1) O relatório da Anistia Internacional sobre mortes de defensores de direitos humanos no Brasil em 2017 utiliza como fonte um relatório anterior do Comitê Brasileiro de Defensores de Direitos Humanos.
2) Há questionamentos sobre a metodologia utilizada pela Comissão da Pastoral da Terra para contabilizar mortes no campo, que não faz distinção sobre a causa da morte.
3) A violência no campo faz parte de um contexto nacional de insegurança pública e impunidade, dificultando investigações sobre ameaças e homicídios.
1. BREVES REFLEXÕES SOBRE A NOTÍCIA NO JORNAL
É sem surpresa que vi veicular nos jornais da Rede Globo o relatório da Anistia
Internacional que traz a situação dos defensores de direitos humanos no Brasil, noticiando que
no ano de 2017, 58 defensores foram mortos em decorrência da sua atuação na defesa e
promoção dos direitos humanos.
O relatório da Anistia Internacional (AI) trata-se de um compilado de informações de
terceiros que já foram divulgados anteriormente, mas mesmo assim me deparo com alguns
questionamentos e observações que não são respondidos nos relatórios1
e aos quais gostaria
de compartilhar.
O primeiro deles é que o relatório do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de
Direitos Humanos foi publicado em agosto e trazia o mesmo número de mortes, o que significa
de lá para cá ninguém morreu o que sabemos que em relação aos conflitos no campo esse
dado pode não refletir a realidade, mesmo assim isso sequer é mencionado no texto.
Sobre a metodologia de coleta das informações. A AI utiliza como fonte o relatório do
Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos que por sua vez utiliza o
relatório da Comissão da Pastoral da Terra (CPT). A CPT todos os anos lança um relatório que
entre outras informações traz o número, registrado por eles, de mortes ocorridas no campo,
sem qualquer recorte em relação a causa ou a contextualização da história da pessoa que
morreu para saber se tratava-se de um trabalhador ou morador da zona rural e de uma
liderança. O que quero dizer é o que o relatório contabiliza qualquer morte ocorrida na zona
rural e por isso há um viés nesses números que devemos considerar.
Por outro lado, a Ouvidoria Agrária Nacional (OAN) afirma que de 2012 à junho de
2016 foram registradas 47 mortes decorrentes de conflitos agrários e outros 76 casos estão
sob investigação. Essas informações foram obtidas por meio da Lei de Acesso à Informação
(LAI) em agosto de 2016 e de lá para cá o país está passou e passa por um processo de
rupturas institucionais, chamada popularmente de golpes e no plural porque são muitos e
vindos de diversas áreas. Uma das ações do golpe foi extinguir o Ministério do
Desenvolvimento Agrário ao qual a OAN estava ligada e criar uma Secretaria Especial junto á
Casa Civil, chamada de Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento
Agrário (Lei 13.502 de 1 de novembro de 2017).
1
O plural é usado por se referir também aos relatórios fontes usado pela Anistia Internacional.
2. A principio a nova Secretaria deveria assumir todas as competências do extinto
Ministério, mas “misteriosamente” a OAN não aparece na estrutura da referida Secretaria,
mas o site do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) afirma que a OAN
ficará em sua estrutura2
. Essa ligação institucional é confirmada por meio da LAI, onde em
outubro do ano corrente solicitei atualização dos dados sobre mortes decorrentes de conflito
agrário e o pedido foi encaminhado ao INCRA, mas até a data de hoje não houve resposta e
recorri em duas instâncias pelas informações, sem sucesso. Então até aqui temos estruturas
institucionais que lidam com conflito no campo totalmente fragmentadas e
consequentemente enfraquecidas e inoperantes o que corrobora com o aumento da violência
no campo.
Entretanto a violência no campo é parte de um cenário nacional de insegurança
pública. De acordo com o Atlas de Violência de 20173
o Brasil registrou 59.080 mortes no ano
de 2015, o que dá uma média de 161,86 mortes por dia e 70% delas foram causadas por arma
de fogo. A impunidade ratifica a violência, por exemplo: somente 4% dos inquéritos chegam a
justiçam do Rio de Janeiro, os outros 96% são arquivados por diversos motivos entre eles a
falta de provas. Em São Paulo os números são semelhantes como mostra o estudo do Instituto
Sou da Paz.
