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A Editora 
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Um Olhar Vale Mais que Mil Palavras 
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Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive através de processos xerográficos, sem permissão expressa da autora. (Lei nº 5.988 14/12/73). 
Adriana Matheus 
amatheus07@hotmail.com 
Ano 2014 
1ª Edição 
Projeto Gráfico e Impressão: Editora Ixtlan 
Revisão ortográfica: Pâmyla Serra 
www.re-visaodeaguia.com 
Edição de capa: Adriana Matheus 
Diagramação: Márcia Todeschini CIP. 
CIP. Brasil. Catalogação na Publicação. 
M427s - Matheus, Adriana, 1970. 
Um Olhar Vale Mais que Mil Palavras/ Adriana Matheus - Juiz de 
Fora - MG. p. : il. 
ISBN: 978-85-65588-01-0 
Ficção brasileira. Contos. 
CDD: B869.2
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A história de uma cortesã 
Adriana Matheus
Um olhar vale mais que mil palavras 
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Sumário 
Capítulo I - A decepção...............................................09 
Capítulo II - A iniciação...............................................52 
Capítulo III - Do pacto à vingança.............................109
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Prólogo: 
Ela foi massacrada por todos e pelo próprio destino, e tornou- se então a maior feiticeira da Espanha e também a rainha dos cabarés. Canta a lenda que bastava um olhar seu para colocar qualquer homem aos seus pés. Emanuelizia nunca conseguiu ficar com o seu único amor, mas também nunca desistiu de vingar-se dele e de todos os que lhe fizeram mal. Dizem que seu espírito ainda clama por vingança e que ela nunca reencarnará até que todos os culpados por sua degradação estejam debaixo de seus pés. 
Tudo o que acontece em nossas vidas não acontece por acaso, na verdade são fases... E essas fases têm que ser aproveitadas devidamente. Lembrem-se de que somos eternamente responsáveis por tudo o que praticamos e cativamos. Ninguém merece sofrer e pagar pelos atos impensados de terceiros que já passaram em nossas vidas, mas também temos que nos lembrar que eles vieram para nos ensinar que não existe nada e ninguém permanecerá conosco por toda a eternidade. Na vida tudo é passageiro e viver dignamente é um dos maiores atos de coragem, pois as tentações do mundanismo e da decadência são muitas e, aparentemente, facilitam a vida do ser humano o deixando futuramente em um completo tormento de solidão. Pensem nisso!
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Dedico esta obra ao povo cigano e sua cultura
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I – A decepção 
brisa que vinha do oceano gelava os meus ossos naquela fria manhã de início de inverno, mas 
não me importava – estava muito ansiosa por encontrar meu noivo, Maxuel. Não via a hora de estar em seus braços. Maxuel era tão gentil! Ele fazia qualquer vontade minha. Era só eu pedir e ele buscaria a Lua se assim eu quisesse. Mas confesso que existiam alguns prós e contras em nossa relação... 
Caminhei por muito tempo pela praia. Precisava pôr meus pensamentos em ordem. O clima hostil que se formava dentro da minha casa estava a cada dia mais intolerável. As discussões entre meu pai e minha mãe na noite anterior tiraram- me o sono e a minha cabeça parecia ter bolhas de sabão. Meus olhos amanheceram inchados e ardendo, de tanto que chorei durante toda aquela madrugada. Tive também que me manter em estado de alerta por causa da minha irmã mais nova – que, naquela noite, teve outra séria indisposição. Meus pais pareciam não se preocupar conosco, pois estavam ocupadíssimos engalfinhando-se o tempo todo. Às vezes, ficavam até altas horas da madrugada discutindo – com isso, ninguém mais conseguia dormir na casa. O que mais me preocupava era a saúde de Eulália, minha irmã. Ela se tornava cada dia mais 
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debilitada e seu semblante era pálido e deprimido. Meus pais, porém, pareciam não dar importância a esse fato, que a cada dia ficava mais delicado. Por isso, a responsabilidade de cuidar da casa e dos meus irmãos caía sempre sobre as minhas costas. Não sabia ao certo o que minha irmã Eulália tivera naquela noite – talvez tivesse comido algum fruto do mar estragado... ou comido em excesso, o que estava sendo uma rotina em sua vida. Ela andava muito nervosa e descontava toda a ansiedade em guloseimas. Eram tantos os meus problemas que nem sabia por onde começar... 
Amava minha família. Eles eram tudo para mim. Vivi somente em função dos meus irmãos. Anulei a minha vida pessoal por causa de todos eles. Nunca imaginaria que um dia um deles fosse me trair. Eu e meus irmãos, quando crianças, éramos muito unidos, embora Eulália estivesse aparentemente revoltada nos últimos tempos. Meus pais não tinham tempo para nós, nunca foram afetuosos. Então, com isso, assumi a responsabilidade de mãe zelosa. Entendia a rebeldia de Eulália: provavelmente era por causa da idade ou resultado das brigas diárias que ela presenciava desde muito cedo. Com o passar do tempo, fizemos uma família à parte, separada de nossos pais. Eles não se separavam, não nos mandavam embora e tampouco demonstravam amor por nós. 
Quando éramos mais jovens, nossa única diversão era pegar conchinhas à beira da praia. Não tínhamos brinquedos, mas sinto saudades daquela época. Porém, durante todas as brincadeiras, Eulália sempre foi a mais ambiciosa e dizia que um dia iria ser rica e iria embora dali para bem longe. Tais palavras jogavam água fria nas minhas expectativas de ter uma família feliz e unida para sempre. Definitivamente, ela me preocupava mais que os outros. Meu irmão provavelmente seria um pescador como meu pai ou, por sorte, Maxuel arrumar-lhe-ia
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um emprego na fábrica de sua família. E eu?! Só queria ter uma vida simples e ser feliz ao lado de Maxuel... Em meus planos, nunca descartei levar minha mãe e irmãos comigo – aonde quer que eu fosse, eles iriam. Não era que eu não amasse meu pai, mas vê-lo maltratando minha mãe me deixava arredia com ele. Ele era um homem muito rude e seco em demasia. Para ele, tudo tinha que ser a tempo e a hora. Caso contrário, apanhávamos muito. Por ser um pescador de pesca grande, ficava seis meses em terra, seis meses em alto-mar. Por isso, via-o como um estranho e evitava ao máximo contrariá-lo. 
A onda do mar tocou em meus pés naquele momento, fazendo-me abrir os olhos, despertando-me daquele quase transe cheio de preocupações e tormentas. Fitei o horizonte para ver aquela beleza de cenário à minha frente. O mar da Espanha era mesmo lindo, de um azul inigualável. Observei algumas conchinhas trazidas pelas ondas, o que ressaltou mais uma vez minhas lembranças nostálgicas. Baixei-me, pegando-as, para em seguida devolvê-las ao mar. As ondas logo as levaram para longe... Outra coisa que muito me fascinava era ver as ondas quebrando nas pedras. Elas passavam pelas pedras todos os dias, pacientemente – assim, com o passar do tempo, transformavam- nas em minúsculos grãozinhos de areia. Como algo tão sensível como a água poderia transformar algo tão bruto como as rochas? Isso era poético e de pura alquimia. “A natureza é perfeita”! – pensei comigo. 
Levantei-me e fiquei olhando ao longe os pescadores, que jogavam suas redes ao mar num esforço incansável. Eram dessas redes que aquelas pessoas simples tiravam o sustento de suas famílias. Era uma vida muito simples, sem muitas perspectivas. Mas, de certa forma, todos estavam felizes daquela maneira. Não deveria ser mudado o rumo daquela história. Afinal, quando tentamos mudar uma história, embutindo certos
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sonhos na cabeça das pessoas, elas podem perder a grandiosidade de serem como são. Ser simples não é ser conveniente – é ser poético e transparente! Para mim, só existiam duas coisas terríveis: o excesso de ignorância por teimosia ou o excesso de ambição. 
Pensamento estranho esse que tive naquele dia, principalmente vindo de uma jovem humilde como eu era. Voltei meus pensamentos para o meu noivo, que estava atrasadíssimo, para variar. Maxuel e eu nos conhecíamos desde crianças. Nossas famílias eram muito amigas. Embora minha família fosse de origem humilde, a de Maxuel nunca se importou com nossa condição financeira. Éramos o que se podia dizer o casal perfeito. Maxuel sempre me respeitou. Nunca fomos além. Aliás, ele nunca sequer tentou beijar-me: dizia que estava guardando o melhor para depois do casamento. Às vezes, eu sentia falta de algo mais, mas não podia manifestar meus desejos, pois tinha medo que Maxuel interpretasse mal minhas verdadeiras intenções. Fui criada de maneira muito rígida, embora fôssemos apenas uma família de pescadores de uma pequena aldeia de Valença, quase divisa de Portugal com a Espanha. 
Embora fôssemos espanhóis, viemos morar nessa pequena vila porque minha família dizia que ali a vida seria mais farta e tranquila. Eu amava minha pequena vila. Ela era maravilhosa e parecia ter saído de um conto de fadas. As casas eram posicionadas uma ao lado da outra, e a arquitetura era a mesma do outro lado da rua. Todo mundo se conhecia, todo mundo era amigo. Mentalizei, detalhando na minha mente a história da minha Espanha. De vez em quando, fazia isso para memorizar o que Maxuel me ensinava. Ah, a Espanha!... É cercada de histórias e mesclada de nomes místicos, condes, califas, cruzadas e reis, que se iniciam desde os princípios da
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civilização e que chegam a adquirir contornos de ficção, com toques folclóricos e de romances... Houve, sim, diversos acontecimentos históricos que causaram a unificação da Espanha, mas eu estava tão preocupada com o atraso de Maxuel que, novamente, desviei meus pensamentos para a minha vida cotidiana. Estava confusa e meus pensamentos estavam em desordem. Minha cabeça pensava mil coisas ao mesmo tempo. Respirei profundamente, pensando “onde estaria Maxuel”?! 
Nossas famílias não só eram muito amigas, mas mantinham um laço consanguíneo. A irmã de minha mãe casou- se com um lorde inglês e ambos decidiram ajudar minha família. Minha tia Ellen batizou-me assim que nasci, fazendo a estranha promessa de casar-me com Maxuel quando eu completasse vinte anos. Meu primo, também meu noivo, é dois anos mais jovem que eu. Senhor Álvaro Merton, esposo de minha tia Ellen, era um homem muito elegante: nunca o ouvi exaltar a voz para ela. Os dois pareciam viver muito bem, embora também não fizessem demonstrações de carinhos em público. Maxuel não foi mimado. Seu pai, nesse ponto, teve pulso firme, fazendo-o assumir os negócios da família desde cedo. Ele seria, por certo, um bom esposo – claro, dentro das normas e tradições inglesas – , exceto pela pontualidade. Eu, propriamente, nada podia reclamar de Maxuel e muito menos da família de minha tia, que sempre estava fazendo algo por nós. Eles tentaram de tudo para nos ver crescer. Inclusive minha tia arrumou na fábrica de seu esposo um ótimo emprego para meu pai. Ele seria, então, o administrador encarregado da fábrica, mas teimosamente não aceitou, embora minha mãe tivesse feito de tudo para que ele deixasse a pesca. Papai era um homem muito simples e muito rude, e o mar era a sua vida. Não conseguiria, portanto, ver-se preso dentro de uma fábrica. Para ele, a liberdade era tudo. Mas nós, as mulheres da família, não podíamos ter esse privilégio. Se
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algo maculasse nossa reputação, seríamos expulsas de casa imediatamente. Sua presença dentro de casa era motivo de pânico, pois ele nos mantinha debaixo de seus olhos e de suas ordens constantes. Ou seja, ele era o dono e a nossa reputação tinha que ser acima de qualquer suspeita. Ele batia em minha mãe sempre que chegava alcoolizado em casa. Com isso, eu estava ansiosa para me casar com Maxuel. Queria ter minha própria família e parar de presenciar o horror em que vivia minha mãe – que, embora com todo aquele sofrimento, aceitava tudo o que meu pai fazia com ela. Ela baixava a cabeça com uma devoção desprezível. Ele era o Deus dela, a voz de comando em seu cérebro, o seu monarca, senhor e dono. Eu nunca havia visto nada tão estranho e doentio como a vida de minha mãe. Eu tinha dezenove anos e não era isso o que eu queria para mim. 
Minha irmã Eulália tinha quinze anos e também estava em busca de um pretendente para sair daquela vida miserável de amargura e prisão. Meu irmão Pietro era apenas um menino de treze anos, mas trabalhava como louco fazendo pequenos serviços à vizinhança para poder juntar o suficiente e ir embora de casa. Minha mãe estava amamentando minhas duas outras irmãs mais jovens, Maria de Lourdes e Maria da Consolação, que estavam apenas com seis meses de nascidas. Na verdade, não tínhamos muitas perspectivas de vida e, por isso, agarrávamo-nos à oportunidade de um casamento feliz e vantajoso. 
O Sol começava a despontar no horizonte. Era de um vermelho alaranjado e seus raios fundiam-se com as águas do mar. O cheiro da maresia sempre me pareceu tão familiar! Às vezes, tinha a sensação de sempre tê-lo conhecido. O mar e eu sempre estivemos ligados, não sei por quê. Ali, naquele exato momento, eu poderia jurar que escutava vozes vindas do fundo
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do oceano. Talvez fossem das sereias. Havia tantas lendas sobre o mar! Quando era mais nova, imaginava-me sendo sequestrada por piratas que me levavam para bem longe. Sempre fui muito sonhadora e os corsários eram a minha fantasia favorita. Não sei por que, mas naquele momento abri meus braços e deixei que o vento me tocasse. Queria sentir aquela magia. As ondas agitavam-se e pareciam que iam crescendo cada vez mais. O mar tocou novamente meus pés; a areia úmida deslizava entre meus dedos. Eu adorava andar descalça – o que era o desespero de minha mãe. Mas, para mim, não tinha nada mais sublime do que sentir a terra, a areia e o chão que eu pisava. Não me dava ao luxo de me privar dessa liberdade. Meus cabelos soltos agitavam-se com o vento. Pude sentir meu xale cair ao chão. De repente, não sentia mais frio, e o mormaço daquele nascer de sol foi o suficiente para que meu corpo não quisesse mais nada além de... 
Alguém chegou por trás e tampou meus olhos com as mãos. Eram mãos macias, de gente que nunca havia pegado no pesado, e estavam cheirosas. Vir-me-ei lentamente e vi um jovem muito bem trajado. Seus olhos eram azuis como o céu e seus cabelos muito loiros. Abrindo um largo sorriso, disse-me: 
– Como está a minha querida prima nesta bela e fria manhã? Desculpe-me pelo atraso, minha linda flor. Tive uns compromissos inesperados. Sabe como são coisas de trabalho... Papai incumbiu-me de resolver alguns problemas com os nossos fornecedores. 
Não sei por que, mas aquele elogio não me soou tão sincero. Maxuel era sempre tão ponderado, tão frívolo em questões de elogios! Porém, respondi tentando não demonstrar que desconfiava que Maxuel tivesse outras mulheres além de mim – o que era normal, já que nunca tivemos nada intimamente.
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– Já aprendi a lidar com o seu atraso, meu querido primo. 
Para falar a verdade, já nem ouvia as desculpas que ele dava, pois eram sempre as mesmas. A família de Maxuel tinha uma indústria têxtil e exportava tecidos para outros países. Por certo, havia ficado preso com algum fornecedor. Tentei mudar os pensamentos, para não ficar como muitas mulheres, que vivem cobrando de seus noivos. Fiquei meio perdida em meus pensamentos. Foi preciso que Maxuel me tirasse daquele transe. 
– Emanuelizia! Onde estava, mocinha? Parecia estar desacordada do mundo! Há minutos estou a chamá-la. – chamou-me a voz, que parecia muito distante naquele momento. 
– Desculpe-me, meu querido Maxuel. Estava somente a pensar – senti uma lágrima rolar em minhas faces. 
Ele me abraçou e me interrogou, parecendo preocupado. 
– Posso saber em que pensa minha noiva? Saiba que sinto ciúmes. 
Dei-lhe um sorriso, respondendo em seguida: 
– Na vida. Nas coisas que já passei e nas coisas que presencio em minha casa. 
– Não quero que se aborreça com essas coisas. Logo estaremos casados e já lhe disse: poderá levar consigo a sua irmã. Assim, ficará despreocupada com o destino que ela poderá ter. Serei para Eulália como um irmão mais velho, você vai ver. Poderemos ajudá-la no que for necessário. 
Abracei-o imediatamente mediante aquelas palavras. Ele me empurrou e beijou-me as mãos. Senti minhas faces enrubescer diante daquela atitude tão fria vinda da parte dele. 
Mediante isso, fomos caminhar à beira-mar. Falei-lhe sobre muitas coisas, e logo acabei por esquecer aquela súbita insegurança, seguida de um teimoso ciúme. Maxuel era muito compreensivo e ficou a me ouvir por horas. Ele sempre tinha uma resposta para tudo. Dávamo-nos muito bem, pelo menos
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era o que eu pensava! Fazíamos muitos planos juntos, e ajudar minha irmã Eulália era um deles. Pensávamos em colocá-la numa escola para moças para que tivesse boa educação. Na verdade essa ideia veio da parte de Maxuel, eu apenas acatei. Só aprendi a ler porque Maxuel tivera boa vontade e paciência comigo. Ele me ensinou tudo o que aprendera em uma faculdade da Inglaterra. Eu lhe era muito grata por tudo. Achava que o amor era simplesmente decorrente de uma amizade como a nossa. Talvez aquele sentimento fosse mesmo uma forma de amor. Eu estava feliz daquela forma. Afinal, não conhecia nada além daquela vila de pescadores à beira-mar. 
