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Ronilda Iyakemi Ribeiro

Alma Africana no Brasil
Os iorubás

EDITORA ODUDUWA
1996
Copyright @ 1996 by Ronilda Iyakemi Ribeiro
Todos os direitos para a língua portuguesa reservados pela Editora Oduduwa.
Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, guardada pelo sistema
retrieval ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, seja este
eletrônico, mecânico, de fotocópia, de gravação ou outros, sem prévia
autorização por parte da Editora.
Revisor
Ralf Correia-Rickli
Revisor do Iorubá
Síkíru Sàlámi
Capa
Ilustrações
.....................
Diagramação e Composição

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Alma Africana no Brasil. Os iorubás / Ronilda Iyakemi Ribeiro - São Paulo:
Editora Oduduwa, 1996
ISBN: .............

1. Culturas Africanas

2. Orixás

3. Iorubás

Índice para catálogo sistemático:
Direitos reservados à
Editora Oduduwa
Rua São Bartolomeu, 83
CEP 05014 - 030 Sumaré. São Paulo. SP
Tel: (011) 62.9256 - Telefax (011) 65.0962

2
Sou grata a Olodumare e aos Senhores do Karma pelo privilégio de servir de porta-voz
da Tradição Iorubá, que tanto amo. Sou grata também aos meus companheiros no
ideal de construir uma sociedade justa, onde imperem o Amor e a Paz. O compromisso
com esses ideais maiores e com a tarefa de resgate da importância da sabedoria e
dignidade do homem africano compartilho mais estreitamente com as seguintes
pessoas: Sikiru Salami, fundador da Federação Internacional de Tradições Africanas e
Culto aos Orixás- FITACO e do Centro Cultural Oduduwa, docente do Curso de Língua
e Cultura Yoruba da USP; Rubens Eduardo Ferreira Frias, poeta e pensador,
docente/pesquisador da UNESP de São José do Rio Preto; Ralf Correia-Rickli, escritor;
Kabengele Munanga, docente/pesquisador do Centro de Estudos Africanos da USP;
Babalorixá Falagbe Esutunmibi, presidente da FITACO; William E. Nelson, Jr., docente
e pesquisador na Ohio State University e expressivo membro da African Heritage
Studies Association; Ruth S. Hamilton, docente e pesquisadora da Michigan University,
coordenadora do African Diaspora Research Project; Hélio Santos, coordenador do
Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da População Negra (Brasília DF).
Sou grata a Akin Agbedejobi, pela ajuda no trabalho de campo em Abeokuta e P. Ade
Dopamu, da Universidade de Ilorin, pelo diálogo fecundo. Chief Wulemotu Alake, Iyanla, mulher sábia de Abeokuta. Wilson Gomes Pinto, do IAMSPE e Iya-Obaluwaiye, de
Abeokuta. Orientandos e orientados, discípulos/mestres desta caminhada. Amigos e
companheiros da African Heritage Studies Association (USA); do Núcleo de Pesquisas
e Estudos Interdisciplinares do Negro Brasileiro da USP - NEINB/USP (São Paulo); da
Associação Brasileira de Capoeira Angola (Bahia); da Associação de Artistas e
Animadores Culturais da Cachoeira (Bahia); do Núcleo de Consciência Negra (São
Paulo), da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP, particularmente
Jacques Marcovitch, Fundação Cultural Palmares, particularmente Dulce Maria
Pereira.
Sou profundamente grata a
Osvaldo Ribeiro e Julieta Strefezza Ribeiro, meus pais: elos de ouro com os já idos e
Eduardo, Marília, Rodrigo, Oluwakemi, Adeniyi, Dimitri: elos de ouro com os que estão
por vir.

3
Oriki Oluwakemi Adeola
ati Adeniyi Olawale,
omo mi dada

Isoko omo Alade
Omo elesu oja
Omo Ayigidi
Omo gbangba ni Ketu
Omo Oba!
Oko ni omo Ilado!
Omo aseun boro o
Omo a f’eja dana yan eja
Olosi eniyan,
lo ma so pe ko si Igi ni Ilado
kini a ma fi yan eja
Omo afeja gboro n’ibu omi

4
Índice
Apresentação .............................................................................................. 07
Prefácio ....................................................................................................... 08
Introdução .................................................................................................. 10
Parte I
Etnias africanas
Concepção negro-africana de universo, pessoa e tempo
Capítulo 1 - Etnias africanas ..................................................................... 15
onde se apresentam dados sobre a etimologia da palavra África e sobre grupos
étnicos africanos
Capítulo 2 - Universo e Pessoa: concepção negro-africana ....................... 18
onde se discorre a respeito da concepção negro-africana de universo, sobre
pensamento causal e sincronístico e sobre a noção de pessoa
Capítulo 3 - Tempo: concepção negro-africana ........................................ 23
onde se apresentam considerações a respeito de horizontes temporais: cadeia
geracional e importância do passado; o clássico estudo de Mbiti sobre o tempo e
algumas críticas a ele dirigidas por outros autores; noção de tempo mítico e
social
Capítulo 4 - Impacto da modernização
Encontro do Tradicional com o Moderno .......................... 32
onde se apresentam dados a respeito da convivência de valores tradicionais com
modernos em solo africano
Parte II - Os iorubás na África
Capítulo 5 - Contexto geográfico, origem, organização social e política .. 36
Onde se apresentam, além da localização geográfica, dados históricos sobre a
origem dos iorubás, mitos cosmogônicos, dados sobre sua organização social e
política
Capítulo 6 - A palavra: ação e comunicação ............................................. 44
onde se apresentam dados sobre o idioma, a importância e poder da palavra
nesta sociedade de tradição oral e sobre os nomes das pessoas, objetos,
cidades e seres
Capítulo 7 - Noção de pessoa:
concepção iorubá de natureza e destino humanos ............... 50
onde se apresentam dados a respeito da concepção de natureza e de destino
humanos e do papel do oráculo na definição de condutas
Capítulo 8 - Dimensão espiritual e práticas religiosas .............................. 56
onde se apresentam dados sobre a dimensão do supra-sensível, sobre o
nascimento e a morte e sobre práticas religiosas na Nigéria

5
Capítulo 9 - Deus, Divindades e Ancestrais ............................................... 59
onde se discorre a respeito da concepção de Deus e da etimologia da palavra
orixá; apresentam-se dados sobre algumas das principais divindades e sobre o
Poder Ancestral
Capítulo 10 - Poderes extraordinários
Medicina tradicional e magia. Bruxaria e feitiçaria ........... 85
onde se apresentam dados a respeito de oogun - medicina tradicional e magia e
a respeito de bruxaria e feitiçaria entre os iorubás
Capítulo 11 - Poderes extraordinários. Adivinhação............................... 92
onde se contextualiza o sistema divinatório de Ifá entre outros recursos universais
de adivinhação
Parte III - Degredo, Negredo, Segredo: os iorubás no Brasil
Desenraizamento, Travessia, Presença
Capítulo 12 - Participação africana na constituição
sócio-cultural brasileira ................................................ 103
Onde se discorre sobre influências musicais africanas nas tradições brasileiras:
instrumentos musicais e elemento vocal; sobre folclore e principais influências
religiosas
Capítulo 13 - Panorama e personagens do tráfico de escravos no Brasil 112
onde se descreve o cenário e algumas das personagens desse drama histórico
Capítulo 14 - Travessia oceânica ............................................................. 116
onde se apresentam dados a respeito da viagem marítima da Costa Africana
para o Brasil, durante o período do tráfico de escravos
Capítulo 15 - Os iorubás no conjunto
de influências africanas no Brasil ................................ 124
onde se discorre a respeito da participação iorubá na constituição sócio-cultural
brasileira. Conclui-se com referências a iorubás que retornaram à África e outros
que aqui permaneceram
Glossário.................................................................................................... 131
Referências Bibliográficas ........................................................................ 137

Capa: Baba-nla Salawu Samsondeen Salami
Abeokuta, Ogun State. Nigeria

6
Apresentação
....................................................................................................

Hélio Santos
Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização
da População Negra

7
Prefácio
O continente africano, apesar de apresentar-se geograficamente em bloco unido, esconde
uma certa diversidade cultural, lingüística, biológica e política.
Entre os africanos trazidos ao Brasil durante o tráfico negreiro para satisfazer as
necessidades do escravismo havia uma diversidade de origens diluída através dos processos
de mestiçagem, de transculturação e de sincretismo aos quais foram submetidos no novo
mundo, além de outros mecanismos de nivelamento entre eles. Mas, embora pelo menos 45%
dos brasileiros tenham ancestrais oriundos da África, esta permanece até hoje um dos
continentes mal e menos conhecidos comparativamente aos demais que contribuíram para a
formação do povo brasileiro.
A Alma Africana no Brasil: os iorubás, de Ronilda Iyakemi Ribeiro se propõe a contribuir
para o preenchimento dessa lacuna: levar os brasileiros a redescobrirem uma de suas
múltiplas fontes culturais. Em vez de pintar uma África única, unitária e simplificada, a autora
se limita neste livro a falar principalmente do segmento étnico iorubá da Nigéria cuja
contribuição à cultura brasileira, essencialmente no domínio religioso, é significativa.
A autora descreve os iorubás no seu berço africano, de um lado, e tenta a partir desse
pano de fundo cultural africano enfocar as influências e o impacto cultural trazidos para a
cultura brasileira. Sem dúvida, a obra apresenta uma diversidade temática compilando dados
históricos, sócio-políticos, religiosos etc... o que denota a preocupação da autora em fornecer
um quadro o mais completo possível de informações sobre os iorubás.
Não seria desnecessário chamar a atenção do leitor para o fato de que a Dra. Iyakemi
Ribeiro, apesar de ser uma brasileira autêntica, apresenta neste livro a imagem de uma pessoa
situada entre dois mundos culturais. De um lado, o mundo iorubá, cuja visão de mundo admira
e integrou como sua. De outro lado, o Brasil branco e suas contribuições culturais, do qual ela
também faz parte por sua ascendência. Seria uma falsa ambivalência, pois apesar de seus
cabelos louros e olhos azuis, a Dra. Iyakemi é uma pessoa que vive a cultura brasileira
resultante de todas as contribuições historicamente recebidas e que assume e cultua
plenamente, como seus, os ancestrais e os deuses de origem africana que, penso eu,
pertencem hoje a todos os brasileiros.
Os leitores sentirão obviamente um certo envolvimento da autora com o sujeito-objeto de
sua obra. A paixão, a emoção, a parte prise, outrora consideradas elementos
metodologicamente negativos são hoje vistas como fazendo parte do processo do
conhecimento e portanto positivas quando bem dosadas. Pessoalmente, vejo neste
envolvimento humano um dos aspectos mais bonitos da contribuição da Dra. Iyakemi Ribeiro
em seu esforço para melhor fazer conhecer os iorubás no Brasil.

8
Kabengele Munanga
Centro de Estudos Africanos
Universidade de São Paulo

9
Introdução
Na sala de minha casa, confortavelmente instalada na poltrona velha, inicio a redação
deste livro sobre os iorubás. Sua presença constante e intensa em minha vida nestes últimos
quinze anos revela-se através de alguns sinais físicos: sobre os móveis, estatuetas de orixás Ifa, Ibeji, Egungun; nas paredes, o mapa da Nigéria e fotos de ancestrais dos meus filhos. Em
minha alma, impregnada dos efeitos da convivência contínua com iorubás, no Brasil e na
Nigéria, enriquecida pelo contato com sua forma particular de apreender o sentido do mundo e
da existência humana, vibra forte o desejo de realizar uma apresentação desse povo. Não
porque essa tarefa jamais tenha sido empreendida. Não. É grande o número de autores
empenhados nisso. Apenas participo com pequena parcela, do projeto coletivo de construção
do conhecimento, o mais fiel possível, a respeito desse grande grupo africano, tão significativo
para nós brasileiros.
Tenho constatado que a palavra iorubá, exceto para grande parte dos iniciados no
1

Candomblé , é quase desconhecida, e que mesmo nagô, vocábulo mais divulgado, é ainda
pouco conhecido - muito menos do que poderíamos esperar considerando-se a significativa
participação desse grupo étnico na constituição da sociedade e cultura brasileiras.
Algumas vezes fui solicitada a apresentar a alunos de primeiro e segundo graus um relato
de minha experiência com os iorubás e lamentei profundamente a grande carência de
informações a respeito dos africanos em seus países de origem e no Brasil. De fato, entristece
constatar que a força do sangue africano na constituição do povo brasileiro não recebe o
devido reconhecimento.
O convívio íntimo com iorubás, aqui e na Nigéria, nos últimos treze anos, favoreceu
bastante a definição de meu campo de pesquisas e o desenvolvimento de meus projetos. O
primeiro trabalho de fôlego realizado nesse percurso foi a tese de doutorado em Psicologia
(Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo) intitulada A Mulher, o Tempo e a Morte.
O envelhecimento feminino no Brasil e na Nigéria (Iorubás). Nesse trabalho explorei possíveis
relações entre crença no post-mortem e atitudes de mulheres frente ao próprio
envelhecimento. Devo confessar que motivos pessoais me levavam a tentar aprender com
outros povos, formas de envelhecer menos ameaçadoras que as por mim conhecidas na
experiência de mulher ocidental.
Durante aqueles anos em que trabalhava os temas do envelhecimento e da morte, vivia
em minha vida pessoal, a rica experiência de tentar ser mãe novamente. Já me aproximava
dos quarenta anos de idade, tinha três filhos do primeiro casamento e era laqueada, portanto
1

Candomblé, denominação originária do termo kandombile, cujo significado é culto e oração, constitui
um modelo de religião que congrega sobrevivências étnicas da África e que encontrou no Brasil, campo
fértil para sua disseminação e reinterpretação (Lody, 1987:8)

10
estéril. O segundo casamento, com um homem iorubá, dinamizara meu desejo de ser mãe
novamente e de integrar-me mais significativamente a esse grupo étnico, ao qual sempre
devotei grande respeito, admiração e amor. Entretanto, a idéia de submeter-me a uma cirurgia
para religar as trompas parece não ter entusiasmado muito meus amigos e familiares, nem os
médicos que haviam me oferecido cuidados até então. Percorri uma longa via crucis iniciada
nas tentativas de conseguir um cirurgião que concordasse em realizar a reanastomose tubária
naquela mulher de quase quarenta anos, que era eu e que continuaria durante anos, num
processo de preparação para isso, cuidados disso e com isso, até culminar em dois felizes
partos. As leituras para a elaboração daquele texto sobre envelhecimento feminino e morte, ao
qual me referi linhas acima, foram realizadas em bancos e cadeiras dos corredores e salas de
espera de hospitais e clínicas que me assistiram durante todo o processo. As trompas
religadas deram passagem a filhos do povo iorubá nascidos em terra brasileira.
Nesse esforço associaram-se aos métodos modernos da medicina no Brasil, métodos
tradicionais da medicina iorubá na Nigéria, utilizados com carinho pelo homem brasileiro e pela
mulher nigeriana que assumiram essa empresa e aos quais sou profundamente grata. Durante
os mais de três anos que circulei nos corredores, salas, quartos, enfermarias, laboratórios,
câmaras e antecâmaras, convivi com sonhos e temores de mulheres envolvidas, como eu, com
a maternidade. Algumas, felizes com a gravidez, outras revoltadas ou amedrontadas... Quando
finalmente engravidei, duas vezes sucessivas com intervalo de um ano e pouco, gestei
crianças e também a idéia de escrever sobre a maternidade. Poderia ter me servido mais uma
vez do referencial teórico e da metodologia postos à disposição pela Psicologia. No entanto, a
experiência anterior de pesquisa a partir desse referencial, junto aos iorubás, revelara
limitações e decidi recorrer às possibilidades epistemológicas da Antropologia. Além disso,
minha intenção de estudar antropologia, adiada durante tanto tempo, em virtude das muitas
demandas da vida familiar e profissional viu chegada sua chance: um aprendizado sistemático
e gradual, sob a orientação de um mestre confiável poderia ocorrer num Programa de PósGraduação, embora pudesse parecer estranho esse movimento realizado por alguém já
portador do título de doutor. O que buscara ao ingressar, encontrei: tempo e lugar
institucionalmente reservados para uma interlocução mais que satisfatória sobre tema tão
apaixonante como este por mim escolhido. Descobri, entre outras coisas, que os homens
também gestam. No coração. Assim foi meu processo gestado: no coração de Kabengele
Munanga, dando nascimento a minha tese de doutorado em Antropologia: Mãe Negra. O
significado iorubá da maternidade.
Reconhecendo que circunstâncias de minha vida me proporcionam acesso a textos e
interlocutores e que tal acesso nem sempre é fácil, decidi reunir algumas informações úteis à
construção de um quadro expressivo sobre os iorubás. Esta obra constitui, assim, uma
sistematização de informações que reuni ao longo dessa caminhada. Alguns capítulos
ganharam a forma de patchwork - ‘alinhavei retalhos’ para manter o poder expressivo de seus
autores.
O livro está organizado em três partes:
A Parte I, intitulada Etnias africanas. Concepção negro-africana de universo, pessoa e
tempo, compõe-se de quatro capítulos - Etnias africanas (Capítulo 1); Universo e Pessoa:

11
Concepção negro-africana (Capítulo 2); Tempo: Concepção negro-africana (Capítulo 3) e
Impacto da modernização. Encontro do Tradicional com o Moderno (Capítulo 4).
A Parte II, intitulada Os iorubás na África informa a respeito de particularidades desse
grupo no modo negro-africano de inserção na realidade física e social. Compõe-se de sete
capítulos: Contexto geográfico, origem, organização social e política (Capítulo 5); A palavra:
ação e comunicação (Capítulo 6); Noção de pessoa: concepção iorubá de natureza e destino
humanos (Capítulo 7); Dimensão espiritual e práticas religiosas (Capítulo 8); Deus, Divindades
e Ancestrais (Capítulo 9); Poderes extraordinários: Medicina tradicional e magia; bruxaria e
feitiçaria (Capítulo 10); Poderes extraordinários: adivinhação (Capítulo 11).
A Parte III, intitulada Degredo, Negredo, Segredo: os iorubás no Brasil. Desenraizamento,
Travessia, Presença abrange os seguintes capítulos: Participação africana na constituição
sócio-cultural brasileira (Capítulo 12); Panorama e personagens do tráfico de escravos para o
Brasil (Capítulo 13); Travessia oceânica (Capítulo 14); Presença dos iorubás no conjunto de
influências africanas no Brasil (Capítulo 15). Estes três últimos capítulos têm por espinha
dorsal o poema Negredo, de Rubens Eduardo Ferreira Frias. Composto de três cantos Degredo, Negredo e Segredo - esse belo poema realiza inspirada síntese da brutal história do
desenraizamento do povo africano e de sua adaptação ao Novo Mundo.
Quanto às convenções utilizadas na redação do texto, quero dizer que adotei o critério de
não acentuar os vocábulos iorubás. Adotei também, a convenção de não escrever em iorubá
palavras já integrantes do português, baseando-me nos dicionários de Aurélio Buarque de
Holanda e de Luís da Câmara Cascudo para grafá-los e de não utilizar itálico ao grafar nomes
próprios. As indicações bibliográficas obedecem à seguinte convenção: tratando-se de
transcrição de um excerto apresento entre parênteses o nome do autor seguido da data de
publicação da edição consultada e, logo após os dois pontos, a página em que se encontra o
trecho transcrito.
Desejo que este trabalho venha a contribuir na luta contra o racismo uma vez que a
dignidade, beleza e nobreza do homem africano clamam por resgate, neste país que ocupa no
mundo o segundo posto em população negra.

Mojuba!
Iyakemi (1996)

12
PARTE I

Concepção negro-africana de universo,
pessoa e tempo

Os antropólogos nos ensinam que o mundo tem definições
diversas em diversos lugares. Não é só que os povos tenham
costumes diferentes; não é só que os povos acreditem em
deuses diferentes e esperem diferentes destinos após a morte. É,
antes, que os mundos de povos diferentes têm formas diferentes.
Os próprios pressupostos metafísicos variam: o espaço não se
conforma à geometria euclidiana, o tempo não constitui um fluxo
contínuo de sentido único, as causas não se conformam à lógica
aristotélica, o homem não se diferencia do não-homem, nem a
vida da morte, como no nosso mundo.
Walter Goldschmidt, prefaciando A Erva do Diabo de
Carlos Castaneda, 1976

13
Concepção negro-africana de universo,
pessoa e tempo

Capítulo 1
etnias africanas
Capítulo 2
universo e pessoa: concepção negro-africana
Capítulo 3
tempo: concepção negro-africana
Capítulo 4
Impacto da modernização. Encontro do Tradicional com o
Moderno

14
Capítulo 1
Etnias africanas
onde se apresentam dados sobre a etimologia da palavra África e sobre grupos
étnicos africanos
A África e a Ásia, atualmente na periferia do mundo tecnicamente desenvolvido,
estavam na vanguarda do progresso durante os primeiros quinze mil séculos da
história do mundo... a África foi o cenário principal da emergência do homem
como espécie soberana na terra, assim como do aparecimento de uma
sociedade política. Mas esse papel eminente na pré-história será substituído,
durante o período histórico dos últimos dois milênios, por uma "lei" de
desenvolvimento caracterizada pela exploração e por sua redução ao papel de
utensílio.
Ki-Zerbo

A palavra África, conforme nota Ki-Zerbo (1982:21) possui origem difícil de elucidar.
Imposta a partir dos romanos, sucedeu ao termo Lybia - país dos Lebu ou Lubin do Gênesis de origem grega ou egípcia. Inicialmente designava o litoral norte-africano e foi somente a
partir do fim do século I AC que passou a designar o continente como um todo. Quanto a sua
origem primeira, aponta Ki-Zerbo, como plausíveis, as seguintes versões:
1. Teria vindo do nome de um povo (berbere) situado ao sul de Cartago: os Afrig. Daí,
Afriga ou Africa para designar a região dos Afrig.
2. Teria origem em dois termos fenícios um dos quais significa espiga - símbolo da
fertilidade - e o outro, Pharikia - região das frutas.
3. Derivaria do latim apricao - ensolarado ou do grego apriké - isento de frio.
4. Poderia ser a raiz fenícia faraga - separação, diáspora, a mesma raiz encontrada em
algumas línguas africanas, como por exemplo, o bambara.
5. Em sânscrito e hindi, a raiz apara ou africa designa o que, no plano geográfico, situa-se
"depois", ou seja, o Ocidente.
6. Uma tradição histórica retomada por Leão, o Africano, diz que um chefe iemenita
chamado Africus teria invadido a África do norte no segundo milênio antes da Era Cristã
e fundado uma cidade chamada Afrikyah. Mais provável, contudo, é que esse termo
seja a transliteração árabe da palavra África.
Sendo o continente constituído de muitas áreas etnoculturais caracterizáveis por um
conjunto de fatores, torna-se muitíssimo difícil a apresentação clara de todos os grupos que o
compõem, bem como a demarcação nítida dos limites entre cada grupo e os demais. Diz Djait
(1982:108) que é bem comum estabelecer-se, para começar, uma distinção elementar entre
duas Áfricas: a África branca - ao norte do Saara, fortemente influenciada pelas civilizações

15
mediterrânicas (arabeizada e islamizada) e a África negra - plenamente africana, dotada de
irredutível especificidade etno-histórica.
Entretanto, um exame histórico mais aprofundado revela linhas divisórias menos nítidas.
Por exemplo, o Sudão senegalês e nigeriano viveu em simbiose com o Magreb árabe-berbere
estando mais próximo deste do que do mundo bantu, do ponto de vista das fontes históricas.
Na tentativa de apresentar o continente africano, a tendência seguinte será a de opor a
África desértica à tropical. A desértica, de savana, mediterrânica, incluiria o Magreb, o Egito, os
dois Sudões, a Etiópia, o chifre da África e a costa ocidental até Zanzibar. A tropical,
equatorial, ‘animista’, incluiria a bacia do Congo, a costa guineense, a área do ZambezeLimpopo, a região interlacustre e a África do Sul.
Djait propõe classificar as regiões de modo a não opor duas Áfricas e sim estruturar o
continente segundo afinidades geo-históricas e de acordo com a perspectiva africana, sem
deixar de considerar o caráter particular das fontes escritas disponíveis pois, conforme se
sabe, uma história que se limite apenas às fontes escritas antes do século XV não poderia
atribuir a mesma importância à bacia do Zaire, ao Níger ou ao Egito (p. 109). Tal classificação
define a seguinte estrutura funcional:
1. Egito, Cirenaica, Sudão nilótico.
2. Magreb, incluindo a franja norte do Saara, as zonas do extremo ocidente, a Tripolitânia e
o Fezzan.
3. Sudão ocidental até o lago Chade em direção a leste e incluindo o sul do Saara
4. Etiópia, Eritréia, chifre oriental e costa oriental.
5. Golfo da Guiné, África central e o sul da África.
Tentativas de realizar classificações segundo os parentescos linguísticos e etnoculturais
também evidenciaram enormes dificuldades. Em muitas áreas, a intuição de que existe essa
relação ainda sobrepuja a prova estabelecida cientificamente (Diagne, 1982: 252). Segundo
esse autor, quase todos os lingüistas consideram prematuras as tentativas de classificação,
pois até a simples enumeração das línguas africanas encontra obstáculos uma vez que o
levantamento desses idiomas ainda não atingiu resultados muito precisos. Estima-se que
existam de 1300 a 1500 idiomas classificados como línguas. No entanto, diversos falares
precocemente classificados como línguas, após estudos mais cuidadosos, revelaram ser
apenas variantes dialetais de um mesmo idioma. É impossível classificar línguas ainda não
identificadas com exatidão e analisadas precisamente (p. 255).
É sabido que a colonização da África impos a demarcação de fronteiras estranhas à
distribuição dos grupos étnicos, fronteiras definidas segundo interesses das potências coloniais

16
participantes da Conferência de Berlim, realizada entre 25 de novembro de 1884 e 16 de
fevereiro de 1885. Os limites da Terra Iorubá, por exemplo, não coincidem com as fronteiras
demarcadas pelos colonizadores. O território iorubá expande-se pelos países Nigéria, Togo e
República do Benin (antiga Daomé). Da diversidade observável na África tem sido enfatizado o
aspecto negativo. No entanto é necessário que se reconheça as diferenças culturais aí
encontradas como preciosa fonte de enriquecimento da herança humana. Papel relevante
compete às escolas no sentido de re-incorporação da memória cultural africana na memória
cultural humana, para que crianças e jovens das Américas possam (re)conhecer a participação
dos povos africanos na história da humanidade e não sejam levados a crer que essa história
tenha sido construída apenas pela Europa, quando muito, auxiliada pelas Américas.

