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Abismo de ser muitos! Noite Minha!
Encruzilhada do meu vasto ser!
Quem quero que seja eu? Quem, no entrever
Do que fui, treva anónima e mesquinha?
Como o último estandarte da rainha
Com quem o império findo se perdeu,
Descem dos astros mudos do atro céu,
Poesia, as razões de quanto fui ou tinha.
Nos rumores da treva do que foi
Recuam na derrota a murmurar
As hostes sem (...) e sem herói
Do meu destino feito a ignorar,
E, como à última rainha, dói
No meu peito um segredo por achar.
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
Súbita, uma angústia...
Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!
Que amigos que tenho tido!
Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!
Que esterco metafísico os meus propósitos todos!
E eu era parte de toda a gente que partia.
A minha alma era parte do lenço com que aquela
rapariga acenava
Da janela afastando-se de comboio...
O adeus do rapaz de boné claro
É dirigido a alguém dentro de mim
Sem que ele o queira ou o saiba...
E Paris-Fuentes d'Oñoro
Em letras encarnadas em fundo branco
Ao centro da carruagem, e no alto
Em letras que parecem mais vivas e sábias
Cª Internacional dos Wagons [...]
E o comboio avança — eu fico...
Floresce em ti, ó magna terra, em cores
A vária primavera, e o verão vasto,
E os campos são de alegres.
Mas dorme em cada campo o outono dele
O inverno cresce com as folhas verdes
Tudo será esquecido.
Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente
como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é
sentir — é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o
cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida.
Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo
com cada nova madrugada, numa revirgindade perpétua da
emoção — isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou
ter o que imperfeitamente somos.
Esta madrugada é a primeira do mundo. Nunca esta cor
rosa amarelecendo para branco quente pousou assim na face
com que a casaria de oeste encara cheia de olhos vidrados o
silêncio que vem na luz crescente. Nunca houve esta hora,
nem esta luz, nem este meu ser. Amanhã o que for será outra
coisa, e o que eu vir será visto por olhos recompostos, cheios
de uma nova visão.
Altos montes da cidade! Grandes arquitecturas que as
encostas íngremes seguram e engrandecem, resvalamentos de
edifícios diversamente amontoados, que a luz tece de sombras
e queimações — sois hoje, sois eu, porque vos vejo sois o que
amanhece [?] e amo-vos da amurada como um navio que
passa por outro navio e há saudades desconhecidas na
passagem.
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  • 3.
  • 4. Sou um guardador de rebanhos. O rebanho é os meus pensamentos E os meus pensamentos são todos sensações. Penso com os olhos e com os ouvidos E com as mãos e os pés E com o nariz e a boca. Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la E comer um fruto é saber-lhe o sentido. Por isso quando num dia de calor Me sinto triste de gozá-lo tanto, E me deito ao comprido na erva, E fecho os olhos quentes, Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, Sei a verdade e sou feliz.
  • 5.
  • 6. Súbita, uma angústia... Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma! Que amigos que tenho tido! Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido! Que esterco metafísico os meus propósitos todos! E eu era parte de toda a gente que partia. A minha alma era parte do lenço com que aquela rapariga acenava Da janela afastando-se de comboio... O adeus do rapaz de boné claro É dirigido a alguém dentro de mim Sem que ele o queira ou o saiba... E Paris-Fuentes d'Oñoro Em letras encarnadas em fundo branco Ao centro da carruagem, e no alto Em letras que parecem mais vivas e sábias Cª Internacional dos Wagons [...] E o comboio avança — eu fico...
  • 7.
  • 8. Floresce em ti, ó magna terra, em cores A vária primavera, e o verão vasto, E os campos são de alegres. Mas dorme em cada campo o outono dele O inverno cresce com as folhas verdes Tudo será esquecido.
  • 9.
  • 10. Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir — é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida. Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo com cada nova madrugada, numa revirgindade perpétua da emoção — isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos. Esta madrugada é a primeira do mundo. Nunca esta cor rosa amarelecendo para branco quente pousou assim na face com que a casaria de oeste encara cheia de olhos vidrados o silêncio que vem na luz crescente. Nunca houve esta hora, nem esta luz, nem este meu ser. Amanhã o que for será outra coisa, e o que eu vir será visto por olhos recompostos, cheios de uma nova visão. Altos montes da cidade! Grandes arquitecturas que as encostas íngremes seguram e engrandecem, resvalamentos de edifícios diversamente amontoados, que a luz tece de sombras e queimações — sois hoje, sois eu, porque vos vejo sois o que amanhece [?] e amo-vos da amurada como um navio que passa por outro navio e há saudades desconhecidas na passagem.