Caminhamos por horas um ao lado do outro. Perdemos a noção do tempo – já era quase meio-dia quando percebemos que tínhamos excedido no tempo. Quando resolvemos voltar para casa, Maxuel foi logo me prevenindo que não ficaria para almoçar, pois estava muito atrasado para o trabalho. 
Mal abrimos a porta de casa e já percebemos o clima hostil entre minha mãe e meu pai. Ele acabara de chegar da pesca e ainda estava todo sujo de isca. Minha mãe estava reclamando e pedindo para que ele fosse se lavar. Porém, papai dizia que ela fazia isso por ele ser um homem de origem humilde. Não aguentando ver aquela discussão, interferi, perguntando: 
– O que é que está acontecendo aqui? Será que os dois não conseguem viver sem um ter que afrontar o outro? 
Meu pai olhou-me furioso. Mal cumprimentou Maxuel com um aceno de cabeça e saiu batendo a porta. Eulália estava chorando, com as mãos nos ouvidos. Meu irmão não estava em casa, devia estar sentado à beira-mar, olhando para o tempo. Fui à cozinha atrás de minha mãe, para tentar ver o que eu podia fazer. Ela estava andando de um lado para o outro, com as gêmeas no colo, que estavam em prantos. Tomei as meninas do
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colo de minha mãe e levei-as para o quarto, fazendo-as adormecer em seguida. Quando voltei à sala, vi uma cena que não era normal. Maxuel estava abraçado a Eulália e, ao me verem, ambos tiveram uma reação adversa. Mediante aquela situação, imediatamente indaguei-lhes: 
– O que é que está havendo aqui? 
– Sua irmã estava inconsolável e eu estava tentando acalmá-la. – respondeu ele, assustado, afastando-se abruptamente de Eulália. 
Porém, minha irmã respondeu-me em tom de ironia – o que me deixou ainda mais intrigada. 
– Não precisa ficar com ciúmes, Emanuelizia. O noivo ainda é seu. – dizendo isso, Eulália saiu exasperada da sala. 
Olhei para Maxuel, procurando uma resposta plausível, interrogando-o: 
– O que ela quis dizer com isso, Maxuel? Existe algo entre vocês? 
– Não imagine coisas. Sua cabeça está confusa e já está com problemas demais para criar mais um agora. 
Ele me deu um beijo na testa, como de costume, e saiu, deixando-me parada no meio da sala vazia. Fui ao quarto onde minha irmã estava em prantos. Vendo aquela cena desmedida, perguntei-lhe: 
– O que é que está havendo, Eulália? 
Ela virou-se para mim, abruptamente, e respondeu-me: 
– O que é que está havendo? Ora, minha irmã! Você parece que vive em outra dimensão! Nossos pais engalfinham-se o tempo todo, vivemos nesta miséria, e você ainda vem me perguntar o que é que está havendo?! Como você pode ficar tranquila e aceitar essa vida que levamos? Vivemos como animais esquecidos do resto da sociedade!
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– Não diga uma coisa dessas, Eulália! Você acha que não me preocupo com toda essa situação? Lógico que sim. Mas o que quer que eu faça? Quer que eu mate nossos pais? 
– Seria mesmo melhor que eles estivessem mortos, ou melhor, que eu nunca tivesse nascido. 
– Pare de falar bobagens! Meu Deus, as coisas vão se arranjar. Quando eu me casar com Maxuel, poderei ajudá-la, vai ver. 
– Quando você se casar com Maxuel... Você não pensa em outra coisa não, é? Acha que tenho tempo para esperar que você se case ou mude de vida para que a minha vida tome um rumo? Você é uma egoísta e uma tola, se acha mesmo que quero viver de suas migalhas. Por que você acha que tem que ser mais afortunada do que eu? Por que não deram a mim ao invés de você em casamento para Maxuel? Isso não é justo! Você sempre tem as melhores roupas, enquanto tenho que ficar com as que não lhe servem mais. Tudo para você é mais fácil do que para mim. E você nem ama Maxuel. 
– Meu Deus, minha irmã, pare com isso! Como pode dizer uma sandice dessas? É claro que amo Maxuel! Senão, não aceitaria casar-me com ele. E o jeito como você se expressa... Parece que você me odeia e sente inveja de mim. Não tenho culpa se nossos pais nos uniram em uma promessa ainda quando éramos crianças. Também não entendo o porquê dessa união prematura. Mas se esse é o meu destino, já que nossos pais assim o escolheram, eu o aceito. 
– Eu? Com inveja de você? Ora, Emanuelizia, você é mesmo muito ingênua! Embora seja mais velha, não tem nenhuma percepção da vida. Sou muito melhor do que você em tudo, e vou provar-lhe isso. Fique sabendo que não vou ficar com suas migalhas. Mereço ter tudo do bom e do melhor. Sabe por quê? Porque sou mais esperta que você e sei agarrar as
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oportunidades quando vejo uma. E quanto ao seu destino, aproveite-o enquanto ainda pode. 
Dizendo essas palavras tão rudes e tão duras de ouvir, ela saiu batendo a porta do quarto atrás de si, sem nada mais a dizer. Joguei-me em uma poltrona e coloquei as mãos no rosto. Respirei profundamente e fiquei me interrogando o porquê de Eulália ter tanta raiva de mim. Era injusto o que ela me disse. Logo comigo, que sempre lhe fui tão dedicada! Fui para a cozinha ajudar minha mãe a limpar o peixe para o almoço. Eulália havia ido caminhar à beira-mar. Ela sempre fazia isso depois que discutíamos. Minha mãe estava taciturna e mal dirigiu a palavra a mim. Ficamos ajeitando as coisas na cozinha em total silêncio. No fundo, eu a compreendia. Sabia que aquele silêncio, embora sufocante, era a forma que ela encontrara para meditar e colocar seus pensamentos atordoados em ordem. Estava de costas pondo a mesa para o almoço, mas percebi quando meu pai entrou batendo a porta. Ele tirou o chapéu da cabeça e cumprimentou-me, perguntando: 
– Onde está sua mãe? 
– Na cozinha, terminando o almoço. 
Ele parecia ir em direção à cozinha. Mas, percebendo aquela atitude que poderia não acabar bem, interrompi, dizendo: 
– Pai, por favor, por hoje acho que já foi suficiente. Deixe a mamãe em paz. Ela precisa ficar um pouco sozinha. 
Ele, porém, saiu resmungando alguma coisa, confirmando em atitudes que ia mesmo à cozinha somente para colocar mais lenha naquela discussão constante e que começara cedo naquele dia. Respirei fundo e tranquilizei os ânimos quando ouvi a porta do quarto dos meus pais batendo – assim, pude ter certeza de que papai não voltaria mais à cozinha. Eu estava de costas, mas percebi quando meu irmão entrou em
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seguida. Logo ao ver-me, ele perguntou se papai estava em casa. Vir-me-ei lentamente e respondi-lhe: 
– Sim, mas o aconselho a não incomodá-lo agora, pois parecia bem nervoso quando chegou. 
– Eu não ia falar com ele. Na verdade, queria que ele ficasse por lá para o resto da vida. Odeio a vida que levamos e preferiria não ter nascido, pois já não aguento mais ter que vê-lo brigando com a mamãe. 
Percebendo aquele tom de revolta e desapontamento em sua voz, deixei a mesa de lado e fui abraçá-lo. 
– Não diga isso, meu irmão. Sempre estarei aqui para defendê-los. E pense bem: o que seria de minha vida sem você? 
Ele me olhou e, com os olhos cheios de lágrimas, deu- me um beijo na face, retirando-se para o seu quarto em seguida. Fiquei ali em pé, sentindo-me impotente, sem saber como agir mediante aquelas circunstâncias. Naquele momento, Eulália entrou afoita e toda faceira, interrompendo meus pensamentos. Confesso que a minha curiosidade ao vê-la tão desaforada foi maior e mais forte. Fiquei ansiosa para perguntar o que tinha acontecido de bom, para que ela entrasse daquele jeito na casa. 
Terminei de pôr a mesa e corri para o nosso quarto para interrogá-la. Mal abri a porta e fui lhe perguntando, depois de vê-la rodopiando como uma mariposa pelo quarto: 
– Posso saber o que aconteceu de tão esplendoroso que fez com que a senhorita ficasse assim tão radiante? 
– Acha que lhe contaria sabendo que você morre de inveja de mim? Se depender de mim, irá morrer de curiosidade, minha irmã, pois nunca lhe direi. Nem mesmo que caia um raio sobre minha cabeça, não lhe direi uma só palavra. Por mim, quero que morra. 
– Meu Deus, Eulália, por que me odeia desse jeito? O que foi que lhe fiz?
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– O que foi que você me fez? Quer mesmo saber, minha irmã? Vou lhe repetir então, você é a mais velha e tudo, como lhe disse, sempre lhe foi dado como preferência, enquanto tenho que ficar com as suas sobras. Mas garanto que as coisas irão mudar em breve, você verá. 
– Eulália, está sendo injusta comigo. Nunca a deixei ficar com minhas sobras. Sempre dividi tudo o que ganho e que tenho com você, sabe muito bem disso. 
– Pois saiba que não quero dividir mais nada com você. Quero o que é meu por direito. Acha que não percebo como a mamãe trata você melhor do eu somente porque é mais bonita? Pois vou provar a todos nesta casa que posso ser muito melhor do que me julgam. 
– Pare imediatamente com isso, Eulália! Você também é muito bonita, e não tenho culpa de ter sido dada em casamento a Maxuel. Já lhe disse que não entendo o motivo de nossas famílias nos terem unido. 
– Não entende e aceita porque lhe é conveniente, não é mesmo? Você é uma sonsa. Você não o ama, nunca o amou verdadeiramente. Só está noiva dele por puro egoísmo ou ambição. Você é má, Emanuelizia, e fará Maxuel sofrer. Você não o merece. Eu, sim, sou quem teria que casar com Maxuel. Eu seria a esposa perfeita para ele. Mas em breve isso irá mudar... Passarei a ser o centro das atenções desta casa. 
Aquelas palavras deram-me calafrio. Então, peguei-a pelos braços e perguntei-lhe: 
– O que é que você está aprontando? Quer que a mamãe morra de desgosto? Saiba que se está se envolvendo com algum homem comprometido, deve me contar imediatamente. Você ainda é uma menina. Quero que saiba que os homens só pegam jovenzinhas pobres como nós para se aproveitar e depois descartam, como uma folha de papel sem o menor valor. Meu
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Deus, Eulália, o que você anda aprontando? Está se comportando levianamente. Não consigo acreditar; como pode? Quem é este homem que está lhe virando os pensamentos? Tem que me dizer agora, pois irei amanhã mesmo encontrá-lo junto com Maxuel e o farei responder pelo que anda fazendo com você! 
– Você é mesmo muito tola, Emanuelizia. Não consegue perceber nem mesmo o que está na frente do seu nariz. 
Ela me olhava desafiadoramente. Porém, minha mãe entrou e, percebendo que havia algo estranho conosco, perguntou: 
– O que está acontecendo aqui? Não me basta o seu pai, agora tenho que ficar apaziguando as rixas entre duas irmãs? Estão parecendo animais! Não estão agindo civilizadamente mais. 
– Não estamos parecendo animais, mãe, somos animais. Caso a senhora não tenha percebido, levamos uma vida miserável, moramos em um chiqueiro, comemos lavagem, vivemos de restos como os cães e ainda temos que conviver com um homem rude que trata a minha mãe como um cachorro. Saiba que se isso não for vida de animal, nada mais será. Odeio esta vida, odeio vocês todos. – dizendo isso, Eulália saiu, batendo a porta. 
– Meu Deus do céu, Emanuelizia, o que deu nessa menina? 
– Ainda não sei, mãe, mas prometo que vou descobrir. Agora vamos almoçar, antes que o papai fique nervoso com o nosso atraso. 
– Sim, vamos. 
Minha mãe acompanhou-me, torcendo as mãos no avental. Ela parecia estar sem rumo e apreensiva com a atitude e as palavras de Eulália. Eu também estava. Mas uma coisa era
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certa: eu pretendia descobrir o que ou quem estava desviando minha irmã para que ela ficasse tão mudada com a família. Por certo, deveria ser algum homem inescrupuloso e malicioso que ao perceber que Eulália era uma jovem bonita, ingênua e ambiciosa, estava manipulando-a de alguma forma. 
Quando chegamos à sala, Eulália já estava sentada à mesa ao lado de Pietro. Meu pai apenas nos olhou com ar de desaprovação pelo nosso atraso. Fizemos as orações, como de costume, mas durante o almoço todos comemos em silêncio. Mal trocamos uma ou duas palavras uns com os outros, para evitar que meu pai se aborrecesse e acabasse com aquele raro e único momento em que a família se reunia. Eulália saiu rapidamente da mesa, interrompendo o silêncio. Meu pai pediu para que eu fosse ver o que estava acontecendo com ela. Quando cheguei ao nosso quarto, deparei-me com minha irmã debruçada à janela, vomitando. Tentei sondar, indagando-a. Ela, porém, depois de enxugar as lágrimas, respondeu-me: 
– Não vê que sou muito doente e toda vez que fico contrariada meu estômago dói? E a culpada disso sempre é você. 
Dizendo isso outra vez, ela saiu do recinto, deixando-me a ver navios. Eu ainda estava no meio do quarto, sem saber o que fazer em relação a ela, quando minha mãe entrou, querendo saber o que aconteceu. Porém, respondi-lhe: 
– Sei tanto quanto a senhora, mas confesso que estou a cada instante ficando mais preocupada. 
Minha mãe saiu para ajeitar as coisas e tentar verificar o que estava acontecendo. Peguei uma vassoura e fui ajeitar o quarto, tentando tirar Eulália dos meus pensamentos. Acabei sentindo-me culpada pelo estado de saúde da minha irmã ter piorado. Estava decidida a conversar com Maxuel e antecipar nosso casamento, pois queria a qualquer custo tirar Eulália
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daquela vida de sacrifícios e dificuldades. Continuei a fazer meus afazeres quando percebi que havia uma caixa de chapéus debaixo da cama de minha irmã. Pelo formato e pela embalagem, era uma caixa de uma loja muito cara. Eu saiba que estava errada, mas precisava saber o que tinha naquela caixa. Ao abri-la, fiquei extasiada, pois dentro da caixa havia diversos bilhetes de amor não assinados, e também uma caixinha com uma joia muito cara. Sentei-me no chão e coloquei a mão na boca, pois percebi que as minhas suspeitas estavam corretas. Embora tenha desconfiado e achado aquela letra bastante familiar, não atinei para a realidade dos fatos, pois no fundo eu queria acreditar que Eulália estava mesmo sendo seduzida por algum crápula que, por certo, estava iludindo sua cabeça confusa e ingênua. Ajeitei tudo para que ela não percebesse que eu havia descoberto o seu segredo. Terminei com a arrumação e saí para tentar achar Eulália. Ela estava no rochedo, à beira-mar. Cheguei por trás dela e disse: 
– Sei o que você está fazendo. 
Ela se virou e perdi as forças, pois seus olhos eram puras lágrimas. Tentei fazer-me de rogada, pois não poderia deixar que Eulália percebesse minha fraqueza. Caso contrário, ela se tornaria agressiva comigo e acabaria por me deixar falando sozinha novamente. 
– Não lhe devo satisfações de minha vida. Solte-me e deixe-me em paz. 
– Não irá adiantar maltratar-me de novo, Eulália. Está usando dessa arrogância e presunção como uma autodefesa. Gritar e espernear é sinal de fraqueza e saiba que não vou me calar diante de mais uma de suas crises de rebeldia. Descobri seus planos: está pensando em fugir com o seu amante. E como acha que ficará sua vida caso isso aconteça? O que será de
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mamãe? Papai irá espancá-la, e sabe Deus o que mais pode ocorrer após essa sua atitude leviana e impensada. 
– Você não sabe nada de mim e mesmo tendo mexido em minhas coisas, nada me fará dizer uma palavra. 
– Você não percebe, criança tola? Este homem está usando-a, mais nada. Responda-me apenas uma coisa: ele é comprometido ou não? 
– Sim, ele é. Mas ela não o merece e ele irá largá-la para ficar comigo em breve. 
– E você ainda diz que sou ingênua? Ora, minha irmã, este homem só está brincando com você e com seus sentimentos. Ele nunca vai largar a mulher dele ou a família para ficar com você. Meu Deus, minha irmã, pare com isso! Pense um pouco: você vai ficar mal falada e nunca conseguirá arrumar um casamento. E se papai descobrir, irá colocá-la para fora de casa. 
– Sei que é isso o que você deseja para mim. Mas antes que isso aconteça, fugiremos para bem longe e seremos muito felizes. 
