SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 8
Tinha muita pressa. Toda a pressa do mundo. Tinha a pressa dos que fogem. Numa
pequena mala, desordenadamente, guardou algumas roupas, dois livros e poucos pertences.
Por vezes precisava de muito para viver. Outras, o pouco bastava-lhe. Correu as cortinas do
quarto e fechou a porta. Antes de correr as da sala ainda espreitou a cidade que começava a
acordar. Nascia, preguiçosamente, a manhã e não chovia. Apanhou a maleta, os
documentos, o sobretudo, desligou a luz e bateu a porta do apartamento. Desceu as escadas
com as chaves na mão e no hall do prédio pensou em atirá-las para dentro da caixa do
correio. Para que serviriam as chaves de uma casa à qual não se pretende voltar? Para nada.
No entanto, enfiou-as no bolso e recordou a frase tão usada por sua mãe: há mar e mar, há
ir e voltar. Atravessou a rua, dobrou a esquina e entrou no café. Pediu o de sempre, mas que
lhe embrulhassem os croissants. Fazia-se tarde e o tempo urgia. Queria alcançar a estrada
antes das oito e trinta. Cruzou a cidade e achou-a muito mais bonita do que costumava
achar, ou talvez fossem os seus olhos de adeus que a ela emprestavam mais encantos.
Conhecia-lhe tão bem os meandros, os becos, as ruelas, as esquinas e também as largas e
imponentes avenidas mas havia chegado a hora de deixá-la para aqueles que a quisessem. Já
na estrada, parado no posto de gasolina e enquanto aguardava a vistoria nos pneus e o
abastecimento do automóvel, aproveitou e comeu os croissants. O seu dia seria longo e
extenuante.
Já percorrera muitos quilômetros quando, finalmente, despontou o sol. Um sol
radiante num céu muito azul e límpido. Fizera-se uma bela e gélida manhã e,
conforme ouvira no rádio, para os próximos dias as temperaturas seriam muito
baixas e havia previsão de neve. Seria um inverno rigoroso, informara a locutora
que, em seguida, em voz empostada, anunciou uma hora só de música. Cantarolou
com Charles Aznavour Hier encore / J'avais vingt ans / Je caressais le temps ... e,
realmente, iam longe os seus vinte anos como já estava longe a cidade que deixara
ficar para trás. Já percorrera grande distância e naquele trecho a estrada estava
deserta. Não avistava outros automóveis, nem aldeias e tampouco pessoas. Sentiu-
se bem assim, sozinho e, fingindo estar feliz, por breves instantes, teve a impressão
de que não fugia. A mesma sensação tinha-a quando, com doze ou treze anos,
escapava do liceu e, refugiado em segurança nos fundos da loja do velho amigo
alfarrabista, deliciava-se com as leituras que, em casa, lhe eram proibidas. Anos
mais tarde, desertara. Não era homem de armas, de exércitos, nem de guerras e,
muito menos, de imposições. Custara-lhe, essa decisão, anos de clandestinidade, de
indigência, de fugas e perseguições e, essencialmente, de abandono e medo. Depois,
tempo passado, os ventos da História disseram-lhe que ele deixara de ser um
fugitivo. Qualificava, sem fingimento, todas as suas fugas como atos de coragem e
não de covardia.
Desde que partira, havia parado uma única vez para reabastecimento do
automóvel e para tomar um café. Começou a sentir os primeiros sinais de
cansaço e de fome. Escurecia rapidamente, embora não fossem ainda
cinco horas da tarde. Na estrada, o trânsito tornara-se intenso e era-lhe
desconfortante conduzir assim. Pararia na próxima povoação que
encontrasse.
Não lhe pareceu feia a cidadezinha, apesar de pouco iluminada e morta,
como mortas eram todas as vilas durante o inverno, especialmente as
litorâneas, como aquela onde jamais estivera. Estacionou o carro na praça
principal e entrou num restaurante. Lugar modesto, com pouquíssimas
mesas ocupadas, mas com uma sopa quente, pão e vinho muito bons,
tudo o que necessitava para lhe saciar a fome e afugentar o frio atroz que
sentia. Enquanto fazia a refeição observou a praça: árvores despidas, ao
centro uma pequena fonte, em frente um banco, uma farmácia, uma
correnteza de lojinhas, a maioria já com as luzes das vitrines apagadas,
um outro restaurante, de toldos verdes, e ao fundo, um cinema, cujo filme
em cartaz era "Belle de Jour". Lugar ideal para se refazer da fadiga de tão
longa viagem e para, em ambiente quente e confortável, conseguir um
repouso antes de prosseguir a sua jornada.
Há muito que queria ter visto aquele filme, do tão aclamado Buñuel. Surgira agora a oportunidade e não a desperdiçaria. A pequena sala
estava quase vazia, o que lhe permitiu a escolha de uma boa poltrona. Desde o início, acompanhou cada detalhe do filme com atenção,
embrenhou-se em seu enredo e acariciou com o olhar a sua atriz preferida. Belíssima, como sempre, uma obra de arte esculpida pela Natureza.
Avançava o filme para o seu final quando, de repente, vê pular do écran “a sua atriz” - vestido preto de golinha branca, sapatos igualmente
pretos, de verniz, qual traje de uma colegial - e deslizar em sua direção. Sentiu-lhe o calor e o cheiro ao sentar-se a seu lado, apreciou-lhe a
etérea beleza e o sorriso mais triste que até então vira, quando ela, ao seu ouvido, sussurrou:
- Fugi do filme.
- Eu vi. Catherine Deneuve? Perguntou-lhe.
- Deneuve é outra. Eu sou Séverine. Cansei-me de fingir. Ora finjo que sou prostituta, ora finjo que não sou. Estou farta. Tire-me daqui. Fuja
comigo.
- Vamos, seremos dois fugitivos e não fingiremos que sonhamos ...
Despertou com alguém a bater-lhe no ombro e a dizer-lhe:
- Desculpe, senhor, mas o cinema tem de fechar. Tive pena
de acordá-lo. Parece exausto.
- E estou. Foram muitas horas ao volante ...
Lá fora, agradeceu e despediu-se do porteiro com um
aperto de mão. A inclemência do frio, fê-lo calçar as luvas e
levantar a gola do sobretudo. Procuraria uma pensão para
pernoitar. Começara a nevar ...
Antes de entrar no carro olhou o cartaz do cinema e disse
para si:
Ah! se todas as putas que conheço fossem como Séverine ...
Séverine