17
Capítulo 2
Universo e Pessoa
Concepção negro-africana
onde se discorre sobre a concepção negro-africana de universo, pensamento
causal e sincronístico e noção de pessoa
Para o negro-africano o visível constitui manifestação do invisível. Para além das
aparências encontra-se a realidade, o sentido, o ser que através das aparências se manifesta.
Sob toda manifestação viva reside uma força vital: de Deus a um grão de areia, o universo
africano é sem costura (Erny, 1968:19) Universo de correspondências, analogias e interacões,
na qual o homem e todos os demais seres constituem uma única rede de forças.
O sagrado permeia de tal modo todos os setores da vida africana, que se torna impossível
realizar uma distinção formal entre o sagrado e o secular, entre o espiritual e o material nas
atividades do cotidiano. Uma força, poder ou energia permeia tudo. Como diz Tempels (1949),
o valor supremo é a vida, a força, viver forte ou força vital. Essa força não é exclusivamente
física ou corporal e sim uma força do ser total, sendo que sua expressão inclui os progressos
de ordem material e o prestígio social. Felicidade é possuir muita força e infelicidade é estar
privado dela. Toda doença, flagelo, fracasso e adversidade são expressões da ausência de
força. Prole numerosa é uma das expressões de força. A força é adquirível, transmissível,
pode aumentar e diminuir até o esgotamento total.
Situando-se entre as mais belas, completas e sucintas formas de expressar a concepção
de homem e de cosmos, o mito cosmogônico da tradição bambara do Komo, uma das grandes
escolas de iniciação do Mande, no Mali, narra que Deus, denominado Maa Ngala, tendo
sentido falta de um interlocutor, o criou. Vejamos a narração bambara da Gênese Primordial:
Não havia nada, senão um Ser.
Este Ser era um vazio vivo
a incubar potencialmente
todas as existências possíveis.
O Tempo Infinito era a morada desse Ser-Um.
O Ser-Um chamou a si mesmo Maa-Ngala.
Então, ele criou 'Fan,
um ovo maravilhoso com nove divisões

18
no qual introduziu
os nove estados fundamentais da existência.
Quando o Ovo Primordial chocou
dele nasceram vinte seres fabulosos
que constituiram a totalidade do universo,
a soma total das formas existentes
de conhecimento possível.
Mas, ai!
Nenhuma dessas vinte primeiras criaturas revelou-se apta a ser o interlocutor que MaaNgala havia desejado para si.
Então, tomando uma parcela de cada uma dessas vinte criaturas misturou-as.
E, insuflando na mistura uma centelha de seu hálito ígneo, criou um novo ser - o
Homem - a quem deu parte de seu próprio nome: Maa.
Assim, esse novo ser, por seu nome e pela centelha divina nele introduzida, continha
algo do próprio Maa-Ngala.
Maa, simbiose de todas as coisas, recebeu algo que cada uma de suas partes não
recebera: o sopro divino. Esta origem determina um vínculo profundo do homem com cada ser,
cada coisa existente no plano material e ainda, com os seres do plano cósmico. A tudo e a
cada coisa o homem se relaciona numa grande rede de participação. (Hampate Bâ, 1982:184)
Erny refere-se ao universo africano como uma imensa teia de aranha: não se pode tocar o
menor de seus elementos sem fazer vibrar o conjunto. Tudo está ligado a tudo, solidária cada
parte com o todo. Tudo contribui para formar uma unidade. Sob este ponto de vista ganha
sentido a preocupação com a ecologia e com o bem-estar de outras pessoas. Se somos
interconectados, o sofrimento de qualquer pessoa é sofrimento de todos e seu júbilo, júbilo de
todos. A árvore abatida desnecessariamente e outros atos de crueldade contra o mundo
mineral, vegetal ou animal constituem agressão contra si mesmo. A esta trama de relações
associam-se o fenômeno da sincronicidade e o pensamento de tipo sincronístico, bastante
distinto do pensamento causal.
2
Jung e von Franz discursam a respeito da diferença entre essas formas de pensar,
contrapondo ao pensamento causal ou "linear", o pensamento sincronístico ou "de campo",
campo cujo centro é o tempo. Pensando linearmente, ao observarmos a sequência de eventos
A, B, C e D, pensamos de trás para diante, perguntando-nos por quê D aparece em
consequência de C, este em consequência de B e este, por sua vez, em consequência de A.
Como normalmente pensamos que a causa vem antes do efeito, a idéia de tempo é, aqui,
linear, com antes e depois, ocorrendo o efeito sempre depois da causa. O pensamento

2

Jung, no prefácio à edição inglesa do livro I Ching ou O Livro das Mutações (tradução de Richard Wilhelm),
1970 e von Franz em Adivinhação e Sincronicidade, 1980

19
sincronístico, por sua vez, constitui um pensamento que não organiza linearmente e sim em
campos. O centro do campo é o momento preciso em que os eventos A, B, C e D ocorrem.
Ao invés da pergunta por quê tal coisa ocorre? ou que fator causou tal efeito? pergunta-se
o que é provável que ocorra conjuntamente, de modo significativo, no mesmo momento? O
interesse primordial dirige-se, pois, à coincidência significativa. Jung diz: Enquanto a mente
ocidental examina cuidadosamente, pesa, seleciona, classifica e isola, a visão chinesa do
momento inclui tudo até o menor e mais absurdo detalhe, pois tudo compõe o momento
observado... tudo que acontece num determinado momento tem inevitavelmente a qualidade
peculiar àquele momento... Essa suposição envolve um certo princípio curioso que denominei
sincronicidade, conceito este que formula um ponto de vista diametralmente oposto ao da
causalidade. A causalidade enquanto uma verdade meramente estatística não-absoluta é uma
espécie de hipótese de trabalho sobre como os acontecimentos surgem uns a partir dos
outros, enquanto que, para a sincronicidade, a coincidência dos acontecimentos, no espaço e
no tempo, significa algo mais que mero acaso, precisamente uma peculiar interdependência de
eventos objetivos entre si, assim como dos estados subjetivos (psíquicos) do observador ou
observadores. (1970:16)
Outra característica do pensamento causal é a distinção que estabelece entre eventos
psíquicos e físicos (embora haja atualmente uma tendência crescente ao questionamento a
respeito das possíveis interações entre essas duas cadeias de causalidades). O pensamento
sincronístico, entretanto, não estabelece igual distinção: tanto fatos internos como externos
podem ocorrer simultaneamente, formando um complexo de eventos físicos e psíquicos, cujo
elemento unificador é um determinado momento crítico. Temos nesse caso, como pressuposto
primordial básico o seguinte: tudo é um fluxo de energia que obedece a certos ritmos
numéricos básicos e periódicos. Em todas as áreas de eventos, acabaríamos sempre por
chegar, ao final, a essa imagem especular, o ritmo básico - uma matriz - do cosmo. (von Franz,
3
1980:28). É o pensamento sincronístico que confere aos diversos recursos divinatórios seu
lugar de destaque: a queda dos búzios, opele ou ikin, conforme veremos no Capítulo 8,
define uma configuração específica, sincronicamente relacionada a ocorrências físicas,
psíquicas, emocionais e sociais da vida do consulente de modo que o oráculo, olhando esta
configuração, enxerga a configuração existencial daquele que o procurou.
Noção de Pessoa na África Negra
Referindo-se à concepção negro-africana de ser humano, Thomas, L.V. (1973) utiliza a
expressão pluralismo coerente da noção de pessoa. Nas diversas etnias africanas há um semnúmero de exemplos de concepções a respeito da constituição humana como resultante de
uma justaposição coerente de partes. A pessoa é tida como resultante da articulação de
elementos estritamente individuais herdados e simbólicos. Os elementos herdados a situam na
linhagem familiar e clânica enquanto os simbólicos a posicionam no ambiente cósmico, mítico
e social.
3

Divinatório é o ato ou recurso de adivinhar

20
Os diversos componentes da pessoa estabelecem relações entre si e relações com forças
cósmicas e naturais. Além disso, ocorrem relações particularmente fortes entre pessoas, como
por exemplo, as estabelecidas entre gêmeos ou entre um indivíduo e o sacerdote que o iniciou.
Cada pessoa, enquanto organização complexa, tem sua existência transcorrendo no tempo e
assim, sua unidade/pluralidade passa por sucessivas etapas de desenvolvimento, estando
todas as dimensões do ser sujeitas a transformações. Nesse processo podem ocorrer
permutas, substituições parciais e metamorfoses, algumas de caráter definitivo, como as
associadas aos processos iniciáticos, outras de caráter provisório, como as sofridas durante
certos rituais. Apesar de todas as mutações a pessoa reconhece a si mesma e é reconhecida
como um sujeito permanente, ou seja, sua identidade pessoal conserva-se a despeito da
pluralidade de elementos que a constituem enquanto sujeito (nível sincrônico) e a despeito das
muitas metamorfoses e estados experienciados ao longo de sua história pessoal (nível
diacrônico).
A existência pessoal transcorre no tempo, dizíamos poucas linhas acima. Lembremos que
as representações negro-africanas de tempo, universo e pessoa, distintas das que nos são
familiares, determinam distintas concepções de desenvolvimento humano. Entre suas
principais características poderíamos mencionar a da não linearidade: a vida humana não
transcorre num continuum linear - passado, presente, futuro - com data de início no dia do
nascimento e data de término no dia da morte. A vida é uma corrente eterna que flui através
dos homens em gerações sucessivas. (Kabwasa, 1982:14) O ciclo da vida é circular: a
criança vai se transformando até chegar a adulto; este se transforma até chegar a velho; este,
por sua vez, se transforma, inclusive atravessando o portal da morte, para alcançar a condição
de antepassado; o antepassado renascerá como criança...
O estudo da noção de pessoa, pelo menos no que se refere ao campo etnológico, é
relativamente recente. Michel-Jones (1974), sem pretender esgotar as possibilidades, enunciou
algumas constantes dos vários conceitos de pessoa existentes na África Negra, partindo dos
pontos de vista sincrônico e diacrônico. Após examinar cuidadosamente as contribuições de
vários autores da primeira metade do século XX, realçou a importância dos trabalhos de
Leenhardt e de M. Mauss. Leenhardt, estudioso da vida dos melanésios, tentou apreender o
significado dos comportamentos ligados à concepção de pessoa, através das instituições, das
relações sociais e, sobretudo, através das formas míticas onde se expressa a unidade
homem/mundo: O indivíduo, enquanto tal, é um ser perdido; tem de possuir qualquer elo com o
grupo social. (Leenhardt, citado por M- Jones, p. 48) A pessoa, difusa no grupo, define-se
apenas pelos papéis que desempenha e seu corpo não se separa do mundo. Como o pessoal
é indissociável do grupal, estudar a concepção de pessoa constitui um recurso para
compreender as instituições e as representações a elas associadas. M. Mauss enfatiza o fato
de que na ordem cultural tudo o que parece natural (inato) é de fato arbitrário, ou seja, toda
relação significante/significado é sempre convencional, extrínseca. Em seus trabalhos com os
Índios do nordeste americano construiu a noção de personagem, sugerindo que cada indivíduo
desempenha um papel tanto na vida familiar como nos dramas sagrados.

21
Todas as sociedades dispõem de um saber a respeito do humano. Este saber corresponde
a uma concepção de pessoa - ser humano autenticado pela sociedade e nela possuindo
direitos, deveres e até mesmo privilégios. (M-Jones, 1974:51) Para que se evite armadilhas
etnocêntricas no tratamento deste tema, M-Jones lembra que: (1) a noção de pessoa não é
extensível sem modificações sociais profundas; (2) do ponto de vista da análise etnológica,
esta noção tem valor operatório, é uma construção teórica; (3) do ponto de vista da sociedade
estudada, a construção ideo-lógica (no sentido de lógica das representações) da concepção de
pessoa é pensada como natural.
A representação de indivíduo, comunidade e universo é necessariamente influenciada pela
representação de tempo. Sendo indispensável o conhecimento da forma peculiar pela qual o
tempo é vivido pelos negro-africanos nas sociedades tradicionais para uma compreensão
adequada de sua representação de indivíduo, grupo, comunidade e universo, dedicamos o
capítulo seguinte a esse tema.

22
Capítulo 3

Tempo: Concepção negro-africana
onde se apresentam considerações a respeito de horizontes temporais: cadeia
geracional e importância do passado; o clássico estudo de Mbiti sobre o tempo e
algumas críticas a ele dirigidas por outros autores; noção de tempo mítico e social
Horizontes temporais
Por horizontes temporais entende-se uma escala temporal e, simultaneamente, a
orientação de experiência temporal de um indivíduo ou grupo (Pronovost, 1989:33). Nas
sociedades modernas, mais orientadas para o futuro, considerado modelo para o presente,
não há representação cíclica de tempo e pressupõe-se a possibilidade de controle do tempo a
curto, médio e longo prazo. A interferência da variável classe social na orientação para o futuro
determina o predomínio de atitudes de conquista e preservação de bens. Nas sociedades
tradicionais entretanto, a orientação se dá em direção ao passado.
Bastante ilustrativo deste fato, é o clássico estudo sobre o tempo, que Mbiti (1969) realizou
em algumas sociedades africanas. Segundo esse autor, na vida tradicional africana o tempo
consiste numa composição de eventos que ocorreram, estão ocorrendo e ocorrerão
imediatamente a seguir. Tudo o que certamente ocorrerá ou tudo que compõe a ordem dos
fenômenos naturais, como o ritmo da natureza, por exemplo, pertence à categoria de tempo
potencial ou inevitável. Decorre disto a concepção de tempo como fenômeno bidimensional,
constituido pelo presente, um longo passado e uma virtual ausência de futuro:

Passado_____ Presente ...........................

(Futuro)

A concepção ocidental de tempo, com passado indefinido e futuro infinito, mostra-se
totalmente estranha ao pensamento africano:

(Passado)..................................Presente _____Futuro
Na concepção africana de tempo, as ocorrências do presente constituem, sem dúvida,
base para o futuro mas o evento atual é tido como pertencente ao presente, integrando-se ao
passado. O tempo atual é constituído, portanto, de eventos presentes e passados. A esteira do
tempo move-se para trás mais do que para a frente. As pessoas atentam mais para o
transcorrido do que para o que poderá ocorrer. Ao ser pessoalmente experienciado, o tempo
torna-se real, incluindo tal experiência a percepção de ser a sociedade anterior ao indivíduo e
de serem muitas as gerações passadas.
__________________________________________ Hoje
Mbiti realizou suas pesquisas na África Oriental e verificou não haver nas culturas por ele
estudadas, palavras ou expressões denotativas de um futuro distante. Analisou os recursos
gramaticais dos Kikamba e Gikuyu - dois grupos étnicos do Kenia - e constatou serem nove os
tempos verbais por eles utilizados, indicadores portanto, de nove períodos, conforme podemos
observar na tabela a seguir.

23
Tempo verbal
1. Futuro distante
2. Futuro imediato
3. Futuro indefinido
4. Presente
5. Passado imediato
6. Passado de hoje
7. Passado recente
8. Passado remoto
9. P. inespecífico

Kikamba
Ningauka
Ninguka
Ngooka
Ninukite
Ninauka
Ninukie
Nininaukie
Ninookie
Tene ninookie

Gikuyu
Ningoka
Ninguka
Ningoka
Nindiroka
Nindoka
Ninjukire
Nindirokire
Nindokire
Nindookire tene

Inglês
I'll come
I'll come
I'll come
I'm coming
I've just came
I came
I came
I came
I came

Futuro distante, o período mais distante do hoje, projetado para o futuro, é um período
aproximado de dois a seis meses, não excedendo nunca dois anos e é entendido como
extensão do presente. Passado imediato é o período que abrange a última hora que antecede
o presente. Passado de hoje é considerado o período que vai desde o amanhecer até duas
horas atrás. Passado recente é o ontem. Passado remoto é qualquer dia anterior a ontem e
passado inespecífico é o tempo não-especificado no passado.
Cabe aqui uma observação curiosa. A sequência numérica empregada pelo africano
Mbiti, ao apresentar essa lista de tempos verbais, tem início no futuro (n0 1, futuro distante e
termina no passado (n0 9, passado inespecífico), rolando a esteira do tempo para trás. Este
detalhe estrutural, aparentemente de pequena importância, de fato reforça o conteúdo
apresentado pelo autor.
Ao discorrer sobre as peculiaridades da concepção de tempo dos Kikamba e dos Gikuyu,
Mbiti diz temer a ocorrência de associações indesejáveis com vocábulos de língua inglesa e
por isso recorre a dois vocábulos swahili - sasa e zamani - no esforço de tornar mais
compreensível o que pretende expor. Vejamos:
Sasa é o período mais significativo para um indivíduo, o lapso de tempo em que as
pessoas permanecem conscientes da própria existência, projetando a si mesmas no curto
futuro e, principalmente, no longo passado. Sasa constitui em si, uma dimensão completa de
tempo, incluindo futuro breve, presente dinâmico e passado já experienciado. Quanto mais
velha a pessoa, mais longo seu sasa. E após a morte, enquanto lembrada pelos familiares,
continuará existindo em sasa. As comunidades também possuem um tempo de existência,
seu próprio sasa, logicamente bem mais longo que os individuais. Tanto para os indivíduos
como para a comunidade, o momento mais vívido é o presente, o ponto agora (4), na
sucessão linear de eventos. Pode-se denominar o período sasa de micro-tempo e o zamani de
macro-tempo. O micro-tempo é significativo para os indivíduos e para as comunidades
somente no que se refere às experiências vividas durante seu transcurso.
Zamani, por sua vez, não se restringe ao que chamamos "o passado". Inclui presente e
futuro. Em ampla escala, sasa mergulha em zamani. Porém, antes de serem os eventos
incorporados em zamani, precisam ocorrer em sasa. Uma vez ocorridos, movem-se para trás,

24
de sasa para zamani. No pensamento tradicional africano não há um conceito de História
movendo-se para a frente, em direção a um clímax futuro, bem como não há um movimento
em direção ao fim do mundo. As pessoas depositam o olhar em zamani uma vez que, em lugar
de um reino por vir, como na tradição judaico-cristã, há história a preservar.
A História e Pré-História acham-se impregnadas de elementos míticos. Um sem-fim de
mitos em todo o continente africano versam sobre temas relativos à criação do universo,
origem do homem, da tribo, de sua chegada a determinado local... Zamani não é um tempo
morto. Pelo contrário. Repleto de atividades e acontecimentos, o passado e não o futuro,
encerra em si a idade de ouro. Incontável é o número de mitos sobre zamani, o oceano no qual
tudo mergulha. Por outro lado, não há mitos sobre o fim do mundo porque não se admite que o
tempo possa ter fim.
Sasa e zamani possuem qualidade e quantidade. As pessoas referem-se a eles como
grande, pequeno, comprido, curto e assim por diante, em relação a um particular evento ou
fenômeno. Sasa geralmente vincula os indivíduos a tudo o que lhes está próximo. É o tempo
da vida consciente. Por outro lado, zamani é o tempo do mito, que propicia firmeza e confere
"segurança". Todas as coisas criadas, vinculadas umas às outras, encontram-se envolvidas
pelo macro-tempo.
A vida humana possui um ritmo natural, indestrutível, que a nível individual inclui
nascimento, puberdade, casamento, procriação, velhice, morte, ingresso na comunidade de
falecidos, ingresso na comunidade de espíritos e novo nascimento. Tais momentos críticos de
passagem constituem marcos de desenvolvimento. No dizer de Mbiti, constituem chaves,
merecem atenção especial e são geralmente marcados por ritos e cerimônias religiosas.
Ao envelhecer a pessoa move-se gradualmente de sasa para zamani. Após a morte física
continua existindo em sasa. Parentes e amigos a rememoram, referindo-se a sua
personalidade e caráter, mencionando palavras ou incidentes que a lembrem. Aparecem
geralmente para as pessoas mais velhas do grupo familiar, as possuidoras do maior sasa do
grupo. São reconhecidas por nome e isto é muito importante.
Vivem pois, na memória dos descendentes durante quatro ou cinco gerações, ou seja,
enquanto pelo menos um dos descendentes que a conheceu estiver vivo, tornando-se
completamente mortas com o falecimento deste. Ultrapassa, então, os limites de sasa para
mergulhar inteiramente em zamani. Enquanto uma pessoa permanece lembrada por seu
nome, vive na condição de morto-vivente: morta fisicamente/viva na memória dos que a
conheceram e no mundo espiritual. Enquanto lembrada, permanece num estado de
imortalidade pessoal. Quando ninguém mais, na sucessão de gerações, dela se lembre,
completa-se o processo de morte individual e dá-se o ingresso no estado de imortalidade
coletiva.