Segurei-a pelos braços com força e disse-lhe: 
– Você tem que me dizer quem é este crápula. 
– Você é mesmo uma tola, se acha que lhe direi alguma coisa. Mas não se preocupe: em breve matarei a sua curiosidade. 
– Não estou curiosa. Estou preocupada com você. 
– Quer um conselho, minha irmã? Preocupe-se com você mesma. E mais: aprenda a prestar mais atenção nos detalhes, antes que tenha que chorar lágrimas de sangue. 
– O que você quer dizer com isso? – falei, apertando-lhe mais fortemente os braços. 
Fitei-a e prossegui: 
– Já estou cheia de suas insinuações. Você vive insinuando alguma coisa. Acaso acha que a vida é um jogo e
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que com essa atitude de meretriz que está tendo, de se envolver com um homem comprometido, terei inveja de você? Acha mesmo que tenho a intenção de disputar alguém ou alguma coisa com você ou com quem quer que seja? Tudo o que sempre quis foi saber que poderia no futuro ajudar a minha família, nada mais. Só quero poder dar-lhe um futuro melhor, com uma vida segura e promissora, diferente desta que levamos. Mas o seu egoísmo é tamanho que você só consegue ver o seu próprio umbigo. Não vou mais interferir em sua vida, e isso é uma promessa. Mas quero que saiba que se um dia você se sentir em perigo e quiser minha ajuda, sempre estarei por aqui. 
Soltei-a e fui caminhando em direção à nossa casa. Escutei-a gritando atrás de mim. 
– Nunca precisarei da sua ajuda. Você é quem vai implorar pelo meu auxílio. 
Não me importei com aquelas palavras – para mim, não passaram de insanidades da cabeça de uma jovem revoltada com a vida que tinha. Naquela tarde, resolvi não voltar diretamente para casa. Fui caminhar à beira-mar. O mar havia ficado agitado. Era como se algo estivesse para acontecer. O vento que vinha de terras longínquas parecia querer avisar-me sobre alguma coisa. Tudo naquela tarde estava diferente. Agachei-me, ficando de cócoras, quase que encolhida pelo frio que vinha do mar e também pelas águas geladas, que de vez em quando a maré jogava em meus pés descalços. Olhando as ondas revoltas, comecei a distrair meus pensamentos, nem me dando conta de que as horas passavam. O mar tem esse estranho poder entorpecente. Ele nos faz esquecer todos os problemas e tudo ao nosso redor. E assim fiquei por horas a fio, olhando o horizonte. As vozes começaram a falar ao meu ouvido e eu as confundia com os chiados das ondas do mar. Comecei a sorrir comigo mesma, pois algumas daquelas vozes pareciam estar discutindo
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por algum problema corriqueiro. Eu achava que as vozes eram coisas da minha cabeça. Achava até que eram os meus próprios pensamentos que estavam em desordem emocional, devido aos tantos problemas que estava passando. Assim fiquei, inerte, naquele mundo desconhecido, absorta em meus próprios pensamentos ou no que eu imaginava que fossem meus pensamentos! 
De repente, um sono estranho tomou conta de mim e acabei cochilando. Despertei com uma voz feminina rouca e baixa chamando-me. Olhei para cima e vi uma senhora com roupas de cigana. Assustei-me com a visão, mas olhei-a fixamente. Ela me deu um largo sorriso e disse-me: 
– Assustou-se comigo, minha filha? Sou feia e velha, mas não faço mal algum. – deu uma gargalhada que ecoou por toda a praia. 
Naquele momento, pareceu que não ventava e foi como se toda a terra tivesse parado. Arregalei os olhos e disse, tentando disfarçar o meu medo: 
– Não, imagina, não me assusto tão fácil assim! 
– Mentirinha! Não seja hipócrita: odeio hipocrisias. – falou aquelas palavras, usando um tom de voz sério, o que me deixou ainda mais assustada. 
A mulher parecia uma bruxa vinda de um conto de terror. Olhou-me nos olhos e estendeu-me as mãos, dizendo: 
– Venha, vamos caminhar comigo. Creio que tenho algumas respostas para lhe dar e também uma proposta a lhe fazer. 
Embora assustada, estendi a mão àquela mulher e levantei, acompanhado-a em seguida. Caminhamos em silêncio alguns minutos até que, por fim, ela resolveu falar: 
– Tenho acompanhado a senhorita desde o berço.
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Admirada com aquela revelação, eu já ia perguntar-lhe como ela me conhecia, sendo que eu nunca a havia visto. Mas ela, percebendo minha intenção, pediu para que eu a deixasse prosseguir: 
– Sim, eu a conheço desde o ventre de sua madre, niña. – carregou no romani, dando novamente aquela gargalhada sinistra. 
Prosseguiu com o assunto, que a cada instante mais me intrigava: 
– A cada cem anos uma de nós, do clã secreto das serpentes, escolhe uma discípula a quem passa os ensinamentos e os poderes. Podendo, assim, descansar o aparelho, partindo para o descanso eterno. Durante anos procurei, no meio de todos os mortais, uma que me fosse perfeita, assim como você. Agora que atingiu a maior idade, poderei resgatá-la e transferir-lhe os meus poderes. 
– Não estou entendendo, senhora! Resgatar-me? Como assim? De que poderes a senhora está falando? Saiba que, se está brincando, a única coisa que está conseguindo é me assustar. 
– Prefiro não entrar em detalhes agora, mas lhe prometo que em breve saberá. Agora preciso apenas saber se a senhorita aceita os poderes que quero lhe transferir. 
– Desculpe-me a sinceridade, mas acho que a senhora não está muito bem. Creio que está em devaneios. Agora, se não se importa, preciso ir embora. Aceite o meu conselho, senhora: vá para casa e não fique a andar sozinha por aí. E também lhe peço que pare com essas histórias insanas, pois se alguém além de mim a ouvir, acabarão confundindo-a com uma louca, ou o que é pior: com uma feiticeira. 
A velha senhora olhou para mim pacientemente, respondendo-me:
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– Entendo que esteja confusa, mas preste bem atenção: quando a senhorita mais precisar de mim, é só chamar-me que irei ao seu encontro. Onde quer que esteja, lá estarei. 
– Desculpe-me, senhora, preciso voltar para casa. Senhora, por favor, não me interprete mal, mas não tenho o menor interesse em participar de nenhum ritual de magia, se é o que a senhora está tentando me dizer. Sou católica e temente a Deus e nunca mudarei minha religião. 
Saí andando, não querendo prestar atenção naquela velha louca. Onde já se viu?! Que conversa mais estranha! – pensei. Porém, a velha, percebendo que me distanciava rapidamente, gritou: 
– A senhorita está sendo orgulhosa e presunçosa em achar-se a dona de todas as verdades. Saiba que, neste momento, está sendo traída dentro da sua própria casa. 
Curiosa como sempre fui, voltei-me para trás imediatamente e perguntei-lhe: 
– O que a senhora está querendo insinuar? Traída por quem? Está louca, senhora? Vá para casa. Não é bom que ande por aí sozinha. É uma velha louca, não passa disso. 
Saí andando sem olhar para trás, mas senti seus olhos fitando-me pelas costas. Não satisfeita, ela continuou a gritar: 
– Sim, sou velha sim, mas não sou louca. Saiba que todas envelhecemos, umas mais que as outras, devido ao tempo de existência terrena. Irá se arrepender por causa da sua arrogância e mau uso das palavras comigo. E nesse dia estarei esperando a senhorita vir atrás de mim a implorar-me por socorro. 
Dizendo isso, a velha ficou estática no lugar onde havia parado de me seguir. Apenas repetiu: 
– É só chamar pelo meu nome que virei a seu socorro. Mas, até lá, que o tempo seja o seu mestre.
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Eu havia andado uns dez passos, mas resolvi olhar para trás para vê-la olhando-me pelas costas. Assustei-me de imediato ao perceber que a velha não estava mais atrás de mim, observando-me como eu supunha. Olhei ao redor, mas só havia a areia, os coqueiros e o mar, nada mais. 
E como eu poderia achá-la, se ela nem ao menos me disse o seu nome? Balancei a cabeça, rindo, achando se tratar mesmo de uma senhora confusa com histórias fantasiosas. De repente, o vento soprou o nome da velha ao meu ouvido. Eleanor... Arrepiei-me dos pés à cabeça e corri em disparada em direção à minha casa, pois, naquele momento, acreditei que a velha fosse um fantasma. 
Ao chegar a casa, deparei-me com uma cena nada convencional que me deixou ainda mais apreensiva: o médico da família já estava saindo à porta. Tentei interrogá-lo. Porém, ele sacudiu a cabeça, dizendo-me que era assunto de família. Ao entrar, para meu espanto, dentro da minha casa encontravam-se, além dos membros convencionais da minha família, minha tia aos prantos, meu tio e o vigário local. Cumprimentei os visitantes e segui em direção à minha mãe, abraçada à minha irmã, que parecia estar passando muito mal. Como sabia que Eulália não me contaria, indaguei minha mãe. Ela, porém, com um olhar de súplica, olhou para meus tios, que baixaram os olhos. Ela, então, olhou para meu pai, que respondeu em seguida: 
– A filha é sua; conte logo a ela, mulher! 
Mamãe, não conseguindo falar, caiu em prantos. Tentei ampará-la para que não caísse ao chão. Meu irmão, porém, percebendo o que ia acontecer, tomou-a nos braços, entregando- a a minha tia Ellen, que parecia envergonhada com a situação. Porém, não dizia uma só palavra e permanecia de olhos baixos na minha presença. Irritada com aquela situação, exasperei-me,
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perguntando em voz alta e batendo os pés ao chão. Todos me olharam, mas foi meu irmão que me pegou pelo cotovelo e levou-me para a cozinha. 
Ao chegar à cozinha, ele deu um longo suspiro e prosseguiu, falando: 
– Sente-se, minha irmã, eu lhe contarei tudo. Sei que não será nada fácil para você, mas lhe contarei tudo. Só peço que se mantenha calma. O problema é com Eulália. 
– Isso já sabia, mas o que há com nossa irmã de grave que até o padre foi chamado aqui? 
– Ela está grávida. Um homem lhe fez mal. E o pior é que este homem é comprometido, o que agrava mais ainda a situação dela. 
– Meu Deus, só não tinha certeza da gravidez, mas sabia que Eulália estava se envolvendo com um homem casado. Isso para mim já era um fato. 
Coloquei as mãos na boca e depois falei, novamente: 
– Papai deve estar possesso com essa situação. Pobre Eulália, o que será dela? 
– Santo Deus, minha irmã, você ainda não entendeu? Ou você é muito ingênua ou está se fazendo de ingênua para não ver a realidade que está à sua frente. – na verdade Pietro estava certo, eu não queria mesmo saber da verdade. Porque sabia que ela seria muito dura para mim. Dei um longo suspiro me fazendo de rogada respondendo em seguida: 
– Sim, entendi, logicamente que sim. Eulália está em apuros e não é por causa das nossas desavenças que a abandonarei. Nunca a deixarei, e muito menos permitirei que nosso pai a expulse de casa. Ela é só uma menina! Preciso ir agora mesmo para a sala e tentar ajudá-la, mostrando-a que estou do lado dela. 
Quando eu já estava saindo, Pietro falou:
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– Ainda não percebeu? O homem que fez mal à nossa irmã é Maxuel. Como pode estar preocupada com a situação de nossa irmã se tudo o que ela fez até agora foi apunhalá-la pelas costas? Ela a traiu, minha irmã, tomou seu noivo. E Maxuel, este sim, é um crápula dos grandes, porque sabia que ela é sua irmã querida. 
Ao ouvir aquelas palavras, voltei para trás e deixei o corpo cair sobre a cadeira que estava no meio da cozinha. Pietro continuava falando e falando, mas eu não ouvia as palavras que saíam de sua boca. Minhas mãos pareciam estar dormentes e tudo começou a rodar à minha volta. Comecei a pensar no quanto fui ingênua em acreditar que Maxuel me amava. Vi meus sonhos e meus planos desfeitos, escorrendo por água abaixo. Fiquei me perguntando quanto tempo perdi com aquele noivado de mentiras e traições. Por certo, todos sabiam, menos eu. Senti- me uma tola. 
– Sou uma estúpida! – saíram em voz alta aquelas palavras de revolta – Vocês todos sabiam disso, não é, Pietro? 
– Não. Não sabia; talvez mamãe soubesse. Estou tão confuso e indignado quanto você, acredite. 
– Não, acredite: ninguém está tão indignada quanto eu, ninguém está tão machucada quanto estou! Fui traída pela minha própria família. Como você acha que estou me sentindo? 
– Imagino como está se sentindo. 
_ Não, meu caro irmão, você não conseguiria imaginar como estou me sentindo. 
– E o que pretende fazer? Creio que lá fora estão todos com as mãos atadas. 
– Pelo visto deixaram a batata quente para eu segurar. Acredite: farei o que for correto, como sempre. Não é isso que sempre esperam de mim?
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Meu irmão baixou a cabeça e nada mais disse. Em seguida, saímos da cozinha, em total silêncio. 
Na sala, estavam todos murmurando e o casal de traidores estava cada um em seu canto, com as cabeças baixas. Ergui os ombros e olhei para todos ao meu redor. Disse em tom de desprezo: 
– Maxuel, acompanhe-me até a varanda. Quero falar a sós com você imediatamente. 
Ele, porém, arregalou os olhos e concordou com a cabeça, parecendo surpreso. Minha mãe tentou me impedir quando eu já estava saindo, dizendo: 
– Não faça nenhuma bobagem, minha filha, da qual você possa se arrepender mais tarde. Pense em sua irmã: ela é só uma criança inocente. 
– Já fiz a maior bobagem desta vida quando aceitei me unir a este crápula, cujo sangue que carrega nas veias tem um pouco do meu sangue também. E quanto à minha doce e ingênua irmãzinha, creio que ela não foi tão inocente quando seduziu meu noivo. Portanto, saia da minha frente que farei o que é correto, independente do que seja a vontade de todos vocês. 
Saí porta afora e fui ter com Maxuel, que estava debruçado no beiral da varanda. Estava com a face pálida, como se estivesse em um navio balançando. Ele parecia que estava tendo uma vertigem. Porém, não me deixei abalar, como fazia de costume. Ele se virou imediatamente quando percebeu a minha presença e veio logo de braços abertos ao meu encontro, dizendo: 
– Perdoe-me, meu amor, eu a magoei. Mas tudo se resolverá. Nós nos casaremos e quando o bebê de sua irmã nascer, nós o acolheremos como se ele fosse nosso filho. Assim, sua irmã poderá seguir com a vida dela naturalmente e, quem sabe, poderá até se casar!
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Dei um sorriso triste e decepcionado e, depois de repudiar o afeto dele, respondi-lhe: 
– Pensou em tudo, não é? Como sempre... 
– Sim, meu amor. Pedirei a meus pais que a levem para a fazenda, onde ela terá total privacidade de gerar essa criança. Ninguém ficará sabendo. Por isso, poderemos criar a criança como se fosse nossa. 
Dei um sorriso sarcástico e respondi imediatamente, entre dentes: 
– Essa criança, que você menciona com tamanho desprezo, é seu filho também. E por acaso o senhor achou mesmo que eu faria parte dessa trama inescrupulosa, na qual sou a vítima?! Quer mesmo que eu passe de vítima a vilã? Nunca me prestaria a um papel ridículo e tão baixo como esse de ser sua amante e esposa. Ou acha que eu acreditaria que você e minha irmã não vão continuar se encontrando às minhas costas? Desprezo-o, Maxuel Alencastro. E quanto à minha irmã, ela que fique com o resto de tudo de bom que passei ao seu lado. Não o quero mais, não passarei o resto de minha vida ao lado de um homem que nunca deixará de pensar na cunhada. E também não me sujeitarei à humilhação de ter que criar o filho bastardo daquela pessoa que, a partir de hoje, morreu para mim. A única coisa que me deixa triste é saber que não quis ver a traição dos dois, porque me negava a acreditar que seriam capazes disso comigo. Só lhe direi mais uma coisa: passe o céu e passe a terra, vocês nunca serão felizes ao lado um do outro; não terão um dia de suas malditas vidas que não pensarão na traição que fizeram comigo; e desse desgosto morrerá a minha irmã. 
– Não, essa não pode ser você! Não acredito que me dará para sua irmã, que não lutará pelo nosso amor. Tudo poderá ser diferente, não percebe? Basta que aceite a minha proposta e tudo ficará bem. Porei uma pedra em cima de suas palavras tolas,
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pois sei que só está aborrecida comigo, sei que isso passará com o tempo. 
Dei uma gargalhada que fez com que minha tia chegasse à porta. Porém, não dei importância e continuei: 
– Nunca farei o que é conveniente para vocês. Farei, sim, o que sei que é correto para mim. Jamais, enquanto eu viver, perdoarei essa traição. 
Olhei para a porta e vi que todos estavam na varanda, escutando boquiabertos o que eu havia dito. Levantei a cabeça e ressaltei: 
– Sim, é exatamente isso que disse: não me casarei com Maxuel! Que ele fique com essa mulher que, para mim, a partir de hoje, está morta. E quanto a você, Eulália, reclamava tanto das minhas migalhas e agora terá que viver com elas para o resto de sua vida, pois o resto do homem que estou deixando para você nunca a amará e ainda saberei que você chorará lágrimas de sangue por causa das traições que este crápula cometerá. E reze, mas reze muito, para que essa criança venha com saúde. E, se nascer, reze para que Deus perdoe essa traição e que esse rebento não lhe tire o que lhe é mais precioso. 
