto das transformações sociais na sociedade contemporânea. A partir da observação empírica e de estudos teóricos de autores da criminologia abolicionista e da criminologia crítica, alisaremos o porquê da incompatibilidade do sistema penal com os direitos humanos e a ilegitimidade e ineficácia de tal sistema em dar respostas satisfatórias na resolução dos conflitos sociais, uma vez que a sua lógica é excludente, seletiva e controlista, sendo usado, regra geral, para combater os desregramentos das “classes subalternas” da sociedade. Analisaremos, ainda como em relação ao conflito do crime de aborto, o sistema penal é ainda mais ilegítimo e ineficaz para dar conta de tal fenômeno, uma vez que sua prática não tem relação intrínseca com a ilegalidade e criminalização. No capítulo II será abordado, com base em estudos historiográficos e sociológicos e em bibliografia contemporânea, a questão do biopoder, do controle PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 19. 18 dos corpos e da sexualidade, com ênfase no controle sobre o corpo e a sexualidade da mulher. Buscaremos constatar que tal controle sempre se fez presente na história das sociedades, não passando de uma forma de dominação e repressão, fundamentada por meio dos mais diversos discursos. Analisaremos, ainda, o tratamento dado pelo ordenamento jurídico brasileiro ao fenômeno do aborto desde as Ordenações de Portugal (Manuelinas Afonsinas e Felipinas), perpassando por todos os códigos penais que já vigoraram no Brasil até o Código Penal vigente, de 1940. Dessa forma, será possível analisar as permanências e as rupturas em relação à criminalização do aborto, e verificar que tal prática sempre foi utilizada pelas mulheres brasileiras para por fim a uma gravidez indesejada. Entretanto, não foi criminalizada desde sempre, uma vez que somente com a passagem do Brasil a categoria de Império a lei passou a dispor sobre tal prática. Posteriormente, no capítulo III analisaremos a construção política e normativa dos direitos sexuais e direitos reprodutivos enquanto direitos humanos das mulheres, para ao final abordar de que forma a permanência da prática do aborto enquanto conduta tipificada como crime, viola tais direitos, impedindo que as mulheres os exerçam de forma eqüitativa com os homens e tenham a garantia da cidadania ampliada, pressuposto para a consolidação dos princípios democráticos. No capítulo IV analisaremos o aborto na sociedade contemporânea, fazendo uma abordagem da criminalização de tal prática na América Latina e Caribe, e as semelhanças entre a região e o Brasil no que diz respeito as estimativas de abortos praticados e a respectiva criminalização. Daremos atenção, também, à discussão política sobre o aborto nos Poderes Legislativo, Executivo e judiciário, onde buscaremos constatar que a discussão, não obstante a inclusão de novos atores, continua polarizada entre dois atores sociais importantes, com posições antagônicas, ou seja, os grupos religiosos e o movimento de mulheres. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 20. 19 Abordaremos, ainda, como a criminalização do aborto, no Brasil, exerce apenas um poder simbólico, uma vez que a interrupção da gravidez é uma prática largamente utilizada na nossa sociedade. Não obstante, há um baixo índice de criminalização, pois a lei penal somente é aplicada em poucos e seletivos casos, tendo como clientela, regra geral, mulheres jovens, pobres, negras ou pardas, com baixa escolaridade, solteiras, com relações precárias de trabalho, moradoras da periferia e bairros pobres das grandes cidades. Apesar do baixo índice de criminalização, a ilegalidade do aborto faz com que milhares de mulheres pobres, que não tem condições de pagar por um procedimento ilegal, mas seguro, são levadas a praticarem o aborto nas condições mais desumanas possíveis, numa verdadeira violação de direitos. Por fim, da análise de alguns processos criminais onde figuram como rés, mulheres processadas, e através de seus depoimentos perante o sistema penal poderemos observar que a criminalização do aborto além implicar em violação dos direitos humanos das mulheres e ser um problema de saúde pública, é um problema de justiça social. Somente algumas mulheres já vulneradas socialmente foram envolvidas com o sistema penal, o que nos remete a observar que a seletividade do sistema penal também é aplicada quando o crime em questão refere-se a prática do aborto. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 21. 2 Sistema penal versus democracia e direitos humanos No cabaré da globalização, o estado passa por um strip- tease e no final do espetáculo é deixado apenas as necessidades básicas: seu poder de repressão. Com sua base material destruída, sua soberania e independência anuladas, sua classe política apagada, a nação-estado torna-se um mero serviço de segurança para as mega-empresas.1 Antes de iniciarmos esta parte do trabalho é preciso indagar qual a relação existente entre globalização, discurso penal, controle social, direitos humanos e a questão feminina, especialmente, no que diz respeito à criminalização do aborto. Partimos da premissa de que estas questões fazem parte de um todo, estando estritamente interligadas. Desta forma, vislumbramos ser necessário começar abordando a questão do medo, uma vez que este tem sido, historicamente, a porta de entrada para a legitimação das políticas públicas de segurança autoritárias e totalitárias e para o controle das massas empobrecidas. Em seguida, abordaremos o fenômeno da globalização e o neoliberalismo e suas implicações no acirramento do discurso penal, controle social e violação dos direitos humanos, e quais são os reflexos e conseqüências dessas transformações na sociedade brasileira. Por fim, no contexto do acirramento do controle social formal, do aumento do poder punitivo dos Estados e do encarceramento das massas empobrecidas, analisaremos o porquê da ilegitimidade do sistema penal para solucionar os conflitos oriundos das relações sociais. Analisaremos, ainda a ineficiência e ineficácia de tal sistema para prevenir e conter o suposto aumento da criminalidade, especialmente, em relação ao fenômeno do aborto. 1 BAUMAN, Zigmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 74. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 22. 21 2.1 Globalização, discurso penal, controle social e direitos humanos A incitação do medo sempre foi utilizada, historicamente, para a imposição da força, da violência e para o disciplinamento dos setores considerados perigosos nas mais deferentes sociedades. A título de exemplo pode- se citar a inquisição, onde as mulheres foram “as preferidas”,2 a escravização dos negros, o nazismo3 e muitos outros acontecimentos em que houve a legitimação da barbárie, através do discurso do medo, notadamente, a partir da Era Moderna e, em especial, no século XX. Delumeau, em sua obra a História do Medo no Ocidente,4 aborda a questão com brilhantismo, mostrando como a ideologia das classes dominantes transforma-se em discursos estimulantes do medo, justificando, assim, as mais diferentes formas de controle social e disciplinamento. No que tange especificamente ao feminino, segundo o supracitado autor, esta foi demonizada, seja pelo discurso da igreja, da medicina, dos juristas, seja pela repressão do Estado, cujo objetivo último foi a sua repressão, dominação e domesticação. Enfim, foi construído um discurso onde a mulher era associada a um: “mal magnífico, prazer funesto, venenosa e enganadora, a mulher foi acusada pelo outro sexo de ter induzido na terra o pecado, a desgraça e a morte. Pandora grega ou Eva judaica, ela cometeu a falta original ao abrir a urna que continha todos os males ou ao comer o fruto proibido. O homem procurou um responsável para o sofrimento, para o malogro, para o desaparecimento do paraíso terrestre, e encontrou a mulher. Como não temer um ser que nunca é tão perigoso como quando sorri? A caverna sexual tornou-se a fossa viscosa do inferno.” 5 Analisando a questão do medo sob a ótica do feminino, constata-se que, na Idade Média, a incitação do medo serviu como a principal e mais eficiente forma 2 Para maior aprofundamento da questão ver: KRAMER, Heinrich, SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras: malleus maleficarum. 3. ed., Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 1991 e JULES, Michelet. A feiticeira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. 3 BAUMAN, Zigmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. 4 DELUMEAU, Jean, História do medo no ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 5 Ibid., p. 314. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 23. 22 de controle das mulheres, de seus corpos e de sua sexualidade, onde a inquisição representou o ápice de combate ao suposto perigo representado pelo feminino.6 No ocidente, em todos os contextos das relações de poder, o medo sempre se fez presente e, através dele, sempre se justificaram os mais diversos atentados contra a humanidade e em nome da humanidade. Massacres, guerras, genocídios, etc., sempre foram legitimados em virtude do perigo que as classes consideradas perigosas representam aos interesses dos detentores do poder,7 que sempre validaram quais comportamentos eram (e são) considerados como bom e normal e desvalidaram o que é mau, anormal e perigoso.8 É diante de perigos urgentes, que a justiça precisa ser aplicada pronta e severamente contra os “criminosos” que, quase sempre, são identificados com os setores marginalizados da sociedade e com as minorias étnicas, raciais e sexuais: os índios, os negros, as mulheres, as prostitutas, as pessoas com orientação sexual diversa da heterossexual. Este tem sido o discurso ao longo da história, que se intensificou com o despertar da Era Moderna, onde foram usados inúmeros instrumentos de controle social, tais como: escola, igreja, família, mídia, etc., que estão em última instância imbricadas ao sistema penal,9 cujo principal objetivo é a exclusão e o confinamento de setores marginalizados da sociedade que precisam ser controlados, disciplinados e excluídos. 6 Ver JULES, Michelet, op. cit. e KRAMER, Heinrich, SPRENGER, op. cit. 7 Para FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Ed., 1999, p. 81, “O criminoso é um inimigo interno. Esta idéia do criminoso como inimigo interno, como indivíduo que no interior da sociedade rompeu o pacto que havia teoricamente estabelecido, é uma definição nova e capital na história da teoria do crime e da penalidade.” 8 Esta distinção entre normal e anormal está estritamente ligada ao surgimento da Era Moderna com os seus novos paradigmas tecnológicos e científicos. 9 Importante aqui, é salientar o surgimento das prisões. Segundo Foucault, op. cit., p. 84, “A prisão não pertence ao projeto teórico da reforma da penalidade do século XVIII. Surge no início do século XIX, como uma instituição de fato, quase sem justificação teórica. Não só a prisão – pena que vai efetivamente se generalizar no século XIX – não estava prevista no programa do século XVIII, como também a legislação penal vai sofrer uma inflexão formidável com relação ao que estava estabelecido na teoria. Com efeito, a legislação penal, desde o início do século XIX e de forma cada vez mais rápida e acelerada durante todo o século, vai se desviar do que podemos chamar de utilidade social; ela não procurará mais visar ao que é socialmente útil, mas, pelo contrário, procurará ajustar-se ao indivíduo.” PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 24. 23 Delumeau, em sua brilhante obra, aborda com profundidade e astúcia a história do medo no ocidente, salientando que: “É o medo que explica a ação persecutória em todas as direções, conduzidas pelo poder político-religioso, na maior parte dos países da Europa no começo da Idade Moderna. Foi preciso em seguida chegar aos totalitarismos de direita e esquerda do século XX para reencontrar – em escala bem maior! – obsessões comparáveis no escalão dos corpos dirigentes e inquisições de mesmo tipo no nível dos perseguidos.”10 Para que as classes dominantes ascendam e permaneçam no poder, faz-se necessário usar todos os mecanismos e instrumentos que estimulem a sensação de insegurança, de perigo e de medo na sociedade e, que em conseqüência, legitimem o uso da força, da violência, da exclusão e do extermínio, sob o argumento de combater os perigos que rondam e assolam os “homens de bem”.11 Especificamente sobre o medo na sociedade brasileira, ilustrativa é a obra de Vera Malaguti Batista, intitulada O Medo na Cidade do Rio de Janeiro, que aborda as rupturas e permanências sobre a questão do medo no Brasil Império e na sociedade contemporânea brasileira.12 Na sociedade contemporânea, a incitação do medo não se restringe mais somente à mulher e aos seus corpos indecifráveis, uma vez que foram incluídos no “rol dos perigosos”, os excluídos da sociedade de consumo, os consumidores falhos,13 que são tratados como lixo humano, devendo ser depositados no armazém de dejetos sociais, qual seja, a prisão.14 Como salienta Batista:15 “Na atual conjuntura da revolução técno-científicas observamos o enfraquecimento do Estado com o colapso das políticas públicas, o aumento do desemprego e do subemprego, o rebaixamento dos salários e da renda per capita. Todo esse quadro neoliberal atinge níveis ainda mais dramáticos na marginalização profunda das classes urbanas. Estas massas urbanas empobrecidas num quadro de redução da classe operária, de pobreza absoluta, sem um projeto 10 DELUMEAU, Jean, História do medo no ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada, p. 394. 11 Sobre a criminalização dos tipos de perigos no Brasil ver: CABRAL, Juliana. Os tipos e a pós- modernidade: uma contextualização histórica da proliferação dos tipos de perigo no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Revan, 2005. 12 BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003. 13 Expressão usada por BAUMAN, Zigmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. 14 Ver WACQUANT, Loic. Punir os pobres, a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. 15 BATISTA, Vera Malaguti, op. cit, p. 102. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 25. 24 educacional, sem condições sanitárias, sem moradia, são a clientela de um sistema penal que reprime através do aumento de presos sem condenação, dos fuzilamentos sem processo, da atuação constante dos grupos de extermínio.” É neste contexto, onde impera a globalização e o neoliberalismo, com conseqüências econômicas, políticas e sociais nefastas, que o discurso penal ganha maior dimensão. Tal tema torna-se central na pauta de discussão (no Brasil e na América Latina) dos políticos, dos empresários, da mídia e da sociedade como um todo, tendo conseqüências profundas no que diz respeito ao Estado democrático de direito e aos direitos humanos. Se voltarmos no tempo, vitrificaremos que a origem do discurso legitimador do sistema penal, foi, desde sempre, uma estratégia segregadora, excludente e repressiva para a legitimação e disciplinamento de determinados seguimentos da sociedade ocidental.16 Todavia, é no contexto do fenômeno da globalização e do neoliberalismo, mais especificamente a partir da década de 70 do século XX, que a questão ganha nova roupagem, notadamente, por inspiração no modelo norte americano. O discurso penal tem sido cada vez mais intensificado na sociedade contemporânea, cujo objetivo é dar conta dos novos conflitos sociais oriundos do agravamento da pobreza e da desigualdade social. “Os donos do poder”, entre eles as elites políticas, os empresários, os estudiosos de direita (e muitas vezes o de esquerda também) e inúmeros setores da sociedade, intencionalmente e, na maior parte das vezes, através dos meios de comunicação e outros meios de controle social, solidificam a ideologia do sistema penal como o instrumento legítimo e eficaz para resolver todos os conflitos e desestruturações sociais, causadas, principalmente, pelo modelo de acumulação de capital contemporâneo. Tal fato, como já referido, está estritamente relacionado às recentes transformações oriundas do fenômeno da globalização, do neoliberalismo e das novas formas de acumulação de capital, culminando na intensificação do processo de reforma e transformação dos estados nacionais, desmantelando o tripé (o auto- 16 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 1987. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 26. 