25
Através das genealogias, indivíduos do período sasa acham-se firmemente vinculados a
outros do período zamani, tornando-se contemporâneos. Assim, cada homem vive no contexto
de próprio sasa, rumo ao zamani coletivo.
Lembremos que as atividades religiosas africanas incluem a realização de cultos aos jáidos. A oferenda de bebidas e alimentos aos mortos-viventes constituem símbolos de
lembrança, comunhão e cordialidade. Considera-se que os mortos-viventes ressentem-se
muito do esquecimento dos parentes que, por sua vez, procuram zelar deles com carinho, por
amor e para que não lhes advenham doenças e infortúnios, conseqüências inevitáveis do
esquecimento.
Alguns autores africanos tecem críticas a Mbiti. Entre eles, a iorubá Oduyoye (1971) que,
realizando estudos de Filologia Comparada, procurou verificar as possíveis rotas de origem de
vocábulos e termos referentes ao tempo. Procurou no árabe, no hebraico e em idiomas do
Médio Egito a origem de palavras iorubás, buscando comparar formas verbais de distintos
idiomas africanos. Segundo essa autora, os iorubás dizem ni sisi yi para designar agora, neste
exato instante, sendo que sisi corresponde ao sasa dos swahili, tendo ambos, origem hamitosemítica. Considera Mbiti equivocado em suas considerações a respeito do significado de
sasa.
Kagame (1975:49), por sua vez, no texto Apercepção empírica do tempo e concepção da
história no pensamento bantu, assinala que Mbiti explicitou fartamente, porém de modo
equivocado, ao que parece, pois não exprime de maneira firme e exclusiva a idéia de
'passado'. Fundamenta sua crítica citando Ch. Sacleux, respeitável organizador de um
dicionário swahili-francês, que assim apresenta o verbete zamani: tempo, época, momento;
usado no plural (zamani za) como no singular (zamani ya), no tempo de, do tempo de, na
época de, nos séculos de, na idade de (falando-se de um período de tempo). Zamani za kale,
nos tempos passados, antigamente, na antigüidade, outrora, há muito tempo. Zamani za sasa,
nos tempos atuais.
Embora sujeito a críticas o trabalho de Mbiti aborda o importante tema das relações entre
tempo cíclico e tempo intemporal. Tempo intemporal ou eternidade (a eternidade imutável) e
tempos cíclicos, apoiados no anterior. Vivemos normalmente com a consciência no tempo
cíclico e intuímos a existência de um tempo eterno - une durée creatice, no dizer de Bergson,
uma duração subjacente que, por vezes, interfere no tempo cíclico.
Hama e Ki-Zerbo (1982:62) reforçam muitos dos dados apresentados acima e
acrescentam outros: O tempo africano tradicional engloba e integra a eternidade em todos os
sentidos. As gerações passadas não estão perdidas para o tempo presente. À sua maneira,
permanecem sempre contemporâneas e tão influentes, se não mais, quanto o eram durante a
época em que viviam. O sangue dos sacrifícios de hoje reconforta os ancestrais de ontem.
Tudo é onipresente nesse tempo intemporal do pensamento animista, no qual a parte

26
representa e pode significar o todo; como os cabelos e unhas que se impede de caírem nas
mãos dos inimigos por medo de que estes tenham poder sobre a pessoa.
Como sabemos, a tradição oral constitui uma das três fontes principais de conhecimento
histórico na África (dados arqueológicos e documentos escritos são outras).
Obenga (1982) tece considerações a respeito do modo pelo qual a tradição oral apresenta
o tempo e os acontecimentos nele transcorridos: para povos iletrados, tudo o que se sabe
deriva dos conhecimentos transmitidos de geração a geração pelos tradicionalistas, memória
viva da África. São, geralmente, mestres iniciados (e iniciadores) de um ramo tradicional
específico. Sobre isso nos esclarece Hampate Bâ (1982): Guardião dos segredos da Gênese
Cósmica e das ciências da vida, o tradicionalista, geralmente dotado de uma memória
prodigiosa, normalmente também é o arquivista de fatos passados transmitidos pela tradição,
ou de fatos contemporâneos. Johnson, em seu clássico The History of the Yorubas, afirma que
nesse grupo étnico os historiadores nacionais eram certas famílias de ofício hereditário,
mantidas junto ao rei de Oyo.
4
Referindo-se aos griots assinala Obenga que eles dificilmente trabalham com uma trama
cronológica, interessando-se mais pelo homem apreendido em sua existência, condutor de
valores e agindo na natureza de modo intemporal. Não se dispõem a fazer a síntese dos

diversos momentos da história relatada e sim conceder a cada momento um sentido próprio
sem relações precisas com outros momentos. O griot praticamente deixa de lado os
afloramentos e emergências temporais denominados em outros lugares "ciclo" (idéia de
círculo), "período" (idéia de lapso de tempo), época" (idéia de momento marcado por algum
acontecimento importante), "idade" (idéia de duração, de passagem do tempo), "série" (idéia
de sequência, sucessão), "momento" (idéia de instante, circunstância, tempo presente) etc. É
claro que ele não ignora nem o tempo cósmico (estações, anos), nem o passado humano, já
que o que ele relata é, de fato, passado.
Tempo Mítico
Mircea Eliade (1972:38) assim define mito: o mito conta uma história sagrada; relata um
acontecimento ocorrido no Tempo Primordial, o tempo fabuloso do 'princípio'. Em outros
termos, o mito narra como uma realidade passou a existir graças às façanhas dos Entes
Sobrenaturais. Seja uma realidade total ou Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma
espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa
de uma 'criação': relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas
do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os personagens dos mitos são
os Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso

4 Griots são tradicionalistas, cronistas, genealogistas e arautos incumbidos de transmitir oralmente a tradição
histórica

27
dos 'primórdios'... Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas
irrupções do sagrado no Mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o
Mundo e o converte no que é hoje.
Segundo essa concepção, o homem atual resulta diretamente daqueles eventos míticos,
ou seja, é constituído por aqueles eventos. O mito narra as histórias primordiais, o ocorrido nos
tempos míticos. Tais acontecimentos compõem uma História Sagrada, por serem seus atores
os Entes Sobrenaturais. O homem das sociedades arcaicas rememora a história mítica de sua
tribo e a reatualiza, em grande parte, através dos ritos: conhecendo a origem de um objeto,
animal ou planta e repetindo os gestos criadores dos Entes Sobrenaturais, o homem busca
reproduzir o poder mágico-religioso sobre o mundo, através do retorno mágico à origem e da
reiteração do Ato Criador.
Ao reatualizar os mitos através dos ritos, o homem escapa do tempo profano, cronológico
e penetra no tempo sagrado, simultaneamente primordial e recuperável a qualquer momento e
para sempre. Viver os mitos não significa realizar uma comemoração de eventos míticos e sim,
reiterá-los. Ao invocar a presença dos personagens dos mitos, o indivíduo torna-se seu
contemporâneo, ou seja, deixa de existir exclusivamente no tempo cronológico e passa a viver,
com eles, no Tempo Primordial, tempo forte, prodigioso, sagrado, em que algo de novo,
significativo e forte, ocorreu pela primeira vez. Nesse contexto, alta importância adquire o
conhecimento, entre outros, da correta forma de realizar as evocações. Sendo a Tradição Oral
o reservatório dessas fórmulas, é a ela que se deve recorrer. A correta realização dos rituais e
o uso da palavra certa compõem o quadro de exigências básicas para que se passe do tempo
cronológico ao primordial. Num Iba Sango (Saudação a Xangô), apresentado por Salami
(1990), encontramos uma fórmula de evocação do Tempo:
Mo juba akoda
Mo juba aseda
Atiyo ojo
Otiwo oorun
Okanlerugba irunmole
B'ekekolo ba juba ile
Ile a lanu fun
Olojo oni
Iba re o
Eu saúdo os primórdios da Existência
Saúdo o Criador
Saúdo o sol nascente
Saúdo o sol poente
Saúdo as duzentas e uma divindades
Quando a minhoca saúda a terra
a terra se abre para que ela entre
Oh, Senhor do hoje

28
eu te saúdo!
Tempo Social5
Contagem e divisão do tempo
O tempo mítico, vasto oceano sem margens nem marcos, opõe-se ao tempo social,
avenida da história, imenso eixo balizado pelas etapas do progresso. (Obenga, 1982) Como
lembra Ki-Zerbo, o nível econômico elementar não cria a necessidade do tempo demarcado,
sendo o ritmo dos trabalhos e dos dias um metrônomo suficiente para a atividade humana. Os
calendários não são universalistas nem abstratos, porém subordinados aos fenômenos
naturais (lunações, sol, seca), aos movimentos dos animais e das pessoas. O tempo é dividido
em unidades, baseando-se em atividades humanas ligadas à ecologia ou em atividades sociais
periódicas. Constituído de partes heterogêneas e descontínuas, sua medida é qualitativa.
A noite é separada do dia e este é dividido em partes, relacionando-se as atividades à
altura do sol. Cada hora é definida por atos concretos. Em Burundi, por exemplo, amakana é a
hora da ordenha (sete horas); maturuka é a hora de saída dos rebanhos (8 horas); kuasase,
hora em que o sol se alastra (9 horas); kumusase, hora em que o sol se espalha sobre as
colinas (10 horas)... Os cumprimentos, nos vários momentos do dia, baseiam-se,
principalmente, na luminosidade do dia e na posição das sombras. Estas possuem estabilidade
no decorrer dos dias, uma vez que não há grandes variações climáticas. Marcos divisórios da
noite são, principalmente, as vozes de animais. O trabalho é uma mistura de atividades, cantos
e conversações, constituindo, por vezes, um ato religioso. É definido a partir de algumas
tarefas a realizar e não a partir de unidades de tempo. O relógio tem lugar como objeto de
adorno.
Os meses, as estações e as seqüências anuais são geralmente definidos pelo ambiente e
as atividades que dele dependem. A semana é determinada por um ritmo social, como, por
exemplo, a periodicidade dos mercados, que acha-se associada, em muitos casos, a uma
periodicidade religiosa. A contagem das estações do ano é muitas vezes baseada na
observação astronômica, podendo abranger uma série de constelações. Em alguns lugares,
como entre os adeptos das religiões tradicionais na savana sudanesa, por exemplo, a
contagem em anos é feita pelo número de estações chuvosas. Para indicar que um homem é
idoso fala-se do número de estações das chuvas que ele viveu ou, fazendo uso de uma
imagem, diz-se que ele bebeu muita água. Em alguns lugares o controle do tempo é realizado
através de entalhe em madeiras especiais conservadas como arquivos (grutas da região dos
Dogon), ou com o depósito anual de uma pepita de ouro num pote de estanho (capela dos
tronos no reino de Bono Mansu), ou ainda, de pedras num jarro (cabana dos reis na região
mandinga). Alguns sistemas de cálculo mais aperfeiçoados foram elaborados pelos akan, que
5

Tempo Social é denominação dada por Durkheim. Evans-Pritchard o denomina Tempo Estrutural; Pronovost,
Tempo Cultural e Sorokin, Tempo Sociocultural

29
dispunham de um sistema de calendário complexo com semana de sete dias, mês de seis
semanas e ano de nove meses, periodicamente ajustado ao ciclo solar segundo um método
ainda não completamente esclarecido. Os iorubás dizem:

Igba kan nlo, Igba kan nbo
Ojo nbori ojo
Ero iwaju nlo, Ero eyin ntele
Um tempo está partindo, outro está chegando
Um dia vai e outro vem
Os da frente (os velhos) estão indo
os de trás (os jovens) os estão seguindo
(dando-lhes continuidade)
Vi entre os iorubás, o quarto de dormir - espaço profano - coexistir com o lugar dos rituais espaço sagrado. Nas características do espaço físico muito pouca coisa se altera ao
passarmos da condição profana à sagrada ou vice-versa. As alterações de consciência são
determinadas, principalmente, pelo movimento no tempo, ocorrendo algo como existir
simultaneamente nos dois tempos e nos dois espaços - o do sagrado e o do profano, pois não
se perde a consciência de estar aqui e agora com o grupo de pessoas físicas e com um
conjunto de objetos, ao mesmo tempo que se está no tempo e espaço primordiais, com as
divindades e os ancestrais. Exceção a isso talvez seja o estado de consciência alterado na
situação de transe e incorporação dos Entes Sobrenaturais, oportunidade em que a
6
consciência é mais chamada para o tempo e dimensão do sagrado .
Nas sociedades africanas gerontocráticas, a noção de anterioridade no tempo é ainda
mais carregada de sentido que em outros lugares, pois nela baseiam-se os direitos sociais
(uso da palavra em público, acesso a certas iguarias, direitos na sucessão real, etc). O
essencial, entretanto, não é a determinação precisa das datas de nascimento das pessoas,
mas a ordem em que ocorrem.
Hama e Ki-Zerbo assinalam que entre os africanos a história vivida pelo grupo acumula um
poder que é a maior parte do tempo simbolizado e concretizado num objeto transmitido pelo
patriarca, chefe do clã ou rei ao seu sucessor. Pode tratar-se, por exemplo, de uma bola de
ouro conservada num tambor de guerra. Um exemplo interessante é o dos Sonianke,
descendentes de Sonni Ali, que possuem correntes de ouro, prata, ou cobre, cada elo das
quais representa um ancestral, simbolizando o conjunto, a descendência dinástica até Sonni, o
Grande. No decorrer das cerimônias tais correntes são regurgitadas em público. No momento
da morte, o patriarca sonianke regurgita a corrente pela última vez, fazendo com que o
escolhido para sucessor a engula pela outra extremidade, morrendo em seguida. Esse
6

A respeito do transe veja Verger, 1957

30
testamento vivo ilustra com eloquência a força da concepção africana de tempo mítico e social.
Seria tal visão do processo histórico estática e estéril, na medida em que coloca a perfeição no
arquétipo do passado, na origem dos tempos? Constituiria o ideal para o conjunto das
gerações a repetição estereotipada dos gestos do ancestral? Não. Para o africano o tempo é
dinâmico e o homem não é prisioneiro de um mecânico retorno cíclico, podendo lutar sempre
pelo desenvolvimento de sua energia vital. Há, entre os Songhai, um poema significativo:
Não é da minha boca.
É da boca de A, que o deu a B, que o deu a C,
que o deu a D, que o deu a E,
que o deu a F, que o deu a mim
Que esteja melhor na minha boca do que na dos ancestrais.
A vontade constante de invocar o passado que não significa, no entanto, imobilismo e não
contradiz a lei geral da acumulação das forças e do progresso. Daí a frase: Que esteja melhor
na minha boca do que na dos ancestrais. A viva consciência do passado, sua importância
sobre o presente, não anulam o dinamismo deste, como testemunham numerosos provérbios.
Hubert & Mauss (citados por Pronovost) observam, acuradamente, que a função essencial de
articular o presente ao passado perpétuo e mítico é desempenhada pelos rituais.
Que a força do passado esteja em mim, no presente, para que eu possa assumir
compromisso integral com o grupo a que pertenço, participando lado a lado com meus
antepassados e contemporâneos, da construção de tempos melhores para os que vêm
chegando.

31
Capítulo 4

Impacto da modernização. Encontro do Tradicional
com o Moderno
onde se apresentam dados a respeito da convivência de valores tradicionais com
modernos em solo africano
A Conferência de Berlim, realizada entre 25 de novembro de 1884 e 16 de fevereiro de
1885, dividiu de modo arbitrário a África em países, desconsiderando sua composição étnica.
Os grupos étnicos, com idiomas e cultura distintos uns dos outros possuíam, evidentemente,
distintas cosmovisões e reconheciam claramente a própria identidade étnica em contraste com
a identidade dos demais grupos, havendo relações de amizade e de hostilidade entre os
grupos. A divisão arbitrária efetivada pelos colonizadores agiu sobre essas identidades: um
mesmo grupo étnico ficou espalhado por várias nações gerando alterações na consciência
étnica e nacional. A chamada Yorubaland, por exemplo, espalhou-se pela Nigéria, Togo e
República do Benin.
Das considerações que Munanga (1993) teceu sobre esse tema, aponto algumas a seguir.
Comecemos pelo fato de serem as identidades étnicas sujeitas a manipulações ideológicas,
que mostram-se perigosas para as nações em construção, cuja consciência nacional ainda se
encontra em processo de formação. Nesse caso constitui grande desafio constituir uma
identidade nacional que possa sobrepor-se às identidades étnicas de modo a favorecer a
unidade, sem prejuízo das identidades étnicas e regionais.
A independência dos países africanos deu-se no período de 1957 a 1990 (33 anos),
iniciando com a independência de Gana e culminando com a independência da Namíbia.
Munanga (1993: 103) pergunta: o que significou a independência africana em termos
concretos, ou seja, qual é o balanço crítico dos trinta e três anos de processo de
independência? ... Independência deveria significar para todos, o fim das barreiras sociais e
raciais, a desmitificação da inferioridade natural dos africanos e o desmantelamento do velho
espectro da superioridade natural do branco. Mas não foi isso que ocorreu: o ensino nãodescolonizado permaneceu alienado dos problemas concretos do cotidiano e das
peculiaridades da vida social e econômica dos aprendizes; a maioria das elites africanas
interpretou a independência como oportunidade para gozar de vantagens até então usufruídas
pelos coloniais, dando-se ao luxo de consumir até mais do que as elites dos países ricos, o
que determinou o aumento da fome.
No início de 1980 o regime militar tornou-se regra na África e os dirigentes mostraram-se
tão incompetentes e corruptos quanto os civis que haviam atuado anteriormente. Como se não
bastasse a pilhagem externa, o continente africano sofreu sistemática pilhagem por parte dos
próprios africanos.

32
Sobre a exploração externa Munanga apresenta dados oriundos da obra de Rodney Como a Europa subdesenvolveu a África, que refere-se a três grandes pilhagens: iniciada no
século XVI com o tráfico negreiro e a escravidão dos africanos nas Américas, a primeira
grande pilhagem arrancou da África entre 40 e 100 milhões de pessoas - as mais vigorosas e
aptas para o trabalho - num período de 400 anos. O continente africano que teria, como o
europeu, representado a quinta parte da humanidade no século XVII, conta hoje com a décima
quinta parte apenas. A segunda grande pilhagem - riquezas naturais e força de trabalho ocorreu com a colonização. A mão-de-obra anteriormente deslocada para as Américas passou
a ser explorada in locus, pelo trabalho forçado instaurado nas colônias européias, e
externamente, pela exploração de mão-de-obra africana realizada pela imigração organizada e
encorajada. A terceira grande pilhagem teve início nas últimas duas décadas com o
movimento de países ocidentais que, engajados no processo de desenvolvimento militar e
científico, não podendo formar especialistas em número suficiente, os recrutam no exterior,
num fenômeno que Hernet (citado por Munanga) denomina brain train, exode des cerveaux,
hemorragie de matière grise, fuite des compétences.
Outro elemento significativo das transformações sociais na África foi o processo de
industrialização, associada naturalmente a movimentos de êxodo rural. Recente em muitos dos
países, a industrialização instalou-se em superposição à economia agrícola e de subsistência.
Como o processo de industrialização não foi precedido de uma transição da agricultura de
subsistência para o cultivo comercial extensivo mais eficaz, não há garantia de absorção de
mão-de-obra das populações rurais que migram para as cidades em busca de colocação nas
indústrias.
A migração para centros urbanos vem contribuindo para o rompimento de estruturas
originárias. Os ofícios tradicionalmente transmitidos por via oral no interior dos grupos
familiares, alguns deles associados a processos iniciáticos, vão perdendo sua força e sendo
substituídos pela busca de novos graus de escolaridade ou especialização que tornem
possível o ingresso no complexo produtivo industrial. Deslocando-se para cidades maiores
muitos indivíduos ficam entregues à própria sorte buscando adaptar-se aos valores da
sociedade industrial - ascensão social, consumismo, competição - em detrimento dos valores
7
das antigas corporações organizadas por linhagens ou clãs .
Entre os principais problemas enfrentados pela África hoje, figuram ainda, a aids e o
alcoolismo. A África, mais atingida pela aids é, no entanto, a menos alertada. Quanto ao
alcoolismo, informa Munanga que o consumo de álcool acentuou-se durante o tráfico de
escravos, tomou proporções mais perigosas com a introdução do alambique no Daomé
(atualmente República do Benin) em 1922 e aumentou excessivamente em todas as cidades
africanas de 1960 até nossos dias.
7

Sugiro a leitura atenta do trabalho de Munanga,1993:100-111, oportunidade em que o autor discorre a respeito do
que vem sendo a vida dos africanos que têm que "se virar" para sobreviver

33
Em resumo, o continente africano esteve sujeito nos últimos cinco séculos, às mais
terríveis e cruéis formas de desumanização. Munanga faz a pergunta crucial: o continente
africano tem chance de saída e salvação? A recuperação deverá ser, necessariamente,
lenta porque longo foi o tempo de destruição. Munanga estima em até cinco gerações, o que
projeta o resgate total para o ano de 2.200. E enfatiza que a reconstrução dependerá em
primeiro lugar da seriedade, trabalho e gênio criador dos próprios africanos. E responde: os
obstáculos são inúmeros, complexos e monstruosos, mas de qualquer modo o futuro da África
está antes de mais nada nas mãos dos próprios africanos. Se a geração atual é falida,
alienada, corrupta e corruptível, as gerações futuras poderão dar uma resposta digna.
Reunimos nessa seção o mínimo de informações necessárias à compreensão da lógica
das representações negro-africanas. Passamos agora à Parte II - Os iorubás na África.

34
PARTE II

os iorubás na áfrica

Capítulo 5
Contexto Geográfico,
origem, organização social e política
Capítulo 6
A palavra: ação e comunicação
Capítulo 7
Noção de pessoa: concepção iorubá de natureza e destino
humanos
Capítulo 8
Dimensão espiritual
e práticas religiosas
Capítulo 9
deus, divindades e ancestrais
Capítulo 10
poderes extraordinários:
medicina tradicional e magia
bruxaria e feitiçaria
Capítulo 11
poderes extraordinários:
35
adivinhação

36
Capítulo 5

Contexto geográfico, origem, organização social e
política
Onde se apresentam, além da localização geográfica, dados históricos sobre a
origem dos iorubás, mitos cosmogônicos, dados sobre sua organização social e
política
Contexto geográfico
Os iorubás ocupam grande parte da Nigéria, no sudoeste do país e, em menores
proporções, parte do Togo e da República do Benin (antiga Daomé). Sua influência estendeuse também para além do baixo Níger, em direção ao norte, adentrando a Terra Nupe.
Pertencem predominantemente aos estados do Ogun, Oyo, Ondo, Kwara e Lagos, na Nigéria,
onde convivem com outros grupos étnicos: anang, batawa, edo, efik, fulani, hausa, idoma,
igbira, ibibio, ibo, igala, igbo, igbomina, ijaw, ijo, itsekiri, kanuri, nupe e tiv, cada qual com sua
própria língua, costumes e sistemas de administração tradicional. Destes, os mais numerosos
são os hausa, iorubá e ibo. A conquista daomeana de parte das terras iorubás favoreceu a
miscigenação entre os grupos iorubá e fon, tornando-se pouco nítida a linha divisória entre
eles. Os iorubás associam-se em sub-grupos - Egba, Egbado, Oyo, Ijesa, Ijebu, Ife, Ondo,
Ilorin, Ibadan etc.
Origem
Mitos Cosmogônicos
Olodumare, o Ser Supremo e um grande número de divindades entre as quais Orixalá,
também chamado Obatalá ou Oxalá, Orunmila, também chamado Ifá e Exu habitavam o orun.
Abaixo havia uma infinita extensão de água e desertos pantanosos sobre os quais reinava
Olokun, o deus do mar. Olodumare ponderou: poderia essa grande e monótona extensão de
água ser habitada por divindades e outros seres vivos? Traçou um plano para transformar
parte da extensão aquosa em terra firme e deu a Orixalá, a arqui-divindade responsável pela
ordenação das coisas, a incumbência de concretizar seu plano.
Agindo segundo as instruções de Olodumare e carregando consigo o material necessário,
Orixalá desceu sobre o deserto aquoso. Levava consigo uma concha de caracol cheia de
areia, uma galinha branca e uma pomba. Chegando a um determinado ponto do imenso
vácuo, jogou a areia e soltou as aves que começaram imediatamente a ciscar o chão com as
patinhas, espalhando areia por toda parte. Onde esta caía transformava-se o pântano em terra
seca e, por cair de forma irregular, ia formando montanhas e vales. Terminada estava, a
primeira fase da criação.