Dizendo isso, virei as costas e saí em direção à praia. Minha mãe estava com a mão à boca. Meu pai não demonstrou nenhuma reação. Minha tia parecia estar passando mal, e o padre ficou a me esconjurar devido à praga que eu havia rogado contra Maxuel e Eulália. Porém, não dei importância nenhuma a ninguém. Sabia que o que disse não era correto. Mas, naquele momento, estava com tanto ódio que meu coração não respondia a nenhuma coerência que viesse do meu cérebro. Não queria ser sensata: queria magoá-los como me magoaram. Queria correr, fugir, sumir de toda aquela sujeira. Sentia-me um lixo humano. 
Eram seis horas da tarde. Aparentemente estava frio, mas meu corpo não sentia absolutamente nada. Caminhei por horas a
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fio e nem percebi o cair da noite. Quando finalmente parei de andar, percebi que estava sozinha. Então, ajoelhei-me de frente para o mar e gritei o mais alto e forte que pude. Depois, deixei as lágrimas caírem até que secasse todo aquele sentimento de tristeza, dor e perda. Fiquei horas olhando o mar e refletindo sobre tudo. Lembrei-me das palavras da velha quando ela disse que eu estava sendo traída naquele dia, dentro da minha própria casa. Refleti sobre muitas coisas. Percebi o quanto vinha me iludindo quanto ao caráter de Maxuel e Eulália. E se a velha tivesse razão? E se eu fosse uma bruxa? No meu estado normal, nunca havia rogado uma praga em toda a minha vida. E se a velha havia me enfeitiçado e agora estava eu com uma maldição sobre os ombros? 
Estava tão confusa e cansada, mas não queria voltar para casa. Fiquei parada em frente ao mar, de joelhos sobre a areia úmida e fria. O mar dos meus olhos misturava-se com as águas salgadas do oceano. Sentia-me sozinha e perdida. Não sabia que atitude tomar. Foi quando resolvi pronunciar o nome da velha cigana em voz alta. Queria que ela viesse ao meu socorro. Porém, nada aconteceu. Senti-me impotente e enganada, pois de alguma forma quis acreditar que aquela velha era mesmo capaz de me ajudar. Dentro de mim, uma mistura de sentimentos: queria ser mesmo uma bruxa poderosa, pois, além de aquela ideia fascinar-me, isso me daria poder para destruir aqueles que me haviam machucado. Mas, ao mesmo tempo, sentia medo e dor por ter perdido Maxuel. Senti revolta, impotência e desprezo. Lembrei-me de todos os santos, mas não quis pronunciar o nome de Deus: achava que Ele também havia me traído. Gritei, gritei com todas as forças que havia dentro das minhas entranhas. Gritei alto até que minha voz se calou com o som dos ventos. Levantei-me, meio cambaleando, e resolvi, por fim, voltar para casa. No caminho, eu ia pensando que a
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primeira coisa a fazer era tirar minha irmã de dentro do meu quarto. Não queria vê-la novamente, não queria qualquer proximidade com aquela que foi a causadora de toda a minha ruína. 
Quando finalmente retornei a casa, já passava das dez da noite e minha mãe esperava-me na soleira da varanda. Ela veio ao meu encontro, demonstrando preocupação e dizendo: 
– Filha, onde você estava? Não consegui dormir de preocupação. Precisava saber notícias sobre você. 
Porém, não respondi nada e recusei qualquer demonstração de afeto vinda da parte dela. Mas uma coisa me chamou atenção no meio de toda aquela interrogação. Foi quando ela disse: 
– Seus tios levaram Eulália para viver na casa deles. Acharam melhor que ela ficasse lá, já que vão se casar. Assim também evitará mexericos da parte dos vizinhos. Eu... sei que você não aprovará, filha, mas faremos uma cerimônia bem discreta no próximo sábado. Sua irmã diz que faz questão da sua presença. Ela ficou muito grata por você ter entendido a situação dela, embora ela saiba que você tenha ficado decepcionada com ela. Filha, imagino o quanto você está magoada com sua irmã, mas as coisas nem sempre acontecem como planejamos. Vai ver era o destino de sua irmã casar-se com Maxuel. 
Olhei para trás com tamanho desprezo que nem mesmo me reconheci, respondendo em seguida: 
– Quer dizer que além de traidores vocês são todos coniventes com o que os dois fizeram? Não espere que de hoje em diante eu seja a mesma pessoa, mãe. 
Respirei profundamente e continuei: 
– Todos vocês me desrespeitaram, traíram-me, e agora alcovitam essa situação, tratando essa história como se Eulália fosse a vítima. Saiba que não irei ao casamento desses dois, que
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estão mortos a partir de hoje para mim. E também, a partir de hoje, não quero mais ouvir falar dessa história. Agora, por favor, deixe-me em paz que quero dormir. Se pudesse, a partir de agora, não acordaria mais só para não ter que vê-los novamente. 
Dizendo aquelas palavras amarguradas e revoltosas, fechei a porta do quarto, batendo-a à face de minha mãe. Mas pude perceber que ela havia ficado chorando do lado de fora. Pude ouvir seu choro. Sei que me portei mal e de maneira cruel com ela. Mas, naquele momento, não me importava com os sentimentos dos outros, somente com a minha dor – de tão tamanha dava para rasgar o tempo, transformando-me em algo que eu não era: uma mulher amarga e fria. 
Tranquei as venezianas e coloquei alguns panos rasgados nas arestas para não ver os raios de sol do dia seguinte. Queria solidão absoluta, e o escuro era a forma de esconder a dor que se encontrava na minha alma. Pelo menos eu achava que essa fosse a solução para os meus problemas – o que não é verdade, pois cada vez que estamos passando por um momento muito difícil, temos a tendência de nos isolarmos, sendo que a solução para a dor é somente o tempo. Isolar-se, como fiz, só serviu para uma coisa: prorrogar meu sofrimento. Pois cada vez que ficamos presos a lembranças amarguradas e tristes, permanecemos presos no mesmo lugar. Isso não é bom, porque o tempo voa rapidamente e a vida continua a seguir seu rumo. O preço para quem teima em se agarrar às amarguras da vida é a solidão eterna. Naquele momento, não ouviria ninguém, nem mesmo o meu próprio eu. 
Joguei-me na cama, agarrando-me ao travesseiro. Acho que estava tão cansada que mal percebi se o sono chegou ou não. 
O quarto estava totalmente escuro. Não havia deixado nenhuma fresta para que a luz do luar entrasse. De repente, algo
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muito estranho e nefasto aconteceu. Barulho àquelas horas? Levantei a cabeça para ver o que era. A porta do meu quarto estava entreaberta, mas lembro-me de tê-la trancado pelo lado de dentro. Isso foi o que mais me impressionou. Levantei a cabeça para ver o que ou quem estava me olhando aos pés da cama, pois aquela forte presença incomodava-me. Mas, devido à penumbra, mal consegui ver meus próprios pés. Então, resolvi sentar-me à cama. Foi quando me deparei com um homem bem trajado, com cartola e fraque, na minha cabeceira, olhando-me. Ele sorriu. 
Era um homem de porte físico forte e, embora fosse muito bonito, havia algo de estranho com ele. Imediatamente indaguei-o, perguntando-lhe o que ele estava fazendo dentro dos meus aposentos e como conseguiu entrar em minha casa sem ser percebido. Ele me respondeu, mas seus lábios não se movimentavam. Era algo imaginário e fora do comum aquela presença masculina dentro do meu quarto. Ao perceber que seus lábios não se movimentavam, mas que podia ouvi-lo, meu corpo arrepiou-se por inteiro. Aquela voz grossa e rouca... Nunca esquecerei! O tom daquela voz era aveludado e ele se expressava polidamente, o que me deu a entender que ele estava tentando não ser ouvido pelos demais da casa. Talvez não fosse fácil, pois, embora ele fosse educadíssimo e falasse muito baixo, a rouquidão daquela voz a deixava no ar. Havia algo de errado, pois cada vez que pronunciava uma palavra comigo, o quarto enchia-se de ecos, como se estivéssemos em uma caverna profunda ou como se as almas estivessem falando junto com ele. Aquilo começou a me assustar, pois aquele homem, com o tom de voz que parecia ter saído do além-túmulo, falou, olhando fixamente nos meus olhos:
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– Você é minha, Emanuelizia... Há muito tempo tenho esperado por você. E agora chegou a hora de buscá-la. Acredite, nunca mais vou deixá-la. 
Estremeci tanto e senti que, de alguma maneira, minhas forças vitais não me pertenciam mais. Cheguei a urinar de tanto medo. Por fim, as palavras saíram depois de algum esforço. Mas, como meus lábios permaneciam imóveis, prosseguimos em uma conversa telepática. Perguntei-lhe: 
– Quem é você? 
– Sou aquele que faz as pedras chorarem, sou o dono do fogo, o último nome no livro do apocalipse, a verdade escondida por trás de muitas fábulas. Sou a voz que ecoa no meio da escuridão, calando-se no silêncio dos mortos. Venho a esta casa cobrar algo que me pertence. Uma dívida muito antiga... 
– Não o entendo! O senhor é louco? Como foi que o senhor conseguiu entrar em meus aposentos? Quem foi que lhe deu permissão de invadir a minha casa? Vou gritar e logo meu pai estará aqui. 
– Não preciso de permissão para entrar em lugar algum, pois os lugares são abertos a mim pelos corações de vocês, seres humanos. A maldade, a raiva, a inveja, a vaidade e a desordem que vocês causam no mundo são as principais portas para que eu entre em qualquer lugar que seja. Pode gritar, minha querida: saiba que estou aqui justamente porque ouvi seus gritos na praia. Vim para aliviar a sua dor. 
Assustada com aquelas palavras, afirmei: 
– Você é o demônio. 
Ele, porém, colocou as mãos na cintura e deu uma gargalhada que estremeceu todo o ambiente, respondendo-me em seguida:
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– Essa é só mais uma das minhas alcunhas, minha querida. A cada dia que passa, um de vocês me batiza com um nome diferente. Mas, para você, apresento-me como Zholar. 
Dizendo tais palavras, ele se reverenciou a mim da maneira que faziam os cavalheiros e os nobres. 
Repudiei-o, dizendo: 
– Arrede-se de mim, criatura sem nome! Não o chamei aqui e não quero nada com você. Sou filha de um Deus vivo e não quero nada com o rei dos mortos. Não passa de um verme. É um imundo e quer minha alma. Pois saiba que não lhe darei. 
Novamente ele deu a mesma gargalhada debochada e prosseguiu: 
– Você é tão ingênua como eu imaginava. Saiba que você não tem escolha, minha amada. Além do mais, não estou perguntando o que você quer de mim, – estou afirmando que você é minha. Você é a mulher que foi prometida para ser minha noiva por toda a eternidade. 
– E quem é você para me impor alguma coisa, sua besta? Jamais cederei às suas vontades. Nunca possuirá a minha alma ou o meu coração, que é puro, pois nunca cometi nenhum delito contra a moral e contra o meu Deus. Sei que você é o pai da maldade e da perversão. Mas, sendo eu filha de Deus, digo-lhe: arrede-se de mim em nome de Jesus, pois jamais serei sua, filho das trevas. 
Novamente a gargalhada sarcástica e debochada. Em seguida, a criatura respondeu-me. Porém, dessa vez seus olhos tornaram-se perversos e furiosos, brilhando como tochas no escuro do meu quarto: 
– Todos nós somos filhos Dele, minha amada. E desde quando eu lhe disse que queria uma alma corrompida e um corpo devasso e sujo? Acha mesmo que se eu quisesse já não teria qualquer uma, seja nesta casa ou em qualquer outro lugar?
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Não posso levá-la contra a sua vontade, – o que é uma pena! Mas em breve estarei esperando pelo seu pedido de socorro. Então, cá estarei, pronto a lhe servir. 
Reverenciou-se novamente e prosseguiu: 
– Pois este a quem tanto grita e clama com veemência na hora do seu desespero não lhe responderá como não lhe respondeu hoje mais cedo. – dizendo isso, a besta sacudiu a capa. 
Percebi que por dentro era de veludo cor de carne. Ele aproximou-se de mim. Então, baixei os olhos, pois não queria fitá-lo. Foi quando vi que seus pés eram como os de um bode. Apertei os olhos e senti que o quarto todo gelou, como se estivesse nevando dentro dele. A besta, antes de desaparecer, tocou em meu antebraço esquerdo com os dedos, próximo ao pulso. Senti que suas mãos geladas queimaram minha pele com aquele toque macabro. Sentei-me na cama, assustada e com a respiração ofegante, procurando uma resposta plausível para tudo o que me aconteceu. Estava com o corpo todo suado e havia molhado a camisola de algodão azul. 
Respirei, olhei ao meu redor e percebi: tudo tinha sido apenas um pesadelo. Dei graças a Deus, sentindo-me aliviada. Preocupada com aquele suposto pesadelo, e imaginando que o havia tido por causa das minhas atitudes de ódio e mágoa contra a minha família, imediatamente fiz minhas orações. Em seguida, retirei os lençóis que havia colocado nas arestas, abri o quarto e deixei a luz entrar, levando para longe as trevas. Olhando para aquela manhã maravilhosa e iluminada, pedi a Deus para me livrar dos maus pensamentos e que me ajudasse a perdoar minha irmã e meu primo. Logo a paz e a harmonia foram tomando lugar na minha alma. Eu não era daquela forma e, de alguma maneira, aquele sentimento vil estava atraindo energias negativas para junto de mim.
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Acabei de ajeitar a cama e arrumei-me apressadamente, pois estava atrasada para cumprir com meus afazeres matinais. Foi quando, na hora exata em que eu estava me vestindo, percebi que havia uma marca de queimado no meu pulso. Meu Deus! – pensei comigo mesma. Era verdade, eu não havia sonhado. Fiquei tão assustada que saí do quarto às pressas. 
Eu deveria estar muito pálida, pois minha mãe, ao ver- me, foi logo dizendo: 
– Emanuelizia, você está se sentindo bem? Está tão pálida! 
– Sim, mãe, mas me aconteceu um fato muito estranho esta noite. 
– E o que foi? 
Depois que ela me trouxe um copo d’água, contei-lhe tudo, em todos os detalhes. A reação dela foi muito estranha, ultrapassou as minhas expectativas: além de ter ficado assustada, ela empalideceu, deixando o corpo cair, jogando-o sobre uma cadeira. Mediante aquela mulher aparentemente aterrorizada, perguntei, curiosa: 
– Mãe, o que houve? Agora quem está empalidecida é a senhora. 
Ela baixou a cabeça e depois prosseguiu, contando-me a seguinte história: 
– Foi há muito tempo e, por isso, nunca dei importância a esse assunto, achando que não passava de uma lenda ou invenção de seus avós, pais de seu pai. Mas eu deveria tê-la contado antes e, principalmente, deveria ter feito alguma coisa. 
Ela começou a chorar e nada me fazia conseguir consolá- la. A cada instante, eu ficava cada vez mais assustada e curiosa. Interroguei-a, depois que percebi que já estava mais calma.
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– O que, mãe, deveria ter sido feito que a senhora não fez? O que a senhora deveria ter me contado e não contou? A senhora agora conseguiu me deixar apreensiva e curiosa. 
Seus olhos eram pura tristeza e pavor. Depois de enrolar as mãos no avental, ela prosseguiu gaguejando: 
– No dia do seu nascimento, seu pai e sua avó paterna desejaram que você fosse um menino para que pudesse ajudá-lo na pesca, e também para quebrar a maldição que já vinha acompanhando a família dele havia séculos. 
Ela levantou-se da cadeira e começou a andar de um lado a outro da cozinha. Levantei-me também, fui à sua direção e segurei-a pelos braços, dizendo: 
– Tenha calma, mamãe. Sente-se novamente e respire. Agora, diga-me: de que maldição a senhora está falando? 
– Você não entende, minha filha. A culpa foi minha, pois não fui capaz de dar um primogênito homem a seu pai. Canta a lenda que há muitos e muitos anos uma mulher de nome Carmélia Pontes apaixonou-se por seu tataravô. Porém, ele não correspondeu a ela e ainda a deflorou depois de uma bebedeira, na frente de seus amigos. Deixou a pobre mulher ao relento e à mercê da vergonha e do acaso. Ele nunca se importou com os sentimentos da pobre mulher e sumiu no mundo, só retornando casado com sua tataravó Nércia. Só que a tal mulher para quem seu tataravô havia feito mal era uma feiticeira muito poderosa e lançou uma maldição sobre a família de seu pai. Ela jurou que a sétima mulher a nascer primogênita, a partir daquela geração, antes de completar o vigésimo primeiro aniversário ainda virgem, seria uma praga sobre a terra. Sua alma seria levada pelo Diabo em pessoa. Ela reinaria por toda a eternidade ao seu lado como sua esposa. Quando você nasceu, todos queriam afogá-la, mas seu pai não deixou. Sua avó ficou durante anos sem falar com o seu pai por causa dessa atitude
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dele. Pois todas as primogênitas da família eram afogadas assim que nasciam. Seu pai, porém, foi um homem de coragem e disse que, se notasse algum mau indício demoníaco em você, ele mesmo o faria. Mas até hoje você nunca deu indícios de nenhum mal sobrenatural ter possuído o seu corpo. Pelo contrário, você é uma jovem meiga e doce. Sua avó faleceu e, de desgosto, os aldeões quiseram nos queimar vivos, então seu pai veio para esta vila. Desde então, ele vem bebendo como um louco. É por isso que me calo diante de certas atitudes violentas que ele comete, não sou omissa como pensam, sou devotada e sei o que ele tem passado carregando nas costas esse segredo durante todos esses anos. Somos amaldiçoados, Emanuelizia, se alguém souber dessa história não teremos chance contra a inquisição. Eles a levarão... 