25 governo, a auto-administração e a soberania) nos quais os referidos Estados se sustentavam.17 Segundo Wacquant:18 “A destruição deliberada do Estado social e a hipertrofia súbita do Estado penal transatlântico no curso do último quarto de século são dois desenvolvimentos concomitantes e complementares. (...) Prender os pobres apresenta na verdade a imensa vantagem de ser mais ‘visível’ para o eleitorado: os resultados da operação são tangíveis e facilmente mensuráveis (tantos prisioneiros a mais); seus custos são poucos conhecidos e nunca submetidos a debate público, quando não são simplesmente apresentados como ganhos pelo fato de ‘reduzirem’ o custo do crime. O tratamento penal da pobreza é além disso dotado de uma carga moral positiva, enquanto a questão do ‘welfare’ está, desde o início, manchada pela imoralidade.” Esta ideologia de encarceramento em massa de setores pobres, construída e, inicialmente, aplicada nos Estados Unidos tem sido, progressivamente, implantada nas mais diferentes partes do mundo, inclusive na América Latina, onde se insere o Brasil. Todavia, antes de abordarmos especificamente a questão na sociedade brasileira, faz-se necessário avançar sobre o que entendemos por globalização e por neoliberalismo, uma vez que vislumbramos ser esses os principais fenômenos responsáveis pelo agravamento da situação econômica e social de homens e mulheres na sociedade contemporânea. Para tal abordagem, comungaremos com o pensamento de Boaventura de Souza Santos e de Zigmunt Bauman, dois pensadores, que a nosso ver abordam a questão de forma brilhante, atual e em profundidade. Para Santos,19 a globalização é um fenômeno multifacetado com dimensões econômicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas de modo complexo que: 17 BAUMAN, Zigmunt. A globalização: conseqüências humanas, p. 71-72, salienta que “Os três pés do “tripé da soberania” foram quebrados sem esperança de conserto. A auto-suficiência militar, econômica e cultural do Estado – de qualquer Estado -, sua própria auto-sustentação, deixou de ser uma perspectiva viável. Para preservar sua capacidade de policiar a lei e a ordem, os Estados tiveram que buscar alianças e entregar voluntariamente pedaços cada vez maiores de sua soberania.” 18 WACQUANT, Loic. Punir os pobres, a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 55 e 87. 19 SANTOS, Boaventura de Souza. Uma concepção multicultural de direitos humanos. Lua Nova, Revista de Cultura e Política, n. 39, p. 107, 1997, salienta “que aquilo que se designa por PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 27. 26 “Interage de modo muito diversificado com outras transformações no sistema mundial que lhe são concomitantes, tais como o aumento dramático das desigualdades entre países ricos e pobres e, no interior de cada país, entre ricos e pobres, a sobrepopulação, a catástrofe ambiental, os conflitos étnicos, a migração internacional massiva, a emergência de novos Estados a falência e a implosão de outros (...).”20 A globalização não é um fenômeno linear e consensual, mas um campo de conflitos entre grupos sociais, necessitando de um campo hegemônico imposto através dos Estados poderosos, que atua na base de um consenso neoliberal (Consenso de Washington), que foi imposto pelos Estados centrais do sistema mundial. Todavia este consenso está relativamente fragilizado, diante de divergências no interior do campo hegemônico. “Os traços principais desta nova economia mundial são os seguintes: economia dominada pelo sistema financeiro e pelo investimento à escala global; processos de produção flexíveis e multilocais; baixos custos de transporte; revolução nas tecnologias de informação e comunicação; desregulação das economias nacionais; preeminências das agências financeiras multilaterais; emergência de três grandes capitalismos transnacionais: o americano (...), o japonês (...) e o europeu.” 21 Nesta perspectiva as economias nacionais devem ser transformadas a fim de abrir-se ao mercado mundial, dando prioridade á economia de exportação, reduzindo a inflação, a dívida pública, os gastos a serem investidos na proteção social e, conseqüentemente, reduzindo o peso das políticas sociais no orçamento do Estado. Para isso, impuseram-se restrições drásticas à regulação estatal, subordinando os Estados nacionais às agências multilaterais (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, Organização Mundial do Comércio, dentre outras).22 Dentro desse novo contexto, os países da periferia são os que mais sofrem e os que estão mais sujeitos às novas imposições neoliberais e mais vulneráveis às globalização são de fato, conjuntos diferenciados de relações sociais; diferentes conjuntos de relações sociais dão origem a diferentes fenômenos de globalização.” 20 SANTOS, Boaventura de Souza. Os processos de globalização. In: __ SANTOS, Boaventura de Souza. A globalização e as ciências sociais. São Paulo: Cortez, 2002, p. 26. 21 Ibid., p. 29. 22 Segundo BAUMAN, Zigmunt. A globalização: as conseqüências humanas, p. 76, os “Estados fracos são precisamente o que a Nova Ordem Mundial, com muita freqüência encarada como suspeita como uma nova desordem mundial, precisa para sustentar-se e reproduzir-se. Quase- Estados, Estados fracos podem ser facilmente reduzidos ao (útil) papel de distritos policiais locais que garantem o nível médio de ordem necessário para a realização de negócios, mas não precisam ser temidos como freios eletivos á liberdade das empresas globais.” PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 28. 27 decisões dos centros de poder. O fenômeno da globalização tem repercutido significativamente nos mais diferentes âmbitos das relações sociais, contribuindo de forma demasiada para o agravamento das desigualdades sociais e para o agravamento da precarização das condições de vida dos seguimentos, historicamente, excluídos desses países. “O aumento das desigualdades tem sido tão acelerado e tão grande que é adequado ver as últimas décadas como uma revolta das elites contra as redistribuições da riqueza com a qual se põe fim ao período de certa democratização da riqueza iniciado no final da segunda guerra mundial. (...) Os valores dos três mais ricos bilionários do mundo excedem a soma do produto interno bruto de todos os países menos desenvolvidos do mundo onde vivem 600 milhões de pessoas.” 23 Vê-se assim, que a partir da implantação do modelo neoliberal, a concentração de riqueza chegou a patamares nunca vistos na história da humanidade, sem falar na redução dos custos salariais com a liberalização do mercado de trabalho, onde homens e mulheres não são mais reconhecidos por seu trabalho, mas por sua capacidade de consumir. Isso só se fez possível com o desmantelamento do Estado-nação no que se refere às prestações sociais, através da: 1) desnacionalização do Estado, ou seja, houve um esvaziamento do aparelho do Estado nacional, uma perca de sua capacidade devido às reorganizações das suas funções perante ou por imposição da comunidade internacional; 2) a desestatização dos regimes políticos, entendida com a transformação de um modelo de regulação social e econômica assente no papel central do Estado, para outro, assente em parcerias e em outras formas de associação entre organizações governamentais, para-governamentais e não- governamentais, onde o Estado tem apenas a função de mero regulador; e 3) a internacionalização do Estado nacional, onde este teve que se adequar ao contexto e às exigências internacionais. Segundo Santos:24 “A tendência geral consiste em substituir até ao máximo que for possível o princípio do Estado pelo princípio do mercado e implica pressões por parte de países centrais e das empresas multinacionais sobre os países periféricos e semiperiféricos no sentido de adotarem ou se adequarem às transformações jurídicas e institucionais que estão a ocorrer no centro do sistema mundial.” 23 BAUMAN, Zigmunt. Globalização: as conseqüências humanas, p. 34. 24 SANTOS, Boaventura de Souza. Os processos de globalização. In: __ SANTOS, Boaventura de Souza. A globalização e as ciências sociais. São Paulo: Cortez, 2002, p. 39. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 29. 28 No que tange á cultura, a situação é semelhante, uma vez que se tem uma globalização, ou melhor, uma americanização ou ocidentalização dos padrões culturais, que impõe seus valores e costumes sobre o resto do mundo, dentre eles o individualismo, a democracia política, a racionalidade econômica, o utilitarismo, o primado do direito, o cinema, a publicidade, a televisão, dentre outros. Este é um dos principais projetos da modernidade, ou seja, construir uma cultura global. Esta intensificação de contatos transfronteiriços de novas culturas, ao mesmo tempo em que abre um caminho para a tolerância e para a solidariedade, faz com que surjam novas formas de intolerância, xenofobia e imperialismo, principalmente, quando há uma imposição de cima, notadamente, dos Estados Unidos e de outros países centrais, que através dos meios de comunicação, ditam o que é ou não culturalmente relevante. Para a compreensão da nova realidade social, é preciso compreender as mudanças ocorridas no tempo-espaço, uma vez que é com essas transformações que o fenômeno da globalização se acelera e se difunde. Nesta nova ordem há os que ficam preso no tempo e no espaço e os extraterritoriais, mas os primeiros, também contribuem fortemente para os processos de globalização. Exemplo disso são “os moradores das favelas do Rio de Janeiro, que permanecem prisioneiros da vida urbana marginal, enquanto as suas canções e suas danças, sobretudo o samba, constituem hoje parte de uma cultura globalizada.”25 Dentro deste contexto, na perspectiva de Boaventura, pode-se afirmar ainda que de forma geral, que a globalização desdobra-se em quatro modos de produção, que dão origem a quatro formas de globalização.26 A primeira forma de globalização, denominada de localismo globalizado, ocorre quando um determinado fenômeno local é globalizado com sucesso. 