Os dados acima não são para desqualificar ou banalizar as mortes ocorridas no campo
e trazidas no relatório, ao contrário, é para mostrar a complexidade do cenário social brasileiro
por traz dessas mortes.
Ainda segundo o relatório da AI “A Anistia Internacional também ouviu parentes e
amigos dos defensores assassinados e concluiu que muitas mortes poderiam ter sido evitadas.
É que os relatos apontam que ativistas chegaram a pedir proteção às autoridades, mas na
maioria dos casos a solicitação não foi atendida”. O crime de ameaça é considerado, pelo
Código Penal, de baixo potencial ofensivo, se a polícia não consegue determinar autores e
obter provas de 96% dos casos de homicídios, as investigações sobre as ameaças se quer
acontecem, ficando restrita aos boletins de ocorrências.
2
Fonte: http://www.incra.gov.br/noticias/nova-estrutura-do-incra-incorpora-ouvidoria-agraria-e-cria-
corregedoria-geral
3
Atlas da Violência 2017 é um estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e
pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública que analisou dados do Sistema de Informação sobre
Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, referentes ao intervalo de 2005 a 2015, e utilizou também
informações dos registros policiais publicadas no 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do FBSP
3. Gostaria de me ater ao caso Pau D´arco no Pará onde em um assentamento no sudeste
do estado houve a execução de dez posseiros, em maio deste ano, durante uma operação da
polícia no sul do estado. Em julho, Rosenilton foi assassinado seguido do vereador Francisco,
em outubro. Ambos os casos podem ter relação com as execuções de maio. Todavia, no dia
seguinte as execuções, em 25 de maio, o Conselho Nacional de Direitos Humanos já anunciava
a ida ao território para acompanhar os desdobramentos das investigações, entrevistar
familiares dos mortos e sobreviventes.
“O Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), que organizou o Ato em
conjunto com movimentos sociais e órgãos públicos com atuação em direitos
humanos, deliberou em sua 27ª Reunião Ordinária, na tarde desta quarta-
feira (24), ir ao Pará em missão emergencial para acompanhar o caso.
A missão, que será composta presidente do Conselho Nacional dos Direitos
Humanos (CNDH), Darci Frigo, pela Procuradora Federal dos Direitos do
Cidadão, Deborah Duprat, pelo presidente da Comissão de Direitos Humanos
e Minorias da Câmara dos Deputados, Deputado Paulão, e pelo presidente da
Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal da Ordem dois
Advogados do Brasil (OAB), tem como objetivo acompanhar a perícia e exigir
que seja feita a investigação que levará à responsabilização dos culpados pelo
massacre.”
Fonte: https://www.terrasemmales.com.br/comissao-nacional-de-direitos-
humanos-vai-ao-para-acompanhar-os-desdobramentos-do-massacre-em-pau-
darco/
Mesmo com toda essa comitiva de autoridades, não foi possível identificar que o Sr.
Resenilton e o Sr. Francisco estavam ameaçados, mas este mesmo grupo identificou outras 7
pessoas que foram encaminhadas e atendidas pelo Programa de Proteção ao Defensores de
Direitos Humano, por que não conseguiram identificar?
A ameaça geralmente ocorre com a intenção que a luta por direitos cesse, mas quando
os conflitos já estão muitos acirrados não basta parar o movimento, é preciso eliminar todos
que dele participam. Em outras situações verificamos que nem sempre há a ameaça, que há a
banalização das ameaças recebidas porque vivemos em uma sociedade violenta e que usa da
ameaça desde quando somos criança (por exemplo: se não comer tudo não vai ganhar
sobremesa) e porque a disputa por terras e meio ambiente, no Brasil, mata qualquer um, sob
qualquer condição, até mesmo com escolta como foi o caso de Chico Mendes.