Ela baixou a cabeça e calou-se, percebendo sua tristeza prossegui: 
– A senhora deveria ter me contado isso antes! Essa história muda muito o meu conceito quanto ao caráter de meu pai, embora não justifique que ele a maltrate tanto. Mas o restante da história é loucura! As minhas outras tias, irmãs de papai, tiveram filhas também. Por que a senhora acha que essa infeliz teria que ser eu? 
– Porque sua tia Feliciana teve três meninas, é certo. Porém, ela teve uma menina antes de todas, que nasceu morta. E a sua outra tia, Marta, só teve um menino. 
– Mas como? E a Maria da Cruz? É mais velha que Olavo. 
– Sim, mas Maria da Cruz é fruto de uma desventura que seu tio teve fora do casamento. 
– Então, Maria da Cruz não é filha legítima de minha tia? Somente de meu tio?
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– Sim. E como todos sabem, seu tio mais velho, irmão de seu pai, é um solteirão. Nunca quis se casar por medo da maldição. Dizem até que ele é um eunuco, que ele mesmo fez isso consigo por medo da maldição. 
– Mãe... O que será de mim, então? Se esta história for verdadeira, serei uma maldição. 
– Sim, pois foi por isso que nós a entregamos em casamento para seu primo logo que ele nasceu. Mas parece que deu tudo errado. Diga-me, Emanuelizia, Maxuel nunca foi além com você? 
– Não, mãe, claro que não. 
– Pois saiba que preferiria tê-la desvirginada a saber que poderá ser esposa do demo. 
– Não entendo, mamãe, por que tenho que pagar por tantas coisas. Por que será que o destino reservou uma sina tão cruel como essa para mim? Parece-me que nunca serei amada de verdade, que a minha vida será vagar pela eternidade, causada por um destino cruel. Sinto-me um monstro! Mãe, não quero ser esposa do demônio, sou filha de Deus. Não quero esse destino para mim. Tem que haver algo que possa ser feito! 
– Não sei o que fazer, filha. Mas, por ora, não falaremos nada com seu pai. Você sabe como é o temperamento dele. Precisamos pensar com calma. Logo irei ao seu quarto e, juntas, pensaremos em alguma coisa. Mas, por ora, fique calma e não pense mais bobagens. Vá dar uma volta pela praia para aliviar seus pensamentos. Não quero que me ajude hoje com a casa. Quero pôr também meus pensamentos em ordem, e a única maneira que consigo isso é ficando sozinha com meus afazeres. 
Naquele dia, caminhei por mais ou menos duas horas à beira-mar. Depois de ter colocado meus pensamentos em ordem, cheguei à seguinte conclusão: a solução seria encontrar novamente a velha cigana. Porém, não sabia como fazê-lo, pois
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chamei alto seu nome e nada aconteceu. Dúvidas invadiam a minha mente, pois já não sabia se a velha era real ou apenas mera imaginação. Pensei comigo Será que ela era sonho ou realidade? Pois naquele dia eu havia adormecido na areia. 
Retornei para casa e tranquei-me no quarto, sem querer ouvir ou falar com ninguém. Não quis almoçar ou jantar. Apenas fiquei sozinha com meus pensamentos, até que... 
"Nesta vida, mesmo que tudo seja passageiro, é obrigatório que sejamos honestos em nossas conquistas."
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II – A Iniciação 
inha mãe abriu a porta de maneira silenciosa, entrando na ponta dos pés e tentando não fazer nenhum barulho para não me acordar. Porém, ao ver aquela cena achei hilariante, levantei-me de costas apoiando nos cotovelos e falei- lhe, sorrindo: 
– Mãe, não precisa ser tão cautelosa para não me acordar, pois já estou acordada. E mesmo se quisesse dormir, não conseguiria. Na verdade, estou esperando-a para tentarmos juntas chegarmos a uma conclusão sobre o que falamos hoje pela manhã. Confesso que passei a tarde toda pensando em uma maneira de tentarmos reverter a minha maldição, mas não consegui pensar em nada. 
– Filha... Sinto muito, mas não consegui pensar em nada. – disse ela, muito decepcionada, jogando-se na cama e caindo sentada. 
Levantei-me e fui até a outra extremidade onde ela estava. Ajoelhando-me ao chão, bem à sua frente, falei: 
– Tenho que lhe contar um fato que não lhe contei hoje cedo. Não estou dizendo que essa é a solução, mas é o único caminho que consegui achar. 
Mordi os lábios e fiquei fitando-a nos olhos, esperando uma resposta – ou melhor, uma interrogação. Ela estava de cabeça baixa, com as mãos em posição de oração. Por fim, 
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levantou a cabeça e fitou-me meio desconfiada, como se soubesse que o que eu tinha a dizer não era boa coisa. Mediante aquela atitude – que só me passou mais insegurança ainda –, disse a ela: 
– Ontem, como a senhora disse, não lhe contei tudo o que houve comigo. 
Ela levantou as sobrancelhas e falou: 
– E ainda houve mais alguma coisa que você me deveria ter dito? Santo Deus! Deixe-me preparar o espírito – disse ela, recostando mais para trás. 
Eu, no entanto, estava aflita e ansiosa. Não sabia qual seria a reação dela, mas uma coisa era certa: eu tomaria as minhas próprias decisões. 
– Escute, mãe, é muito importante! Depois que eu e Eulália discutimos ontem, fui atrás dela nas pedras, tentando saber o motivo pelo qual ela andava tão nervosa e grosseira comigo. Não adiantou muito, pois discutimos mais ainda e só serviu para que sentíssemos mais mágoas uma da outra. Mediante o esforço inútil, saí e fui caminhar à beira da praia. Porém, resolvi parar e descansar. Então, sentei-me em frente ao mar e acho que acabei adormecendo... Não tenho certeza, acho que adormeci ou cochilei, não sei ao certo. O fato é que, ao abrir os olhos, deparei-me com uma senhora, ou melhor, uma velha cigana. Esta mulher disse-me que estava havia tempos me procurando e que me conhecia desde meu nascimento. A princípio, achei que era apenas uma velha louca, pois ela me disse que eu era a sua escolhida e que em breve tomaria o seu lugar. Contou-me coisas... Na hora, não atinei para os fatos, mas agora tudo o que ela me disse está fazendo sentido. Estou decidida a procurá-la. 
– Emanuelizia, você enlouqueceu? Você não conhece essa mulher! Ela pode ser a mulher que amaldiçoou a família de seu
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pai. Não posso permitir que cometa tamanha sandice. O que ela pode fazer por você? 
– Não creio que essa mulher seja a mesma que amaldiçoou a família de meu pai; ela deve estar morta há muito tempo. 
– Minha filha, raciocine um pouco. Não posso permitir que faça isso, é muito arriscado. E se essa mulher estiver compactuando com o demônio? E se isso tudo for uma armadilha? Filha, temos que pensar em todas as possibilidades. Dizem que as feiticeiras podem viver muitos anos, até mesmo séculos. Tem alguma coisa errada nessa história toda. 
– Mãe, sei que a senhora pode estar certa, mas não vejo outra saída. Acaso a senhora conseguiu pensar em alguma coisa? 
– Não, infelizmente não. Só que estou temendo por você, filha... Se alguém desconfiar que esteja compactuada com essa mulher e com a magia negra, você poderá sofrer sérias consequências. 
– Ninguém irá desconfiar, a menos que a senhora conte, é claro. Mãe, se não acharmos uma maneira de me livrar dessa maldição, estarei perdida. Desculpe-me, mas não vejo outra saída que não essa. 
Ela baixou a cabeça pesarosamente. 
– Faça o que achar que lhe seja melhor, mas que fique bem claro que não estou de acordo com você. E é melhor tomarmos cuidado com esse tipo de conversa: se seu pai descobrir, ele matará nós duas. 
– Não se preocupe, mãe, esse será o nosso segredo. 
Ela deu-me um beijo de boa noite na testa e saiu, retirando-se para o seu leito. Senti no seu silêncio que ela estava receosa. Respirei fundo e deitei-me, tentando adormecer, pois sabia que o dia seguinte seria longo. Amanheceu. Espreguicei-me na cama e levantei-me. Calcei as
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chinelas e fui abrir a janela para dar uma olhada naquela manhã, que parecia perfeita. Fiz minhas orações, deixando que as palavras saíssem ao vento. Queria comungar com o universo invisível. Depois, disse em voz alta: 
– Eleanor... Eleanor... Eleanor... Perdoe-me, fui ingrata. Preciso da sua ajuda, por favor. Estou implorando, preciso mesmo da sua ajuda. 
Pareceu-me não ter surtido efeito algum. Então, vir-me-ei para dentro e fui arrumar-me para o desjejum. De repente, uma fria brisa vinda do mar começou a soprar... Aquele frio gélido arrepiou todo o meu corpo já despido. Quando já estava quase totalmente vestida, minha mãe entrou ofegante pelo quarto, pedindo para eu me vestir rápido, pois parecia que estava vindo uma terrível tempestade e poderia se transformar em um furacão. Peguei meu xale e saí correndo para ajudá-los. Meu pai e meu irmão iriam avisar os demais pescadores, enquanto minha mãe e eu nos dividiríamos e avisaríamos a vizinhança. 
Foi uma correria. Confesso que nunca vi nada como aquela tempestade antes. Olhei para o céu: ele havia ficado da cor de terra, com nuvens espessas e negras que se juntavam às demais, fazendo parecer que algo ruim iria acontecer. Quando estávamos do lado de fora, na varanda, fiquei perplexa ao ver tamanha confusão. O vento forte havia jogado tudo de um lado a outro, e um verdadeiro caos estava se formando. Fiquei catatônica, imaginando como um dia tão lindo poderia, de uma hora para outra, transformar-se em um dia catastrófico como aquele... 
Quando dei por mim, meu pai e meu irmão já estavam bem longe e minha mãe seguia rumo ao leste. Eu, porém, estava meio perdida com meus pensamentos e confusões mentais. Naquele momento, meu xale foi arrancado de mim pelo vento forte e jogado na cerca de madeira da varanda. Corri para
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apanhá-lo e, sem querer, acabei olhando para cima. Foi quando vi sobre o telhado de minha casa algo nada convencional. 
Cheguei a cair de costas de tão assustada que fiquei: em cima do telhado estava a velha Eleanor, flutuando sobre as telhas. Porém, sua aparência era mais jovem e suas vestes eram de um linho fino, marrom e preto, com um xale de renda também preto – o que a fazia parecer ter asas de morcego. A visão era incrivelmente assustadora, mas me fascinou a maneira como ela flutuava. A mulher apontava com a mão esquerda para as cavernas, ao norte. Levei um susto com a minha mãe chamando-me. Então, vir-me-ei, levantando para atendê-la. 
– Emanuelizia, venha rápido! Preciso que venha comigo à casa dos Carriço. Vamos, menina, eles têm muitos filhos pequenos e vai dar trabalho juntá-los! 
Ao olhar meu semblante, disse: 
– O que há, menina? Está pálida como palha de milho! 
– A senhora não viu aquilo? 
– Aquilo o quê? 
– A bruxa! Ela estava em cima do nosso telhado, flutuando! Ela apontava para as cavernas, ao norte. 
– Não vi nada e acho que você deve esquecer essa bruxa. Pode ter tido um surto de pânico e isso lhe causou essa suposta visão. Se seu pai souber que estou falando com você sobre esses assuntos, poderá expulsar-me de casa. Agora me siga, temos muitos vizinhos que precisarão de nossa ajuda. 
Concordei com ela, pois ela parecia muito assustada com o suposto furacão que estava se formando. Mas, no exato momento em que estávamos saindo, paramos para observar algo ainda mais estranho: o vento havia parado de soprar e a tempestade parecia estar indo em direção ao oceano. Ficamos sem saber para aonde ir. Olhamo-nos e entendemos que aquela tempestade não era natural, mas sobrenatural. Meu irmão e meu
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pai estavam retornando, também assustadíssimos. Então, resolvemos esperá-los: quem sabe pudessem nos dar umas respostas para aquele fato inédito e sinistro? Ao se aproximarem, meu pai falou imediatamente: 
– Vocês viram essa tempestade? Parece que está indo para o mar! Ou melhor, é como se ela tivesse se transformado em um montinho de nuvens e agora está indo mar adentro! 
Apenas concordamos com a cabeça e ficamos todos juntos, olhando aquele fenômeno. De repente, como em um passe de mágica, a tempestade foi sugada para dentro do oceano. No mesmo instante, um céu límpido e cristalino abriu-se, como se nada tivesse acontecido. Nosso silêncio foi interrompido apenas pela voz do meu irmão, que disse: 
– Não sei quanto a vocês, mas acho melhor não falarmos disso a mais ninguém. 
Meu pai, além de concordar com a cabeça, ressaltou: 
– Mesmo porque poderão dizer que estamos possuídos por espíritos imundos. É melhor todos ficarmos quietos. Deixe que eu vá verificar no vilarejo se alguém soube do indício de alguma tempestade. Isso não foi uma coisa normal... Havia algo de malévolo naquela tempestade e, com certeza, isso foi obra de alguma bruxa. 
Minha mãe olhou-me nos olhos, como se pedisse socorro. Porém, achei melhor não dizer nada. 
– O senhor acha que pode ter sido causado por espíritos do mal, meu pai? – perguntou meu irmão, com os olhos arregalados. 
– Não sei o que foi. Mas, com certeza, pelos anos que tenho em alto-mar, sei que isso não é uma coisa normal. Nunca vi uma tempestade ser sugada para o meio do oceano, desaparecendo tão enigmaticamente.
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Minha mãe olhou para mim. Parecia estar tremendo, com medo de que meu pai desconfiasse de alguma coisa. Voltamos para casa em total silêncio. Ajudei minha mãe nos afazeres de casa e com o almoço. Naquele dia, nem meu pai nem meu irmão quiseram sair de casa. Pareciam receosos. Ficaram arrumando alguns objetos que precisavam de reparos. Almoçamos todos em total silêncio, mas confesso que estava ansiosa para ir à caverna. 
Assim que terminei o almoço, levantei-me da cadeira e saí às pressas, antes que minha mãe me pedisse para ajudá-la e meu pai me impedisse de sair. Corri o mais que pude até que já havia tomado certa distância de minha casa. Ninguém mais poderia me alcançar. No caminho, fui pensando mil coisas como, por exemplo, o porquê de aquela velha apontara-me as cavernas? 
As entradas das cavernas eram formadas por inúmeros recifes de corais. Eles formavam nas rochas pequenos laguinhos, onde muitos animais marinhos viviam. As pedras também eram escorregadias e muito perigosas, pois existiam muitos corais venenosos – se me ferissem, poderiam até me matar. Tirei os sapatos e as meias, deixando-os em uma pedra seca. Fiquei imaginando uma maneira de não me ferir. Até que, por fim, abaixei-me e fui deslizando sobre as pedras, pondo meus pés nas águas geladas. Era gostosa a sensação de liberdade que aquelas águas transmitiam-me. 
Parei para observar os pequenos animais que deslizavam por entre meus pés: peixinhos coloridos de toda espécie. Peguei uma estrela do mar minúscula e fiquei analisando em detalhes a perfeição daquele pequeno ser. Coloquei-a de volta nas águas. Os peixinhos coloridos que nadavam entre as minhas pernas faziam-me cócegas. Eu poderia ficar ali observando a natureza marítima por horas, mas precisava ser um pouco mais apressada. 
Depois de atravessar aquele pequeno mundo de laguinhos, musgos e minúsculas criaturas; alcancei, por fim, a areia. Andei
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por alguns minutos a mais até que, finalmente, cheguei às entradas das cavernas. Havia duas entradas, mas a minha intuição me disse para entrar pela abertura da esquerda. A caverna era enorme e estava coberta por estalagmites que faziam um contorno no chão, formando um labirinto. Ao passar em meio a elas, rasguei a bainha do meu vestido, mas não dei muita importância a isso. Fui seguindo as estalagmites até que cheguei a um enorme saguão de rochas, onde uma lagoa de espelhos d’águas havia se formado. No teto, pingavam gotas vindas de inúmeras estalactites, o que explicava aquela incrível lagoa de água cristalina. Algumas daquelas estalactites faziam formar no chão desenhos em forma de espirais, outros pareciam flores e animais. Formas distorcidas que aguçavam a minha imaginação, dando vazão à criatividade dos meus pensamentos jovens. Eu poderia viver ali para sempre se não fosse tão frio – pensei. 