25 SANTOS, Boaventura de Souza. Os processos de globalização. In: __ SANTOS, Boaventura de Souza. A globalização e as ciências sociais. São Paulo: Cortez, 2002, p. 64. 26 Segundo Boaventura, SANTOS, Boaventura de Souza. Uma concepção multicultural de direitos humanos. Lua Nova, Revista de Cultura e Política, n. 39, p. 111, “Neste contexto é útil distinguir entre globalização de-baixo-para-cima, ou entre globalização hegemônica e globalização contra- hegemônica. O que eu denomino de localismo globalizado e globalismo localizado são globalizações de cima-para-baixo; cosmopolitismo e patrimônio comum da humanidade são globalizações de baixo-para-cima.” PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 30. 29 “Neste modo de produção de globalização o que globaliza é o vencedor de uma luta pela apropriação ou valorização de recursos ou pelo reconhecimento da diferença.”27 Outra forma de globalização pode ser definida como globalismo localizado, ou seja, como o impacto sofrido nas condições locais, pelo motivo das imposições transnacionais. A desintegração e desestruturação das condições locais, cujo exemplo mais claro é a eliminação do comércio local, destruição dos recursos naturais, etc. Contudo, “Os países semiperiféricos são caracterizados pela coexistência de localismos globalizados e de globalismo localizados e pelas tensões entre eles. O sistema mundial em transição é uma trama de globalismo localizados e localismo globalizados.”28 A terceira forma pode ser denominada como a globalização da resistência aos localismos globalizados e os globalismos localizados. Localismo globalizado pode ser traduzido por cosmopolitismo, que pode ser definido como a resistência dos Estados-nações, regiões, classes sociais e grupos sociais vitimizados pelas trocas desiguais e pela busca de uma globalização não excludente, isto é, inclusiva. Por fim, a última forma de globalização pode ser entendida como o patrimônio comum da humanidade, ou seja, como as lutas transnacionais pela proteção e desmercadorização de recursos, entidades, ambientes considerados essenciais para a sobrevivência da humanidade. A principal expressão deste modo de produção globalizado são as organizações não-governamentais de advocacia progressista transnacional, entretanto, todos estes fenômenos são sinais de uma sociedade civil e política global apenas emergente. Diante dessas quatro formas de globalização, é preciso ressaltar que todas as transformações nas esferas econômica, política e cultural, coloca-nos diante de um sistema mundial em transição, com características próprias do sistema mundial moderno. Pois: 27 SANTOS, Boaventura de Souza, A Globalização e as Ciências Sociais, p. 65. 28 Ibid., p. 66. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 31. 30 “O sistema mundial em transição é muito complexo porque constituído por três grandes constelações de práticas – práticas interestatais, práticas capitalistas globais e práticas sociais e culturais transnacionais – profundamente entrelaçadas segundo dinâmicas indeterminadas. Trata-se, pois, de um período de grande abertura e indefinição, um período de bifurcação cujas transformações futuras são imperscrutáveis. A própria natureza do sistema mundial em transição é problemática e a ordem possível é a ordem da desordem. Mesmo admitindo que o novo sistema se seguirá ao atual período de transição, não é possível estabelecer uma relação determinada entre a ordem que o sustentará e a ordem caótica do período atual ou a ordem não caótica que a precedeu e que sustentou durante cinco séculos o sistema mundial moderno. Nestas circunstâncias, não admira que o período atual seja objeto de várias e contraditórias leituras.”29 Dentro deste contexto globalizado multifacetado, segundo Boaventura de Souza Santos, presencia-se uma realidade dura e alarmante, principalmente, no que tange á pobreza e a desigualdade social, onde os historicamente marginalizados e excluídos são controlados pelo sistema financeiro e pelo sistema penal. Na mesma perspectiva de Boaventura de Souza Santos, o sociólogo polonês, Zygmunt Bauman, aborda a questão da globalização e do neoliberalismo com grande astúcia, notadamente, ao tratar da globalização e de suas conseqüências na sociedade contemporânea pós-moderna. Segundo Bauman, para a compreensão da sociedade contemporânea globalizada e neoliberal e do progressivo aumento da exclusão social faz-se necessário compreender as transformações ocorridas no tempo e espaço, onde se insere a mobilidade do capital. Este se move na mais alta velocidade para onde quer, não enfrentando limites reais, deixando a própria localidade onde está e onde sempre esteve e, muitas vezes, com conseqüências desastrosas para a comunidade local. 30 Diante desta nova realidade, a distância se transformou em produto social, sendo alterada pelos novos meios de transporte e principalmente pelos meios de comunicação e de transmissão de dados. Assim, a distância perdeu o seu significado real, distinguindo os “que se movem”, daqueles “que são movidos”. 29 SANTOS, Boaventura de Souza, A Globalização e as Ciências Sociais, p 89. 30 Segundo BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999, p. 16, “A mobilidade adquirida por ‘pessoas que investem’ – aquelas com capital, com o dinheiro necessário para investir – significa uma nova desconexão sem precedentes na sua radical incondicionalidade: obrigações com os empregados, mas também com os jovens e fracos, com as gerações futuras e como a auto-reprodução das condições gerais de vida. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 32. 31 “Alguns podem agora mover-se para fora da localidade – qualquer localidade – quando quiserem. Outros, observam impotentes, a única localidade que habitam movendo-se sobre seus pés.” 31 Dentro dessa nova realidade os detentores do poder tornam-se extraterritoriais, não precisando, assim, se preocupar com o que ocorre com os espaços locais, onde investiram ou irão investir. Tal fato traz como conseqüência, o isolamento de ambas as partes, ou seja, entre ricos e pobres, pois as elites escolheram o isolamento e pagam por ele prodigamente de boa vontade, ao contrário, o resto da população se vê afastado e forçado a pagar o pesado preço cultural, psicológico e político do seu novo isolamento. Com isto, progressivamente, constata-se o desaparecimento do espaço público, a desintegração da comunidade urbana, a separação e a segregação das classes sociais, enfim, a extraterritorialidade da nova elite e a totalidade forçada do resto da população. Verifica-se que os espaços públicos seguiram as elites, soltaram de suas âncoras locais. Assim, o espaço público, na sociedade contemporânea, vem se restringindo, tendo como conseqüência, a restrição do debate das normas sociais reguladoras, onde os valores sociais já não são mais confrontados e negociados, o que faz com que os vereditos decretados sobre quaisquer assuntos venham de cima, de forma inquestionável. Neste contexto, faz-se necessário que os indivíduos hajam de acordo com as normas impostas dentro dos “padrões de normalidade”; aqueles que não conseguem adaptar-se aos padrões estabelecidos devem ser confinados em prisões ou em áreas distantes de modo a não perturbar a “normalidade”, o ideal da “cidade perfeita”, numa total rejeição de sua história e demolição de todos os seus vestígios palpáveis. O resultado deste modelo de sociedade tem como conseqüência, a intolerância face à diferença, o ressentimento com os estranhos e a exigência de isolá-los e bani-los e, por fim, a paranóica preocupação com a “lei 31 Segundo BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999, p. 25. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 33. 