O poema expressa a angústia existencial de tentar descobrir quem é o eu lírico através da poesia e das memórias do passado. O poeta sente que está perdendo o seu sentido de identidade como "a última rainha" cujo império desapareceu.
O documento descreve um pastor cujos pensamentos são todas as sensações que experimenta através dos sentidos. Ele pensa com os olhos, ouvidos, mãos e outros sentidos, de modo que pensar uma flor é vê-la e cheirá-la.
2. Abismo de ser muitos! Noite Minha!
Encruzilhada do meu vasto ser!
Quem quero que seja eu? Quem, no entrever
Do que fui, treva anónima e mesquinha?
Como o último estandarte da rainha
Com quem o império findo se perdeu,
Descem dos astros mudos do atro céu,
Poesia, as razões de quanto fui ou tinha.
Nos rumores da treva do que foi
Recuam na derrota a murmurar
As hostes sem (...) e sem herói
Do meu destino feito a ignorar,
E, como à última rainha, dói
No meu peito um segredo por achar.
3.
4. Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
5.
6. Súbita, uma angústia...
Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!
Que amigos que tenho tido!
Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!
Que esterco metafísico os meus propósitos todos!
E eu era parte de toda a gente que partia.
A minha alma era parte do lenço com que aquela
rapariga acenava
Da janela afastando-se de comboio...
O adeus do rapaz de boné claro
É dirigido a alguém dentro de mim
Sem que ele o queira ou o saiba...
E Paris-Fuentes d'Oñoro
Em letras encarnadas em fundo branco
Ao centro da carruagem, e no alto
Em letras que parecem mais vivas e sábias
Cª Internacional dos Wagons [...]
E o comboio avança — eu fico...
7.
8. Floresce em ti, ó magna terra, em cores
A vária primavera, e o verão vasto,
E os campos são de alegres.
Mas dorme em cada campo o outono dele
O inverno cresce com as folhas verdes
Tudo será esquecido.
9.
10. Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente
como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é
sentir — é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o
cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida.
Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo
com cada nova madrugada, numa revirgindade perpétua da
emoção — isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou
ter o que imperfeitamente somos.
Esta madrugada é a primeira do mundo. Nunca esta cor
rosa amarelecendo para branco quente pousou assim na face
com que a casaria de oeste encara cheia de olhos vidrados o
silêncio que vem na luz crescente. Nunca houve esta hora,
nem esta luz, nem este meu ser. Amanhã o que for será outra
coisa, e o que eu vir será visto por olhos recompostos, cheios
de uma nova visão.
Altos montes da cidade! Grandes arquitecturas que as
encostas íngremes seguram e engrandecem, resvalamentos de
edifícios diversamente amontoados, que a luz tece de sombras
e queimações — sois hoje, sois eu, porque vos vejo sois o que
amanhece [?] e amo-vos da amurada como um navio que
passa por outro navio e há saudades desconhecidas na
passagem.