De repente, uma forte luz atraiu minha atenção para o fundo da caverna. Ao seguir adiante, percebi que o lugar estava sendo habitado por alguém, pois estava cercado de tochas presas nas laterais das paredes. Fui seguindo as tochas até que, mais ao fundo, entrei em um enorme salão de rochas, onde havia um altar todo montado com estranhos símbolos. Um caldeirão estava aceso e um grande livro estava postado ao seu lado – objetos desconhecidos para mim até então. Comecei curiosamente a tocar em alguns deles. Peguei um athame de prata, cujo cabo era de ouro maciço, cravejado de pedras preciosas. Era esplendoroso o tal artefato. Nunca tinha visto nada igual! Depois, fui detalhadamente observando cada objeto que encontrei. Confesso que alguns além de desconhecidos, eram também sombrios. Estava tão distraída que levei um enorme susto quando uma mão gelada tocou-me os ombros, dizendo:
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– Vejo que a menina já está tomando gosto pela magia... Isso é bom! 
– Nossa, a senhora me assustou! Como foi que conseguiu trazer todos estes objetos para esta caverna? – perguntei ofegante, colocando a mão no peito. 
Ela sorriu, remexendo o caldeirão de cobre com uma colher de madeira enorme: 
– Estou aqui há muitos anos. Cada objeto aqui dentro foi trazido a seu tempo. Agora, responda: a que devo a honra de tão cedo tê-la me esperando? Pensei que somente amanhã iria vê-la, mas me enganei. Pelo que vejo, estou ficando velha mesmo. 
– Não tenho tanto tempo assim. Por isso, tive que vir o quanto antes. Achei que não se importaria, depois da aparição triunfal e quase catastrófica desta manhã... A propósito, como foi que fez aquilo? 
Ela me sorriu largamente: 
– Nem mesmo precisando da minha ajuda a menina deixa de ser arrogante, não é? A senhorita tem que aprender a ser mais humilde. Não sou sua escrava. E quanto à aparição, somente com o tempo você conseguirá fazer certas ilusões. 
– Desculpe-me, estou aqui porque realmente preciso da sua ajuda. Se lhe pareci arrogante, não foi minha intenção. Mas confesso-lhe que a sua aparição foi muito realista para uma mera ilusão. Não sei o que dizer. Se eu um dia chegar a esse nível, serei mesmo uma bruxa muito temida. 
– Vamos parar com rodeios e ir direto ao ponto crucial que lhe trouxe até aqui. E não me bajule, pois odeio esse tipo de coisa – disse ela, dando um sorrisinho faceiro e virando-se de costas, para remexer outra vez o caldeirão. 
– Preciso saber se a senhora vai me ajudar. Estou com um problema muito grande. Confesso que, pela primeira vez em minha vida, estou com medo.
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Ela, porém, virou-se para mim com uma calma, dessas causadas só por Deus, e disse, pegando-me pelo pulso: 
– Ele a procurou, não foi? E, pelo que vejo, deixou sua marca em você. Com certeza a menina está muito encrencada! 
– Como a senhora sabe da existência dele? E como sabe que ele me marcou se eu nem lhe contei os fatos ainda? Quem é a senhora, afinal? – perguntei, meio desconfiada. 
Ela deu uma gargalhada que ecoou por toda a caverna. 
– Sei todas as coisas que acontecem no mundo. Estou sempre atenta aos fatos e nada me passa despercebido. E é lógico que ele iria procurá-la, pois queremos a mesma pessoa. Eu a quero como discípula e ele a quer por toda a eternidade como sua companheira. Além do mais, não preciso ser uma bruxa para ver que ele deixou a sua marca no seu antebraço. Não sou cega, querida, e ser observadora é uma característica peculiar das bruxas. Estamos sempre atentas aos detalhes. Vá aprendendo para que não se engane, ou seja, para não ser pega de surpresa no meio do caminho. Quanto a quem sou, sou apenas uma velha bruxa cansada de viver por uma longa eternidade. Como disse, não gosto de rodeios e vou logo direto ao assunto: quando vi a marca em seu antebraço, vi que você era uma marcada e soube, então, que eu e a besta queríamos a mesma pessoa. Porém, é claro, temos propósitos diferentes em relação a você, como já citei. 
– Como a senhora sabe da existência dele e como sabe tanto sobre essa marca? Não me respondeu ainda! 
Ela deu outra sonora gargalhada. 
– A menina, pelo que vejo, tem muita curiosidade sobre o assunto. Mas não se preocupe: estarei aqui para lhe responder. Acredite: não estaria aqui hoje se não soubesse quem ele é e do que ele é capaz. E quanto a saber sobre a marca da besta, é simples: já vi essa marca no pulso de outra pessoa antes.
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– Quer dizer que a besta já marcou outra pessoa antes? E quem foi ela? 
Levantando a manga da túnica negra que vestia, ela mostrou: 
– Eu. Quando eu tinha a sua idade, a besta procurou-me também, só que por motivos bem diferentes do seu, creio. Ele disse que queria os meus poderes. Por isso, havia me escolhido como sua aliada e discípula. Claro que isso era somente um pretexto para que ele levasse a minha alma. A besta fez de tudo para me convencer: ofereceu-me ouro e prata e tudo o que eu pudesse desejar... Nunca cedi. Por isso, ele me marcou. É assim que ele faz quando não o aceitamos: ele nos marca para sabermos que ele é o soberano. É como se fosse um animal ou senhor de escravos que tem que marcar o seu território e suas mercadorias. 
– E como a senhora conseguiu se livrar dele? Como? 
– Não me livrei. Não é possível livrar-se dele com tanta facilidade. Muito tempo depois do nosso primeiro contato, ele voltou a me procurar e disse que eu não teria mais serventia para ele, pois já havia encontrado a mortal que o serviria por toda a eternidade. Mas disse que nos encontraríamos no inferno, pois eu havia trabalhado muito para isso. Sabe como é... não se pode ser perfeita o tempo todo! Pelo que vejo, teremos uma longa tarde, não é? – disse ela ironizando, mas parecendo curiosa em saber a minha história. 
Contei-lhe em pormenores exatamente como a minha mãe havia me contado. Ela não dizia nada – apenas ouvia e colocava fumo em seu cachimbo. Quando terminei tudo, dei um suspiro e fiquei fitando-a, esperando uma opinião. Na verdade, queria mesmo é que ela me oferecesse ajuda. Ela levantou-se calmamente, voltou ao caldeirão e provou o misterioso preparo.
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Depois de sorver aquele líquido, pegou duas tigelas e ofereceu uma delas a mim: 
– Tome este caldo. Está frio e, como disse, teremos uma longa tarde. 
Percebendo que eu havia ficado meio receosa, ela prosseguiu: 
– Se fosse veneno, eu também não iria tomar. Creio, minha criança, que lhe colocaram muitas crendices na cabeça sobre as bruxas. É somente um pouco disso e daquilo... nada demais. Experimente, vai gostar! 
Ela deu a gargalhada novamente. Sua ironia assustava-me. A velha ficou quieta, sorvendo o líquido e observando enquanto eu remexia o caldo de um lado a outro. Finalmente, respondeu- me: 
– Sinto lhe informar que seu caso é um caso perdido. 
– Isso significa que a senhora não irá me ajudar? Pensei que fosse uma bruxa poderosa, mas vejo que não sabe nada e terei que procurar outra pessoa, então. 
– Nunca disse que não a ajudaria, só lhe disse que o seu caso não tem solução. Você faz parte de uma maldição que não tem mais jeito de ser desfeita, pois a mulher que a lançou já está morta, eu mesma a conheci. Era uma mulher perversa, não media as consequências dos seus atos. Apaixonou-se loucamente por um homem que a humilhou publicamente. Mas ela não o esqueceu e amaldiçoou toda uma geração de primogênitas. Só não imaginei que a minha escolhida seria também a escolhida de satanás e parte dessa maldição tão maquiavélica. 
Ela deu de ombros e, depois de soltar outra de suas gargalhadas, respondeu: 
– O que está feito está feito, ora!
Adriana Matheus 
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– Então, se não tem jeito de desfazer a maldição, não vejo o porquê de continuar a visitar a senhora. 
– Arrogante como sempre! Posso não poder desfazer a maldição, mas posso lhe ensinar os poderes da magia para que possa defender-se das artimanhas da besta. Só quero preveni-la para que nunca cometa o mesmo erro da mulher que a amaldiçoou. 
– E qual foi? Apaixonar-se? 
– Não, isso é inevitável. Mas nunca deverá colocar um homem como o centro de sua vida. Deverá seguir a magia com respeito e coragem, pois é um caminho muito difícil. Não é um caminho para pessoas fracas e covardes. Os deuses da magia são ciumentos e melindrosos. Gostam de ser tratados com respeito e carinho. E saiba que não é só porque você vai se iniciar na magia que vai poder deixá-la de lado e usá-la apenas quando bem quiser. Não é assim que funciona. A magia exige muita leitura e prática constante. Agora, deixemos de conversa e vamos tomar um caldo. Afinal, bruxas não se alimentam de vento. 
Dizendo isso, foi se servir de mais caldo – que, embora muito cheiroso, pareceu-me bastante suspeito. 
– Desculpe, mas o que estamos tomando? – perguntei-lhe. 
Ela se virou para mim, colocou as mãos na cintura e respondeu-me, seriamente: 
– Ora, não sabe? Isto é caldo de sapo com orelhas de morcego e patinhas de lagartixa. 
Cuspi o que me estava à boca na hora. Ela quase rolou ao chão de tanto rir. 
– Criança tola, é disso que eu lhe falava: na magia, tem que apurar até mesmo seu paladar e olfato. Senão, como poderá diferenciar uma simples canja de galinha de um caldo de frutos do mar? E mais: deve aprender que bruxas não são seres
UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS 
A história de uma cortesã 
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mitológicos. Só comemos comida normal, não voamos em vassouras e não fazemos sacrifícios com animais e seres humanos. Praticamos a boa magia, mas temos ciência da magia negra, embora não a usemos quase nunca. Jamais usamos nossos poderes ou feitiços em benefício próprio, não usamos droga ou qualquer subterfúgio desse tipo em nossos rituais sagrados, e nunca praticamos orgias em nossos sabás. Entendeu? 
– Sim, entendi. 
– Espero que sim, sinceramente. Agora tome o seu caldo de frutos do mar e pare de imaginar coisas que nada têm a ver com a verdadeira prática da magia sagrada. 
– Gostaria de obter a receita. – tentei perguntar-lhe de maneira educada, ainda meio receosa com o caldo. 
Ela serenamente levantou-se e respondeu com aquela calma que só poderia vir de Deus: 
– Se vamos trabalhar juntas, é preciso que confie em mim. E o que é mais importante: que aprenda a apurar o seu paladar e o olfato. Caso contrário, teremos sérios problemas com seus preparos. E aprenda a ter um pouco mais de bom humor, pois, apesar de ser ainda jovem, está aparentando muito mais idade do que eu. 
– Desculpe-me, senhora, mas fica difícil entender o seu humor. Prometo que tentarei de agora em diante. 
Disse isso baixando a cabeça e tentando passar para ela o maior respeito possível. Não queria que ela se aborrecesse comigo, pois não seria bom para a nossa convivência. Ela, porém, olhou-me friamente, parecendo ter percebido quais eram as minhas reais intenções. Disse-me com um olhar matreiro: 
– Estou há muitos anos sobre a Terra e não admito que me testem. Não sou eu quem procura respostas, é você. Existem, talvez, duas possibilidades. A primeira é que você deverá perder sua virgindade somente por amor. A segunda é: nunca deverá,
Adriana Matheus 
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em hipótese alguma, chamar por ele. Jamais, enquanto você viver, deverá fazer acordo com a besta, mesmo que a sua vida dependa disso. 
– Somente isso? Então, pode confiar em mim: se depender dessas duas coisas, minha maldição foi quebrada a partir de hoje. 
– Criança tola! Ninguém é dono do destino e muito menos das próprias vontades. Acha mesmo que se Deus quiser, não te prova isso agora? Ele pode muito bem deixar que a besta aja em sua vida, pondo-lhe um falso amor e quando você perceber, já estará perdida. Deus pode mudar o seu destino quando Ele bem quiser, pois pertence somente a Ele. Você é uma jovem presunçosa se acha que pode controlar seus desejos carnais. As paixões mundanas da Terra fazem-nos tolas e cegas. Cuidado para não cair em uma dessas armadilhas do destino, minha querida. Continua teimando comigo, e o que é pior: achando-se capaz de lutar contra as vontades de Deus. 
– Se a senhora sabe mesmo todas as coisas, deve saber que acabei de perder meu grande amor e que nunca mais amarei outro homem sobre a Terra. Então, desta vez creio que a senhora está enganada. E nunca, em toda a minha vida, farei um pacto com a besta. Isso está totalmente fora de cogitação. 
Ela parou de fazer o que estava fazendo, colocou as mãos na cintura e disse: 
– É a pessoa mais arrogante e tola que já conheci! Nunca, em toda a minha existência carnal, conheci uma pessoa tão presunçosa como a senhorita. Você nunca amou verdadeiramente o seu noivo. Seu casamento iria ser por conveniências. Sua irmã, embora tenha agido de má fé, ela sim o ama. Se quer saber, creio que nunca saberá o que é o verdadeiro amor. Temo que sofra sérias punições por causa dessa sua maneira de achar que é a dona do seu destino e do dos outros.
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  • 3. Adriana Matheus 3 A Editora IXTLAN Apresenta... Adriana Matheus Um Olhar Vale Mais que Mil Palavras A história de uma cortesã
  • 4. Um olhar vale mais que mil palavras 4 Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive através de processos xerográficos, sem permissão expressa da autora. (Lei nº 5.988 14/12/73). Adriana Matheus amatheus07@hotmail.com Ano 2014 1ª Edição Projeto Gráfico e Impressão: Editora Ixtlan Revisão ortográfica: Pâmyla Serra www.re-visaodeaguia.com Edição de capa: Adriana Matheus Diagramação: Márcia Todeschini CIP. CIP. Brasil. Catalogação na Publicação. M427s - Matheus, Adriana, 1970. Um Olhar Vale Mais que Mil Palavras/ Adriana Matheus - Juiz de Fora - MG. p. : il. ISBN: 978-85-65588-01-0 Ficção brasileira. Contos. CDD: B869.2
  • 5. Adriana Matheus 5 UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã Adriana Matheus
  • 6. Um olhar vale mais que mil palavras 6 Sumário Capítulo I - A decepção...............................................09 Capítulo II - A iniciação...............................................52 Capítulo III - Do pacto à vingança.............................109
  • 7. Adriana Matheus 7 Prólogo: Ela foi massacrada por todos e pelo próprio destino, e tornou- se então a maior feiticeira da Espanha e também a rainha dos cabarés. Canta a lenda que bastava um olhar seu para colocar qualquer homem aos seus pés. Emanuelizia nunca conseguiu ficar com o seu único amor, mas também nunca desistiu de vingar-se dele e de todos os que lhe fizeram mal. Dizem que seu espírito ainda clama por vingança e que ela nunca reencarnará até que todos os culpados por sua degradação estejam debaixo de seus pés. Tudo o que acontece em nossas vidas não acontece por acaso, na verdade são fases... E essas fases têm que ser aproveitadas devidamente. Lembrem-se de que somos eternamente responsáveis por tudo o que praticamos e cativamos. Ninguém merece sofrer e pagar pelos atos impensados de terceiros que já passaram em nossas vidas, mas também temos que nos lembrar que eles vieram para nos ensinar que não existe nada e ninguém permanecerá conosco por toda a eternidade. Na vida tudo é passageiro e viver dignamente é um dos maiores atos de coragem, pois as tentações do mundanismo e da decadência são muitas e, aparentemente, facilitam a vida do ser humano o deixando futuramente em um completo tormento de solidão. Pensem nisso!