Mais conteúdo relacionado

Semelhante a Séverine

Taxi curitibano
Taxi curitibanoTaxi curitibano
Taxi curitibano
Inovasite
 
Taxi curitibano
Taxi curitibanoTaxi curitibano
Taxi curitibano
JNR
 
Chicos Especial Ascanio Lopes
Chicos  Especial  Ascanio LopesChicos  Especial  Ascanio Lopes
Chicos Especial Ascanio Lopes
Chicos Cataletras
 
Fiodor dostoievski noites brancas
Fiodor dostoievski   noites brancasFiodor dostoievski   noites brancas
Fiodor dostoievski noites brancas
alunouece
 
A última viagem de taxí
A última viagem de taxíA última viagem de taxí
A última viagem de taxí
siaromjo
 
Capitulo i - mais uma parte
Capitulo i - mais uma parteCapitulo i - mais uma parte
Capitulo i - mais uma parte
MesmoNaMorte
 

Semelhante a Séverine (20)

Microsoft word do outro lado da rua - aud d'angelo dias.
Microsoft word   do outro lado da rua - aud d'angelo dias.Microsoft word   do outro lado da rua - aud d'angelo dias.
Microsoft word do outro lado da rua - aud d'angelo dias.
 
Taxi curitibano
Taxi curitibanoTaxi curitibano
Taxi curitibano
 
Taxi curitibano
Taxi curitibanoTaxi curitibano
Taxi curitibano
 
Noites brancas
Noites brancasNoites brancas
Noites brancas
 
Brigite - Sexo, Amor & Crime
Brigite - Sexo, Amor & CrimeBrigite - Sexo, Amor & Crime
Brigite - Sexo, Amor & Crime
 
Taxi curitibano
Taxi curitibanoTaxi curitibano
Taxi curitibano
 
Taxi curitibano
Taxi curitibanoTaxi curitibano
Taxi curitibano
 
Taxi curitibano
Taxi curitibanoTaxi curitibano
Taxi curitibano
 
Taxi curitibano
Taxi curitibanoTaxi curitibano
Taxi curitibano
 
Taxi curitibano
Taxi curitibanoTaxi curitibano
Taxi curitibano
 
Minha última corrida!
Minha última corrida!Minha última corrida!
Minha última corrida!
 
