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Diário de bordo do capitão do
     Navio Escola Sagres
Diário
Continuámos a nossa navegação aos soluços, ora suportando vento forte ondulação alterosa
que nos atrasavam, ora aproveitando, cada brisa, cada abrigo e usando todas as velas para
recuperar das perdas. O mau tempo fazia parar o navio e desesperar quem olhava para a
hora prevista de chegada que a Carta Electrónica indicava (Março, Abril, Fevereiro...).

No dia 16 encostámos à costa da Sicília para navegar abrigados da ondulação e na contra-
corrente, ganhando barlavento para a travessia do Canal da Sicília em direcção à costa
Africana. As previsões indicavam para aquela costa ventos mais fracos e a urografia daria
mais abrigo do mar e da corrente que os ventos fortes dos últimos dias tornaram quase
intransponível. As correntes contrárias atingiam mais de três nós e estavam a condicionar
muito a nossa chegada. Quando nos pareceu que já tínhamos ganho barlavento suficiente
para virar e atingir num só bordo o Cabo Bon, iniciámos a travessia que se revelou mais fácil
do que perspectivávamos. Fomos navegando ao longo da costa da Tunísia e depois da Argélia
com terra à vista e bom sinal de rede móvel para os contactos com a família. A velocidade era
boa e já estávamos bem mais animados com as previsões de chegada a colocarem-se a 23 de
manhã.

O pior foi quando, a meio da tarde de dia 17, o vento cresceu em muito pouco tempo de uns
bons 25 nós na amura de bombordo para 50 na proa. Era a passagem de uma frente muito
activa que trouxe também aguaceiros fortes. O mar passou de cerca de 1 metro para ondas de
5 metros. A nossa velocidade, que andava pelos 9 nós, caiu para 1. Fomos lentamente
recuperando, navegando a uma média de 3 nós durante 12 horas e depois a cerca de 6 nós.
Perdemos muito tempo e o ânimo voltou a baixar até porque a forte corrente da entrada do
Mar de Alboran nos tirava 3 nós à velocidade de superfície. Mais uma vez optámos pelo
caminho mais longo e fomos contornar a costa de onde nos tínhamos afastado devido ao vento
forte que nos obrigou a arribar. E ao final do dia de Domingo já estávamos acima da média a
fazer 10 e 11 nós com uma corrente mínima que só voltou a manifestar-se quando tivemos que
nos fazer à boca do Estreito de Gibraltar.

É interessante o regime de correntes no Estreito pois a água à superfície corre para leste a fim
de compensar a elevada evaporação do Mediterrâneo e a fuga de água mais salgada em
profundidade para o Atlântico.

Passámos a linha imaginária entre Ceuta e a Ponta Europa, em Gibraltar, cerca das 22:00 de
dia 21. Fizemos uma gincana por entre o denso tráfego do Estreito, um pouco dificultada
porque vínhamos de sul. Às 23:00, a aproximar de tarifa, caiu sobre nós um aguaceiro com
uma tremenda trovoada que veio acompanhado por ventos que fecharam e chegaram aos 67
nós (124 km/h). O navio adornou e foi mais lento a arribar do que o vento a fechar. A
bujarrona de dentro bateu e desfez-se em farrapos. Saímos do Esquema de Separação de
Tráfego para manter as restantes velas cheias e carregámos o estai do velacho e o estai da
gávea ficando o pessoal todo encharcado!
De dia para dia vinham aumentando os contactos para confirmação da nossa hora de chegada
mas com tantas adversidades era muito difícil dar uma resposta de confiança. Nesta altura já
tínhamos desistido da chegada a 23 de manhã e estávamos a apostar na tarde, o que implicava
uma média de 7 nós.

A bordo havia uma sensação mista de alguma ansiedade com as dúvidas relativas à chegada e
pela proximidade de rever os familiares e amigos. Já se vivia uma certa satisfação pelo
sentimento do dever cumprido. A dureza desta última etapa vem de certa forma mostrar a
fibra da guarnição que contribuiu com o melhor de si, com muito esforço e dedicação para
uma bem sucedida missão. Todos trabalhavam com afinco! Nunca vimos mudar uma vela ou
mudar o óleo do motor tão rápido! As condições de trabalho eram horríveis, não se conseguia
descansar em condições, e o ânimo estava elevadíssimo!

À uma da manhã de dia 22, já a navegar no Atlântico e com ventos de "apenas" 30 nós,
voltámos a caçar as duas velas de estai para estabilizar o navio que já sentia a ondulação a
crescer. E cresceu, cresceu, até que começámos a levar autenticas chapadas de mar e a nossa
velocidade caiu para os 5 nós. E assim fomos, com saltos, inclinações, acelerações e
desacelerações, tudo muito brusco e por vezes regado por fortes aguaceiros, até deixar por
estibordo o Cabo Trafalgar e os bancos Trafalgar e del Hoyo. Com este mar os baixos ficam
mais perigosos devido ao encurtar das ondas que se tornam mais agressivas. Passados estes
baixos, às 5 da manhã, pudemos finalmente arribar e, com menos esforço, o motor imprimiu
mais velocidade ao navio e a esperança voltou à ponte. Tem sido sempre assim ao longo dos
últimos 12 dias, alternando frequentemente entre a convicção e a esperança de chegar a 23 e o
desalento de parecer impossível quando somos fustigados pelo mau tempo e pelas fortes
correntes. Mas as notícias que vamos recebendo são também de tempestades em terra e de
aeroportos fechados.