37
8

Então, Olodumare ordenou a seu inspetor de tarefas - o camaleão - que fiscalizasse o
trabalho e, após duas visitas, ele retornou informando estar tudo perfeito. Orixalá foi incumbido
de povoar a terra. Criou primeiro as aves que rapidamente multiplicaram-se e plantou árvores
para suprir a necessidade de água. Oreluere liderou um grupo de seres especialmente criados
para habitar a porção já sólida. Estes multiplicaram-se e a quantidade de água tornou-se
insuficiente. Orixalá pediu mais água e Olodumare enviou a chuva.
Incumbido, a seguir, de moldar os corpos dos homens com o pó da terra, Orixalá os
moldava perfeitos ou defeituosos, desde que a forma resultante pudesse receber a essência
da Vida, que aí seria insuflada por Olodumare. Certa vez Orixalá tentou vê-lo trabalhando pois
queria descobrir como as formas humanas por ele moldadas transformavam-se em seres
viventes. Mas, mergulhado em sono profundo, somente despertou quando todas já estavam
animadas.
No início havia harmonia, comunhão e confraternização entre os homens e o mundo
espiritual. Por vezes os homens viajavam ao orun para pedir o que necessitavam. Entretanto,
um fato separou o céu da terra e uma barreira interpôs-se entre ambos. Que fato foi esse?
Segundo algumas tradições, uma mulher teria tocado o céu com a mão suja. Segundo outras,
um homem teria se comportado mal, servindo-se em excesso do alimento comum. Tenha sido
esta ou aquela, a razão da ruptura, o fato é que o homem perdeu a harmonia com o mundo
espiritual.
9
Eis a cosmogonia iorubá apresentada por Idowu (1977:18).

Outra variação muito divulgada do mito cosmogônico iorubá narra que Olodumare lançou
do céu sobre as águas ou pântanos, uma corrente pela qual desceu Odudua, trazendo um
pouco de terra num saco ou numa concha de caracol, uma galinha e um dendezeiro. Tendo
derramado a terra sobre a água, aí colocou o dendezeiro e a ave. Ciscando o solo a galinha foi
espalhando a terra, cada vez mais, ampliando progressivamente a extensão de terra.
Outra variação ainda, narra que Obatalá, o primeiro orixá criado por Olodumare, recebeu a
incumbência de formar o mundo. Saindo do orun embebedou-se, adormecendo
profundamente. Odudua roubou o saco da criação e foi contar a Olodumare o que se passara,
assumindo para si o papel de realizar aquela tarefa para a qual Obatalá havia se mostrado
incompetente. Odudua criou o mundo e competiu a Obatalá modelar os corpos humanos.

8

O camaleão, sagrado para os iorubás, é descrito como mensageiro de Olodumare ou de Orixalá. Possui a notável
capacidade de confundir-se com o ambiente mudando de cor. O movimento independente de seus olhos
possibilita-lhe olhar para mais de uma direção ao mesmo tempo
2 Praticamente toda sociedade africana possui seu próprio mito de origem do homem e do universo. Mbiti refere-se
ao livro publicado por H. Baumann em 1936 - Schopfung und Urzeit des Menschen im Mythus der afrikanischen
Volker, onde se encontra uma tentativa de análise de dois mil desses mitos. Refere haver uma segunda edição,
ampliada, de 1964

38
Detenhamo-nos um pouco na figura controversa de Odudua. Nesta narração que
10
acabamos de apresentar, ela é uma figura feminina Elbein dos Santos (1986) refere-se a
Odudua como a representação deificada das Iya-mi, a representação coletiva das mães
ancestrais e o princípio feminino de onde tudo se origina. Nessa versão, Odudua, símbolo
coletivo do poder ancestral feminino, une-se a Obatalá, símbolo coletivo do poder ancestral
masculino. Sendo ele responsável pelo orun - céu / dimensão do supra-sensível - e ela pelo
aiye - terra / dimensão da matéria física, seu casamento implica em todas as relações entre
esses dois domínios. Odudua cria o aiye e Obatalá os duplos no orun. Representa essa união
uma cabaça branca - igba-odu ou igbadu - formada de duas metades unidas, a metade inferior
representando o aiye e a superior, o orun, contendo elementos simbólicos em seu interior.
Gromiko (1987), na obra russa As religiões da África, refere-se a essa controvérsia:
Obatalá tem uma mulher chamada Odua ou Odudua que, provavelmente, é uma das
personagens mais contraditórias no olimpo dos deuses iorubás. Odudua é uma divindade
hermafrodita. Nos primeiros mitos personificava a divindade Terra e era companheira e
ajudante de Olorun (Olodumare) na criação do Universo. Outra versão admite que ela era
esposa de Obatalá... Mais tarde ... passou a ser considerada a primeira genitora do povo ...
Nas narrações, começou a ser mencionada como uma divindade de sexo masculino que
descera dos céus para criar a terra, deitando um punhado de areia no oceano, precisamente
em Ile-Ifé. Daí, Olokun, em sua hipóstase feminina, ter passado a ser deusa do oceano e
mulher de Odudua. Deparamos pois, com outro mito em que a deusa muda de sexo e contrai
matrimônio com as águas. (p. 102)
Segundo Johnson (1921), Odudua é o antecedente comum a todos os iorubás (Odu ti o da
wa - Aquele que nos criou), sendo essa a razão de algumas tradições atribuírem a ele o
trabalho da Criação. O pai das dinastias iorubás, o ancestral comum a todos, seu nome é
Momo, sendo Odudua um título auto-atribuído. Sua esposa, Omonide teve sete filhos: duas
mulheres, as primeiras na ordem dos nascimentos e cinco homens. Com o passar do tempo
seus filhos e netos enveredaram pelas matas fundando cidades, delas tornando-se reis:
Olowu, filho da primeira filha, o ancestral dos owu.
Alaketu, filho da segunda filha, o ancestral dos ketu.
Olibini, terceiro filho, o ancestral dos benin.
Orangun, quarto filho, o ancestral dos ila.
Onisabe, quinto filho, o ancestral dos sabe.
Olupopo, sexto filho, o ancestral dos popo.
Oranyan sétimo filho, também chamado Oloyo,
permaneceu com o pai em Oroyo e é o ancestral dos oyo.
10

Voltaremos a tratar de Odudua no Capítulo 9

39
Ajisafe (1964) apresenta relato análogo ao de Johnson, salvo pequenas diferenças
11
referentes à ordem do nascimento dos filhos de Odudua. No palácio de Ifé o encontramos
representado pela figura de um homem forte e imponente.
Dados históricos sobre a origem dos iorubás
Segundo Perkins & Stembridge (1977), os mais antigos habitantes da Nigéria foram os
Negros. Alguns dos mais puros Negros são encontrados entre os ibo, os iorubás e outros
grupos étnicos habitantes das florestas do sul. No norte uniram-se Negros e Hamitas - ramo da
Raça mediterrânea descendente de Ham, segundo filho de Noah. Os Hamitas incluem os
fulani e os líbios do norte da África. Estes povos do norte deram origem a tribos de sangue
mestiço das quais a mais numerosa é a dos hausa.
Ile-Ifé é considerada a cidade onde ocorreu a criação do mundo. Como o isolamento da
sociedade em que se vive impossibilita uma visão histórica mais ampla, a concepção da
própria história e da história em geral sofre determinações decorrentes desse fato. Por
exemplo, conforme cita Ki-Zerbo (1982:25), o rei dos Mossi, no Alto-Volta, intitulava a si
mesmo Mogho-Naba, isto é, rei do mundo. Talvez Ifé não seja o local de origem da
humanidade, mas bem pode ser um desses locais, uma vez que as descobertas feitas em
Asselar - esqueletos de tipo negróide de várias épocas, alguns extremamente antigos sugerem que o foco original desse tipo humano foi precisamente o Saara e a África Meridional.
A raça negra de tipo sudanês ou congolês individualizou-se para adaptar-se às condições das
12
latitudes tropicais, principalmente na África Ocidental. Conforme indica a glotocronologia , os
povos habitantes das proximidades do local onde se encontram os rios Niger e Benué parecem
viver naquela área há vários milhares de anos.
Ao buscarmos dados sobre espaço e tempo dos iorubás defrontamo-nos com limites
fluidos. A convivência dos muitos grupos étnicos num espaço geográfico comum e a história de
colonização definem uma trama sócio-econômico-política extremamente complexa que dificulta
o conhecimento daquilo que realmente ocorreu num lugar claramente localizável no mapa,
num período precisamente demarcado no tempo.
Perkins & Stembridge (1977) relatam que os iorubás vieram do vale do alto Nilo e, viajando
para o ocidente ao longo da grande savana do Sudão, chegaram à Nigéria e seguiram
posteriormente rumo ao sul, permanecendo nas florestas e instituindo reinados sob um chefe
supremo - o Alafin de Oyo. De fato, a origem deste povo, como a de tantos outros, acha-se
envolta em penumbras, com relatos reais mesclados aos lendários.

11

No Dicionário Aurélio, de língua portuguesa, Odudua figura como divinização iorubana da Terra e mulher de
Obatalá, o Céu

12

Grotocronologia é o estudo das origens e desenvolvimento da linguagem

40
Johnson (1921) afirma que os historiadores nacionais desse povo eram certas famílias de
ofício hereditário, mantidas junto ao rei de Oyo. Segundo este autor, os iorubás originaram-se
de Lamurudu, um dos reis de Meca, de quem descenderam Odudua e os reis dos gogobiri e
kukawa, duas tribos hausa. O período de reinado de Lamurudu é desconhecido mas parece ter
sido bem posterior à morte de Maomé. Quando os três ramos de sua descendência tiveram
que deixar Meca, tomaram os seguintes rumos: os príncipes que viriam a ser os reis de
Gogobiri e de Kukawa rumaram em direção ao oeste e Odudua seguiu em direção ao leste.
Após viajar noventa dias fixou-se em Ile-Ifé, onde encontrou-se com Agbo-niregun, também
chamado Setilu, fundador do culto a Ifá.
Este foi o relato ouvido por Johnson que aí identifica alguns traços de erro. Os iorubás
vieram do Oriente, sem dúvida, como provam seus hábitos e costumes. Porém, com certeza,
não pertencem à família árabe nem são originários de Meca, isto é, não da Meca
universalmente conhecida pela História. Possuem fortes afinidades com o Oriente, onde Meca
está localizada e, provavelmente, interpretando em sua imaginação, tudo o que vem do
Oriente, como originário de Meca, representam a si mesmos como oriundos desse lugar. O
único documento escrito a respeito disso é o do Sultão Belo de Sokoto, fundador dessa cidade,
quiçá o mais poderoso dos soberanos fulani. O Capitão Clapperton, descrevendo Viagens e
13
Descobertas na África Central e do Norte, 1822-1824 , relata: Yarba é uma província extensa
que possui rios, florestas, desertos e montanhas, bem como um grande número de coisas
maravilhosas e extraordinárias ... Os habitantes dessa província são supostamente originários
dos remanescentes dos filhos de Canaã, que pertenciam à tribo de Nimrod. A razão de
fixarem-se no oeste da África deve-se ao fato de terem sido conduzidos por Yar-rooba, filho de
Kahtan, da Arábia para a costa ocidental, entre o Egito e a Abissínia. Deste lugar, avançaram
para o interior da África, encontraram Yarba e ali fixaram moradia. Durante o percurso foram
deixando, em cada lugar que paravam, uma tribo de seu povo. Supõe-se que todas as tribos
do Sudão que habitam as montanhas, bem como todos os habitantes de Yaory, têm essa
origem. Assim, o povo de Yarba tem descrição semelhante à do povo de Noofee (Nupe).
O nome Lamurudu (ou Namurudu) sugere uma modificação do nome Nimrod. Quem era
Nimrod? Cognominado o forte, filho de Hasôul, pode ter sido também o poderoso caçador da
Bíblia. Talvez as duas descrições refiram-se a uma única pessoa. A Arábia é provavelmente a
Meca da tradição iorubá. É conhecido que os descendentes de Nimrod (fenícios) foram
conduzidos à Arábia para guerrear, fixaram moradia e a partir dali foram conduzidos, devido à
perseguição religiosa, até a África. Aqui temos também, a origem do nome iorubá: Yarba, local
de sua primeira fixação duradoura na África. Yarba equivale ainda ao termo hausa Yarriba, que
significa iorubá.
A partir desses dados podemos supor que a origem mais provável dos iorubás seja a
seguinte: Teriam vindo do Alto Egito ou Núbia; sendo súditos do conquistador egípcio Nimrod,
13

Apud Fadipe, 1970:30

41
de origem fenícia, o teriam seguido em suas guerras de conquistas, rumo a Arábia, onde
teriam se estabelecido durante algum tempo; da Arábia teriam sido excluídos, em virtude de
praticarem cultos fundamentalmente pagãos, ou ainda, uma forma deturpada de Cristianismo
ocidental.

14

Organização Social e Política
A forma mais comum de moradia na sociedade tradicional iorubá é o agbo-ile (compound,
no dizer dos britânicos), literalmente, agregado de casas habitadas pelos membros de um clã
(famílias interligadas por parentesco consangüíneo). Um conjunto de agbo-ile compõe o agbole
e um conjunto destes forma o adugbo, distrito governado pelo ijoye. Estes articulam-se aos
baale e ao oba. A organização sócio-política dos iorubás é monárquica, com duas categorias
de soberanos - o baale, literalmente, dono da terra, fundador e chefe de um povoado e o oba,
chefe de uma cidade e dos povoados a ela associados. O oba é escolhido entre os baale e
rege com um Conselho deles. Os obas são chamados Omo Oduduwa, filhos de Odudua.
Esta organização articula-se com outra, cujas normas são ditadas pela Constituição
Republicana dos países que compõem a Terra Iorubá. Por exemplo, a entidade política
conhecida como Nigéria ganhou existência formal em 1914, graças à união entre as
Procuradorias Britânicas do Norte e do Sul. O país como um todo tornou-se independente em
0
0
1 de outubro de 1960. Três anos, em 1 de outubro de 1963, tornou-se República, rompendo
todos os laços com a Coroa Britânica, passando a integrar a Organização das Nações Unidas.
Alguns dados a respeito da economia nigeriana
A agricultura tem sido a atividade profissional mais importante a ela associando-se a caça
e a pesca. Grande parte da população exerce atividade agrícola, produzindo inhame, arroz,
feijão, cana de açúcar, frutas cítricas e mandioca para consumo interno; cacau, azeite de
dendê, amendoim e madeira para consumo interno e exportação. Mandioca, inhame, milho e
feijão constituem alimentos básicos. O cardápio alimentar inclui pimenta, verduras, tomate, obi,
abacaxi, laranja e banana.
Outras atividades profissionais desenvolvidas nos povoados e cidades são a forja, o
artesanato em madeira, a fabricação e tingimento de roupas, a medicina tradicional e a prática
oracular. Os profissionais organizam-se em grupos e reúnem-se periodicamente com o
objetivo, entre outros, de render culto aos seres espirituais tutores de sua profissão.
O setor industrial acha-se em desenvolvimento, principalmente a indústria do aço e do
ferro. Atualmente, esforços são empreendidos no sentido de incentivar o desenvolvimento de
indústrias petroquímicas, de fertilizantes e de gás liqüefeito. Indústrias têxteis provêm parte do
14

. Remeto os leitores particularmente interessados por este tópico ao trabalho de Correia-Rickli, 1993

42
necessário ao consumo interno. Ferro, estanho, nióbio, carvão, pedra calcária e petróleo são
abundantes.
A agricultura é atividade exclusivamente masculina, competindo às mulheres a limpeza,
moagem, armazenagem e processamento dos produtos agrícolas. As mulheres cuidam das
crianças pequenas, dos animais de abate (basicamente aves e caprinos) e do preparo dos
alimentos. Outra atividade tradicionalmente feminina é a comercial: mulheres de agricultores
recebem de seus maridos os excedentes comercializáveis da produção para vendê-los. Em
geral organizam-se em grupos cooperativos denominados ajo. Reúnem-se a intervalos
regulares, realizam poupança conjunta e ao fim de cada encontro a quantia reunida é entregue
a uma das integrantes do grupo. Essa ajuda mútua tem possibilitado independência econômica
a muitas mulheres.
No contato com a modernidade a condição feminina tem sofrido alterações significativas.
Atualmente, as mulheres têm negócios próprios, ocupam cargos políticos, trabalham em
embaixadas, cortes e ministérios.
Sistema de moradia e organização familiar
Conforme mencionamos, a forma mais comum de moradia é o agbo-ile. Tradicionalmente,
as casas eram construídas de taipa e cobertas com folhas de palmeira. Atualmente muitas
casas ainda são construídas de taipa, porém cobertas de zinco. Nas construções mais
recentes são usados tijolos, cimento e caixilharia industrializada. A estrutura tradicional do
agbo-ile compreende um grande corredor central, geralmente bastante largo, ladeado por uma
sucessão de portas que conduzem a quartos ocupados por um ou mais membros do clã. Os
homens que optaram por casamento poligâmico abrigam cada esposa e respectivos filhos num
dos quartos e reservam para si próprios um aposento de uso exclusivo. Em alguns agbo-ile há
um aposento para os rapazes. Ao casar, o rapaz conduz a moça para morar consigo na casa
dos pais e, caso não haja espaço suficiente, realiza-se a construção de nova casa ao lado da
já existente.
No grande corredor central as pessoas se reúnem, as refeições são preparadas, os
visitantes recebidos, as festividades realizadas. Mais recentemente alguns desses quartos têm
sido usados como banheiros e salas de estar. A parte do corredor central que integra o quarto
da mulher é para seu uso, sendo sua responsabilidade mantê-la limpa. Para o preparo da
comida um fogareiro de querosene é colocado no chão, diante da porta do próprio aposento e
praticamente toda a atividade culinária se realiza ali. A pessoa cozinha acocorada ou sentada
num apoti, banquinho que não ultrapassa vinte centímetros de altura. As crianças participam
dessas atividades, bem como de outras ocupações domésticas.
A sociedade iorubá é patriarcal. Os laços de parentesco determinados por vínculo
consangüíneo ou por casamento constituem uma das maiores forças na vida tradicional

43
africana e controlam as relações entre as pessoas da comunidade, determinando o
comportamento de cada indivíduo em relação aos demais. Cada indivíduo ocupa uma posição
familiar - irmão, irmã, pai, mãe, avô, primo, cunhado, tio... Há muitos termos para precisar a
relação de parentesco entre uma pessoa e outra(s). Quando dois estranhos chegam ao
povoado, uma das primeiras preocupações é a de identificar o que um é do outro, diz Mbiti.
Uma vez realizada essa identificação, também estará identificado o sistema de referência e
então será possível definir os comportamentos a adotar frente a eles. Se, por exemplo, são
irmãos, é necessário saber quem é o mais velho porque essa informação é necessária para
definir tanto as expectativas de comportamento deles entre si como a relação de respeito que
deverá ser estabelecida com cada um dos dois. Egbon é o irmão mais velho, aburo, o mais
jovem e o comportamento em relação a eles deve ser distinto. As relações de parentesco são
tão importantes que muitas vezes uma pessoa não é identificada pelo próprio nome e sim pelo
vínculo que possui com outra. A sogra pode carinhosamente chamar a própria nora de iyawo
mi - minha esposa e apresentá-la aos amigos como a esposa. Nascido o filho, o pai e a mãe
passam a ser chamados por um nome que denota sua relação com a criança. A partir do
momento em que nasce uma criança de nome Olukemi, por exemplo, a mãe passa a ser
chamada Iyakemi (mãe da Kemi) e seu pai, Babakemi (pai da Kemi).
Além de estender-se horizontalmente, o sistema de parentesco estende-se verticalmente,
incluindo os falecidos (mortos-viventes) e os ainda não nascidos. É forte o senso de pertença
histórica, o sentimento de posse de profundas raízes e o senso de sagrada obrigação para
com os antepassados. Vínculos genealógicos servem a propósitos sociais. Citando-se a
referência genealógica de alguém é possível saber como essa pessoa liga-se a outra(s) em
determinado grupo.
As famílias são geralmente numerosas. Um homem com muitas esposas, cada qual com
seus filhos e os parentes a eles associados compõem um grupo grande. Considera-se que os
já-idos permanecem interessados pelos acontecimentos familiares, aconselhando,
admoestando, protegendo, punindo e reivindicando manifestações de carinho e amizade,
solicitando comida, bebida e retificação de ofensas. Cada indivíduo é considerado parte de um
todo e seu nascimento físico é apenas o primeiro passo para o ingresso em sua comunidade,
havendo rituais de integração ao grupo. O ocorrido a um indivíduo, ocorreu a seu grupo e o
ocorrido ao grupo, ocorreu ao indivíduo: sou porque somos e por sermos sou.

44
Capítulo 6

A palavra: ação e comunicação
onde se apresentam dados sobre o idioma, a importância e poder da palavra
nesta sociedade de tradição oral e sobre os nomes das pessoas, objetos, cidades
e seres
O testemunho, seja escrito ou oral, no fim não é mais que testemunho
humano, e vale o que vale o homem
Hampate Bâ
O idioma
O idioma falado pelos iorubás é o iorubá, com variações de dialeto - egba, ekiti, ibadan, ife,
ijebu, ijesa, ikale, ilaje, ondo, owo e oyo, por exemplo. De fato, cada nome destes refere-se
simultaneamente a uma cidade, um dialeto e um agrupamento humano. Egba refere-se à
cidade de Abeokuta, capital do estado de Ogun. Os egba, todos reconhecidos como
descendentes de Oranyan, viviam principalmente em povoados e aldeias independentes umas
das outras. Viram-se obrigados, em virtude das guerras, a unirem seus 153 povoados. E
formaram Abeokuta.
O iorubá, língua tonal, faz uso de três tons simples e dois compostos. O acento agudo
indica tom alto, o grave, tom baixo e a ausência de acento, tom médio. Destes tons simples
decorrem sons compostos pela combinação agudo/grave (tom alto-descendente) ou
grave/agudo (tom médio-descendente). Algumas letras - E, O, S - recebem um acento
embaixo, indicador de alteração de som: E (é), O (ó), S (ch)
O alfabeto possui vinte e cinco letras:
A B D E E F G GB H I J K L M N O O P R S S T U W Y
O idioma iorubá integra o grupo lingüístico nigero-congolês e estima-se que seja falado por
cerca de 25 milhões de pessoas. Este grupo lingüístico compõe, juntamente com o nilosaariano e o afro-asiático, o conjunto de famílias lingüísticas existentes na Nigéria. (Olaniyan,
1985)
Tradição oral: importância e poder da palavra
Leave out my name from the gift
if it be a burden,
but keep my song
Rabindranath Tagore

45
A linguagem cotidiana dos iorubás, extremamente rica em metáforas, abrange um imenso
conjunto de lendas, contos, fábulas, vigorosos ditados, provérbios, relatos mitológicos e
históricos. A tradição oral realiza, conforme afirma Vansina (1982), dois níveis de registro: um
consciente - registro de acontecimentos passados (crônicas orais de um reino ou genealogias
de uma sociedade segmentária) e o outro, inconsciente - literatura oral em todas suas formas:
epopéias; poemas, que incluem canções, cantigas e cânticos; fórmulas, que incluem
provérbios, charadas, orações e genealogias e narrativas, compreendendo estas a maioria
das mensagens históricas conscientes.
A tradição oral é entretanto, além desse imenso conjunto literário, a grande escola da
vida. Baseada numa concepção de homem e de universo que confere à Palavra origem divina,
nela reconhece um poder sagrado, criador, capaz de preservar e destruir. Hampate Bâ (1982),
referindo-se às sociedades orais, aponta para o fato de que em tais sociedades o vínculo entre
o homem e a palavra é muito forte: o homem permanece ligado à palavra que profere. Sendo a
palavra uma força fundamental emanada do próprio Ser Supremo, possui caráter sagrado e a
ela vinculam-se forças ocultas. A tradição africana concebe a fala como um dom de Deus:
divina no sentido descendente e sagrada no sentido ascendente, materializa ou exterioriza as
vibrações das forças. A fala humana, eco da fala divina, pode colocar em movimento forças
latentes nos seres e objetos, como um homem que levanta e se volta ao ouvir seu nome. É,
por essa razão, o grande agente ativo da magia africana (p. 186). Sendo o universo visível
concebido e sentido como a concretização ou o envoltório de um universo invisível constituído
de forças em perpétuo movimento, a ação mágica (manipulação das forças) geralmente almeja
restaurar o equilíbrio perturbado e restabelecer a harmonia.
Naturalmente, o poder da palavra de um homem depende de como ele utiliza sua fala. O
poder criador e operativo da palavra encontra-se em relação direta com a conservação ou com
a ruptura da harmonia no homem, no mundo que o cerca e na relação entre o homem e o
mundo. Por isso a mentira é considerada uma verdadeira lepra moral. A língua que falsifica a
palavra vicia o sangue daquele que mente. Aquele que corrompe sua palavra, corrompe a si
próprio, diz o adágio15. Quando alguém pensa uma coisa e diz outra, separa-se de si mesmo,
rompendo a unidade sagrada, reflexo da unidade cósmica. Cria desarmonia ao redor de si e
em seu próprio interior.
Cuida-te para não te separares de ti mesmo. É melhor que o mundo fique separado de ti
do que tu separado de ti mesmo. Esta relação homem/palavra, em que a mentira não tem
lugar, é particularmente enfatizada quando se trata de transmitir palavras herdadas de
ancestrais ou de pessoas idosas, na corrente de transmissão oral. O tradicionalista é
disciplinado interiormente, preparado para jamais mentir, considerado um homem bem
15