Chicos Especial Ascanio Lopes
Chicos  Especial  Ascanio LopesChicos  Especial  Ascanio Lopes
Chicos Especial Ascanio Lopes
 
Fiodor dostoievski noites brancas
Fiodor dostoievski   noites brancasFiodor dostoievski   noites brancas
Fiodor dostoievski noites brancas
 
A última viagem de taxí
A última viagem de taxíA última viagem de taxí
A última viagem de taxí
 
Dias de verão a4
Dias de verão a4Dias de verão a4
Dias de verão a4
 
Capitulo i mesmo na morte
Capitulo i   mesmo na morteCapitulo i   mesmo na morte
Capitulo i mesmo na morte
 
Capitulo i - mais uma parte
Capitulo i - mais uma parteCapitulo i - mais uma parte
Capitulo i - mais uma parte
 
O feretro
O feretroO feretro
O feretro
 
O feretro
O feretroO feretro
O feretro
 
O feretro
O feretroO feretro
O feretro
 

Mais de guida04 (20)

Filmes (II)
Filmes  (II)Filmes  (II)
Filmes (II)
 
I Love Cats (II)
I Love Cats (II)I Love Cats (II)
I Love Cats (II)
 
Beautiful Africa
Beautiful AfricaBeautiful Africa
Beautiful Africa
 
Filmes
FilmesFilmes
Filmes
 
Poetas
PoetasPoetas
Poetas
 
Fotógrafos
FotógrafosFotógrafos
Fotógrafos
 
I Love Cats
I Love CatsI Love Cats
I Love Cats
 
Artur Pastor
Artur PastorArtur Pastor
Artur Pastor
 
José Saramago - Poesia
José Saramago - PoesiaJosé Saramago - Poesia
José Saramago - Poesia
 
Sonho
SonhoSonho
Sonho
 
Daro Bernardes
Daro BernardesDaro Bernardes
Daro Bernardes
 
Lisboa de Ontem
Lisboa de  OntemLisboa de  Ontem
Lisboa de Ontem
 
Gervasio Sánchez. El fotógrafo del dolor .
Gervasio Sánchez. El fotógrafo del dolor .Gervasio Sánchez. El fotógrafo del dolor .
Gervasio Sánchez. El fotógrafo del dolor .
 