  • 8. UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã 8 Dedico esta obra ao povo cigano e sua cultura
  • 9. Adriana Matheus 9 I – A decepção brisa que vinha do oceano gelava os meus ossos naquela fria manhã de início de inverno, mas não me importava – estava muito ansiosa por encontrar meu noivo, Maxuel. Não via a hora de estar em seus braços. Maxuel era tão gentil! Ele fazia qualquer vontade minha. Era só eu pedir e ele buscaria a Lua se assim eu quisesse. Mas confesso que existiam alguns prós e contras em nossa relação... Caminhei por muito tempo pela praia. Precisava pôr meus pensamentos em ordem. O clima hostil que se formava dentro da minha casa estava a cada dia mais intolerável. As discussões entre meu pai e minha mãe na noite anterior tiraram- me o sono e a minha cabeça parecia ter bolhas de sabão. Meus olhos amanheceram inchados e ardendo, de tanto que chorei durante toda aquela madrugada. Tive também que me manter em estado de alerta por causa da minha irmã mais nova – que, naquela noite, teve outra séria indisposição. Meus pais pareciam não se preocupar conosco, pois estavam ocupadíssimos engalfinhando-se o tempo todo. Às vezes, ficavam até altas horas da madrugada discutindo – com isso, ninguém mais conseguia dormir na casa. O que mais me preocupava era a saúde de Eulália, minha irmã. Ela se tornava cada dia mais A
  • 10. UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã 10 debilitada e seu semblante era pálido e deprimido. Meus pais, porém, pareciam não dar importância a esse fato, que a cada dia ficava mais delicado. Por isso, a responsabilidade de cuidar da casa e dos meus irmãos caía sempre sobre as minhas costas. Não sabia ao certo o que minha irmã Eulália tivera naquela noite – talvez tivesse comido algum fruto do mar estragado... ou comido em excesso, o que estava sendo uma rotina em sua vida. Ela andava muito nervosa e descontava toda a ansiedade em guloseimas. Eram tantos os meus problemas que nem sabia por onde começar... Amava minha família. Eles eram tudo para mim. Vivi somente em função dos meus irmãos. Anulei a minha vida pessoal por causa de todos eles. Nunca imaginaria que um dia um deles fosse me trair. Eu e meus irmãos, quando crianças, éramos muito unidos, embora Eulália estivesse aparentemente revoltada nos últimos tempos. Meus pais não tinham tempo para nós, nunca foram afetuosos. Então, com isso, assumi a responsabilidade de mãe zelosa. Entendia a rebeldia de Eulália: provavelmente era por causa da idade ou resultado das brigas diárias que ela presenciava desde muito cedo. Com o passar do tempo, fizemos uma família à parte, separada de nossos pais. Eles não se separavam, não nos mandavam embora e tampouco demonstravam amor por nós. Quando éramos mais jovens, nossa única diversão era pegar conchinhas à beira da praia. Não tínhamos brinquedos, mas sinto saudades daquela época. Porém, durante todas as brincadeiras, Eulália sempre foi a mais ambiciosa e dizia que um dia iria ser rica e iria embora dali para bem longe. Tais palavras jogavam água fria nas minhas expectativas de ter uma família feliz e unida para sempre. Definitivamente, ela me preocupava mais que os outros. Meu irmão provavelmente seria um pescador como meu pai ou, por sorte, Maxuel arrumar-lhe-ia
  • 11. Adriana Matheus 11 um emprego na fábrica de sua família. E eu?! Só queria ter uma vida simples e ser feliz ao lado de Maxuel... Em meus planos, nunca descartei levar minha mãe e irmãos comigo – aonde quer que eu fosse, eles iriam. Não era que eu não amasse meu pai, mas vê-lo maltratando minha mãe me deixava arredia com ele. Ele era um homem muito rude e seco em demasia. Para ele, tudo tinha que ser a tempo e a hora. Caso contrário, apanhávamos muito. Por ser um pescador de pesca grande, ficava seis meses em terra, seis meses em alto-mar. Por isso, via-o como um estranho e evitava ao máximo contrariá-lo. A onda do mar tocou em meus pés naquele momento, fazendo-me abrir os olhos, despertando-me daquele quase transe cheio de preocupações e tormentas. Fitei o horizonte para ver aquela beleza de cenário à minha frente. O mar da Espanha era mesmo lindo, de um azul inigualável. Observei algumas conchinhas trazidas pelas ondas, o que ressaltou mais uma vez minhas lembranças nostálgicas. Baixei-me, pegando-as, para em seguida devolvê-las ao mar. As ondas logo as levaram para longe... Outra coisa que muito me fascinava era ver as ondas quebrando nas pedras. Elas passavam pelas pedras todos os dias, pacientemente – assim, com o passar do tempo, transformavam- nas em minúsculos grãozinhos de areia. Como algo tão sensível como a água poderia transformar algo tão bruto como as rochas? Isso era poético e de pura alquimia. “A natureza é perfeita”! – pensei comigo. Levantei-me e fiquei olhando ao longe os pescadores, que jogavam suas redes ao mar num esforço incansável. Eram dessas redes que aquelas pessoas simples tiravam o sustento de suas famílias. Era uma vida muito simples, sem muitas perspectivas. Mas, de certa forma, todos estavam felizes daquela maneira. Não deveria ser mudado o rumo daquela história. Afinal, quando tentamos mudar uma história, embutindo certos
  • 12. UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã 12 sonhos na cabeça das pessoas, elas podem perder a grandiosidade de serem como são. Ser simples não é ser conveniente – é ser poético e transparente! Para mim, só existiam duas coisas terríveis: o excesso de ignorância por teimosia ou o excesso de ambição. Pensamento estranho esse que tive naquele dia, principalmente vindo de uma jovem humilde como eu era. Voltei meus pensamentos para o meu noivo, que estava atrasadíssimo, para variar. Maxuel e eu nos conhecíamos desde crianças. Nossas famílias eram muito amigas. Embora minha família fosse de origem humilde, a de Maxuel nunca se importou com nossa condição financeira. Éramos o que se podia dizer o casal perfeito. Maxuel sempre me respeitou. Nunca fomos além. Aliás, ele nunca sequer tentou beijar-me: dizia que estava guardando o melhor para depois do casamento. Às vezes, eu sentia falta de algo mais, mas não podia manifestar meus desejos, pois tinha medo que Maxuel interpretasse mal minhas verdadeiras intenções. Fui criada de maneira muito rígida, embora fôssemos apenas uma família de pescadores de uma pequena aldeia de Valença, quase divisa de Portugal com a Espanha. Embora fôssemos espanhóis, viemos morar nessa pequena vila porque minha família dizia que ali a vida seria mais farta e tranquila. Eu amava minha pequena vila. Ela era maravilhosa e parecia ter saído de um conto de fadas. As casas eram posicionadas uma ao lado da outra, e a arquitetura era a mesma do outro lado da rua. Todo mundo se conhecia, todo mundo era amigo. Mentalizei, detalhando na minha mente a história da minha Espanha. De vez em quando, fazia isso para memorizar o que Maxuel me ensinava. Ah, a Espanha!... É cercada de histórias e mesclada de nomes místicos, condes, califas, cruzadas e reis, que se iniciam desde os princípios da
  • 13. Adriana Matheus 13 civilização e que chegam a adquirir contornos de ficção, com toques folclóricos e de romances... Houve, sim, diversos acontecimentos históricos que causaram a unificação da Espanha, mas eu estava tão preocupada com o atraso de Maxuel que, novamente, desviei meus pensamentos para a minha vida cotidiana. Estava confusa e meus pensamentos estavam em desordem. Minha cabeça pensava mil coisas ao mesmo tempo. Respirei profundamente, pensando “onde estaria Maxuel”?! Nossas famílias não só eram muito amigas, mas mantinham um laço consanguíneo. A irmã de minha mãe casou- se com um lorde inglês e ambos decidiram ajudar minha família. Minha tia Ellen batizou-me assim que nasci, fazendo a estranha promessa de casar-me com Maxuel quando eu completasse vinte anos. Meu primo, também meu noivo, é dois anos mais jovem que eu. Senhor Álvaro Merton, esposo de minha tia Ellen, era um homem muito elegante: nunca o ouvi exaltar a voz para ela. Os dois pareciam viver muito bem, embora também não fizessem demonstrações de carinhos em público. Maxuel não foi mimado. Seu pai, nesse ponto, teve pulso firme, fazendo-o assumir os negócios da família desde cedo. Ele seria, por certo, um bom esposo – claro, dentro das normas e tradições inglesas – , exceto pela pontualidade. Eu, propriamente, nada podia reclamar de Maxuel e muito menos da família de minha tia, que sempre estava fazendo algo por nós. Eles tentaram de tudo para nos ver crescer. Inclusive minha tia arrumou na fábrica de seu esposo um ótimo emprego para meu pai. Ele seria, então, o administrador encarregado da fábrica, mas teimosamente não aceitou, embora minha mãe tivesse feito de tudo para que ele deixasse a pesca. Papai era um homem muito simples e muito rude, e o mar era a sua vida. Não conseguiria, portanto, ver-se preso dentro de uma fábrica. Para ele, a liberdade era tudo. Mas nós, as mulheres da família, não podíamos ter esse privilégio. Se
  • 14. UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã 14 algo maculasse nossa reputação, seríamos expulsas de casa imediatamente. Sua presença dentro de casa era motivo de pânico, pois ele nos mantinha debaixo de seus olhos e de suas ordens constantes. Ou seja, ele era o dono e a nossa reputação tinha que ser acima de qualquer suspeita. Ele batia em minha mãe sempre que chegava alcoolizado em casa. Com isso, eu estava ansiosa para me casar com Maxuel. Queria ter minha própria família e parar de presenciar o horror em que vivia minha mãe – que, embora com todo aquele sofrimento, aceitava tudo o que meu pai fazia com ela. Ela baixava a cabeça com uma devoção desprezível. Ele era o Deus dela, a voz de comando em seu cérebro, o seu monarca, senhor e dono. Eu nunca havia visto nada tão estranho e doentio como a vida de minha mãe. Eu tinha dezenove anos e não era isso o que eu queria para mim. Minha irmã Eulália tinha quinze anos e também estava em busca de um pretendente para sair daquela vida miserável de amargura e prisão. Meu irmão Pietro era apenas um menino de treze anos, mas trabalhava como louco fazendo pequenos serviços à vizinhança para poder juntar o suficiente e ir embora de casa. Minha mãe estava amamentando minhas duas outras irmãs mais jovens, Maria de Lourdes e Maria da Consolação, que estavam apenas com seis meses de nascidas. Na verdade, não tínhamos muitas perspectivas de vida e, por isso, agarrávamo-nos à oportunidade de um casamento feliz e vantajoso. O Sol começava a despontar no horizonte. Era de um vermelho alaranjado e seus raios fundiam-se com as águas do mar. O cheiro da maresia sempre me pareceu tão familiar! Às vezes, tinha a sensação de sempre tê-lo conhecido. O mar e eu sempre estivemos ligados, não sei por quê. Ali, naquele exato momento, eu poderia jurar que escutava vozes vindas do fundo
  • 15. Adriana Matheus 15 do oceano. Talvez fossem das sereias. Havia tantas lendas sobre o mar! Quando era mais nova, imaginava-me sendo sequestrada por piratas que me levavam para bem longe. Sempre fui muito sonhadora e os corsários eram a minha fantasia favorita. Não sei por que, mas naquele momento abri meus braços e deixei que o vento me tocasse. Queria sentir aquela magia. As ondas agitavam-se e pareciam que iam crescendo cada vez mais. O mar tocou novamente meus pés; a areia úmida deslizava entre meus dedos. Eu adorava andar descalça – o que era o desespero de minha mãe. Mas, para mim, não tinha nada mais sublime do que sentir a terra, a areia e o chão que eu pisava. Não me dava ao luxo de me privar dessa liberdade. Meus cabelos soltos agitavam-se com o vento. Pude sentir meu xale cair ao chão. De repente, não sentia mais frio, e o mormaço daquele nascer de sol foi o suficiente para que meu corpo não quisesse mais nada além de... Alguém chegou por trás e tampou meus olhos com as mãos. Eram mãos macias, de gente que nunca havia pegado no pesado, e estavam cheirosas. Vir-me-ei lentamente e vi um jovem muito bem trajado. Seus olhos eram azuis como o céu e seus cabelos muito loiros. Abrindo um largo sorriso, disse-me: – Como está a minha querida prima nesta bela e fria manhã? Desculpe-me pelo atraso, minha linda flor. Tive uns compromissos inesperados. Sabe como são coisas de trabalho... Papai incumbiu-me de resolver alguns problemas com os nossos fornecedores. Não sei por que, mas aquele elogio não me soou tão sincero. Maxuel era sempre tão ponderado, tão frívolo em questões de elogios! Porém, respondi tentando não demonstrar que desconfiava que Maxuel tivesse outras mulheres além de mim – o que era normal, já que nunca tivemos nada intimamente.
  • 16. UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã 16 – Já aprendi a lidar com o seu atraso, meu querido primo. Para falar a verdade, já nem ouvia as desculpas que ele dava, pois eram sempre as mesmas. A família de Maxuel tinha uma indústria têxtil e exportava tecidos para outros países. Por certo, havia ficado preso com algum fornecedor. Tentei mudar os pensamentos, para não ficar como muitas mulheres, que vivem cobrando de seus noivos. Fiquei meio perdida em meus pensamentos. Foi preciso que Maxuel me tirasse daquele transe. – Emanuelizia! Onde estava, mocinha? Parecia estar desacordada do mundo! Há minutos estou a chamá-la. – chamou-me a voz, que parecia muito distante naquele momento. – Desculpe-me, meu querido Maxuel. Estava somente a pensar – senti uma lágrima rolar em minhas faces. Ele me abraçou e me interrogou, parecendo preocupado. – Posso saber em que pensa minha noiva? Saiba que sinto ciúmes. Dei-lhe um sorriso, respondendo em seguida: – Na vida. Nas coisas que já passei e nas coisas que presencio em minha casa. – Não quero que se aborreça com essas coisas. Logo estaremos casados e já lhe disse: poderá levar consigo a sua irmã. Assim, ficará despreocupada com o destino que ela poderá ter. Serei para Eulália como um irmão mais velho, você vai ver. Poderemos ajudá-la no que for necessário. Abracei-o imediatamente mediante aquelas palavras. Ele me empurrou e beijou-me as mãos. Senti minhas faces enrubescer diante daquela atitude tão fria vinda da parte dele. Mediante isso, fomos caminhar à beira-mar. Falei-lhe sobre muitas coisas, e logo acabei por esquecer aquela súbita insegurança, seguida de um teimoso ciúme. Maxuel era muito compreensivo e ficou a me ouvir por horas. Ele sempre tinha uma resposta para tudo. Dávamo-nos muito bem, pelo menos
  • 17. Adriana Matheus 17 era o que eu pensava! Fazíamos muitos planos juntos, e ajudar minha irmã Eulália era um deles. Pensávamos em colocá-la numa escola para moças para que tivesse boa educação. Na verdade essa ideia veio da parte de Maxuel, eu apenas acatei. Só aprendi a ler porque Maxuel tivera boa vontade e paciência comigo. Ele me ensinou tudo o que aprendera em uma faculdade da Inglaterra. Eu lhe era muito grata por tudo. Achava que o amor era simplesmente decorrente de uma amizade como a nossa. Talvez aquele sentimento fosse mesmo uma forma de amor. Eu estava feliz daquela forma. Afinal, não conhecia nada além daquela vila de pescadores à beira-mar. Caminhamos por horas um ao lado do outro. Perdemos a noção do tempo – já era quase meio-dia quando percebemos que tínhamos excedido no tempo. Quando resolvemos voltar para casa, Maxuel foi logo me prevenindo que não ficaria para almoçar, pois estava muito atrasado para o trabalho. Mal abrimos a porta de casa e já percebemos o clima hostil entre minha mãe e meu pai. Ele acabara de chegar da pesca e ainda estava todo sujo de isca. Minha mãe estava reclamando e pedindo para que ele fosse se lavar. Porém, papai dizia que ela fazia isso por ele ser um homem de origem humilde. Não aguentando ver aquela discussão, interferi, perguntando: – O que é que está acontecendo aqui? Será que os dois não conseguem viver sem um ter que afrontar o outro? Meu pai olhou-me furioso. Mal cumprimentou Maxuel com um aceno de cabeça e saiu batendo a porta. Eulália estava chorando, com as mãos nos ouvidos. Meu irmão não estava em casa, devia estar sentado à beira-mar, olhando para o tempo. Fui à cozinha atrás de minha mãe, para tentar ver o que eu podia fazer. Ela estava andando de um lado para o outro, com as gêmeas no colo, que estavam em prantos. Tomei as meninas do
  • 18. UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã 18 colo de minha mãe e levei-as para o quarto, fazendo-as adormecer em seguida. Quando voltei à sala, vi uma cena que não era normal. Maxuel estava abraçado a Eulália e, ao me verem, ambos tiveram uma reação adversa. Mediante aquela situação, imediatamente indaguei-lhes: – O que é que está havendo aqui? – Sua irmã estava inconsolável e eu estava tentando acalmá-la. – respondeu ele, assustado, afastando-se abruptamente de Eulália. Porém, minha irmã respondeu-me em tom de ironia – o que me deixou ainda mais intrigada. – Não precisa ficar com ciúmes, Emanuelizia. O noivo ainda é seu. – dizendo isso, Eulália saiu exasperada da sala. Olhei para Maxuel, procurando uma resposta plausível, interrogando-o: – O que ela quis dizer com isso, Maxuel? Existe algo entre vocês? – Não imagine coisas. Sua cabeça está confusa e já está com problemas demais para criar mais um agora. Ele me deu um beijo na testa, como de costume, e saiu, deixando-me parada no meio da sala vazia. Fui ao quarto onde minha irmã estava em prantos. Vendo aquela cena desmedida, perguntei-lhe: – O que é que está havendo, Eulália? Ela virou-se para mim, abruptamente, e respondeu-me: – O que é que está havendo? Ora, minha irmã! Você parece que vive em outra dimensão! Nossos pais engalfinham-se o tempo todo, vivemos nesta miséria, e você ainda vem me perguntar o que é que está havendo?! Como você pode ficar tranquila e aceitar essa vida que levamos? Vivemos como animais esquecidos do resto da sociedade!