Estes adágios são citados por Hampate Bâ em A Tradição Viva (1982)

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  • 1. Ronilda Iyakemi Ribeiro Alma Africana no Brasil Os iorubás EDITORA ODUDUWA 1996
  • 2. Copyright @ 1996 by Ronilda Iyakemi Ribeiro Todos os direitos para a língua portuguesa reservados pela Editora Oduduwa. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, guardada pelo sistema retrieval ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, seja este eletrônico, mecânico, de fotocópia, de gravação ou outros, sem prévia autorização por parte da Editora. Revisor Ralf Correia-Rickli Revisor do Iorubá Síkíru Sàlámi Capa Ilustrações ..................... Diagramação e Composição Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Alma Africana no Brasil. Os iorubás / Ronilda Iyakemi Ribeiro - São Paulo: Editora Oduduwa, 1996 ISBN: ............. 1. Culturas Africanas 2. Orixás 3. Iorubás Índice para catálogo sistemático: Direitos reservados à Editora Oduduwa Rua São Bartolomeu, 83 CEP 05014 - 030 Sumaré. São Paulo. SP Tel: (011) 62.9256 - Telefax (011) 65.0962 2
  • 3. Sou grata a Olodumare e aos Senhores do Karma pelo privilégio de servir de porta-voz da Tradição Iorubá, que tanto amo. Sou grata também aos meus companheiros no ideal de construir uma sociedade justa, onde imperem o Amor e a Paz. O compromisso com esses ideais maiores e com a tarefa de resgate da importância da sabedoria e dignidade do homem africano compartilho mais estreitamente com as seguintes pessoas: Sikiru Salami, fundador da Federação Internacional de Tradições Africanas e Culto aos Orixás- FITACO e do Centro Cultural Oduduwa, docente do Curso de Língua e Cultura Yoruba da USP; Rubens Eduardo Ferreira Frias, poeta e pensador, docente/pesquisador da UNESP de São José do Rio Preto; Ralf Correia-Rickli, escritor; Kabengele Munanga, docente/pesquisador do Centro de Estudos Africanos da USP; Babalorixá Falagbe Esutunmibi, presidente da FITACO; William E. Nelson, Jr., docente e pesquisador na Ohio State University e expressivo membro da African Heritage Studies Association; Ruth S. Hamilton, docente e pesquisadora da Michigan University, coordenadora do African Diaspora Research Project; Hélio Santos, coordenador do Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da População Negra (Brasília DF). Sou grata a Akin Agbedejobi, pela ajuda no trabalho de campo em Abeokuta e P. Ade Dopamu, da Universidade de Ilorin, pelo diálogo fecundo. Chief Wulemotu Alake, Iyanla, mulher sábia de Abeokuta. Wilson Gomes Pinto, do IAMSPE e Iya-Obaluwaiye, de Abeokuta. Orientandos e orientados, discípulos/mestres desta caminhada. Amigos e companheiros da African Heritage Studies Association (USA); do Núcleo de Pesquisas e Estudos Interdisciplinares do Negro Brasileiro da USP - NEINB/USP (São Paulo); da Associação Brasileira de Capoeira Angola (Bahia); da Associação de Artistas e Animadores Culturais da Cachoeira (Bahia); do Núcleo de Consciência Negra (São Paulo), da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP, particularmente Jacques Marcovitch, Fundação Cultural Palmares, particularmente Dulce Maria Pereira. Sou profundamente grata a Osvaldo Ribeiro e Julieta Strefezza Ribeiro, meus pais: elos de ouro com os já idos e Eduardo, Marília, Rodrigo, Oluwakemi, Adeniyi, Dimitri: elos de ouro com os que estão por vir. 3
  • 4. Oriki Oluwakemi Adeola ati Adeniyi Olawale, omo mi dada Isoko omo Alade Omo elesu oja Omo Ayigidi Omo gbangba ni Ketu Omo Oba! Oko ni omo Ilado! Omo aseun boro o Omo a f’eja dana yan eja Olosi eniyan, lo ma so pe ko si Igi ni Ilado kini a ma fi yan eja Omo afeja gboro n’ibu omi 4
  • 5. Índice Apresentação .............................................................................................. 07 Prefácio ....................................................................................................... 08 Introdução .................................................................................................. 10 Parte I Etnias africanas Concepção negro-africana de universo, pessoa e tempo Capítulo 1 - Etnias africanas ..................................................................... 15 onde se apresentam dados sobre a etimologia da palavra África e sobre grupos étnicos africanos Capítulo 2 - Universo e Pessoa: concepção negro-africana ....................... 18 onde se discorre a respeito da concepção negro-africana de universo, sobre pensamento causal e sincronístico e sobre a noção de pessoa Capítulo 3 - Tempo: concepção negro-africana ........................................ 23 onde se apresentam considerações a respeito de horizontes temporais: cadeia geracional e importância do passado; o clássico estudo de Mbiti sobre o tempo e algumas críticas a ele dirigidas por outros autores; noção de tempo mítico e social Capítulo 4 - Impacto da modernização Encontro do Tradicional com o Moderno .......................... 32 onde se apresentam dados a respeito da convivência de valores tradicionais com modernos em solo africano Parte II - Os iorubás na África Capítulo 5 - Contexto geográfico, origem, organização social e política .. 36 Onde se apresentam, além da localização geográfica, dados históricos sobre a origem dos iorubás, mitos cosmogônicos, dados sobre sua organização social e política Capítulo 6 - A palavra: ação e comunicação ............................................. 44 onde se apresentam dados sobre o idioma, a importância e poder da palavra nesta sociedade de tradição oral e sobre os nomes das pessoas, objetos, cidades e seres Capítulo 7 - Noção de pessoa: concepção iorubá de natureza e destino humanos ............... 50 onde se apresentam dados a respeito da concepção de natureza e de destino humanos e do papel do oráculo na definição de condutas Capítulo 8 - Dimensão espiritual e práticas religiosas .............................. 56 onde se apresentam dados sobre a dimensão do supra-sensível, sobre o nascimento e a morte e sobre práticas religiosas na Nigéria 5
  • 6. Capítulo 9 - Deus, Divindades e Ancestrais ............................................... 59 onde se discorre a respeito da concepção de Deus e da etimologia da palavra orixá; apresentam-se dados sobre algumas das principais divindades e sobre o Poder Ancestral Capítulo 10 - Poderes extraordinários Medicina tradicional e magia. Bruxaria e feitiçaria ........... 85 onde se apresentam dados a respeito de oogun - medicina tradicional e magia e a respeito de bruxaria e feitiçaria entre os iorubás Capítulo 11 - Poderes extraordinários. Adivinhação............................... 92 onde se contextualiza o sistema divinatório de Ifá entre outros recursos universais de adivinhação Parte III - Degredo, Negredo, Segredo: os iorubás no Brasil Desenraizamento, Travessia, Presença Capítulo 12 - Participação africana na constituição sócio-cultural brasileira ................................................ 103 Onde se discorre sobre influências musicais africanas nas tradições brasileiras: instrumentos musicais e elemento vocal; sobre folclore e principais influências religiosas Capítulo 13 - Panorama e personagens do tráfico de escravos no Brasil 112 onde se descreve o cenário e algumas das personagens desse drama histórico Capítulo 14 - Travessia oceânica ............................................................. 116 onde se apresentam dados a respeito da viagem marítima da Costa Africana para o Brasil, durante o período do tráfico de escravos Capítulo 15 - Os iorubás no conjunto de influências africanas no Brasil ................................ 124 onde se discorre a respeito da participação iorubá na constituição sócio-cultural brasileira. Conclui-se com referências a iorubás que retornaram à África e outros que aqui permaneceram Glossário.................................................................................................... 131 Referências Bibliográficas ........................................................................ 137 Capa: Baba-nla Salawu Samsondeen Salami Abeokuta, Ogun State. Nigeria 6
  • 8. Prefácio O continente africano, apesar de apresentar-se geograficamente em bloco unido, esconde uma certa diversidade cultural, lingüística, biológica e política. Entre os africanos trazidos ao Brasil durante o tráfico negreiro para satisfazer as necessidades do escravismo havia uma diversidade de origens diluída através dos processos de mestiçagem, de transculturação e de sincretismo aos quais foram submetidos no novo mundo, além de outros mecanismos de nivelamento entre eles. Mas, embora pelo menos 45% dos brasileiros tenham ancestrais oriundos da África, esta permanece até hoje um dos continentes mal e menos conhecidos comparativamente aos demais que contribuíram para a formação do povo brasileiro. A Alma Africana no Brasil: os iorubás, de Ronilda Iyakemi Ribeiro se propõe a contribuir para o preenchimento dessa lacuna: levar os brasileiros a redescobrirem uma de suas múltiplas fontes culturais. Em vez de pintar uma África única, unitária e simplificada, a autora se limita neste livro a falar principalmente do segmento étnico iorubá da Nigéria cuja contribuição à cultura brasileira, essencialmente no domínio religioso, é significativa. A autora descreve os iorubás no seu berço africano, de um lado, e tenta a partir desse pano de fundo cultural africano enfocar as influências e o impacto cultural trazidos para a cultura brasileira. Sem dúvida, a obra apresenta uma diversidade temática compilando dados históricos, sócio-políticos, religiosos etc... o que denota a preocupação da autora em fornecer um quadro o mais completo possível de informações sobre os iorubás. Não seria desnecessário chamar a atenção do leitor para o fato de que a Dra. Iyakemi Ribeiro, apesar de ser uma brasileira autêntica, apresenta neste livro a imagem de uma pessoa situada entre dois mundos culturais. De um lado, o mundo iorubá, cuja visão de mundo admira e integrou como sua. De outro lado, o Brasil branco e suas contribuições culturais, do qual ela também faz parte por sua ascendência. Seria uma falsa ambivalência, pois apesar de seus cabelos louros e olhos azuis, a Dra. Iyakemi é uma pessoa que vive a cultura brasileira resultante de todas as contribuições historicamente recebidas e que assume e cultua plenamente, como seus, os ancestrais e os deuses de origem africana que, penso eu, pertencem hoje a todos os brasileiros. Os leitores sentirão obviamente um certo envolvimento da autora com o sujeito-objeto de sua obra. A paixão, a emoção, a parte prise, outrora consideradas elementos metodologicamente negativos são hoje vistas como fazendo parte do processo do conhecimento e portanto positivas quando bem dosadas. Pessoalmente, vejo neste envolvimento humano um dos aspectos mais bonitos da contribuição da Dra. Iyakemi Ribeiro em seu esforço para melhor fazer conhecer os iorubás no Brasil. 8
  • 9. Kabengele Munanga Centro de Estudos Africanos Universidade de São Paulo 9
  • 10. Introdução Na sala de minha casa, confortavelmente instalada na poltrona velha, inicio a redação deste livro sobre os iorubás. Sua presença constante e intensa em minha vida nestes últimos quinze anos revela-se através de alguns sinais físicos: sobre os móveis, estatuetas de orixás Ifa, Ibeji, Egungun; nas paredes, o mapa da Nigéria e fotos de ancestrais dos meus filhos. Em minha alma, impregnada dos efeitos da convivência contínua com iorubás, no Brasil e na Nigéria, enriquecida pelo contato com sua forma particular de apreender o sentido do mundo e da existência humana, vibra forte o desejo de realizar uma apresentação desse povo. Não porque essa tarefa jamais tenha sido empreendida. Não. É grande o número de autores empenhados nisso. Apenas participo com pequena parcela, do projeto coletivo de construção do conhecimento, o mais fiel possível, a respeito desse grande grupo africano, tão significativo para nós brasileiros. Tenho constatado que a palavra iorubá, exceto para grande parte dos iniciados no 1 Candomblé , é quase desconhecida, e que mesmo nagô, vocábulo mais divulgado, é ainda pouco conhecido - muito menos do que poderíamos esperar considerando-se a significativa participação desse grupo étnico na constituição da sociedade e cultura brasileiras. Algumas vezes fui solicitada a apresentar a alunos de primeiro e segundo graus um relato de minha experiência com os iorubás e lamentei profundamente a grande carência de informações a respeito dos africanos em seus países de origem e no Brasil. De fato, entristece constatar que a força do sangue africano na constituição do povo brasileiro não recebe o devido reconhecimento. O convívio íntimo com iorubás, aqui e na Nigéria, nos últimos treze anos, favoreceu bastante a definição de meu campo de pesquisas e o desenvolvimento de meus projetos. O primeiro trabalho de fôlego realizado nesse percurso foi a tese de doutorado em Psicologia (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo) intitulada A Mulher, o Tempo e a Morte. O envelhecimento feminino no Brasil e na Nigéria (Iorubás). Nesse trabalho explorei possíveis relações entre crença no post-mortem e atitudes de mulheres frente ao próprio envelhecimento. Devo confessar que motivos pessoais me levavam a tentar aprender com outros povos, formas de envelhecer menos ameaçadoras que as por mim conhecidas na experiência de mulher ocidental. Durante aqueles anos em que trabalhava os temas do envelhecimento e da morte, vivia em minha vida pessoal, a rica experiência de tentar ser mãe novamente. Já me aproximava dos quarenta anos de idade, tinha três filhos do primeiro casamento e era laqueada, portanto 1 Candomblé, denominação originária do termo kandombile, cujo significado é culto e oração, constitui um modelo de religião que congrega sobrevivências étnicas da África e que encontrou no Brasil, campo fértil para sua disseminação e reinterpretação (Lody, 1987:8) 10
  • 11. estéril. O segundo casamento, com um homem iorubá, dinamizara meu desejo de ser mãe novamente e de integrar-me mais significativamente a esse grupo étnico, ao qual sempre devotei grande respeito, admiração e amor. Entretanto, a idéia de submeter-me a uma cirurgia para religar as trompas parece não ter entusiasmado muito meus amigos e familiares, nem os médicos que haviam me oferecido cuidados até então. Percorri uma longa via crucis iniciada nas tentativas de conseguir um cirurgião que concordasse em realizar a reanastomose tubária naquela mulher de quase quarenta anos, que era eu e que continuaria durante anos, num processo de preparação para isso, cuidados disso e com isso, até culminar em dois felizes partos. As leituras para a elaboração daquele texto sobre envelhecimento feminino e morte, ao qual me referi linhas acima, foram realizadas em bancos e cadeiras dos corredores e salas de espera de hospitais e clínicas que me assistiram durante todo o processo. As trompas religadas deram passagem a filhos do povo iorubá nascidos em terra brasileira. Nesse esforço associaram-se aos métodos modernos da medicina no Brasil, métodos tradicionais da medicina iorubá na Nigéria, utilizados com carinho pelo homem brasileiro e pela mulher nigeriana que assumiram essa empresa e aos quais sou profundamente grata. Durante os mais de três anos que circulei nos corredores, salas, quartos, enfermarias, laboratórios, câmaras e antecâmaras, convivi com sonhos e temores de mulheres envolvidas, como eu, com a maternidade. Algumas, felizes com a gravidez, outras revoltadas ou amedrontadas... Quando finalmente engravidei, duas vezes sucessivas com intervalo de um ano e pouco, gestei crianças e também a idéia de escrever sobre a maternidade. Poderia ter me servido mais uma vez do referencial teórico e da metodologia postos à disposição pela Psicologia. No entanto, a experiência anterior de pesquisa a partir desse referencial, junto aos iorubás, revelara limitações e decidi recorrer às possibilidades epistemológicas da Antropologia. Além disso, minha intenção de estudar antropologia, adiada durante tanto tempo, em virtude das muitas demandas da vida familiar e profissional viu chegada sua chance: um aprendizado sistemático e gradual, sob a orientação de um mestre confiável poderia ocorrer num Programa de PósGraduação, embora pudesse parecer estranho esse movimento realizado por alguém já portador do título de doutor. O que buscara ao ingressar, encontrei: tempo e lugar institucionalmente reservados para uma interlocução mais que satisfatória sobre tema tão apaixonante como este por mim escolhido. Descobri, entre outras coisas, que os homens também gestam. No coração. Assim foi meu processo gestado: no coração de Kabengele Munanga, dando nascimento a minha tese de doutorado em Antropologia: Mãe Negra. O significado iorubá da maternidade. Reconhecendo que circunstâncias de minha vida me proporcionam acesso a textos e interlocutores e que tal acesso nem sempre é fácil, decidi reunir algumas informações úteis à construção de um quadro expressivo sobre os iorubás. Esta obra constitui, assim, uma sistematização de informações que reuni ao longo dessa caminhada. Alguns capítulos ganharam a forma de patchwork - ‘alinhavei retalhos’ para manter o poder expressivo de seus autores. O livro está organizado em três partes: A Parte I, intitulada Etnias africanas. Concepção negro-africana de universo, pessoa e tempo, compõe-se de quatro capítulos - Etnias africanas (Capítulo 1); Universo e Pessoa: 11
  • 12. Concepção negro-africana (Capítulo 2); Tempo: Concepção negro-africana (Capítulo 3) e Impacto da modernização. Encontro do Tradicional com o Moderno (Capítulo 4). A Parte II, intitulada Os iorubás na África informa a respeito de particularidades desse grupo no modo negro-africano de inserção na realidade física e social. Compõe-se de sete capítulos: Contexto geográfico, origem, organização social e política (Capítulo 5); A palavra: ação e comunicação (Capítulo 6); Noção de pessoa: concepção iorubá de natureza e destino humanos (Capítulo 7); Dimensão espiritual e práticas religiosas (Capítulo 8); Deus, Divindades e Ancestrais (Capítulo 9); Poderes extraordinários: Medicina tradicional e magia; bruxaria e feitiçaria (Capítulo 10); Poderes extraordinários: adivinhação (Capítulo 11). A Parte III, intitulada Degredo, Negredo, Segredo: os iorubás no Brasil. Desenraizamento, Travessia, Presença abrange os seguintes capítulos: Participação africana na constituição sócio-cultural brasileira (Capítulo 12); Panorama e personagens do tráfico de escravos para o Brasil (Capítulo 13); Travessia oceânica (Capítulo 14); Presença dos iorubás no conjunto de influências africanas no Brasil (Capítulo 15). Estes três últimos capítulos têm por espinha dorsal o poema Negredo, de Rubens Eduardo Ferreira Frias. Composto de três cantos Degredo, Negredo e Segredo - esse belo poema realiza inspirada síntese da brutal história do desenraizamento do povo africano e de sua adaptação ao Novo Mundo. Quanto às convenções utilizadas na redação do texto, quero dizer que adotei o critério de não acentuar os vocábulos iorubás. Adotei também, a convenção de não escrever em iorubá palavras já integrantes do português, baseando-me nos dicionários de Aurélio Buarque de Holanda e de Luís da Câmara Cascudo para grafá-los e de não utilizar itálico ao grafar nomes próprios. As indicações bibliográficas obedecem à seguinte convenção: tratando-se de transcrição de um excerto apresento entre parênteses o nome do autor seguido da data de publicação da edição consultada e, logo após os dois pontos, a página em que se encontra o trecho transcrito. Desejo que este trabalho venha a contribuir na luta contra o racismo uma vez que a dignidade, beleza e nobreza do homem africano clamam por resgate, neste país que ocupa no mundo o segundo posto em população negra. Mojuba! Iyakemi (1996) 12
  • 13. PARTE I Concepção negro-africana de universo, pessoa e tempo Os antropólogos nos ensinam que o mundo tem definições diversas em diversos lugares. Não é só que os povos tenham costumes diferentes; não é só que os povos acreditem em deuses diferentes e esperem diferentes destinos após a morte. É, antes, que os mundos de povos diferentes têm formas diferentes. Os próprios pressupostos metafísicos variam: o espaço não se conforma à geometria euclidiana, o tempo não constitui um fluxo contínuo de sentido único, as causas não se conformam à lógica aristotélica, o homem não se diferencia do não-homem, nem a vida da morte, como no nosso mundo. Walter Goldschmidt, prefaciando A Erva do Diabo de Carlos Castaneda, 1976 13
  • 14. Concepção negro-africana de universo, pessoa e tempo Capítulo 1 etnias africanas Capítulo 2 universo e pessoa: concepção negro-africana Capítulo 3 tempo: concepção negro-africana Capítulo 4 Impacto da modernização. Encontro do Tradicional com o Moderno 14
  • 15. Capítulo 1 Etnias africanas onde se apresentam dados sobre a etimologia da palavra África e sobre grupos étnicos africanos A África e a Ásia, atualmente na periferia do mundo tecnicamente desenvolvido, estavam na vanguarda do progresso durante os primeiros quinze mil séculos da história do mundo... a África foi o cenário principal da emergência do homem como espécie soberana na terra, assim como do aparecimento de uma sociedade política. Mas esse papel eminente na pré-história será substituído, durante o período histórico dos últimos dois milênios, por uma "lei" de desenvolvimento caracterizada pela exploração e por sua redução ao papel de utensílio. Ki-Zerbo A palavra África, conforme nota Ki-Zerbo (1982:21) possui origem difícil de elucidar. Imposta a partir dos romanos, sucedeu ao termo Lybia - país dos Lebu ou Lubin do Gênesis de origem grega ou egípcia. Inicialmente designava o litoral norte-africano e foi somente a partir do fim do século I AC que passou a designar o continente como um todo. Quanto a sua origem primeira, aponta Ki-Zerbo, como plausíveis, as seguintes versões: 1. Teria vindo do nome de um povo (berbere) situado ao sul de Cartago: os Afrig. Daí, Afriga ou Africa para designar a região dos Afrig. 2. Teria origem em dois termos fenícios um dos quais significa espiga - símbolo da fertilidade - e o outro, Pharikia - região das frutas. 3. Derivaria do latim apricao - ensolarado ou do grego apriké - isento de frio. 4. Poderia ser a raiz fenícia faraga - separação, diáspora, a mesma raiz encontrada em algumas línguas africanas, como por exemplo, o bambara. 5. Em sânscrito e hindi, a raiz apara ou africa designa o que, no plano geográfico, situa-se "depois", ou seja, o Ocidente. 6. Uma tradição histórica retomada por Leão, o Africano, diz que um chefe iemenita chamado Africus teria invadido a África do norte no segundo milênio antes da Era Cristã e fundado uma cidade chamada Afrikyah. Mais provável, contudo, é que esse termo seja a transliteração árabe da palavra África. Sendo o continente constituído de muitas áreas etnoculturais caracterizáveis por um conjunto de fatores, torna-se muitíssimo difícil a apresentação clara de todos os grupos que o compõem, bem como a demarcação nítida dos limites entre cada grupo e os demais. Diz Djait (1982:108) que é bem comum estabelecer-se, para começar, uma distinção elementar entre duas Áfricas: a África branca - ao norte do Saara, fortemente influenciada pelas civilizações 15