Painting the Sun
Painting the SunPainting the Sun
Painting the Sun
 
Mar e Poesia
Mar e PoesiaMar e Poesia
Mar e Poesia
 
Here Comes the Sun
Here Comes the SunHere Comes the Sun
Here Comes the Sun
 
Chuva e Poesia
Chuva e PoesiaChuva e Poesia
Chuva e Poesia
 
Eric Lafforgue
Eric LafforgueEric Lafforgue
Eric Lafforgue
 
Eugène Atget
Eugène AtgetEugène Atget
Eugène Atget
 
Sonho
SonhoSonho
Sonho
 

Séverine

  • 1.
  • 2.
  • 3. Tinha muita pressa. Toda a pressa do mundo. Tinha a pressa dos que fogem. Numa pequena mala, desordenadamente, guardou algumas roupas, dois livros e poucos pertences. Por vezes precisava de muito para viver. Outras, o pouco bastava-lhe. Correu as cortinas do quarto e fechou a porta. Antes de correr as da sala ainda espreitou a cidade que começava a acordar. Nascia, preguiçosamente, a manhã e não chovia. Apanhou a maleta, os documentos, o sobretudo, desligou a luz e bateu a porta do apartamento. Desceu as escadas com as chaves na mão e no hall do prédio pensou em atirá-las para dentro da caixa do correio. Para que serviriam as chaves de uma casa à qual não se pretende voltar? Para nada. No entanto, enfiou-as no bolso e recordou a frase tão usada por sua mãe: há mar e mar, há ir e voltar. Atravessou a rua, dobrou a esquina e entrou no café. Pediu o de sempre, mas que lhe embrulhassem os croissants. Fazia-se tarde e o tempo urgia. Queria alcançar a estrada antes das oito e trinta. Cruzou a cidade e achou-a muito mais bonita do que costumava achar, ou talvez fossem os seus olhos de adeus que a ela emprestavam mais encantos. Conhecia-lhe tão bem os meandros, os becos, as ruelas, as esquinas e também as largas e imponentes avenidas mas havia chegado a hora de deixá-la para aqueles que a quisessem. Já na estrada, parado no posto de gasolina e enquanto aguardava a vistoria nos pneus e o abastecimento do automóvel, aproveitou e comeu os croissants. O seu dia seria longo e extenuante.
  • 4. Já percorrera muitos quilômetros quando, finalmente, despontou o sol. Um sol radiante num céu muito azul e límpido. Fizera-se uma bela e gélida manhã e, conforme ouvira no rádio, para os próximos dias as temperaturas seriam muito baixas e havia previsão de neve. Seria um inverno rigoroso, informara a locutora que, em seguida, em voz empostada, anunciou uma hora só de música. Cantarolou com Charles Aznavour Hier encore / J'avais vingt ans / Je caressais le temps ... e, realmente, iam longe os seus vinte anos como já estava longe a cidade que deixara ficar para trás. Já percorrera grande distância e naquele trecho a estrada estava deserta. Não avistava outros automóveis, nem aldeias e tampouco pessoas. Sentiu- se bem assim, sozinho e, fingindo estar feliz, por breves instantes, teve a impressão de que não fugia. A mesma sensação tinha-a quando, com doze ou treze anos, escapava do liceu e, refugiado em segurança nos fundos da loja do velho amigo alfarrabista, deliciava-se com as leituras que, em casa, lhe eram proibidas. Anos mais tarde, desertara. Não era homem de armas, de exércitos, nem de guerras e, muito menos, de imposições. Custara-lhe, essa decisão, anos de clandestinidade, de indigência, de fugas e perseguições e, essencialmente, de abandono e medo. Depois, tempo passado, os ventos da História disseram-lhe que ele deixara de ser um fugitivo. Qualificava, sem fingimento, todas as suas fugas como atos de coragem e não de covardia.
  • 5. Desde que partira, havia parado uma única vez para reabastecimento do automóvel e para tomar um café. Começou a sentir os primeiros sinais de cansaço e de fome. Escurecia rapidamente, embora não fossem ainda cinco horas da tarde. Na estrada, o trânsito tornara-se intenso e era-lhe desconfortante conduzir assim. Pararia na próxima povoação que encontrasse. Não lhe pareceu feia a cidadezinha, apesar de pouco iluminada e morta, como mortas eram todas as vilas durante o inverno, especialmente as litorâneas, como aquela onde jamais estivera. Estacionou o carro na praça principal e entrou num restaurante. Lugar modesto, com pouquíssimas mesas ocupadas, mas com uma sopa quente, pão e vinho muito bons, tudo o que necessitava para lhe saciar a fome e afugentar o frio atroz que sentia. Enquanto fazia a refeição observou a praça: árvores despidas, ao centro uma pequena fonte, em frente um banco, uma farmácia, uma correnteza de lojinhas, a maioria já com as luzes das vitrines apagadas, um outro restaurante, de toldos verdes, e ao fundo, um cinema, cujo filme em cartaz era "Belle de Jour". Lugar ideal para se refazer da fadiga de tão longa viagem e para, em ambiente quente e confortável, conseguir um repouso antes de prosseguir a sua jornada.
  • 6. Há muito que queria ter visto aquele filme, do tão aclamado Buñuel. Surgira agora a oportunidade e não a desperdiçaria. A pequena sala estava quase vazia, o que lhe permitiu a escolha de uma boa poltrona. Desde o início, acompanhou cada detalhe do filme com atenção, embrenhou-se em seu enredo e acariciou com o olhar a sua atriz preferida. Belíssima, como sempre, uma obra de arte esculpida pela Natureza. Avançava o filme para o seu final quando, de repente, vê pular do écran “a sua atriz” - vestido preto de golinha branca, sapatos igualmente pretos, de verniz, qual traje de uma colegial - e deslizar em sua direção. Sentiu-lhe o calor e o cheiro ao sentar-se a seu lado, apreciou-lhe a etérea beleza e o sorriso mais triste que até então vira, quando ela, ao seu ouvido, sussurrou: - Fugi do filme. - Eu vi. Catherine Deneuve? Perguntou-lhe. - Deneuve é outra. Eu sou Séverine. Cansei-me de fingir. Ora finjo que sou prostituta, ora finjo que não sou. Estou farta. Tire-me daqui. Fuja comigo. - Vamos, seremos dois fugitivos e não fingiremos que sonhamos ...
  • 7. Despertou com alguém a bater-lhe no ombro e a dizer-lhe: - Desculpe, senhor, mas o cinema tem de fechar. Tive pena de acordá-lo. Parece exausto. - E estou. Foram muitas horas ao volante ... Lá fora, agradeceu e despediu-se do porteiro com um aperto de mão. A inclemência do frio, fê-lo calçar as luvas e levantar a gola do sobretudo. Procuraria uma pensão para pernoitar. Começara a nevar ... Antes de entrar no carro olhou o cartaz do cinema e disse para si: Ah! se todas as putas que conheço fossem como Séverine ...