Caso semelhante ocorreu em Rondônia quando a liderança do Movimento dos
Atingidos por Barragens (MB) foi morta e alegaram que ela vinha sofrendo ameaças, mas o
4. próprio MAB, que faz parte do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores nunca comunicou
o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) que existe desde 2009
e que atende todo o território nacional. O MAB não pode alegar desconhecimento do
Programa, pois anualmente assina a carta com críticas ao PPDDH emitida pelo Comitê. Mas
por que casos de Nicinha, Rosenilton e Francisco não chegaram ao PPDDH?
Para responder a essa pergunta só me vem à mente a noção foucaultiana de “deixar
viver e deixar morrer” que mostra que a invisibilidade mata e se estão invisíveis é porque
talvez os olhares possuam parâmetros que não contemplam essas realidades. Sim, estou
afirmando que instituições de direitos humanos levam ao conhecimento do PPDDH e cobram
atuação somente em alguns casos, o que me pergunto, se os demais não importam, logo
“deixar morrer” deixar ser usado no sentido figurado. Tais instituições que atuam sob a égide
dos direitos humanos são formados, em sua maioria, por homens, brancos e do sul. Será que é
por isso que o número de mulheres atendidas pelo PPDDH é tão baixo (20%)?
Não posso deixar de reconhecer que o PPDDH é uma política pública com problemas
sim, desde 2013 teve seu orçamento reduzido em 60% e uma quantidade de casos enorme de
pessoas que se negam a sair porque simbolicamente estar em um programa de proteção
coloca a sua luta em um patamar diferenciado das demais. É preciso reformular essa política e
o governo federal vem tentando há muitos anos, mas esbarra nos interesses pessoais das
entidades de direitos humanos preocupadas apenas em manter seu lugar de poder junto à
política.
A reforma do PPDDH nesse momento seria executada pelo Ministério dos Direitos
Humanos que assim como o MDA passa desde 2016 por profundas transformações
institucionais e que impacta, negativamente, a política de direitos humanos. Sobre este
assunto em breve teremos um artigo publicado.
Mas quem está do outro lado disputando as terras com esses agricultores? O Brasil
possui um modelo de produção agrícola baseada no latifúndio, que por sua vez pode ser
resumido em grandes concentrações de terras nas mãos de poucas pessoas as quais possuem
muito dinheiro. Essas pessoas por sua vez possuem grande representatividade no Congresso
Nacional, ou seja, são também deputados e senadores ou possuem poder de influência, pois
financiaram campanhas desses parlamentares em troca da defesa de seus interesses no
Congresso.
5. Até aqui então temos duas forças com grande representatividade no Congresso
Nacional e que compõem essa conjuntura dos conflitos do campo: as bancadas da bala e do
boi (segurança pública e agropecuária respectivamente). E na defesa de seus interesses a
Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou, em 29 de novembro, o Projeto de Lei
(PLS 224/2017) que libera a posse de armas a moradores da zona rural do país.
Por fim, os dados não dão conta de explicar e mostrar a realidade brasileira; em curso
está um projeto de sociedade que só tem lugar para os grandes e poderosos aos quais muitos
de nós não fazemos parte e ao qual seremos escolhidos para morrer, sem trocadilhos com a
noção foucaultiana citada acima e o “palco” sendo construído e noticiado diariamente pelos
poderes executivos, legislativo, em um grande pacto nacional, com Supremo, com tudo como
diria o senador Romero Jucá de Roraima e que também atua na área de mineração e
agronegócio.
Discursos nunca são apenas um amontado de palavras, eles são estruturas de poder e
controle. Relacionar essas mortes a apenas um Programa poderia representar certa
ingenuidade, mas não é, há interesses por trás de todos esses discursos senão um relatório de
agosto não estaria repercutindo 4 meses depois de seu lançamento. O que está colocado aí é
uma portaria que regula o PPDDH (trabalho iniciado em 2014 e só agora foi finalizado) e vem
por aí a discussão sobre a criação de mais um espaço participação social e manutenção do
poder dessas entidades que há mais de 10 estão soberanas dominando os Programas de
Proteção.
Fernanda Calderaro