  • 16. mediterrânicas (arabeizada e islamizada) e a África negra - plenamente africana, dotada de irredutível especificidade etno-histórica. Entretanto, um exame histórico mais aprofundado revela linhas divisórias menos nítidas. Por exemplo, o Sudão senegalês e nigeriano viveu em simbiose com o Magreb árabe-berbere estando mais próximo deste do que do mundo bantu, do ponto de vista das fontes históricas. Na tentativa de apresentar o continente africano, a tendência seguinte será a de opor a África desértica à tropical. A desértica, de savana, mediterrânica, incluiria o Magreb, o Egito, os dois Sudões, a Etiópia, o chifre da África e a costa ocidental até Zanzibar. A tropical, equatorial, ‘animista’, incluiria a bacia do Congo, a costa guineense, a área do ZambezeLimpopo, a região interlacustre e a África do Sul. Djait propõe classificar as regiões de modo a não opor duas Áfricas e sim estruturar o continente segundo afinidades geo-históricas e de acordo com a perspectiva africana, sem deixar de considerar o caráter particular das fontes escritas disponíveis pois, conforme se sabe, uma história que se limite apenas às fontes escritas antes do século XV não poderia atribuir a mesma importância à bacia do Zaire, ao Níger ou ao Egito (p. 109). Tal classificação define a seguinte estrutura funcional: 1. Egito, Cirenaica, Sudão nilótico. 2. Magreb, incluindo a franja norte do Saara, as zonas do extremo ocidente, a Tripolitânia e o Fezzan. 3. Sudão ocidental até o lago Chade em direção a leste e incluindo o sul do Saara 4. Etiópia, Eritréia, chifre oriental e costa oriental. 5. Golfo da Guiné, África central e o sul da África. Tentativas de realizar classificações segundo os parentescos linguísticos e etnoculturais também evidenciaram enormes dificuldades. Em muitas áreas, a intuição de que existe essa relação ainda sobrepuja a prova estabelecida cientificamente (Diagne, 1982: 252). Segundo esse autor, quase todos os lingüistas consideram prematuras as tentativas de classificação, pois até a simples enumeração das línguas africanas encontra obstáculos uma vez que o levantamento desses idiomas ainda não atingiu resultados muito precisos. Estima-se que existam de 1300 a 1500 idiomas classificados como línguas. No entanto, diversos falares precocemente classificados como línguas, após estudos mais cuidadosos, revelaram ser apenas variantes dialetais de um mesmo idioma. É impossível classificar línguas ainda não identificadas com exatidão e analisadas precisamente (p. 255). É sabido que a colonização da África impos a demarcação de fronteiras estranhas à distribuição dos grupos étnicos, fronteiras definidas segundo interesses das potências coloniais 16
  • 17. participantes da Conferência de Berlim, realizada entre 25 de novembro de 1884 e 16 de fevereiro de 1885. Os limites da Terra Iorubá, por exemplo, não coincidem com as fronteiras demarcadas pelos colonizadores. O território iorubá expande-se pelos países Nigéria, Togo e República do Benin (antiga Daomé). Da diversidade observável na África tem sido enfatizado o aspecto negativo. No entanto é necessário que se reconheça as diferenças culturais aí encontradas como preciosa fonte de enriquecimento da herança humana. Papel relevante compete às escolas no sentido de re-incorporação da memória cultural africana na memória cultural humana, para que crianças e jovens das Américas possam (re)conhecer a participação dos povos africanos na história da humanidade e não sejam levados a crer que essa história tenha sido construída apenas pela Europa, quando muito, auxiliada pelas Américas. 17
  • 18. Capítulo 2 Universo e Pessoa Concepção negro-africana onde se discorre sobre a concepção negro-africana de universo, pensamento causal e sincronístico e noção de pessoa Para o negro-africano o visível constitui manifestação do invisível. Para além das aparências encontra-se a realidade, o sentido, o ser que através das aparências se manifesta. Sob toda manifestação viva reside uma força vital: de Deus a um grão de areia, o universo africano é sem costura (Erny, 1968:19) Universo de correspondências, analogias e interacões, na qual o homem e todos os demais seres constituem uma única rede de forças. O sagrado permeia de tal modo todos os setores da vida africana, que se torna impossível realizar uma distinção formal entre o sagrado e o secular, entre o espiritual e o material nas atividades do cotidiano. Uma força, poder ou energia permeia tudo. Como diz Tempels (1949), o valor supremo é a vida, a força, viver forte ou força vital. Essa força não é exclusivamente física ou corporal e sim uma força do ser total, sendo que sua expressão inclui os progressos de ordem material e o prestígio social. Felicidade é possuir muita força e infelicidade é estar privado dela. Toda doença, flagelo, fracasso e adversidade são expressões da ausência de força. Prole numerosa é uma das expressões de força. A força é adquirível, transmissível, pode aumentar e diminuir até o esgotamento total. Situando-se entre as mais belas, completas e sucintas formas de expressar a concepção de homem e de cosmos, o mito cosmogônico da tradição bambara do Komo, uma das grandes escolas de iniciação do Mande, no Mali, narra que Deus, denominado Maa Ngala, tendo sentido falta de um interlocutor, o criou. Vejamos a narração bambara da Gênese Primordial: Não havia nada, senão um Ser. Este Ser era um vazio vivo a incubar potencialmente todas as existências possíveis. O Tempo Infinito era a morada desse Ser-Um. O Ser-Um chamou a si mesmo Maa-Ngala. Então, ele criou 'Fan, um ovo maravilhoso com nove divisões 18
  • 19. no qual introduziu os nove estados fundamentais da existência. Quando o Ovo Primordial chocou dele nasceram vinte seres fabulosos que constituiram a totalidade do universo, a soma total das formas existentes de conhecimento possível. Mas, ai! Nenhuma dessas vinte primeiras criaturas revelou-se apta a ser o interlocutor que MaaNgala havia desejado para si. Então, tomando uma parcela de cada uma dessas vinte criaturas misturou-as. E, insuflando na mistura uma centelha de seu hálito ígneo, criou um novo ser - o Homem - a quem deu parte de seu próprio nome: Maa. Assim, esse novo ser, por seu nome e pela centelha divina nele introduzida, continha algo do próprio Maa-Ngala. Maa, simbiose de todas as coisas, recebeu algo que cada uma de suas partes não recebera: o sopro divino. Esta origem determina um vínculo profundo do homem com cada ser, cada coisa existente no plano material e ainda, com os seres do plano cósmico. A tudo e a cada coisa o homem se relaciona numa grande rede de participação. (Hampate Bâ, 1982:184) Erny refere-se ao universo africano como uma imensa teia de aranha: não se pode tocar o menor de seus elementos sem fazer vibrar o conjunto. Tudo está ligado a tudo, solidária cada parte com o todo. Tudo contribui para formar uma unidade. Sob este ponto de vista ganha sentido a preocupação com a ecologia e com o bem-estar de outras pessoas. Se somos interconectados, o sofrimento de qualquer pessoa é sofrimento de todos e seu júbilo, júbilo de todos. A árvore abatida desnecessariamente e outros atos de crueldade contra o mundo mineral, vegetal ou animal constituem agressão contra si mesmo. A esta trama de relações associam-se o fenômeno da sincronicidade e o pensamento de tipo sincronístico, bastante distinto do pensamento causal. 2 Jung e von Franz discursam a respeito da diferença entre essas formas de pensar, contrapondo ao pensamento causal ou "linear", o pensamento sincronístico ou "de campo", campo cujo centro é o tempo. Pensando linearmente, ao observarmos a sequência de eventos A, B, C e D, pensamos de trás para diante, perguntando-nos por quê D aparece em consequência de C, este em consequência de B e este, por sua vez, em consequência de A. Como normalmente pensamos que a causa vem antes do efeito, a idéia de tempo é, aqui, linear, com antes e depois, ocorrendo o efeito sempre depois da causa. O pensamento 2 Jung, no prefácio à edição inglesa do livro I Ching ou O Livro das Mutações (tradução de Richard Wilhelm), 1970 e von Franz em Adivinhação e Sincronicidade, 1980 19
  • 20. sincronístico, por sua vez, constitui um pensamento que não organiza linearmente e sim em campos. O centro do campo é o momento preciso em que os eventos A, B, C e D ocorrem. Ao invés da pergunta por quê tal coisa ocorre? ou que fator causou tal efeito? pergunta-se o que é provável que ocorra conjuntamente, de modo significativo, no mesmo momento? O interesse primordial dirige-se, pois, à coincidência significativa. Jung diz: Enquanto a mente ocidental examina cuidadosamente, pesa, seleciona, classifica e isola, a visão chinesa do momento inclui tudo até o menor e mais absurdo detalhe, pois tudo compõe o momento observado... tudo que acontece num determinado momento tem inevitavelmente a qualidade peculiar àquele momento... Essa suposição envolve um certo princípio curioso que denominei sincronicidade, conceito este que formula um ponto de vista diametralmente oposto ao da causalidade. A causalidade enquanto uma verdade meramente estatística não-absoluta é uma espécie de hipótese de trabalho sobre como os acontecimentos surgem uns a partir dos outros, enquanto que, para a sincronicidade, a coincidência dos acontecimentos, no espaço e no tempo, significa algo mais que mero acaso, precisamente uma peculiar interdependência de eventos objetivos entre si, assim como dos estados subjetivos (psíquicos) do observador ou observadores. (1970:16) Outra característica do pensamento causal é a distinção que estabelece entre eventos psíquicos e físicos (embora haja atualmente uma tendência crescente ao questionamento a respeito das possíveis interações entre essas duas cadeias de causalidades). O pensamento sincronístico, entretanto, não estabelece igual distinção: tanto fatos internos como externos podem ocorrer simultaneamente, formando um complexo de eventos físicos e psíquicos, cujo elemento unificador é um determinado momento crítico. Temos nesse caso, como pressuposto primordial básico o seguinte: tudo é um fluxo de energia que obedece a certos ritmos numéricos básicos e periódicos. Em todas as áreas de eventos, acabaríamos sempre por chegar, ao final, a essa imagem especular, o ritmo básico - uma matriz - do cosmo. (von Franz, 3 1980:28). É o pensamento sincronístico que confere aos diversos recursos divinatórios seu lugar de destaque: a queda dos búzios, opele ou ikin, conforme veremos no Capítulo 8, define uma configuração específica, sincronicamente relacionada a ocorrências físicas, psíquicas, emocionais e sociais da vida do consulente de modo que o oráculo, olhando esta configuração, enxerga a configuração existencial daquele que o procurou. Noção de Pessoa na África Negra Referindo-se à concepção negro-africana de ser humano, Thomas, L.V. (1973) utiliza a expressão pluralismo coerente da noção de pessoa. Nas diversas etnias africanas há um semnúmero de exemplos de concepções a respeito da constituição humana como resultante de uma justaposição coerente de partes. A pessoa é tida como resultante da articulação de elementos estritamente individuais herdados e simbólicos. Os elementos herdados a situam na linhagem familiar e clânica enquanto os simbólicos a posicionam no ambiente cósmico, mítico e social. 3 Divinatório é o ato ou recurso de adivinhar 20
  • 21. Os diversos componentes da pessoa estabelecem relações entre si e relações com forças cósmicas e naturais. Além disso, ocorrem relações particularmente fortes entre pessoas, como por exemplo, as estabelecidas entre gêmeos ou entre um indivíduo e o sacerdote que o iniciou. Cada pessoa, enquanto organização complexa, tem sua existência transcorrendo no tempo e assim, sua unidade/pluralidade passa por sucessivas etapas de desenvolvimento, estando todas as dimensões do ser sujeitas a transformações. Nesse processo podem ocorrer permutas, substituições parciais e metamorfoses, algumas de caráter definitivo, como as associadas aos processos iniciáticos, outras de caráter provisório, como as sofridas durante certos rituais. Apesar de todas as mutações a pessoa reconhece a si mesma e é reconhecida como um sujeito permanente, ou seja, sua identidade pessoal conserva-se a despeito da pluralidade de elementos que a constituem enquanto sujeito (nível sincrônico) e a despeito das muitas metamorfoses e estados experienciados ao longo de sua história pessoal (nível diacrônico). A existência pessoal transcorre no tempo, dizíamos poucas linhas acima. Lembremos que as representações negro-africanas de tempo, universo e pessoa, distintas das que nos são familiares, determinam distintas concepções de desenvolvimento humano. Entre suas principais características poderíamos mencionar a da não linearidade: a vida humana não transcorre num continuum linear - passado, presente, futuro - com data de início no dia do nascimento e data de término no dia da morte. A vida é uma corrente eterna que flui através dos homens em gerações sucessivas. (Kabwasa, 1982:14) O ciclo da vida é circular: a criança vai se transformando até chegar a adulto; este se transforma até chegar a velho; este, por sua vez, se transforma, inclusive atravessando o portal da morte, para alcançar a condição de antepassado; o antepassado renascerá como criança... O estudo da noção de pessoa, pelo menos no que se refere ao campo etnológico, é relativamente recente. Michel-Jones (1974), sem pretender esgotar as possibilidades, enunciou algumas constantes dos vários conceitos de pessoa existentes na África Negra, partindo dos pontos de vista sincrônico e diacrônico. Após examinar cuidadosamente as contribuições de vários autores da primeira metade do século XX, realçou a importância dos trabalhos de Leenhardt e de M. Mauss. Leenhardt, estudioso da vida dos melanésios, tentou apreender o significado dos comportamentos ligados à concepção de pessoa, através das instituições, das relações sociais e, sobretudo, através das formas míticas onde se expressa a unidade homem/mundo: O indivíduo, enquanto tal, é um ser perdido; tem de possuir qualquer elo com o grupo social. (Leenhardt, citado por M- Jones, p. 48) A pessoa, difusa no grupo, define-se apenas pelos papéis que desempenha e seu corpo não se separa do mundo. Como o pessoal é indissociável do grupal, estudar a concepção de pessoa constitui um recurso para compreender as instituições e as representações a elas associadas. M. Mauss enfatiza o fato de que na ordem cultural tudo o que parece natural (inato) é de fato arbitrário, ou seja, toda relação significante/significado é sempre convencional, extrínseca. Em seus trabalhos com os Índios do nordeste americano construiu a noção de personagem, sugerindo que cada indivíduo desempenha um papel tanto na vida familiar como nos dramas sagrados. 21
  • 22. Todas as sociedades dispõem de um saber a respeito do humano. Este saber corresponde a uma concepção de pessoa - ser humano autenticado pela sociedade e nela possuindo direitos, deveres e até mesmo privilégios. (M-Jones, 1974:51) Para que se evite armadilhas etnocêntricas no tratamento deste tema, M-Jones lembra que: (1) a noção de pessoa não é extensível sem modificações sociais profundas; (2) do ponto de vista da análise etnológica, esta noção tem valor operatório, é uma construção teórica; (3) do ponto de vista da sociedade estudada, a construção ideo-lógica (no sentido de lógica das representações) da concepção de pessoa é pensada como natural. A representação de indivíduo, comunidade e universo é necessariamente influenciada pela representação de tempo. Sendo indispensável o conhecimento da forma peculiar pela qual o tempo é vivido pelos negro-africanos nas sociedades tradicionais para uma compreensão adequada de sua representação de indivíduo, grupo, comunidade e universo, dedicamos o capítulo seguinte a esse tema. 22
  • 23. Capítulo 3 Tempo: Concepção negro-africana onde se apresentam considerações a respeito de horizontes temporais: cadeia geracional e importância do passado; o clássico estudo de Mbiti sobre o tempo e algumas críticas a ele dirigidas por outros autores; noção de tempo mítico e social Horizontes temporais Por horizontes temporais entende-se uma escala temporal e, simultaneamente, a orientação de experiência temporal de um indivíduo ou grupo (Pronovost, 1989:33). Nas sociedades modernas, mais orientadas para o futuro, considerado modelo para o presente, não há representação cíclica de tempo e pressupõe-se a possibilidade de controle do tempo a curto, médio e longo prazo. A interferência da variável classe social na orientação para o futuro determina o predomínio de atitudes de conquista e preservação de bens. Nas sociedades tradicionais entretanto, a orientação se dá em direção ao passado. Bastante ilustrativo deste fato, é o clássico estudo sobre o tempo, que Mbiti (1969) realizou em algumas sociedades africanas. Segundo esse autor, na vida tradicional africana o tempo consiste numa composição de eventos que ocorreram, estão ocorrendo e ocorrerão imediatamente a seguir. Tudo o que certamente ocorrerá ou tudo que compõe a ordem dos fenômenos naturais, como o ritmo da natureza, por exemplo, pertence à categoria de tempo potencial ou inevitável. Decorre disto a concepção de tempo como fenômeno bidimensional, constituido pelo presente, um longo passado e uma virtual ausência de futuro: Passado_____ Presente ........................... (Futuro) A concepção ocidental de tempo, com passado indefinido e futuro infinito, mostra-se totalmente estranha ao pensamento africano: (Passado)..................................Presente _____Futuro Na concepção africana de tempo, as ocorrências do presente constituem, sem dúvida, base para o futuro mas o evento atual é tido como pertencente ao presente, integrando-se ao passado. O tempo atual é constituído, portanto, de eventos presentes e passados. A esteira do tempo move-se para trás mais do que para a frente. As pessoas atentam mais para o transcorrido do que para o que poderá ocorrer. Ao ser pessoalmente experienciado, o tempo torna-se real, incluindo tal experiência a percepção de ser a sociedade anterior ao indivíduo e de serem muitas as gerações passadas. __________________________________________ Hoje Mbiti realizou suas pesquisas na África Oriental e verificou não haver nas culturas por ele estudadas, palavras ou expressões denotativas de um futuro distante. Analisou os recursos gramaticais dos Kikamba e Gikuyu - dois grupos étnicos do Kenia - e constatou serem nove os tempos verbais por eles utilizados, indicadores portanto, de nove períodos, conforme podemos observar na tabela a seguir. 23
  • 24. Tempo verbal 1. Futuro distante 2. Futuro imediato 3. Futuro indefinido 4. Presente 5. Passado imediato 6. Passado de hoje 7. Passado recente 8. Passado remoto 9. P. inespecífico Kikamba Ningauka Ninguka Ngooka Ninukite Ninauka Ninukie Nininaukie Ninookie Tene ninookie Gikuyu Ningoka Ninguka Ningoka Nindiroka Nindoka Ninjukire Nindirokire Nindokire Nindookire tene Inglês I'll come I'll come I'll come I'm coming I've just came I came I came I came I came Futuro distante, o período mais distante do hoje, projetado para o futuro, é um período aproximado de dois a seis meses, não excedendo nunca dois anos e é entendido como extensão do presente. Passado imediato é o período que abrange a última hora que antecede o presente. Passado de hoje é considerado o período que vai desde o amanhecer até duas horas atrás. Passado recente é o ontem. Passado remoto é qualquer dia anterior a ontem e passado inespecífico é o tempo não-especificado no passado. Cabe aqui uma observação curiosa. A sequência numérica empregada pelo africano Mbiti, ao apresentar essa lista de tempos verbais, tem início no futuro (n0 1, futuro distante e termina no passado (n0 9, passado inespecífico), rolando a esteira do tempo para trás. Este detalhe estrutural, aparentemente de pequena importância, de fato reforça o conteúdo apresentado pelo autor. Ao discorrer sobre as peculiaridades da concepção de tempo dos Kikamba e dos Gikuyu, Mbiti diz temer a ocorrência de associações indesejáveis com vocábulos de língua inglesa e por isso recorre a dois vocábulos swahili - sasa e zamani - no esforço de tornar mais compreensível o que pretende expor. Vejamos: Sasa é o período mais significativo para um indivíduo, o lapso de tempo em que as pessoas permanecem conscientes da própria existência, projetando a si mesmas no curto futuro e, principalmente, no longo passado. Sasa constitui em si, uma dimensão completa de tempo, incluindo futuro breve, presente dinâmico e passado já experienciado. Quanto mais velha a pessoa, mais longo seu sasa. E após a morte, enquanto lembrada pelos familiares, continuará existindo em sasa. As comunidades também possuem um tempo de existência, seu próprio sasa, logicamente bem mais longo que os individuais. Tanto para os indivíduos como para a comunidade, o momento mais vívido é o presente, o ponto agora (4), na sucessão linear de eventos. Pode-se denominar o período sasa de micro-tempo e o zamani de macro-tempo. O micro-tempo é significativo para os indivíduos e para as comunidades somente no que se refere às experiências vividas durante seu transcurso. Zamani, por sua vez, não se restringe ao que chamamos "o passado". Inclui presente e futuro. Em ampla escala, sasa mergulha em zamani. Porém, antes de serem os eventos incorporados em zamani, precisam ocorrer em sasa. Uma vez ocorridos, movem-se para trás, 24
  • 25. de sasa para zamani. No pensamento tradicional africano não há um conceito de História movendo-se para a frente, em direção a um clímax futuro, bem como não há um movimento em direção ao fim do mundo. As pessoas depositam o olhar em zamani uma vez que, em lugar de um reino por vir, como na tradição judaico-cristã, há história a preservar. A História e Pré-História acham-se impregnadas de elementos míticos. Um sem-fim de mitos em todo o continente africano versam sobre temas relativos à criação do universo, origem do homem, da tribo, de sua chegada a determinado local... Zamani não é um tempo morto. Pelo contrário. Repleto de atividades e acontecimentos, o passado e não o futuro, encerra em si a idade de ouro. Incontável é o número de mitos sobre zamani, o oceano no qual tudo mergulha. Por outro lado, não há mitos sobre o fim do mundo porque não se admite que o tempo possa ter fim. Sasa e zamani possuem qualidade e quantidade. As pessoas referem-se a eles como grande, pequeno, comprido, curto e assim por diante, em relação a um particular evento ou fenômeno. Sasa geralmente vincula os indivíduos a tudo o que lhes está próximo. É o tempo da vida consciente. Por outro lado, zamani é o tempo do mito, que propicia firmeza e confere "segurança". Todas as coisas criadas, vinculadas umas às outras, encontram-se envolvidas pelo macro-tempo. A vida humana possui um ritmo natural, indestrutível, que a nível individual inclui nascimento, puberdade, casamento, procriação, velhice, morte, ingresso na comunidade de falecidos, ingresso na comunidade de espíritos e novo nascimento. Tais momentos críticos de passagem constituem marcos de desenvolvimento. No dizer de Mbiti, constituem chaves, merecem atenção especial e são geralmente marcados por ritos e cerimônias religiosas. Ao envelhecer a pessoa move-se gradualmente de sasa para zamani. Após a morte física continua existindo em sasa. Parentes e amigos a rememoram, referindo-se a sua personalidade e caráter, mencionando palavras ou incidentes que a lembrem. Aparecem geralmente para as pessoas mais velhas do grupo familiar, as possuidoras do maior sasa do grupo. São reconhecidas por nome e isto é muito importante. Vivem pois, na memória dos descendentes durante quatro ou cinco gerações, ou seja, enquanto pelo menos um dos descendentes que a conheceu estiver vivo, tornando-se completamente mortas com o falecimento deste. Ultrapassa, então, os limites de sasa para mergulhar inteiramente em zamani. Enquanto uma pessoa permanece lembrada por seu nome, vive na condição de morto-vivente: morta fisicamente/viva na memória dos que a conheceram e no mundo espiritual. Enquanto lembrada, permanece num estado de imortalidade pessoal. Quando ninguém mais, na sucessão de gerações, dela se lembre, completa-se o processo de morte individual e dá-se o ingresso no estado de imortalidade coletiva. 25