32 e a ordem”, que segrega e exclui os “fora da lei”: negros, pobres, mulheres e minorias sexuais e étnicas. Para Bauman: 32 “A garantia de segurança tende a se configurar na ausência de vizinhos com pensamentos, atitudes e aparência diferentes. A uniformidade alimenta a conformidade e a outra face da conformidade é a intolerância. Numa localidade homogênea é extremamente difícil adquirir as qualidades de caráter e habilidades necessárias para lidar com a diferença humana e situações de incerteza; e na ausência dessas habilidades e qualidades é facílimo temer o outro, simplesmente por ser outro.” O medo e a insegurança na sociedade contemporânea não são compreendidos como problema coletivo, mas sim como problema individual. Exemplo disso é a construção dos bairros fechados e vigiados, dos espaços públicos com ampla proteção para afastar os concidadãos indesejados e “perigosos”, tornando-se uma estratégia extremamente segregadora, principalmente nos grandes centros urbanos. Neste cenário, a única forma de inclusão é através da capacidade de consumo, que são avaliadas através de informações eletrônicas; avaliam-se os consumidores confiáveis, eliminando todo o restante que não deve ser levado em conta no jogo do consumo. Na atual sociedade de consumo há um dilema se é necessário consumir para viver ou se o homem vive para consumir. Contudo, “Todo mundo pode ser lançado na moda do consumo; todo mundo pode desejar ser um consumidor e aproveitar as oportunidades que esse modo de vida oferece. Mas nem todo mundo pode ser um consumidor.” 33 O que se constata é uma grande diferenciação entre o mundo daqueles chamados cosmopolitas e extraterritoriais, ou seja, os homens de negócio, os controladores do capital e da cultura, onde não há fronteiras, e aqueles presos à localidade, vigiados pelos controles de imigração e pelas políticas públicas de “tolerância zero”. Sobre esta questão Bauman faz uma brilhante associação da figura daqueles que “se movem” e dos que “são movidos”, respectivamente, com a figura do turista e do vagabundo, afirmando que não há turistas sem vagabundos, 32 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999, p. 55. 33 , Ibidm, p. 94. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 34. 33 e os turistas não podem ficar à solta se os vagabundos não forem presos. Para o autor: 34 “Os turistas ficam ou se vão a seu bel-prazer. Deixam um lugar quando novas oportunidades ainda não experimentadas acenam de outra parte. Os vagabundos sabem que não ficarão muito tempo num lugar, por mais que o desejem, pois provavelmente em nenhum lugar onde pousem serão bem-sucedidos.” Constata-se, assim, que na sociedade contemporânea há uma segregação extrema entre turistas e vagabundos, ou melhor, entre ricos e pobres, aqueles cada vez mais ricos e estes cada vez mais pobres e indesejados por aqueles, “Os turistas têm horror dos vagabundos pela mesmíssima razão que os vagabundos encaram os turistas como gurus e ídolos: na sociedade dos viajantes, na sociedade viajante, o turismo e a vagabundagem são as duas faces da mesma moeda.”35 Assim, o mundo sonhado seria um mundo sem “vagabundos”, um mundo no qual vigorasse a paz tão sonhada, sem perturbações e sem inseguranças, imperando a lei e a ordem, já que: “A política da sociedade dos turistas pode ser em grande parte explicada – como a obsessão com ‘a lei e a ordem’, a criminalização da pobreza, o recorrente extermínio dos parasitas etc. – como um esforço contínuo e obstinado para elevar a realidade social, contra todas as evidências, ao nível dessa utopia.”36 Com esta nova divisão entre elite e povo, rico e pobre, turista e vagabundo, oriunda, principalmente, dos efeitos da globalização e do neoliberalismo, constata-se uma grande desestruturação das relações sociais no seio da sociedade. Para a solução de tal problema, o principal instrumento de controle social a ser colocado em prática é o sistema penal, criminalizando e excluindo os pobres. Nesta nova realidade, para a liberdade de uns (da elite) faz-se imperativo a supressão da liberdade de outros (dos pobres e excluídos). A supressão da liberdade destes se dá, primordialmente, através do confinamento espacial, do encarceramento sob os variados graus de severidade e rigor. É como se tivesse descoberto a fórmula mágica para lidar com os setores inassimiláveis e 34 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas, p. 101. 35 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas, p. 105. 36 Ibid., p. 106. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 35. 34 problemáticos da população, difíceis de controlar.”37 Este meio de controle social é o mais usado para reagir à diferença, particularmente, à diferença que não pode ser acomodada na rede habitual das relações sociais. Na sociedade disciplinar teorizada por Foucault,38 o controle social expressava-se através do disciplinamento, inspirado no panóptico, onde as prisões e as casas de correção são os exemplos mais significativos, cujo propósito era a recuperação moral para o retorno ao convívio na sociedade normal, combater a preguiça, a indiferença pelas normas sociais, etc. As casas panópticas de confinamento eram fábricas de trabalho disciplinado, e sempre foi discutido esse propósito de reabilitação dos presos. Na sociedade contemporânea com as novas técnicas de controle social e dominação, as prisões e o confinamento não são mais usados com o falso objetivo reabilitador, mas, expressamente, como exclusão social daqueles que não assimilam as políticas públicas de “lei e ordem” impostas. Pois: “Nas atuais circunstâncias, o confinamento é antes uma alternativa ao emprego, uma maneira de utilizar ou neutralizar uma parcela considerável da população que não é necessária à produção e para qual não há trabalho ao qual se reintegrar.(...) A prisão tem hoje a função de exclusão de pessoas habituadas a sua condição de excluídas. A marca dos excluídos na era da compreensão espaço- temporal é a imobilidade.(...) A questão é tanto mais preocupante do ponto de vista ético pelo fato de que aqueles que punimos são em larga medida pessoas pobres e extremamente estigmatizadas que precisam mais de assistência do que punição.”39 No mundo contemporâneo cresce o número de pessoas na prisão, em quase todos os países, e os gastos com o aparato policial e com as “forças de lei e ordem” crescem em todo planeta, o que mostra que há amplos setores da população visados por ameaçarem a nova ordem social estabelecida. O encarceramento das massas empobrecidas e excluídas tem sido usado como instrumento de controle social eficiente para neutralizar ou acalmar a ansiedade pública, provocada pela ameaça de setores “desviados” da população. Outro fator importante é o espetáculo que se faz nos meios de comunicação quando o tema é violência ou (in)segurança. A estratégia é criar uma 37 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas, p. 114. 38 Para maior aprofundamento sobre a sociedade disciplinar ver: FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 1987. 39 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas, p. 123. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 36. 35 sensação de perigo e medo constantes, amedrontando e aterrorizando a população, cujo objetivo último, é legitimar a criação de políticas públicas de segurança repressivas e militarizadas, violando os direitos humanos das massas empobrecidas e excluídas do novo modelo de acumulação de capital. Como salienta Bauman: 40 “Ninguém os acusaria também de indolência e de não fazer nada relevante pelas ansiedades humanas ao ver diariamente os documentários, dramas, docudramas e dramas cuidadosamente encenados sob o disfarce de documentários contando histórias de novas e melhoradas armas da polícia, fechaduras high-tech de prisão, alarmes contra assalto e roubo de carros, tortura de criminosos com choques curtos e fortes e os corajosos agentes e detetives arriscando as vidas para que o restante das pessoas possam dormir em paz.” Nesta perspectiva, crescem, progressivamente, as infrações tipificadas como crime e puníveis com prisão, sem falar no aumento das penas dos crimes considerados como hediondos, onde o criminoso, regra geral, cumpre, integralmente, a pena em regime fechado nos “presídios de segurança máxima”. Dentre muitas outras questões, as políticas de “tolerância zero” e as estratégias de segurança máxima têm o condão de aumentar a popularidade dos governos, pois mostra que os governantes ainda são capazes de fazer algo pela segurança da população. Isso porque: “No mundo das finanças globais, os governos detêm pouco mais que o papel de distritos policiais superdimensionados; a quantidade e qualidade dos policiais em serviço, varrendo os mendigos, perturbadores e ladrões das ruas, e a firmeza dos muros das prisões assomam entre os principais fatores de ‘confiança dos investidores’ e, portanto, entre os dados principais considerados quando são tomadas decisões de investir ou de retirar um investimento. Fazer o melhor policial possível é a melhor coisa que o Estado pode fazer para atrair o capital nômade a investir no bem-estar dos seus súditos.” 