Contra as previsões, fomos conseguindo progredir a boa velocidade na travessia do Golfo de
Cádiz e, sabendo que a depressão cavada que nos está a afectar se ia deslocar para NW e
provocar um forte temporal de NW nas próximas horas, tentámos adiantar-nos. Íamos caçar
mais pano mas desistimos quando vimos a gávea baixa a começar a abrir uma costura.

Ainda assim estávamos dentro da velocidade necessária para chegar a 23 antes do anoitecer.
O vento forte e mar alteroso não nos permitiram aproar directamente ao Cabo de São Vicente
e aproveitámos para ganhar algum abrigo do mar que ia lentamente rodando para NW.
Atingimos a costa do Algarve cerca das 18:00 de dia 22, junto a Vilamoura, e depois
avançámos sem pano em direcção ao Cabo mas o vento e a ondulação não paravam de subir e
sabíamos que pioraria na costa oeste. A vontade de chegar ajudava-nos a aguentar as difíceis
condições que estavam a começar a atingir proporções a evitar. Ao sul do Burgau, com 50 nós
de vento e ondas enormes, procurámos no AIS navios que já tivessem passado para o outro
lado para lhes perguntarmos as condições de mar e vento que estavam a enfrentar. Não foi
preciso fazer perguntas pois o equipamento mostrava-nos navios de 200 metros a progredir a
apenas 2 e 4 nós! Seria insensato continuar! E assim, com muita pena, colocámos o mar na
popa e fomos para o abrigo da Ponta da Piedade, frente a Lagos. Eram duas da manhã!

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  • 3. De dia para dia vinham aumentando os contactos para confirmação da nossa hora de chegada mas com tantas adversidades era muito difícil dar uma resposta de confiança. Nesta altura já tínhamos desistido da chegada a 23 de manhã e estávamos a apostar na tarde, o que implicava uma média de 7 nós. A bordo havia uma sensação mista de alguma ansiedade com as dúvidas relativas à chegada e pela proximidade de rever os familiares e amigos. Já se vivia uma certa satisfação pelo sentimento do dever cumprido. A dureza desta última etapa vem de certa forma mostrar a fibra da guarnição que contribuiu com o melhor de si, com muito esforço e dedicação para uma bem sucedida missão. Todos trabalhavam com afinco! Nunca vimos mudar uma vela ou mudar o óleo do motor tão rápido! As condições de trabalho eram horríveis, não se conseguia descansar em condições, e o ânimo estava elevadíssimo! À uma da manhã de dia 22, já a navegar no Atlântico e com ventos de "apenas" 30 nós, voltámos a caçar as duas velas de estai para estabilizar o navio que já sentia a ondulação a crescer. E cresceu, cresceu, até que começámos a levar autenticas chapadas de mar e a nossa velocidade caiu para os 5 nós. E assim fomos, com saltos, inclinações, acelerações e desacelerações, tudo muito brusco e por vezes regado por fortes aguaceiros, até deixar por estibordo o Cabo Trafalgar e os bancos Trafalgar e del Hoyo. Com este mar os baixos ficam mais perigosos devido ao encurtar das ondas que se tornam mais agressivas. Passados estes baixos, às 5 da manhã, pudemos finalmente arribar e, com menos esforço, o motor imprimiu mais velocidade ao navio e a esperança voltou à ponte. Tem sido sempre assim ao longo dos últimos 12 dias, alternando frequentemente entre a convicção e a esperança de chegar a 23 e o desalento de parecer impossível quando somos fustigados pelo mau tempo e pelas fortes correntes. Mas as notícias que vamos recebendo são também de tempestades em terra e de aeroportos fechados. Contra as previsões, fomos conseguindo progredir a boa velocidade na travessia do Golfo de Cádiz e, sabendo que a depressão cavada que nos está a afectar se ia deslocar para NW e provocar um forte temporal de NW nas próximas horas, tentámos adiantar-nos. Íamos caçar mais pano mas desistimos quando vimos a gávea baixa a começar a abrir uma costura. Ainda assim estávamos dentro da velocidade necessária para chegar a 23 antes do anoitecer. O vento forte e mar alteroso não nos permitiram aproar directamente ao Cabo de São Vicente e aproveitámos para ganhar algum abrigo do mar que ia lentamente rodando para NW. Atingimos a costa do Algarve cerca das 18:00 de dia 22, junto a Vilamoura, e depois avançámos sem pano em direcção ao Cabo mas o vento e a ondulação não paravam de subir e sabíamos que pioraria na costa oeste. A vontade de chegar ajudava-nos a aguentar as difíceis condições que estavam a começar a atingir proporções a evitar. Ao sul do Burgau, com 50 nós de vento e ondas enormes, procurámos no AIS navios que já tivessem passado para o outro lado para lhes perguntarmos as condições de mar e vento que estavam a enfrentar. Não foi preciso fazer perguntas pois o equipamento mostrava-nos navios de 200 metros a progredir a apenas 2 e 4 nós! Seria insensato continuar! E assim, com muita pena, colocámos o mar na popa e fomos para o abrigo da Ponta da Piedade, frente a Lagos. Eram duas da manhã!