  • 26. Através das genealogias, indivíduos do período sasa acham-se firmemente vinculados a outros do período zamani, tornando-se contemporâneos. Assim, cada homem vive no contexto de próprio sasa, rumo ao zamani coletivo. Lembremos que as atividades religiosas africanas incluem a realização de cultos aos jáidos. A oferenda de bebidas e alimentos aos mortos-viventes constituem símbolos de lembrança, comunhão e cordialidade. Considera-se que os mortos-viventes ressentem-se muito do esquecimento dos parentes que, por sua vez, procuram zelar deles com carinho, por amor e para que não lhes advenham doenças e infortúnios, conseqüências inevitáveis do esquecimento. Alguns autores africanos tecem críticas a Mbiti. Entre eles, a iorubá Oduyoye (1971) que, realizando estudos de Filologia Comparada, procurou verificar as possíveis rotas de origem de vocábulos e termos referentes ao tempo. Procurou no árabe, no hebraico e em idiomas do Médio Egito a origem de palavras iorubás, buscando comparar formas verbais de distintos idiomas africanos. Segundo essa autora, os iorubás dizem ni sisi yi para designar agora, neste exato instante, sendo que sisi corresponde ao sasa dos swahili, tendo ambos, origem hamitosemítica. Considera Mbiti equivocado em suas considerações a respeito do significado de sasa. Kagame (1975:49), por sua vez, no texto Apercepção empírica do tempo e concepção da história no pensamento bantu, assinala que Mbiti explicitou fartamente, porém de modo equivocado, ao que parece, pois não exprime de maneira firme e exclusiva a idéia de 'passado'. Fundamenta sua crítica citando Ch. Sacleux, respeitável organizador de um dicionário swahili-francês, que assim apresenta o verbete zamani: tempo, época, momento; usado no plural (zamani za) como no singular (zamani ya), no tempo de, do tempo de, na época de, nos séculos de, na idade de (falando-se de um período de tempo). Zamani za kale, nos tempos passados, antigamente, na antigüidade, outrora, há muito tempo. Zamani za sasa, nos tempos atuais. Embora sujeito a críticas o trabalho de Mbiti aborda o importante tema das relações entre tempo cíclico e tempo intemporal. Tempo intemporal ou eternidade (a eternidade imutável) e tempos cíclicos, apoiados no anterior. Vivemos normalmente com a consciência no tempo cíclico e intuímos a existência de um tempo eterno - une durée creatice, no dizer de Bergson, uma duração subjacente que, por vezes, interfere no tempo cíclico. Hama e Ki-Zerbo (1982:62) reforçam muitos dos dados apresentados acima e acrescentam outros: O tempo africano tradicional engloba e integra a eternidade em todos os sentidos. As gerações passadas não estão perdidas para o tempo presente. À sua maneira, permanecem sempre contemporâneas e tão influentes, se não mais, quanto o eram durante a época em que viviam. O sangue dos sacrifícios de hoje reconforta os ancestrais de ontem. Tudo é onipresente nesse tempo intemporal do pensamento animista, no qual a parte 26
  • 27. representa e pode significar o todo; como os cabelos e unhas que se impede de caírem nas mãos dos inimigos por medo de que estes tenham poder sobre a pessoa. Como sabemos, a tradição oral constitui uma das três fontes principais de conhecimento histórico na África (dados arqueológicos e documentos escritos são outras). Obenga (1982) tece considerações a respeito do modo pelo qual a tradição oral apresenta o tempo e os acontecimentos nele transcorridos: para povos iletrados, tudo o que se sabe deriva dos conhecimentos transmitidos de geração a geração pelos tradicionalistas, memória viva da África. São, geralmente, mestres iniciados (e iniciadores) de um ramo tradicional específico. Sobre isso nos esclarece Hampate Bâ (1982): Guardião dos segredos da Gênese Cósmica e das ciências da vida, o tradicionalista, geralmente dotado de uma memória prodigiosa, normalmente também é o arquivista de fatos passados transmitidos pela tradição, ou de fatos contemporâneos. Johnson, em seu clássico The History of the Yorubas, afirma que nesse grupo étnico os historiadores nacionais eram certas famílias de ofício hereditário, mantidas junto ao rei de Oyo. 4 Referindo-se aos griots assinala Obenga que eles dificilmente trabalham com uma trama cronológica, interessando-se mais pelo homem apreendido em sua existência, condutor de valores e agindo na natureza de modo intemporal. Não se dispõem a fazer a síntese dos diversos momentos da história relatada e sim conceder a cada momento um sentido próprio sem relações precisas com outros momentos. O griot praticamente deixa de lado os afloramentos e emergências temporais denominados em outros lugares "ciclo" (idéia de círculo), "período" (idéia de lapso de tempo), época" (idéia de momento marcado por algum acontecimento importante), "idade" (idéia de duração, de passagem do tempo), "série" (idéia de sequência, sucessão), "momento" (idéia de instante, circunstância, tempo presente) etc. É claro que ele não ignora nem o tempo cósmico (estações, anos), nem o passado humano, já que o que ele relata é, de fato, passado. Tempo Mítico Mircea Eliade (1972:38) assim define mito: o mito conta uma história sagrada; relata um acontecimento ocorrido no Tempo Primordial, o tempo fabuloso do 'princípio'. Em outros termos, o mito narra como uma realidade passou a existir graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais. Seja uma realidade total ou Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma 'criação': relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso 4 Griots são tradicionalistas, cronistas, genealogistas e arautos incumbidos de transmitir oralmente a tradição histórica 27
  • 28. dos 'primórdios'... Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas irrupções do sagrado no Mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que é hoje. Segundo essa concepção, o homem atual resulta diretamente daqueles eventos míticos, ou seja, é constituído por aqueles eventos. O mito narra as histórias primordiais, o ocorrido nos tempos míticos. Tais acontecimentos compõem uma História Sagrada, por serem seus atores os Entes Sobrenaturais. O homem das sociedades arcaicas rememora a história mítica de sua tribo e a reatualiza, em grande parte, através dos ritos: conhecendo a origem de um objeto, animal ou planta e repetindo os gestos criadores dos Entes Sobrenaturais, o homem busca reproduzir o poder mágico-religioso sobre o mundo, através do retorno mágico à origem e da reiteração do Ato Criador. Ao reatualizar os mitos através dos ritos, o homem escapa do tempo profano, cronológico e penetra no tempo sagrado, simultaneamente primordial e recuperável a qualquer momento e para sempre. Viver os mitos não significa realizar uma comemoração de eventos míticos e sim, reiterá-los. Ao invocar a presença dos personagens dos mitos, o indivíduo torna-se seu contemporâneo, ou seja, deixa de existir exclusivamente no tempo cronológico e passa a viver, com eles, no Tempo Primordial, tempo forte, prodigioso, sagrado, em que algo de novo, significativo e forte, ocorreu pela primeira vez. Nesse contexto, alta importância adquire o conhecimento, entre outros, da correta forma de realizar as evocações. Sendo a Tradição Oral o reservatório dessas fórmulas, é a ela que se deve recorrer. A correta realização dos rituais e o uso da palavra certa compõem o quadro de exigências básicas para que se passe do tempo cronológico ao primordial. Num Iba Sango (Saudação a Xangô), apresentado por Salami (1990), encontramos uma fórmula de evocação do Tempo: Mo juba akoda Mo juba aseda Atiyo ojo Otiwo oorun Okanlerugba irunmole B'ekekolo ba juba ile Ile a lanu fun Olojo oni Iba re o Eu saúdo os primórdios da Existência Saúdo o Criador Saúdo o sol nascente Saúdo o sol poente Saúdo as duzentas e uma divindades Quando a minhoca saúda a terra a terra se abre para que ela entre Oh, Senhor do hoje 28
  • 29. eu te saúdo! Tempo Social5 Contagem e divisão do tempo O tempo mítico, vasto oceano sem margens nem marcos, opõe-se ao tempo social, avenida da história, imenso eixo balizado pelas etapas do progresso. (Obenga, 1982) Como lembra Ki-Zerbo, o nível econômico elementar não cria a necessidade do tempo demarcado, sendo o ritmo dos trabalhos e dos dias um metrônomo suficiente para a atividade humana. Os calendários não são universalistas nem abstratos, porém subordinados aos fenômenos naturais (lunações, sol, seca), aos movimentos dos animais e das pessoas. O tempo é dividido em unidades, baseando-se em atividades humanas ligadas à ecologia ou em atividades sociais periódicas. Constituído de partes heterogêneas e descontínuas, sua medida é qualitativa. A noite é separada do dia e este é dividido em partes, relacionando-se as atividades à altura do sol. Cada hora é definida por atos concretos. Em Burundi, por exemplo, amakana é a hora da ordenha (sete horas); maturuka é a hora de saída dos rebanhos (8 horas); kuasase, hora em que o sol se alastra (9 horas); kumusase, hora em que o sol se espalha sobre as colinas (10 horas)... Os cumprimentos, nos vários momentos do dia, baseiam-se, principalmente, na luminosidade do dia e na posição das sombras. Estas possuem estabilidade no decorrer dos dias, uma vez que não há grandes variações climáticas. Marcos divisórios da noite são, principalmente, as vozes de animais. O trabalho é uma mistura de atividades, cantos e conversações, constituindo, por vezes, um ato religioso. É definido a partir de algumas tarefas a realizar e não a partir de unidades de tempo. O relógio tem lugar como objeto de adorno. Os meses, as estações e as seqüências anuais são geralmente definidos pelo ambiente e as atividades que dele dependem. A semana é determinada por um ritmo social, como, por exemplo, a periodicidade dos mercados, que acha-se associada, em muitos casos, a uma periodicidade religiosa. A contagem das estações do ano é muitas vezes baseada na observação astronômica, podendo abranger uma série de constelações. Em alguns lugares, como entre os adeptos das religiões tradicionais na savana sudanesa, por exemplo, a contagem em anos é feita pelo número de estações chuvosas. Para indicar que um homem é idoso fala-se do número de estações das chuvas que ele viveu ou, fazendo uso de uma imagem, diz-se que ele bebeu muita água. Em alguns lugares o controle do tempo é realizado através de entalhe em madeiras especiais conservadas como arquivos (grutas da região dos Dogon), ou com o depósito anual de uma pepita de ouro num pote de estanho (capela dos tronos no reino de Bono Mansu), ou ainda, de pedras num jarro (cabana dos reis na região mandinga). Alguns sistemas de cálculo mais aperfeiçoados foram elaborados pelos akan, que 5 Tempo Social é denominação dada por Durkheim. Evans-Pritchard o denomina Tempo Estrutural; Pronovost, Tempo Cultural e Sorokin, Tempo Sociocultural 29
  • 30. dispunham de um sistema de calendário complexo com semana de sete dias, mês de seis semanas e ano de nove meses, periodicamente ajustado ao ciclo solar segundo um método ainda não completamente esclarecido. Os iorubás dizem: Igba kan nlo, Igba kan nbo Ojo nbori ojo Ero iwaju nlo, Ero eyin ntele Um tempo está partindo, outro está chegando Um dia vai e outro vem Os da frente (os velhos) estão indo os de trás (os jovens) os estão seguindo (dando-lhes continuidade) Vi entre os iorubás, o quarto de dormir - espaço profano - coexistir com o lugar dos rituais espaço sagrado. Nas características do espaço físico muito pouca coisa se altera ao passarmos da condição profana à sagrada ou vice-versa. As alterações de consciência são determinadas, principalmente, pelo movimento no tempo, ocorrendo algo como existir simultaneamente nos dois tempos e nos dois espaços - o do sagrado e o do profano, pois não se perde a consciência de estar aqui e agora com o grupo de pessoas físicas e com um conjunto de objetos, ao mesmo tempo que se está no tempo e espaço primordiais, com as divindades e os ancestrais. Exceção a isso talvez seja o estado de consciência alterado na situação de transe e incorporação dos Entes Sobrenaturais, oportunidade em que a 6 consciência é mais chamada para o tempo e dimensão do sagrado . Nas sociedades africanas gerontocráticas, a noção de anterioridade no tempo é ainda mais carregada de sentido que em outros lugares, pois nela baseiam-se os direitos sociais (uso da palavra em público, acesso a certas iguarias, direitos na sucessão real, etc). O essencial, entretanto, não é a determinação precisa das datas de nascimento das pessoas, mas a ordem em que ocorrem. Hama e Ki-Zerbo assinalam que entre os africanos a história vivida pelo grupo acumula um poder que é a maior parte do tempo simbolizado e concretizado num objeto transmitido pelo patriarca, chefe do clã ou rei ao seu sucessor. Pode tratar-se, por exemplo, de uma bola de ouro conservada num tambor de guerra. Um exemplo interessante é o dos Sonianke, descendentes de Sonni Ali, que possuem correntes de ouro, prata, ou cobre, cada elo das quais representa um ancestral, simbolizando o conjunto, a descendência dinástica até Sonni, o Grande. No decorrer das cerimônias tais correntes são regurgitadas em público. No momento da morte, o patriarca sonianke regurgita a corrente pela última vez, fazendo com que o escolhido para sucessor a engula pela outra extremidade, morrendo em seguida. Esse 6 A respeito do transe veja Verger, 1957 30
  • 31. testamento vivo ilustra com eloquência a força da concepção africana de tempo mítico e social. Seria tal visão do processo histórico estática e estéril, na medida em que coloca a perfeição no arquétipo do passado, na origem dos tempos? Constituiria o ideal para o conjunto das gerações a repetição estereotipada dos gestos do ancestral? Não. Para o africano o tempo é dinâmico e o homem não é prisioneiro de um mecânico retorno cíclico, podendo lutar sempre pelo desenvolvimento de sua energia vital. Há, entre os Songhai, um poema significativo: Não é da minha boca. É da boca de A, que o deu a B, que o deu a C, que o deu a D, que o deu a E, que o deu a F, que o deu a mim Que esteja melhor na minha boca do que na dos ancestrais. A vontade constante de invocar o passado que não significa, no entanto, imobilismo e não contradiz a lei geral da acumulação das forças e do progresso. Daí a frase: Que esteja melhor na minha boca do que na dos ancestrais. A viva consciência do passado, sua importância sobre o presente, não anulam o dinamismo deste, como testemunham numerosos provérbios. Hubert & Mauss (citados por Pronovost) observam, acuradamente, que a função essencial de articular o presente ao passado perpétuo e mítico é desempenhada pelos rituais. Que a força do passado esteja em mim, no presente, para que eu possa assumir compromisso integral com o grupo a que pertenço, participando lado a lado com meus antepassados e contemporâneos, da construção de tempos melhores para os que vêm chegando. 31
  • 32. Capítulo 4 Impacto da modernização. Encontro do Tradicional com o Moderno onde se apresentam dados a respeito da convivência de valores tradicionais com modernos em solo africano A Conferência de Berlim, realizada entre 25 de novembro de 1884 e 16 de fevereiro de 1885, dividiu de modo arbitrário a África em países, desconsiderando sua composição étnica. Os grupos étnicos, com idiomas e cultura distintos uns dos outros possuíam, evidentemente, distintas cosmovisões e reconheciam claramente a própria identidade étnica em contraste com a identidade dos demais grupos, havendo relações de amizade e de hostilidade entre os grupos. A divisão arbitrária efetivada pelos colonizadores agiu sobre essas identidades: um mesmo grupo étnico ficou espalhado por várias nações gerando alterações na consciência étnica e nacional. A chamada Yorubaland, por exemplo, espalhou-se pela Nigéria, Togo e República do Benin. Das considerações que Munanga (1993) teceu sobre esse tema, aponto algumas a seguir. Comecemos pelo fato de serem as identidades étnicas sujeitas a manipulações ideológicas, que mostram-se perigosas para as nações em construção, cuja consciência nacional ainda se encontra em processo de formação. Nesse caso constitui grande desafio constituir uma identidade nacional que possa sobrepor-se às identidades étnicas de modo a favorecer a unidade, sem prejuízo das identidades étnicas e regionais. A independência dos países africanos deu-se no período de 1957 a 1990 (33 anos), iniciando com a independência de Gana e culminando com a independência da Namíbia. Munanga (1993: 103) pergunta: o que significou a independência africana em termos concretos, ou seja, qual é o balanço crítico dos trinta e três anos de processo de independência? ... Independência deveria significar para todos, o fim das barreiras sociais e raciais, a desmitificação da inferioridade natural dos africanos e o desmantelamento do velho espectro da superioridade natural do branco. Mas não foi isso que ocorreu: o ensino nãodescolonizado permaneceu alienado dos problemas concretos do cotidiano e das peculiaridades da vida social e econômica dos aprendizes; a maioria das elites africanas interpretou a independência como oportunidade para gozar de vantagens até então usufruídas pelos coloniais, dando-se ao luxo de consumir até mais do que as elites dos países ricos, o que determinou o aumento da fome. No início de 1980 o regime militar tornou-se regra na África e os dirigentes mostraram-se tão incompetentes e corruptos quanto os civis que haviam atuado anteriormente. Como se não bastasse a pilhagem externa, o continente africano sofreu sistemática pilhagem por parte dos próprios africanos. 32
  • 33. Sobre a exploração externa Munanga apresenta dados oriundos da obra de Rodney Como a Europa subdesenvolveu a África, que refere-se a três grandes pilhagens: iniciada no século XVI com o tráfico negreiro e a escravidão dos africanos nas Américas, a primeira grande pilhagem arrancou da África entre 40 e 100 milhões de pessoas - as mais vigorosas e aptas para o trabalho - num período de 400 anos. O continente africano que teria, como o europeu, representado a quinta parte da humanidade no século XVII, conta hoje com a décima quinta parte apenas. A segunda grande pilhagem - riquezas naturais e força de trabalho ocorreu com a colonização. A mão-de-obra anteriormente deslocada para as Américas passou a ser explorada in locus, pelo trabalho forçado instaurado nas colônias européias, e externamente, pela exploração de mão-de-obra africana realizada pela imigração organizada e encorajada. A terceira grande pilhagem teve início nas últimas duas décadas com o movimento de países ocidentais que, engajados no processo de desenvolvimento militar e científico, não podendo formar especialistas em número suficiente, os recrutam no exterior, num fenômeno que Hernet (citado por Munanga) denomina brain train, exode des cerveaux, hemorragie de matière grise, fuite des compétences. Outro elemento significativo das transformações sociais na África foi o processo de industrialização, associada naturalmente a movimentos de êxodo rural. Recente em muitos dos países, a industrialização instalou-se em superposição à economia agrícola e de subsistência. Como o processo de industrialização não foi precedido de uma transição da agricultura de subsistência para o cultivo comercial extensivo mais eficaz, não há garantia de absorção de mão-de-obra das populações rurais que migram para as cidades em busca de colocação nas indústrias. A migração para centros urbanos vem contribuindo para o rompimento de estruturas originárias. Os ofícios tradicionalmente transmitidos por via oral no interior dos grupos familiares, alguns deles associados a processos iniciáticos, vão perdendo sua força e sendo substituídos pela busca de novos graus de escolaridade ou especialização que tornem possível o ingresso no complexo produtivo industrial. Deslocando-se para cidades maiores muitos indivíduos ficam entregues à própria sorte buscando adaptar-se aos valores da sociedade industrial - ascensão social, consumismo, competição - em detrimento dos valores 7 das antigas corporações organizadas por linhagens ou clãs . Entre os principais problemas enfrentados pela África hoje, figuram ainda, a aids e o alcoolismo. A África, mais atingida pela aids é, no entanto, a menos alertada. Quanto ao alcoolismo, informa Munanga que o consumo de álcool acentuou-se durante o tráfico de escravos, tomou proporções mais perigosas com a introdução do alambique no Daomé (atualmente República do Benin) em 1922 e aumentou excessivamente em todas as cidades africanas de 1960 até nossos dias. 7 Sugiro a leitura atenta do trabalho de Munanga,1993:100-111, oportunidade em que o autor discorre a respeito do que vem sendo a vida dos africanos que têm que "se virar" para sobreviver 33
  • 34. Em resumo, o continente africano esteve sujeito nos últimos cinco séculos, às mais terríveis e cruéis formas de desumanização. Munanga faz a pergunta crucial: o continente africano tem chance de saída e salvação? A recuperação deverá ser, necessariamente, lenta porque longo foi o tempo de destruição. Munanga estima em até cinco gerações, o que projeta o resgate total para o ano de 2.200. E enfatiza que a reconstrução dependerá em primeiro lugar da seriedade, trabalho e gênio criador dos próprios africanos. E responde: os obstáculos são inúmeros, complexos e monstruosos, mas de qualquer modo o futuro da África está antes de mais nada nas mãos dos próprios africanos. Se a geração atual é falida, alienada, corrupta e corruptível, as gerações futuras poderão dar uma resposta digna. Reunimos nessa seção o mínimo de informações necessárias à compreensão da lógica das representações negro-africanas. Passamos agora à Parte II - Os iorubás na África. 34
  • 35. PARTE II os iorubás na áfrica Capítulo 5 Contexto Geográfico, origem, organização social e política Capítulo 6 A palavra: ação e comunicação Capítulo 7 Noção de pessoa: concepção iorubá de natureza e destino humanos Capítulo 8 Dimensão espiritual e práticas religiosas Capítulo 9 deus, divindades e ancestrais Capítulo 10 poderes extraordinários: medicina tradicional e magia bruxaria e feitiçaria Capítulo 11 poderes extraordinários: 35
  • 37. Capítulo 5 Contexto geográfico, origem, organização social e política Onde se apresentam, além da localização geográfica, dados históricos sobre a origem dos iorubás, mitos cosmogônicos, dados sobre sua organização social e política Contexto geográfico Os iorubás ocupam grande parte da Nigéria, no sudoeste do país e, em menores proporções, parte do Togo e da República do Benin (antiga Daomé). Sua influência estendeuse também para além do baixo Níger, em direção ao norte, adentrando a Terra Nupe. Pertencem predominantemente aos estados do Ogun, Oyo, Ondo, Kwara e Lagos, na Nigéria, onde convivem com outros grupos étnicos: anang, batawa, edo, efik, fulani, hausa, idoma, igbira, ibibio, ibo, igala, igbo, igbomina, ijaw, ijo, itsekiri, kanuri, nupe e tiv, cada qual com sua própria língua, costumes e sistemas de administração tradicional. Destes, os mais numerosos são os hausa, iorubá e ibo. A conquista daomeana de parte das terras iorubás favoreceu a miscigenação entre os grupos iorubá e fon, tornando-se pouco nítida a linha divisória entre eles. Os iorubás associam-se em sub-grupos - Egba, Egbado, Oyo, Ijesa, Ijebu, Ife, Ondo, Ilorin, Ibadan etc. Origem Mitos Cosmogônicos Olodumare, o Ser Supremo e um grande número de divindades entre as quais Orixalá, também chamado Obatalá ou Oxalá, Orunmila, também chamado Ifá e Exu habitavam o orun. Abaixo havia uma infinita extensão de água e desertos pantanosos sobre os quais reinava Olokun, o deus do mar. Olodumare ponderou: poderia essa grande e monótona extensão de água ser habitada por divindades e outros seres vivos? Traçou um plano para transformar parte da extensão aquosa em terra firme e deu a Orixalá, a arqui-divindade responsável pela ordenação das coisas, a incumbência de concretizar seu plano. Agindo segundo as instruções de Olodumare e carregando consigo o material necessário, Orixalá desceu sobre o deserto aquoso. Levava consigo uma concha de caracol cheia de areia, uma galinha branca e uma pomba. Chegando a um determinado ponto do imenso vácuo, jogou a areia e soltou as aves que começaram imediatamente a ciscar o chão com as patinhas, espalhando areia por toda parte. Onde esta caía transformava-se o pântano em terra seca e, por cair de forma irregular, ia formando montanhas e vales. Terminada estava, a primeira fase da criação. 37