41 Todo este ambiente de “lei e ordem”, fortemente manipulado pela mídia, cujo objetivo maior é criar uma constante sensação de perigo, tem como principal conseqüência tornar as pessoas entusiastas naturais das sentenças de prisão e de condenações com penas cada vez mais altas. Tudo combina muito bem e restaura a lógica ao caos da existência. Todavia, há uma seletividade desta política de “lei e ordem”, pois “as ações mais prováveis de serem cometidas por pessoas para as 40 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas, p. 127. 41 Ibid, p. 128. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 37. 36 quais não há lugar na ordem, pelos pobres diabos tiranizados, têm a melhor chance de aparecer no código criminal.”42 Enfim, na sociedade contemporânea, denominada pós-moderna, há um recrudescimento penal sobre os “fora da ordem”, ao passo que os grandes fraudadores e outros crimes de colarinho branco não são alvos de espetáculo como se faz nos julgamentos de pobres coitados, dos consumidores falhos. É neste contexto da sociedade contemporânea globalizada e multifacetada que insere a América Latina, região em desenvolvimento, com um triste passado de autoritarismo, de desigualdade e de exclusão social. No diz que respeito ao Brasil, país que compõe a referida região, a situação não é diversa do restante dos países da América Latina. Neste país, a desigualdade e a exclusão social são uma das mais graves do mundo. Diante disso, os princípios da democracia e a garantia da cidadania e dos direitos humanos são constantemente colocados em questão, principalmente, pelo fortalecimento dos mecanismos penais. O que se presencia, assim, é progressiva erosão do Estado prestacional, no Brasil, e a implantação de Estado penal máximo, onde a solução para os problemas sociais é a adoção de uma política de encarceramento em massa dos setores pobres da população, considerados indesejáveis e perigosos. A violência e a criminalidade são encaradas como um problema a ser resolvido pelo sistema penal e pela “mão invisível” do mercado. Para a solução dos complexos desajustes sociais da sociedade contemporânea, lança-se mão do mercado ou do aprisionamento como as únicas possibilidades de “salvação”, ou seja, de garantir a segurança e a paz social, algo cada dia mais exigido pelas classes dominantes brasileiras, e talvez por toda a sociedade.43 O Brasil, enquanto país periférico e em desenvolvimento, bem como em toda América Latina, as conseqüências da globalização e do neoliberalismo fizeram-se mais expressivas, refletindo intensamente nas prestações sociais às quais os Estados estão legalmente obrigados. Os exemplos mais significativos 42 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas, p. 131. 43 Ver WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, WACQUANT, Loic. Os condenados da cidade: estudos sobre marginalidade avançada. Rio de Janeiro: Revan/FASE, 2001, 2. ed. Setembro de 2005 e WACQUANT, Loic. Punir os pobres, a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 38. 37 destas conseqüências são a flexibilização e precarização da força de trabalho, resultando em graves desestruturações sociais, aumentos da exclusão e da desigualdade social. Acrescente a isso, os desmantelamentos dos serviços públicos, principalmente, saúde, educação e assistência social, causados pelos ajustes fiscais em prol do fortalecimento da estabilidade econômica. Para controlar os desajustes sociais da nossa sociedade usa-se, também, como remédio, o encarceramento dos setores pobres da sociedade, que em nossas prisões pode ser percebido a olho nu, independente das estatísticas dos órgãos de segurança pública. Basta que se olhe para as nossas instituições prisionais, para se constatar que estão povoadas de pobres, em sua maioria negros, afro-descendentes e migrantes nordestinos. Tal questão está associada à reforma do Estado brasileiro, cujo objetivo maior foi cumprir as exigências internacionais. Contudo, parece que estamos diante de um paradoxo, uma vez que tal processo de encarceramento se dá, concomitantemente, com o processo de redemocratização e consolidação da democracia no Brasil, Acreditamos, assim, que as transformações ocorridas nas esferas da produção e do consumo e, conseqüentemente, nas políticas de segurança têm efeitos sobre a democracia, a cidadania, a criminalidade e os direitos humanos, uma vez que o novo ponto referencial para a tomada de decisões políticas não é mais a pessoa humana, mas os interesses do mercado e, respectivamente, do lucro. Paradoxalmente, no Brasil, o que se presencia, principalmente nas duas últimas décadas do século XX, no contexto da promulgação da Constituição Federal de 1988 e da democratização, é a permanência da violação dos direitos fundamentais, da cidadania e dos direitos humanos. Em nosso país as políticas neoliberais tentam não só diminuir o poder do Estado, mas redesenhar os novos papéis desse Estado e da sociedade civil, pondo na mesa outra vez o contrato social, tentando excluir as ordens mais baixas de sua órbita, pois, aos pobres, na grande maioria das vezes, somente é garantida a cidadania negativa,44 já que estes somente são reconhecidos pelo Estado através 44 BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 57, comenta que o termo cidadania negativa foi usado por Nilo Batista. Segundo a autora a concepção de cidadania negativa “se restringe ao conhecimento e PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 39. 38 dos órgãos policiais/judiciários e, quase nunca, pela prestação adequada de serviços de educação, saúde, assistência social, etc. Em suma, o que se presencia é o desmantelamento do Estado prestacional e o fortalecimento do Estado penal máximo, cujo objetivo é a criminalização da miséria e, que em última instância, pode nos conduzir a um Estado totalitário. Com a atrofia do Estado prestacional e a hipertrofia do Estado penal, presencia-se, no Brasil, a adoção de uma política pública de segurança inspirada na política do “tolerância zero”, nos moldes americanos, onde há o aprisionamento maciço dos pobres, dos inúteis e dos submissos, dos consumidores falhos. Neste contexto, presencia-se a permanência das mais diversas violações dos direitos de cidadania e dos direitos humanos, em patente afronta ao Estado democrático de direito. As transformações presenciadas em nossa sociedade, notadamente, nas últimas duas décadas, têm repercussões dramáticas para os setores historicamente pobres e excluídos. Tudo leva a crer que essas transformações têm afetado de forma ainda mais acentuada as mulheres, que histórica e culturalmente, sempre foram as mais excluídas e sofreram, mais acentuadamente, as conseqüências da pobreza, da exclusão social e das precárias políticas públicas de saúde, educação, assistência social, etc. Assim, em que pese as conquistas obtidas pelas mulheres no que diz respeito aos direitos humanos e à cidadania, nas últimas décadas, seu status enquanto sujeito de direito ainda é desfavorável e, por sua vez, as transformações econômicas sociais, fruto do fenômeno da globalização e do neoliberalismo, vem repercutindo de forma negativa nas suas vidas e em seus direitos. Tal fato torna-se ainda mais complexo e desfavorável às mulheres na medida em que os Estados vem perdendo, progressivamente, a sua capacidade de prestação social. Tal questão torna-se ainda mais agravada quando se fala na garantia dos direitos sexuais e direitos reprodutivos das mulheres, que demandam políticas públicas específicas no sentido de garantir tais direitos. Deste modo, como as exercício dos limites formais à intervenção do Estado. Esses setores vulneráveis, ontem escravos, hoje massas marginais urbanas, só conhecem a cidadania pelo avesso, na ‘trincheira auto- defensiva’ da opressão dos organismos do nosso sistema penal.” PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 40. 39 garantias sociais vêm sendo substituídas pelo controle social formal, torna-se ainda, mais difícil avançar no enfrentamento do fenômeno do aborto enquanto questão de saúde pública. Assim, a criminalização de tal prática mostra-se, simbolicamente, como o mecanismo para a prevenção de tal conduta delituosa, resultando em conseqüências negativas significativas no que diz respeito aos princípios democráticos e à promoção e garantia da cidadania e dos direitos humanos. 