1) O narrador parte apressadamente de casa com poucas pertences em uma mala, deixando para trás a cidade onde vivia.
2) Ele dirige por muitos quilômetros até parar em uma pequena cidade litorânea devido ao cansaço.
3) No cinema da cidade, o narrador adormece assistindo ao filme "Belle de Jour" e sonha que a atriz Catherine Deneuve sai da tela e pede para fugir com ele.
3. Tinha muita pressa. Toda a pressa do mundo. Tinha a pressa dos que fogem. Numa
pequena mala, desordenadamente, guardou algumas roupas, dois livros e poucos pertences.
Por vezes precisava de muito para viver. Outras, o pouco bastava-lhe. Correu as cortinas do
quarto e fechou a porta. Antes de correr as da sala ainda espreitou a cidade que começava a
acordar. Nascia, preguiçosamente, a manhã e não chovia. Apanhou a maleta, os
documentos, o sobretudo, desligou a luz e bateu a porta do apartamento. Desceu as escadas
com as chaves na mão e no hall do prédio pensou em atirá-las para dentro da caixa do
correio. Para que serviriam as chaves de uma casa à qual não se pretende voltar? Para nada.
No entanto, enfiou-as no bolso e recordou a frase tão usada por sua mãe: há mar e mar, há
ir e voltar. Atravessou a rua, dobrou a esquina e entrou no café. Pediu o de sempre, mas que
lhe embrulhassem os croissants. Fazia-se tarde e o tempo urgia. Queria alcançar a estrada
antes das oito e trinta. Cruzou a cidade e achou-a muito mais bonita do que costumava
achar, ou talvez fossem os seus olhos de adeus que a ela emprestavam mais encantos.
Conhecia-lhe tão bem os meandros, os becos, as ruelas, as esquinas e também as largas e
imponentes avenidas mas havia chegado a hora de deixá-la para aqueles que a quisessem. Já
na estrada, parado no posto de gasolina e enquanto aguardava a vistoria nos pneus e o
abastecimento do automóvel, aproveitou e comeu os croissants. O seu dia seria longo e
extenuante.
4. Já percorrera muitos quilômetros quando, finalmente, despontou o sol. Um sol
radiante num céu muito azul e límpido. Fizera-se uma bela e gélida manhã e,
conforme ouvira no rádio, para os próximos dias as temperaturas seriam muito
baixas e havia previsão de neve. Seria um inverno rigoroso, informara a locutora
que, em seguida, em voz empostada, anunciou uma hora só de música. Cantarolou
com Charles Aznavour Hier encore / J'avais vingt ans / Je caressais le temps ... e,
realmente, iam longe os seus vinte anos como já estava longe a cidade que deixara
ficar para trás. Já percorrera grande distância e naquele trecho a estrada estava
deserta. Não avistava outros automóveis, nem aldeias e tampouco pessoas. Sentiu-
se bem assim, sozinho e, fingindo estar feliz, por breves instantes, teve a impressão
de que não fugia. A mesma sensação tinha-a quando, com doze ou treze anos,
escapava do liceu e, refugiado em segurança nos fundos da loja do velho amigo
alfarrabista, deliciava-se com as leituras que, em casa, lhe eram proibidas. Anos
mais tarde, desertara. Não era homem de armas, de exércitos, nem de guerras e,
muito menos, de imposições. Custara-lhe, essa decisão, anos de clandestinidade, de
indigência, de fugas e perseguições e, essencialmente, de abandono e medo. Depois,
tempo passado, os ventos da História disseram-lhe que ele deixara de ser um
fugitivo. Qualificava, sem fingimento, todas as suas fugas como atos de coragem e
não de covardia.
5. Desde que partira, havia parado uma única vez para reabastecimento do
automóvel e para tomar um café. Começou a sentir os primeiros sinais de
cansaço e de fome. Escurecia rapidamente, embora não fossem ainda
cinco horas da tarde. Na estrada, o trânsito tornara-se intenso e era-lhe
desconfortante conduzir assim. Pararia na próxima povoação que
encontrasse.
Não lhe pareceu feia a cidadezinha, apesar de pouco iluminada e morta,
como mortas eram todas as vilas durante o inverno, especialmente as
litorâneas, como aquela onde jamais estivera. Estacionou o carro na praça
principal e entrou num restaurante. Lugar modesto, com pouquíssimas
mesas ocupadas, mas com uma sopa quente, pão e vinho muito bons,
tudo o que necessitava para lhe saciar a fome e afugentar o frio atroz que
sentia. Enquanto fazia a refeição observou a praça: árvores despidas, ao
centro uma pequena fonte, em frente um banco, uma farmácia, uma
correnteza de lojinhas, a maioria já com as luzes das vitrines apagadas,
um outro restaurante, de toldos verdes, e ao fundo, um cinema, cujo filme
em cartaz era "Belle de Jour". Lugar ideal para se refazer da fadiga de tão
longa viagem e para, em ambiente quente e confortável, conseguir um
repouso antes de prosseguir a sua jornada.
6. Há muito que queria ter visto aquele filme, do tão aclamado Buñuel. Surgira agora a oportunidade e não a desperdiçaria. A pequena sala
estava quase vazia, o que lhe permitiu a escolha de uma boa poltrona. Desde o início, acompanhou cada detalhe do filme com atenção,
embrenhou-se em seu enredo e acariciou com o olhar a sua atriz preferida. Belíssima, como sempre, uma obra de arte esculpida pela Natureza.
Avançava o filme para o seu final quando, de repente, vê pular do écran “a sua atriz” - vestido preto de golinha branca, sapatos igualmente
pretos, de verniz, qual traje de uma colegial - e deslizar em sua direção. Sentiu-lhe o calor e o cheiro ao sentar-se a seu lado, apreciou-lhe a
etérea beleza e o sorriso mais triste que até então vira, quando ela, ao seu ouvido, sussurrou:
- Fugi do filme.
- Eu vi. Catherine Deneuve? Perguntou-lhe.
- Deneuve é outra. Eu sou Séverine. Cansei-me de fingir. Ora finjo que sou prostituta, ora finjo que não sou. Estou farta. Tire-me daqui. Fuja
comigo.
- Vamos, seremos dois fugitivos e não fingiremos que sonhamos ...
7. Despertou com alguém a bater-lhe no ombro e a dizer-lhe:
- Desculpe, senhor, mas o cinema tem de fechar. Tive pena
de acordá-lo. Parece exausto.
- E estou. Foram muitas horas ao volante ...
Lá fora, agradeceu e despediu-se do porteiro com um
aperto de mão. A inclemência do frio, fê-lo calçar as luvas e
levantar a gola do sobretudo. Procuraria uma pensão para
pernoitar. Começara a nevar ...
Antes de entrar no carro olhou o cartaz do cinema e disse
para si:
Ah! se todas as putas que conheço fossem como Séverine ...