  • 38. 8 Então, Olodumare ordenou a seu inspetor de tarefas - o camaleão - que fiscalizasse o trabalho e, após duas visitas, ele retornou informando estar tudo perfeito. Orixalá foi incumbido de povoar a terra. Criou primeiro as aves que rapidamente multiplicaram-se e plantou árvores para suprir a necessidade de água. Oreluere liderou um grupo de seres especialmente criados para habitar a porção já sólida. Estes multiplicaram-se e a quantidade de água tornou-se insuficiente. Orixalá pediu mais água e Olodumare enviou a chuva. Incumbido, a seguir, de moldar os corpos dos homens com o pó da terra, Orixalá os moldava perfeitos ou defeituosos, desde que a forma resultante pudesse receber a essência da Vida, que aí seria insuflada por Olodumare. Certa vez Orixalá tentou vê-lo trabalhando pois queria descobrir como as formas humanas por ele moldadas transformavam-se em seres viventes. Mas, mergulhado em sono profundo, somente despertou quando todas já estavam animadas. No início havia harmonia, comunhão e confraternização entre os homens e o mundo espiritual. Por vezes os homens viajavam ao orun para pedir o que necessitavam. Entretanto, um fato separou o céu da terra e uma barreira interpôs-se entre ambos. Que fato foi esse? Segundo algumas tradições, uma mulher teria tocado o céu com a mão suja. Segundo outras, um homem teria se comportado mal, servindo-se em excesso do alimento comum. Tenha sido esta ou aquela, a razão da ruptura, o fato é que o homem perdeu a harmonia com o mundo espiritual. 9 Eis a cosmogonia iorubá apresentada por Idowu (1977:18). Outra variação muito divulgada do mito cosmogônico iorubá narra que Olodumare lançou do céu sobre as águas ou pântanos, uma corrente pela qual desceu Odudua, trazendo um pouco de terra num saco ou numa concha de caracol, uma galinha e um dendezeiro. Tendo derramado a terra sobre a água, aí colocou o dendezeiro e a ave. Ciscando o solo a galinha foi espalhando a terra, cada vez mais, ampliando progressivamente a extensão de terra. Outra variação ainda, narra que Obatalá, o primeiro orixá criado por Olodumare, recebeu a incumbência de formar o mundo. Saindo do orun embebedou-se, adormecendo profundamente. Odudua roubou o saco da criação e foi contar a Olodumare o que se passara, assumindo para si o papel de realizar aquela tarefa para a qual Obatalá havia se mostrado incompetente. Odudua criou o mundo e competiu a Obatalá modelar os corpos humanos. 8 O camaleão, sagrado para os iorubás, é descrito como mensageiro de Olodumare ou de Orixalá. Possui a notável capacidade de confundir-se com o ambiente mudando de cor. O movimento independente de seus olhos possibilita-lhe olhar para mais de uma direção ao mesmo tempo 2 Praticamente toda sociedade africana possui seu próprio mito de origem do homem e do universo. Mbiti refere-se ao livro publicado por H. Baumann em 1936 - Schopfung und Urzeit des Menschen im Mythus der afrikanischen Volker, onde se encontra uma tentativa de análise de dois mil desses mitos. Refere haver uma segunda edição, ampliada, de 1964 38
  • 39. Detenhamo-nos um pouco na figura controversa de Odudua. Nesta narração que 10 acabamos de apresentar, ela é uma figura feminina Elbein dos Santos (1986) refere-se a Odudua como a representação deificada das Iya-mi, a representação coletiva das mães ancestrais e o princípio feminino de onde tudo se origina. Nessa versão, Odudua, símbolo coletivo do poder ancestral feminino, une-se a Obatalá, símbolo coletivo do poder ancestral masculino. Sendo ele responsável pelo orun - céu / dimensão do supra-sensível - e ela pelo aiye - terra / dimensão da matéria física, seu casamento implica em todas as relações entre esses dois domínios. Odudua cria o aiye e Obatalá os duplos no orun. Representa essa união uma cabaça branca - igba-odu ou igbadu - formada de duas metades unidas, a metade inferior representando o aiye e a superior, o orun, contendo elementos simbólicos em seu interior. Gromiko (1987), na obra russa As religiões da África, refere-se a essa controvérsia: Obatalá tem uma mulher chamada Odua ou Odudua que, provavelmente, é uma das personagens mais contraditórias no olimpo dos deuses iorubás. Odudua é uma divindade hermafrodita. Nos primeiros mitos personificava a divindade Terra e era companheira e ajudante de Olorun (Olodumare) na criação do Universo. Outra versão admite que ela era esposa de Obatalá... Mais tarde ... passou a ser considerada a primeira genitora do povo ... Nas narrações, começou a ser mencionada como uma divindade de sexo masculino que descera dos céus para criar a terra, deitando um punhado de areia no oceano, precisamente em Ile-Ifé. Daí, Olokun, em sua hipóstase feminina, ter passado a ser deusa do oceano e mulher de Odudua. Deparamos pois, com outro mito em que a deusa muda de sexo e contrai matrimônio com as águas. (p. 102) Segundo Johnson (1921), Odudua é o antecedente comum a todos os iorubás (Odu ti o da wa - Aquele que nos criou), sendo essa a razão de algumas tradições atribuírem a ele o trabalho da Criação. O pai das dinastias iorubás, o ancestral comum a todos, seu nome é Momo, sendo Odudua um título auto-atribuído. Sua esposa, Omonide teve sete filhos: duas mulheres, as primeiras na ordem dos nascimentos e cinco homens. Com o passar do tempo seus filhos e netos enveredaram pelas matas fundando cidades, delas tornando-se reis: Olowu, filho da primeira filha, o ancestral dos owu. Alaketu, filho da segunda filha, o ancestral dos ketu. Olibini, terceiro filho, o ancestral dos benin. Orangun, quarto filho, o ancestral dos ila. Onisabe, quinto filho, o ancestral dos sabe. Olupopo, sexto filho, o ancestral dos popo. Oranyan sétimo filho, também chamado Oloyo, permaneceu com o pai em Oroyo e é o ancestral dos oyo. 10 Voltaremos a tratar de Odudua no Capítulo 9 39
  • 40. Ajisafe (1964) apresenta relato análogo ao de Johnson, salvo pequenas diferenças 11 referentes à ordem do nascimento dos filhos de Odudua. No palácio de Ifé o encontramos representado pela figura de um homem forte e imponente. Dados históricos sobre a origem dos iorubás Segundo Perkins & Stembridge (1977), os mais antigos habitantes da Nigéria foram os Negros. Alguns dos mais puros Negros são encontrados entre os ibo, os iorubás e outros grupos étnicos habitantes das florestas do sul. No norte uniram-se Negros e Hamitas - ramo da Raça mediterrânea descendente de Ham, segundo filho de Noah. Os Hamitas incluem os fulani e os líbios do norte da África. Estes povos do norte deram origem a tribos de sangue mestiço das quais a mais numerosa é a dos hausa. Ile-Ifé é considerada a cidade onde ocorreu a criação do mundo. Como o isolamento da sociedade em que se vive impossibilita uma visão histórica mais ampla, a concepção da própria história e da história em geral sofre determinações decorrentes desse fato. Por exemplo, conforme cita Ki-Zerbo (1982:25), o rei dos Mossi, no Alto-Volta, intitulava a si mesmo Mogho-Naba, isto é, rei do mundo. Talvez Ifé não seja o local de origem da humanidade, mas bem pode ser um desses locais, uma vez que as descobertas feitas em Asselar - esqueletos de tipo negróide de várias épocas, alguns extremamente antigos sugerem que o foco original desse tipo humano foi precisamente o Saara e a África Meridional. A raça negra de tipo sudanês ou congolês individualizou-se para adaptar-se às condições das 12 latitudes tropicais, principalmente na África Ocidental. Conforme indica a glotocronologia , os povos habitantes das proximidades do local onde se encontram os rios Niger e Benué parecem viver naquela área há vários milhares de anos. Ao buscarmos dados sobre espaço e tempo dos iorubás defrontamo-nos com limites fluidos. A convivência dos muitos grupos étnicos num espaço geográfico comum e a história de colonização definem uma trama sócio-econômico-política extremamente complexa que dificulta o conhecimento daquilo que realmente ocorreu num lugar claramente localizável no mapa, num período precisamente demarcado no tempo. Perkins & Stembridge (1977) relatam que os iorubás vieram do vale do alto Nilo e, viajando para o ocidente ao longo da grande savana do Sudão, chegaram à Nigéria e seguiram posteriormente rumo ao sul, permanecendo nas florestas e instituindo reinados sob um chefe supremo - o Alafin de Oyo. De fato, a origem deste povo, como a de tantos outros, acha-se envolta em penumbras, com relatos reais mesclados aos lendários. 11 No Dicionário Aurélio, de língua portuguesa, Odudua figura como divinização iorubana da Terra e mulher de Obatalá, o Céu 12 Grotocronologia é o estudo das origens e desenvolvimento da linguagem 40
  • 41. Johnson (1921) afirma que os historiadores nacionais desse povo eram certas famílias de ofício hereditário, mantidas junto ao rei de Oyo. Segundo este autor, os iorubás originaram-se de Lamurudu, um dos reis de Meca, de quem descenderam Odudua e os reis dos gogobiri e kukawa, duas tribos hausa. O período de reinado de Lamurudu é desconhecido mas parece ter sido bem posterior à morte de Maomé. Quando os três ramos de sua descendência tiveram que deixar Meca, tomaram os seguintes rumos: os príncipes que viriam a ser os reis de Gogobiri e de Kukawa rumaram em direção ao oeste e Odudua seguiu em direção ao leste. Após viajar noventa dias fixou-se em Ile-Ifé, onde encontrou-se com Agbo-niregun, também chamado Setilu, fundador do culto a Ifá. Este foi o relato ouvido por Johnson que aí identifica alguns traços de erro. Os iorubás vieram do Oriente, sem dúvida, como provam seus hábitos e costumes. Porém, com certeza, não pertencem à família árabe nem são originários de Meca, isto é, não da Meca universalmente conhecida pela História. Possuem fortes afinidades com o Oriente, onde Meca está localizada e, provavelmente, interpretando em sua imaginação, tudo o que vem do Oriente, como originário de Meca, representam a si mesmos como oriundos desse lugar. O único documento escrito a respeito disso é o do Sultão Belo de Sokoto, fundador dessa cidade, quiçá o mais poderoso dos soberanos fulani. O Capitão Clapperton, descrevendo Viagens e 13 Descobertas na África Central e do Norte, 1822-1824 , relata: Yarba é uma província extensa que possui rios, florestas, desertos e montanhas, bem como um grande número de coisas maravilhosas e extraordinárias ... Os habitantes dessa província são supostamente originários dos remanescentes dos filhos de Canaã, que pertenciam à tribo de Nimrod. A razão de fixarem-se no oeste da África deve-se ao fato de terem sido conduzidos por Yar-rooba, filho de Kahtan, da Arábia para a costa ocidental, entre o Egito e a Abissínia. Deste lugar, avançaram para o interior da África, encontraram Yarba e ali fixaram moradia. Durante o percurso foram deixando, em cada lugar que paravam, uma tribo de seu povo. Supõe-se que todas as tribos do Sudão que habitam as montanhas, bem como todos os habitantes de Yaory, têm essa origem. Assim, o povo de Yarba tem descrição semelhante à do povo de Noofee (Nupe). O nome Lamurudu (ou Namurudu) sugere uma modificação do nome Nimrod. Quem era Nimrod? Cognominado o forte, filho de Hasôul, pode ter sido também o poderoso caçador da Bíblia. Talvez as duas descrições refiram-se a uma única pessoa. A Arábia é provavelmente a Meca da tradição iorubá. É conhecido que os descendentes de Nimrod (fenícios) foram conduzidos à Arábia para guerrear, fixaram moradia e a partir dali foram conduzidos, devido à perseguição religiosa, até a África. Aqui temos também, a origem do nome iorubá: Yarba, local de sua primeira fixação duradoura na África. Yarba equivale ainda ao termo hausa Yarriba, que significa iorubá. A partir desses dados podemos supor que a origem mais provável dos iorubás seja a seguinte: Teriam vindo do Alto Egito ou Núbia; sendo súditos do conquistador egípcio Nimrod, 13 Apud Fadipe, 1970:30 41
  • 42. de origem fenícia, o teriam seguido em suas guerras de conquistas, rumo a Arábia, onde teriam se estabelecido durante algum tempo; da Arábia teriam sido excluídos, em virtude de praticarem cultos fundamentalmente pagãos, ou ainda, uma forma deturpada de Cristianismo ocidental. 14 Organização Social e Política A forma mais comum de moradia na sociedade tradicional iorubá é o agbo-ile (compound, no dizer dos britânicos), literalmente, agregado de casas habitadas pelos membros de um clã (famílias interligadas por parentesco consangüíneo). Um conjunto de agbo-ile compõe o agbole e um conjunto destes forma o adugbo, distrito governado pelo ijoye. Estes articulam-se aos baale e ao oba. A organização sócio-política dos iorubás é monárquica, com duas categorias de soberanos - o baale, literalmente, dono da terra, fundador e chefe de um povoado e o oba, chefe de uma cidade e dos povoados a ela associados. O oba é escolhido entre os baale e rege com um Conselho deles. Os obas são chamados Omo Oduduwa, filhos de Odudua. Esta organização articula-se com outra, cujas normas são ditadas pela Constituição Republicana dos países que compõem a Terra Iorubá. Por exemplo, a entidade política conhecida como Nigéria ganhou existência formal em 1914, graças à união entre as Procuradorias Britânicas do Norte e do Sul. O país como um todo tornou-se independente em 0 0 1 de outubro de 1960. Três anos, em 1 de outubro de 1963, tornou-se República, rompendo todos os laços com a Coroa Britânica, passando a integrar a Organização das Nações Unidas. Alguns dados a respeito da economia nigeriana A agricultura tem sido a atividade profissional mais importante a ela associando-se a caça e a pesca. Grande parte da população exerce atividade agrícola, produzindo inhame, arroz, feijão, cana de açúcar, frutas cítricas e mandioca para consumo interno; cacau, azeite de dendê, amendoim e madeira para consumo interno e exportação. Mandioca, inhame, milho e feijão constituem alimentos básicos. O cardápio alimentar inclui pimenta, verduras, tomate, obi, abacaxi, laranja e banana. Outras atividades profissionais desenvolvidas nos povoados e cidades são a forja, o artesanato em madeira, a fabricação e tingimento de roupas, a medicina tradicional e a prática oracular. Os profissionais organizam-se em grupos e reúnem-se periodicamente com o objetivo, entre outros, de render culto aos seres espirituais tutores de sua profissão. O setor industrial acha-se em desenvolvimento, principalmente a indústria do aço e do ferro. Atualmente, esforços são empreendidos no sentido de incentivar o desenvolvimento de indústrias petroquímicas, de fertilizantes e de gás liqüefeito. Indústrias têxteis provêm parte do 14 . Remeto os leitores particularmente interessados por este tópico ao trabalho de Correia-Rickli, 1993 42
  • 43. necessário ao consumo interno. Ferro, estanho, nióbio, carvão, pedra calcária e petróleo são abundantes. A agricultura é atividade exclusivamente masculina, competindo às mulheres a limpeza, moagem, armazenagem e processamento dos produtos agrícolas. As mulheres cuidam das crianças pequenas, dos animais de abate (basicamente aves e caprinos) e do preparo dos alimentos. Outra atividade tradicionalmente feminina é a comercial: mulheres de agricultores recebem de seus maridos os excedentes comercializáveis da produção para vendê-los. Em geral organizam-se em grupos cooperativos denominados ajo. Reúnem-se a intervalos regulares, realizam poupança conjunta e ao fim de cada encontro a quantia reunida é entregue a uma das integrantes do grupo. Essa ajuda mútua tem possibilitado independência econômica a muitas mulheres. No contato com a modernidade a condição feminina tem sofrido alterações significativas. Atualmente, as mulheres têm negócios próprios, ocupam cargos políticos, trabalham em embaixadas, cortes e ministérios. Sistema de moradia e organização familiar Conforme mencionamos, a forma mais comum de moradia é o agbo-ile. Tradicionalmente, as casas eram construídas de taipa e cobertas com folhas de palmeira. Atualmente muitas casas ainda são construídas de taipa, porém cobertas de zinco. Nas construções mais recentes são usados tijolos, cimento e caixilharia industrializada. A estrutura tradicional do agbo-ile compreende um grande corredor central, geralmente bastante largo, ladeado por uma sucessão de portas que conduzem a quartos ocupados por um ou mais membros do clã. Os homens que optaram por casamento poligâmico abrigam cada esposa e respectivos filhos num dos quartos e reservam para si próprios um aposento de uso exclusivo. Em alguns agbo-ile há um aposento para os rapazes. Ao casar, o rapaz conduz a moça para morar consigo na casa dos pais e, caso não haja espaço suficiente, realiza-se a construção de nova casa ao lado da já existente. No grande corredor central as pessoas se reúnem, as refeições são preparadas, os visitantes recebidos, as festividades realizadas. Mais recentemente alguns desses quartos têm sido usados como banheiros e salas de estar. A parte do corredor central que integra o quarto da mulher é para seu uso, sendo sua responsabilidade mantê-la limpa. Para o preparo da comida um fogareiro de querosene é colocado no chão, diante da porta do próprio aposento e praticamente toda a atividade culinária se realiza ali. A pessoa cozinha acocorada ou sentada num apoti, banquinho que não ultrapassa vinte centímetros de altura. As crianças participam dessas atividades, bem como de outras ocupações domésticas. A sociedade iorubá é patriarcal. Os laços de parentesco determinados por vínculo consangüíneo ou por casamento constituem uma das maiores forças na vida tradicional 43
  • 44. africana e controlam as relações entre as pessoas da comunidade, determinando o comportamento de cada indivíduo em relação aos demais. Cada indivíduo ocupa uma posição familiar - irmão, irmã, pai, mãe, avô, primo, cunhado, tio... Há muitos termos para precisar a relação de parentesco entre uma pessoa e outra(s). Quando dois estranhos chegam ao povoado, uma das primeiras preocupações é a de identificar o que um é do outro, diz Mbiti. Uma vez realizada essa identificação, também estará identificado o sistema de referência e então será possível definir os comportamentos a adotar frente a eles. Se, por exemplo, são irmãos, é necessário saber quem é o mais velho porque essa informação é necessária para definir tanto as expectativas de comportamento deles entre si como a relação de respeito que deverá ser estabelecida com cada um dos dois. Egbon é o irmão mais velho, aburo, o mais jovem e o comportamento em relação a eles deve ser distinto. As relações de parentesco são tão importantes que muitas vezes uma pessoa não é identificada pelo próprio nome e sim pelo vínculo que possui com outra. A sogra pode carinhosamente chamar a própria nora de iyawo mi - minha esposa e apresentá-la aos amigos como a esposa. Nascido o filho, o pai e a mãe passam a ser chamados por um nome que denota sua relação com a criança. A partir do momento em que nasce uma criança de nome Olukemi, por exemplo, a mãe passa a ser chamada Iyakemi (mãe da Kemi) e seu pai, Babakemi (pai da Kemi). Além de estender-se horizontalmente, o sistema de parentesco estende-se verticalmente, incluindo os falecidos (mortos-viventes) e os ainda não nascidos. É forte o senso de pertença histórica, o sentimento de posse de profundas raízes e o senso de sagrada obrigação para com os antepassados. Vínculos genealógicos servem a propósitos sociais. Citando-se a referência genealógica de alguém é possível saber como essa pessoa liga-se a outra(s) em determinado grupo. As famílias são geralmente numerosas. Um homem com muitas esposas, cada qual com seus filhos e os parentes a eles associados compõem um grupo grande. Considera-se que os já-idos permanecem interessados pelos acontecimentos familiares, aconselhando, admoestando, protegendo, punindo e reivindicando manifestações de carinho e amizade, solicitando comida, bebida e retificação de ofensas. Cada indivíduo é considerado parte de um todo e seu nascimento físico é apenas o primeiro passo para o ingresso em sua comunidade, havendo rituais de integração ao grupo. O ocorrido a um indivíduo, ocorreu a seu grupo e o ocorrido ao grupo, ocorreu ao indivíduo: sou porque somos e por sermos sou. 44
  • 45. Capítulo 6 A palavra: ação e comunicação onde se apresentam dados sobre o idioma, a importância e poder da palavra nesta sociedade de tradição oral e sobre os nomes das pessoas, objetos, cidades e seres O testemunho, seja escrito ou oral, no fim não é mais que testemunho humano, e vale o que vale o homem Hampate Bâ O idioma O idioma falado pelos iorubás é o iorubá, com variações de dialeto - egba, ekiti, ibadan, ife, ijebu, ijesa, ikale, ilaje, ondo, owo e oyo, por exemplo. De fato, cada nome destes refere-se simultaneamente a uma cidade, um dialeto e um agrupamento humano. Egba refere-se à cidade de Abeokuta, capital do estado de Ogun. Os egba, todos reconhecidos como descendentes de Oranyan, viviam principalmente em povoados e aldeias independentes umas das outras. Viram-se obrigados, em virtude das guerras, a unirem seus 153 povoados. E formaram Abeokuta. O iorubá, língua tonal, faz uso de três tons simples e dois compostos. O acento agudo indica tom alto, o grave, tom baixo e a ausência de acento, tom médio. Destes tons simples decorrem sons compostos pela combinação agudo/grave (tom alto-descendente) ou grave/agudo (tom médio-descendente). Algumas letras - E, O, S - recebem um acento embaixo, indicador de alteração de som: E (é), O (ó), S (ch) O alfabeto possui vinte e cinco letras: A B D E E F G GB H I J K L M N O O P R S S T U W Y O idioma iorubá integra o grupo lingüístico nigero-congolês e estima-se que seja falado por cerca de 25 milhões de pessoas. Este grupo lingüístico compõe, juntamente com o nilosaariano e o afro-asiático, o conjunto de famílias lingüísticas existentes na Nigéria. (Olaniyan, 1985) Tradição oral: importância e poder da palavra Leave out my name from the gift if it be a burden, but keep my song Rabindranath Tagore 45
  • 46. A linguagem cotidiana dos iorubás, extremamente rica em metáforas, abrange um imenso conjunto de lendas, contos, fábulas, vigorosos ditados, provérbios, relatos mitológicos e históricos. A tradição oral realiza, conforme afirma Vansina (1982), dois níveis de registro: um consciente - registro de acontecimentos passados (crônicas orais de um reino ou genealogias de uma sociedade segmentária) e o outro, inconsciente - literatura oral em todas suas formas: epopéias; poemas, que incluem canções, cantigas e cânticos; fórmulas, que incluem provérbios, charadas, orações e genealogias e narrativas, compreendendo estas a maioria das mensagens históricas conscientes. A tradição oral é entretanto, além desse imenso conjunto literário, a grande escola da vida. Baseada numa concepção de homem e de universo que confere à Palavra origem divina, nela reconhece um poder sagrado, criador, capaz de preservar e destruir. Hampate Bâ (1982), referindo-se às sociedades orais, aponta para o fato de que em tais sociedades o vínculo entre o homem e a palavra é muito forte: o homem permanece ligado à palavra que profere. Sendo a palavra uma força fundamental emanada do próprio Ser Supremo, possui caráter sagrado e a ela vinculam-se forças ocultas. A tradição africana concebe a fala como um dom de Deus: divina no sentido descendente e sagrada no sentido ascendente, materializa ou exterioriza as vibrações das forças. A fala humana, eco da fala divina, pode colocar em movimento forças latentes nos seres e objetos, como um homem que levanta e se volta ao ouvir seu nome. É, por essa razão, o grande agente ativo da magia africana (p. 186). Sendo o universo visível concebido e sentido como a concretização ou o envoltório de um universo invisível constituído de forças em perpétuo movimento, a ação mágica (manipulação das forças) geralmente almeja restaurar o equilíbrio perturbado e restabelecer a harmonia. Naturalmente, o poder da palavra de um homem depende de como ele utiliza sua fala. O poder criador e operativo da palavra encontra-se em relação direta com a conservação ou com a ruptura da harmonia no homem, no mundo que o cerca e na relação entre o homem e o mundo. Por isso a mentira é considerada uma verdadeira lepra moral. A língua que falsifica a palavra vicia o sangue daquele que mente. Aquele que corrompe sua palavra, corrompe a si próprio, diz o adágio15. Quando alguém pensa uma coisa e diz outra, separa-se de si mesmo, rompendo a unidade sagrada, reflexo da unidade cósmica. Cria desarmonia ao redor de si e em seu próprio interior. Cuida-te para não te separares de ti mesmo. É melhor que o mundo fique separado de ti do que tu separado de ti mesmo. Esta relação homem/palavra, em que a mentira não tem lugar, é particularmente enfatizada quando se trata de transmitir palavras herdadas de ancestrais ou de pessoas idosas, na corrente de transmissão oral. O tradicionalista é disciplinado interiormente, preparado para jamais mentir, considerado um homem bem 15 Estes adágios são citados por Hampate Bâ em A Tradição Viva (1982) 46