2.2 Ilegitimidade do sistema penal, os conflitos sociais e o fenômeno do aborto Conforme tivemos oportunidade de abordar acima, presencia-se, progressivamente, nas últimas duas décadas o desmantelamento das bases dos Estados nacionais e, em conseqüência, o declínio das prestações sociais, o aumento da pobreza, da exclusão social, o crescimento das políticas de segurança pública autoritárias/totalitárias e o aumento progressivo do encarceramento das massas empobrecidas como a solução para conter e solucionar os desajustes e conflitos sociais. No contexto de insegurança econômica e social em que se presencia grandes desajustes nas relações sociais, a intensificação dos instrumentos de controle social é o meio simbólico mais eficaz de afirmar a necessidade de se impor a lei e a ordem, justificando, assim, o progressivo aumento do poder de punição dos Estados, regra geral, dos seguimentos pobres, já condenados pela impossibilidade de acesso às necessidades básicas de acesso à moradia, saúde, educação trabalho, assistência social. Enfim, já condenados pela miséria. Na sociedade contemporânea, presencia-se uma falaciosa crença que o sistema penal seria o mecanismo eficiente e eficaz para a solução dos conflitos sociais.45 Tal fato se dá no contexto do discurso ideológico do aumento progressivo da criminalização em detrimento das políticas sociais (veiculada, 45 Ver ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. Parte geral, 5. ed., rev. e atual. São Paulo: Editora Revistas dos Tribunais, 2004 e ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 41. 40 principalmente pelos meios de comunicação) e seu falso argumento, perpassa toda a sociedade, fazendo parte do senso comum da grande maioria dos indivíduos. Esse discurso (do direito penal máximo) vem sendo usado como o único ou principal discurso, seja nos crimes em geral, seja em relação ao crime de aborto, crime esse, polêmico, que envolve não só questões jurídicas, mas também questões éticas, morais e religiosas. Como brilhantemente salienta Karam:46 “A associação da idéia de crime a algo misterioso, poderoso e incontrolável por meios regulares, através da manipulação da linguagem, decerto, não é nova. O discurso demonizador que, hoje, se vale especialmente das ocas expressões ‘criminalidade organizada’ e ‘narcotráfico’, para viabilizar legislações de exceção, outrora já se valeu das expressões ‘bruxarias’ e ‘heresia’, que, na sua época, eram igualmente apresentadas como um ‘mal universal’, a ser enfrentado com medidas excepcionais. A novidade nestes tempos pós-modernos, é o significativo reforço distorcido, dramático e demonizador discurso da repressão penal, dado pelo eco advindo da intensificada divulgação pelos meios massivos de informação de condutas socialmente negativas ou conflituosas qualificadas como crime.” Acreditamos que este contexto de aumento da hipertrofia do sistema penal é um paradoxo dentro do paradigma da democracia e dos direitos humanos. Desta forma, comungando com o pensamento de estudiosos e pensadores da criminologia crítica e da criminologia abolicionista, partiremos da premissa de que o sistema penal é ilegítimo e ineficaz para resolver os desajustes e conflitos sociais, oriundos da sociedade contemporânea. A lógica do referido sistema é excludente e segregadora, sendo incompatível com os princípios e a filosofia de promoção e proteção de direitos humanos e com os pressupostos fundamentais do Estado democrático de direito. Assim, a ampliação do poder punitivo do Estado tem implicações relacionadas com os regimes de exceção que se expressa através da produção de leis que violam as garantias e direitos fundamentais dispostos na Constituição.47 Não podemos nos esquecer, ainda, que a tipificação de uma conduta como crime não é algo natural, imutável e absoluto, mas é, antes de tudo, uma questão de política criminal. Um determinado comportamento social passa ou deixa de ser 46 KARAM, Maria Lúcia. Pela abolição do sistema penal. In: __ PASSETI, Edson (coord.). Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 77. 47 Para maior aprofundamento sobre tema Estado de exceção ver: AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2005. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 42. 41 crime de acordo com os interesses dominantes em diferentes momentos históricos. Isso porque o conceito de ordem, desordem, crime e castigo são conceitos dinâmicos, construídos nos diferentes momentos históricos, de acordo com os interesses políticos e econômicos da classe dominante que, regra geral, tipificam como crime os atos que são mais comumente praticados pelos seguimentos desprivilegiados da sociedade.48 Sendo assim, consideramos o sistema penal como um instrumento formal de controle social e da manutenção do status quo, que funciona de forma eficiente em seu objetivo oculto de selecionar e excluir os seguimentos despossuídos da sociedade. É sobre os historicamente pobres e excluídos que sempre foi aplicado o rigor da lei penal e o rigor das ações do sistema penal, pois mais relevante do que a prática da conduta criminosa, é quem a praticou e contra quem se praticou, pois isso é que sempre determinou o grau de zelo e de eficiência na aplicação da pena. O sistema penal sempre se mostrou ineficaz em cumprir os falsos objetivos de pacificação social, de ressocialização e instrumento de justiça. Desde a sua criação nos moldes em que o conhecemos, nenhum desses propósitos se realizaram nem mesmo de forma precária, pois logo após a sua criação já foi denunciado o fracasso da justiça penal, uma vez que “as prisões não diminuem a taxa de criminalidade: pode-se aumentá-las, multiplicá-las ou transformá-las, a quantidade de crimes e de criminosos permanece estável, ou, ainda pior, aumenta. Se isso se fizer verdade qual o sentido de sua manutenção.”49 Desta forma devemos: “(...) nos perguntar para que serve o fracasso da prisão; qual é a utilidade desses diversos fenômenos que a crítica, continuamente, denuncia: manutenção da delinqüência, indução em reincidência, transformação do infrator ocasional em delinqüênte. Talvez devamos procurar o que se esconde sob o aparente cinismo da instituição penal que, depois de ter feito os condenados pagar sua pena, continua a segui-los através de toda uma série de marcações e que persegue assim como ‘delinqüente’ aquele que quitou sua punição como infrator? Não podemos ver aí mais que uma contradição, uma conseqüência? Deveríamos então supor que a prisão e de uma maneira geral, sem dúvida, os castigos, não se destinam a suprimir as infrações; mas antes a distingui-las, a distribuí-las, a utilizá-las; que visam, não tanto tornar dóceis os que estão prontos a transgredir as leis, mas que 48 DORNELLES, João Ricardo W. O que é crime. Rio de Janeiro: 2 ed., Editora Brasiliense, 1998. p. 14. 49 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 221. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 43. 42 tendem a organizar a transgressão das leis numa tática geral de sujeições. A penalidade seria então uma maneira de gerir as ilegalidades, de riscar os limites de tolerância, de dar terreno a alguns, de fazer pressão sobre outros, de excluir uma parte, de tornar útil outra, de neutralizar estes, de tirar proveito daqueles (...).”50 Como se depreende do pensamento de Foucault, o sistema penal não passa de um instrumento de dominação e controle social, especialmente das massas empobrecidas, uma vez que as primeiras vítimas de tal sistema são, regra geral, as classes pobres. A pena de prisão em vez de coibir a prática de crimes é constitutiva de delinqüência, mostrando ao delinqüente que ele pertence ao mundo diverso da vida cotidiana. Enfim, a função da pena é punir e castigar, numa patente associação da figura do crime com a figura do pecado, já que todo pecador deve sofrer as penas por ter violado as leis de Deus, pois: “O ‘programa’ de atribuição da pena, típico da justiça criminal é cópia fiel da doutrina do ‘juízo universal’ e do ‘purgatório’, que encontramos em algumas doutrinas teológicas da cristandade ocidental. É também marcado pelas características de ‘centralidade’ e de ‘totalitarismo’, específicas destas doutrinas. Obviamente, tal origem – a ‘velha’ racionalidade – se esconde por trás de palavras novas: ‘Deus’ é substituído pela ‘lei’ e a ‘assembléia do povo’ por ‘nós’.”51 Outro autor que fundamenta a deslegitimação do sistema penal de forma muito convincente é Zaffaroni, um dos maiores estudiosos do direito penal e da criminologia da América Latina. O referido autor traz grandes contribuições para a abordagem da questão na perspectiva de nossa realidade periférica e em desenvolvimento. Em profundo estudo, Zaffaroni mostra que, apesar do crescimento do discurso penal, o mesmo está em crise, uma vez que é com base no discurso da pena que se legitima a violência, o autoritarismo e a violação dos direitos humanos, a fim de defender os interesses de determinado seguimento social. Para o referido autor, a legitimidade e a racionalidade do sistema penal tornaram-se utópicas e atemporais, pois não se realizaram em qualquer lugar e em qualquer tempo, pois tal sistema não atua, regra geral, de acordo com a legalidade, uma vez que a própria lei permite o exercício arbitrário do poder no que tange à 50 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 226. 51 HULSMAN, Louk. Alternativas à justiça criminal. In: __ PASSETI, Edson (coord.). Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 46. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 44. 43 estigmatização, prisões ilegais, buscas irregulares, etc. Exemplo disso é a atuação da polícia nas comunidades pobres e favelas, onde se justifica grandes atrocidades e violações de direito em nome do combate ao tráfico de drogas e da caça aos “marginais”. Assim, segundo Zaffaroni:52 “(...) a deslegitimação do sistema penal é resultante da evidência dos próprios fatos. No entanto, se há alguns anos, pretendia-se legitimar o exercício de poder do sistema penal em nome de nebulosas e futuras adaptações do mesmo à legalidade, a atual deslegitimação desenvolvida pela teoria sociológica central e pela criminologia da reação social fechou a antiga legitimante ao destruir a ilusão na qual se assentava (...)”. Comungando do pensamento do referido autor, acreditamos que o sistema perdeu por completo (se é que algum dia teve) a sua eficácia e legitimidade para resolver os conflitos sociais e, que, na sociedade contemporânea tal sistema não passa de instrumento de legitimação do poder, de controle social, de exclusão e segregação social dos seguimentos historicamente marginalizados da sociedade. Desta forma, acreditamos que dois caminhos teóricos são possíveis para se construir uma alternativa ao sistema penal hoje existente. A primeira alternativa seria trilhar o caminho da intervenção penal mínima (minimalismo penal), denominada por Ferrajolli (um de seus principais teóricos) de garantismo penal, que nega a legitimidade do sistema penal, tal como aplicado na sociedade contemporânea, mas propõe uma intervenção penal mínima que considera, apesar de não ser o ideal, ser o necessário. A segunda, seria trilhar o caminho do abolicionismo penal. A criminologia abolicionista nega o sistema penal e a pena de prisão hoje aplicada, negando, ainda, regra geral, a legitimação de qualquer outro sistema penal, postulando assim, a abolição total dos sistemas penais e propondo a solução dos conflitos sociais por outros mecanismos informais de composição.53 As duas mencionadas teorias alternativas ao sistema penal na sociedade contemporânea, na sua essência, têm alguns pontos em comum, ou seja, reconhecem que o sistema penal é fragmentário e seletivo, uma vez que atua de 52 ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 67 53 ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal, p.89. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 45. 44 forma quase exclusiva sobre as classes sociais historicamente marginalizadas e excluídas, sendo indiferente à violência estrutural e favorecendo a impunidade dos seguimentos detentores do poder.54 Por sua vez, as duas teorias têm algumas carências em dar respostas efetivas para a superação da aplicação do referido sistema. O Principal problema da teoria do “direito penal mínimo” é a sua solução de superação do sistema penal existente, partindo do próprio sistema penal que, como já mencionado, tem como objetivo principal a garantia de interesses do seguimento dominante da sociedade e que sempre foi aplicado de acordo com os princípios da seletividade, da exclusão e da segregação social. Por sua vez o abolicionismo penal carece de respostas práticas para a superação do direito penal aplicado na sociedade contemporânea. Não obstante a segunda alternativa parecer utópica, acreditamos que esta é o melhor caminho a ser trilhado em busca da superação do sistema penal hoje existente, pois as características desse sistema é o seu caráter controlador, segregador e excludente, pois sem isso a sua aplicação não atingiria os objetivos de satisfação dos interesses dos seguimentos detentores do poder na sociedade. Contra o argumento de que o abolicionismo penal é uma utopia, acreditamos que “(...) não há razão alguma para se crer que seja menos utópico um modelo de sociedade na qual não existe invulnerabilidade penal para os poderosos do que um modelo de sociedade no qual seja abolido o sistema penal.”55 A teoria do “direito penal mínimo” parte da premissa de que o direito penal deveria intervir minimamente nos conflitos sociais, devendo haver a descriminalização de grande parte das condutas tipificadas como delituosas e uma radical redução da pena de prisão. Segundo Zaffaroni, para Ferrajoli: “Um direito penal mínimo legitima-se, unicamente, através de razões utilitárias, ou seja, pela prevenção de uma reação formal ou informal mais violenta contra o delito. Em outros termos, para esse direito penal mínimo, o objetivo da pena seria 54 Ressalte-se que, apesar dos pontos em comum, as duas teorias possuem diferenças fundamentais, pois parte de pressupostos completamente diferentes e trilham caminhos diversos. 55 ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal, p.108. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA
  • 46. 45 a minimização da reação violenta conta o delito. Esse direito penal seria, portanto, justificado como um instrumento impeditivo de vingança.”56 Nesta perspectiva teórica, o direito penal teria a função de defender o mais fraco contra o mais forte, ou seja, teria como justificativa a ponderação entre o custo do direito penal e o custo de uma anarquia punitiva, evitando, assim, alternativas piores que o direito penal. Um dos maiores ícones do minimalismo penal foi Baratta,57 grande criminólogo alemão e uns maiores teóricos da criminologia crítica, fundamenta que o direito penal deve ser limitado a um mínimo para que o mesmo deixe de estar a serviço dos detentores do poder e deixe de ser um instrumento de violência institucional que limita e viola o direitos fundamentais dos indivíduos, mediante ação legal ou ilegal do sistema penal. Diferentemente, a teoria do abolicionismo penal é uma proposta político- criminal de abolição radical do sistema penal ou da pena de prisão e sua substituição por outras instâncias de solução de conflito. Enfim: “O abolicionismo penal não é só uma utopia que constata exclusões e discriminações; é uma prática de liberdade que não desconhece o poder dos juízes, promotores, advogados, técnicos das humanidades, pais, educadores, administradores e carcereiros. (...) O abolicionismo penal é mais do que a abolição do direito penal ou da prisão moderna. Ele problematiza a sociabilidade autoritária que funda e atravessa o ocidente como pedagogia do castigo em que, sob diversas conformações históricas, atribui-se a um superior o mando sobre o outro. (...) A abolição do castigo é a valoração de novos costumes, como resposta-percurso para situações-problemas. Não é apenas um efeito ou derivação do direito penal. Sua existência é o reconhecimento que nossa cultura se funda numa sociabilidade autoritária que nenhum regime democrático consegue conter ou dissipar.”58 A criminologia abolicionista teoriza e fundamenta as bases para a construção de um novo modelo de sociedade, onde os desajustes sociais possam ser vistos com outras lentes que não seja as do direito penal e que os conflitos sociais possam ser resolvidos sem a aplicação do direito penal e da pena de prisão. 56 ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal, p.95. 57 Para maior aprofundamento do assunto ver: BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 3 ed., Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002. 58 PASSETI, Edson. A atualidade do abolicionismo penal. In: __PASSETI, Edson (coord.)., Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 16 e 33. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510786/CA