  • 19. Adriana Matheus 19 – Não diga uma coisa dessas, Eulália! Você acha que não me preocupo com toda essa situação? Lógico que sim. Mas o que quer que eu faça? Quer que eu mate nossos pais? – Seria mesmo melhor que eles estivessem mortos, ou melhor, que eu nunca tivesse nascido. – Pare de falar bobagens! Meu Deus, as coisas vão se arranjar. Quando eu me casar com Maxuel, poderei ajudá-la, vai ver. – Quando você se casar com Maxuel... Você não pensa em outra coisa não, é? Acha que tenho tempo para esperar que você se case ou mude de vida para que a minha vida tome um rumo? Você é uma egoísta e uma tola, se acha mesmo que quero viver de suas migalhas. Por que você acha que tem que ser mais afortunada do que eu? Por que não deram a mim ao invés de você em casamento para Maxuel? Isso não é justo! Você sempre tem as melhores roupas, enquanto tenho que ficar com as que não lhe servem mais. Tudo para você é mais fácil do que para mim. E você nem ama Maxuel. – Meu Deus, minha irmã, pare com isso! Como pode dizer uma sandice dessas? É claro que amo Maxuel! Senão, não aceitaria casar-me com ele. E o jeito como você se expressa... Parece que você me odeia e sente inveja de mim. Não tenho culpa se nossos pais nos uniram em uma promessa ainda quando éramos crianças. Também não entendo o porquê dessa união prematura. Mas se esse é o meu destino, já que nossos pais assim o escolheram, eu o aceito. – Eu? Com inveja de você? Ora, Emanuelizia, você é mesmo muito ingênua! Embora seja mais velha, não tem nenhuma percepção da vida. Sou muito melhor do que você em tudo, e vou provar-lhe isso. Fique sabendo que não vou ficar com suas migalhas. Mereço ter tudo do bom e do melhor. Sabe por quê? Porque sou mais esperta que você e sei agarrar as
  • 20. UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã 20 oportunidades quando vejo uma. E quanto ao seu destino, aproveite-o enquanto ainda pode. Dizendo essas palavras tão rudes e tão duras de ouvir, ela saiu batendo a porta do quarto atrás de si, sem nada mais a dizer. Joguei-me em uma poltrona e coloquei as mãos no rosto. Respirei profundamente e fiquei me interrogando o porquê de Eulália ter tanta raiva de mim. Era injusto o que ela me disse. Logo comigo, que sempre lhe fui tão dedicada! Fui para a cozinha ajudar minha mãe a limpar o peixe para o almoço. Eulália havia ido caminhar à beira-mar. Ela sempre fazia isso depois que discutíamos. Minha mãe estava taciturna e mal dirigiu a palavra a mim. Ficamos ajeitando as coisas na cozinha em total silêncio. No fundo, eu a compreendia. Sabia que aquele silêncio, embora sufocante, era a forma que ela encontrara para meditar e colocar seus pensamentos atordoados em ordem. Estava de costas pondo a mesa para o almoço, mas percebi quando meu pai entrou batendo a porta. Ele tirou o chapéu da cabeça e cumprimentou-me, perguntando: – Onde está sua mãe? – Na cozinha, terminando o almoço. Ele parecia ir em direção à cozinha. Mas, percebendo aquela atitude que poderia não acabar bem, interrompi, dizendo: – Pai, por favor, por hoje acho que já foi suficiente. Deixe a mamãe em paz. Ela precisa ficar um pouco sozinha. Ele, porém, saiu resmungando alguma coisa, confirmando em atitudes que ia mesmo à cozinha somente para colocar mais lenha naquela discussão constante e que começara cedo naquele dia. Respirei fundo e tranquilizei os ânimos quando ouvi a porta do quarto dos meus pais batendo – assim, pude ter certeza de que papai não voltaria mais à cozinha. Eu estava de costas, mas percebi quando meu irmão entrou em
  • 21. Adriana Matheus 21 seguida. Logo ao ver-me, ele perguntou se papai estava em casa. Vir-me-ei lentamente e respondi-lhe: – Sim, mas o aconselho a não incomodá-lo agora, pois parecia bem nervoso quando chegou. – Eu não ia falar com ele. Na verdade, queria que ele ficasse por lá para o resto da vida. Odeio a vida que levamos e preferiria não ter nascido, pois já não aguento mais ter que vê-lo brigando com a mamãe. Percebendo aquele tom de revolta e desapontamento em sua voz, deixei a mesa de lado e fui abraçá-lo. – Não diga isso, meu irmão. Sempre estarei aqui para defendê-los. E pense bem: o que seria de minha vida sem você? Ele me olhou e, com os olhos cheios de lágrimas, deu- me um beijo na face, retirando-se para o seu quarto em seguida. Fiquei ali em pé, sentindo-me impotente, sem saber como agir mediante aquelas circunstâncias. Naquele momento, Eulália entrou afoita e toda faceira, interrompendo meus pensamentos. Confesso que a minha curiosidade ao vê-la tão desaforada foi maior e mais forte. Fiquei ansiosa para perguntar o que tinha acontecido de bom, para que ela entrasse daquele jeito na casa. Terminei de pôr a mesa e corri para o nosso quarto para interrogá-la. Mal abri a porta e fui lhe perguntando, depois de vê-la rodopiando como uma mariposa pelo quarto: – Posso saber o que aconteceu de tão esplendoroso que fez com que a senhorita ficasse assim tão radiante? – Acha que lhe contaria sabendo que você morre de inveja de mim? Se depender de mim, irá morrer de curiosidade, minha irmã, pois nunca lhe direi. Nem mesmo que caia um raio sobre minha cabeça, não lhe direi uma só palavra. Por mim, quero que morra. – Meu Deus, Eulália, por que me odeia desse jeito? O que foi que lhe fiz?
  • 22. UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã 22 – O que foi que você me fez? Quer mesmo saber, minha irmã? Vou lhe repetir então, você é a mais velha e tudo, como lhe disse, sempre lhe foi dado como preferência, enquanto tenho que ficar com as suas sobras. Mas garanto que as coisas irão mudar em breve, você verá. – Eulália, está sendo injusta comigo. Nunca a deixei ficar com minhas sobras. Sempre dividi tudo o que ganho e que tenho com você, sabe muito bem disso. – Pois saiba que não quero dividir mais nada com você. Quero o que é meu por direito. Acha que não percebo como a mamãe trata você melhor do eu somente porque é mais bonita? Pois vou provar a todos nesta casa que posso ser muito melhor do que me julgam. – Pare imediatamente com isso, Eulália! Você também é muito bonita, e não tenho culpa de ter sido dada em casamento a Maxuel. Já lhe disse que não entendo o motivo de nossas famílias nos terem unido. – Não entende e aceita porque lhe é conveniente, não é mesmo? Você é uma sonsa. Você não o ama, nunca o amou verdadeiramente. Só está noiva dele por puro egoísmo ou ambição. Você é má, Emanuelizia, e fará Maxuel sofrer. Você não o merece. Eu, sim, sou quem teria que casar com Maxuel. Eu seria a esposa perfeita para ele. Mas em breve isso irá mudar... Passarei a ser o centro das atenções desta casa. Aquelas palavras deram-me calafrio. Então, peguei-a pelos braços e perguntei-lhe: – O que é que você está aprontando? Quer que a mamãe morra de desgosto? Saiba que se está se envolvendo com algum homem comprometido, deve me contar imediatamente. Você ainda é uma menina. Quero que saiba que os homens só pegam jovenzinhas pobres como nós para se aproveitar e depois descartam, como uma folha de papel sem o menor valor. Meu
  • 23. Adriana Matheus 23 Deus, Eulália, o que você anda aprontando? Está se comportando levianamente. Não consigo acreditar; como pode? Quem é este homem que está lhe virando os pensamentos? Tem que me dizer agora, pois irei amanhã mesmo encontrá-lo junto com Maxuel e o farei responder pelo que anda fazendo com você! – Você é mesmo muito tola, Emanuelizia. Não consegue perceber nem mesmo o que está na frente do seu nariz. Ela me olhava desafiadoramente. Porém, minha mãe entrou e, percebendo que havia algo estranho conosco, perguntou: – O que está acontecendo aqui? Não me basta o seu pai, agora tenho que ficar apaziguando as rixas entre duas irmãs? Estão parecendo animais! Não estão agindo civilizadamente mais. – Não estamos parecendo animais, mãe, somos animais. Caso a senhora não tenha percebido, levamos uma vida miserável, moramos em um chiqueiro, comemos lavagem, vivemos de restos como os cães e ainda temos que conviver com um homem rude que trata a minha mãe como um cachorro. Saiba que se isso não for vida de animal, nada mais será. Odeio esta vida, odeio vocês todos. – dizendo isso, Eulália saiu, batendo a porta. – Meu Deus do céu, Emanuelizia, o que deu nessa menina? – Ainda não sei, mãe, mas prometo que vou descobrir. Agora vamos almoçar, antes que o papai fique nervoso com o nosso atraso. – Sim, vamos. Minha mãe acompanhou-me, torcendo as mãos no avental. Ela parecia estar sem rumo e apreensiva com a atitude e as palavras de Eulália. Eu também estava. Mas uma coisa era
  • 24. UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã 24 certa: eu pretendia descobrir o que ou quem estava desviando minha irmã para que ela ficasse tão mudada com a família. Por certo, deveria ser algum homem inescrupuloso e malicioso que ao perceber que Eulália era uma jovem bonita, ingênua e ambiciosa, estava manipulando-a de alguma forma. Quando chegamos à sala, Eulália já estava sentada à mesa ao lado de Pietro. Meu pai apenas nos olhou com ar de desaprovação pelo nosso atraso. Fizemos as orações, como de costume, mas durante o almoço todos comemos em silêncio. Mal trocamos uma ou duas palavras uns com os outros, para evitar que meu pai se aborrecesse e acabasse com aquele raro e único momento em que a família se reunia. Eulália saiu rapidamente da mesa, interrompendo o silêncio. Meu pai pediu para que eu fosse ver o que estava acontecendo com ela. Quando cheguei ao nosso quarto, deparei-me com minha irmã debruçada à janela, vomitando. Tentei sondar, indagando-a. Ela, porém, depois de enxugar as lágrimas, respondeu-me: – Não vê que sou muito doente e toda vez que fico contrariada meu estômago dói? E a culpada disso sempre é você. Dizendo isso outra vez, ela saiu do recinto, deixando-me a ver navios. Eu ainda estava no meio do quarto, sem saber o que fazer em relação a ela, quando minha mãe entrou, querendo saber o que aconteceu. Porém, respondi-lhe: – Sei tanto quanto a senhora, mas confesso que estou a cada instante ficando mais preocupada. Minha mãe saiu para ajeitar as coisas e tentar verificar o que estava acontecendo. Peguei uma vassoura e fui ajeitar o quarto, tentando tirar Eulália dos meus pensamentos. Acabei sentindo-me culpada pelo estado de saúde da minha irmã ter piorado. Estava decidida a conversar com Maxuel e antecipar nosso casamento, pois queria a qualquer custo tirar Eulália
  • 25. Adriana Matheus 25 daquela vida de sacrifícios e dificuldades. Continuei a fazer meus afazeres quando percebi que havia uma caixa de chapéus debaixo da cama de minha irmã. Pelo formato e pela embalagem, era uma caixa de uma loja muito cara. Eu saiba que estava errada, mas precisava saber o que tinha naquela caixa. Ao abri-la, fiquei extasiada, pois dentro da caixa havia diversos bilhetes de amor não assinados, e também uma caixinha com uma joia muito cara. Sentei-me no chão e coloquei a mão na boca, pois percebi que as minhas suspeitas estavam corretas. Embora tenha desconfiado e achado aquela letra bastante familiar, não atinei para a realidade dos fatos, pois no fundo eu queria acreditar que Eulália estava mesmo sendo seduzida por algum crápula que, por certo, estava iludindo sua cabeça confusa e ingênua. Ajeitei tudo para que ela não percebesse que eu havia descoberto o seu segredo. Terminei com a arrumação e saí para tentar achar Eulália. Ela estava no rochedo, à beira-mar. Cheguei por trás dela e disse: – Sei o que você está fazendo. Ela se virou e perdi as forças, pois seus olhos eram puras lágrimas. Tentei fazer-me de rogada, pois não poderia deixar que Eulália percebesse minha fraqueza. Caso contrário, ela se tornaria agressiva comigo e acabaria por me deixar falando sozinha novamente. – Não lhe devo satisfações de minha vida. Solte-me e deixe-me em paz. – Não irá adiantar maltratar-me de novo, Eulália. Está usando dessa arrogância e presunção como uma autodefesa. Gritar e espernear é sinal de fraqueza e saiba que não vou me calar diante de mais uma de suas crises de rebeldia. Descobri seus planos: está pensando em fugir com o seu amante. E como acha que ficará sua vida caso isso aconteça? O que será de
  • 26. UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã 26 mamãe? Papai irá espancá-la, e sabe Deus o que mais pode ocorrer após essa sua atitude leviana e impensada. – Você não sabe nada de mim e mesmo tendo mexido em minhas coisas, nada me fará dizer uma palavra. – Você não percebe, criança tola? Este homem está usando-a, mais nada. Responda-me apenas uma coisa: ele é comprometido ou não? – Sim, ele é. Mas ela não o merece e ele irá largá-la para ficar comigo em breve. – E você ainda diz que sou ingênua? Ora, minha irmã, este homem só está brincando com você e com seus sentimentos. Ele nunca vai largar a mulher dele ou a família para ficar com você. Meu Deus, minha irmã, pare com isso! Pense um pouco: você vai ficar mal falada e nunca conseguirá arrumar um casamento. E se papai descobrir, irá colocá-la para fora de casa. – Sei que é isso o que você deseja para mim. Mas antes que isso aconteça, fugiremos para bem longe e seremos muito felizes. Segurei-a pelos braços com força e disse-lhe: – Você tem que me dizer quem é este crápula. – Você é mesmo uma tola, se acha que lhe direi alguma coisa. Mas não se preocupe: em breve matarei a sua curiosidade. – Não estou curiosa. Estou preocupada com você. – Quer um conselho, minha irmã? Preocupe-se com você mesma. E mais: aprenda a prestar mais atenção nos detalhes, antes que tenha que chorar lágrimas de sangue. – O que você quer dizer com isso? – falei, apertando-lhe mais fortemente os braços. Fitei-a e prossegui: – Já estou cheia de suas insinuações. Você vive insinuando alguma coisa. Acaso acha que a vida é um jogo e
  • 27. Adriana Matheus 27 que com essa atitude de meretriz que está tendo, de se envolver com um homem comprometido, terei inveja de você? Acha mesmo que tenho a intenção de disputar alguém ou alguma coisa com você ou com quem quer que seja? Tudo o que sempre quis foi saber que poderia no futuro ajudar a minha família, nada mais. Só quero poder dar-lhe um futuro melhor, com uma vida segura e promissora, diferente desta que levamos. Mas o seu egoísmo é tamanho que você só consegue ver o seu próprio umbigo. Não vou mais interferir em sua vida, e isso é uma promessa. Mas quero que saiba que se um dia você se sentir em perigo e quiser minha ajuda, sempre estarei por aqui. Soltei-a e fui caminhando em direção à nossa casa. Escutei-a gritando atrás de mim. – Nunca precisarei da sua ajuda. Você é quem vai implorar pelo meu auxílio. Não me importei com aquelas palavras – para mim, não passaram de insanidades da cabeça de uma jovem revoltada com a vida que tinha. Naquela tarde, resolvi não voltar diretamente para casa. Fui caminhar à beira-mar. O mar havia ficado agitado. Era como se algo estivesse para acontecer. O vento que vinha de terras longínquas parecia querer avisar-me sobre alguma coisa. Tudo naquela tarde estava diferente. Agachei-me, ficando de cócoras, quase que encolhida pelo frio que vinha do mar e também pelas águas geladas, que de vez em quando a maré jogava em meus pés descalços. Olhando as ondas revoltas, comecei a distrair meus pensamentos, nem me dando conta de que as horas passavam. O mar tem esse estranho poder entorpecente. Ele nos faz esquecer todos os problemas e tudo ao nosso redor. E assim fiquei por horas a fio, olhando o horizonte. As vozes começaram a falar ao meu ouvido e eu as confundia com os chiados das ondas do mar. Comecei a sorrir comigo mesma, pois algumas daquelas vozes pareciam estar discutindo
  • 28. UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã 28 por algum problema corriqueiro. Eu achava que as vozes eram coisas da minha cabeça. Achava até que eram os meus próprios pensamentos que estavam em desordem emocional, devido aos tantos problemas que estava passando. Assim fiquei, inerte, naquele mundo desconhecido, absorta em meus próprios pensamentos ou no que eu imaginava que fossem meus pensamentos! De repente, um sono estranho tomou conta de mim e acabei cochilando. Despertei com uma voz feminina rouca e baixa chamando-me. Olhei para cima e vi uma senhora com roupas de cigana. Assustei-me com a visão, mas olhei-a fixamente. Ela me deu um largo sorriso e disse-me: – Assustou-se comigo, minha filha? Sou feia e velha, mas não faço mal algum. – deu uma gargalhada que ecoou por toda a praia. Naquele momento, pareceu que não ventava e foi como se toda a terra tivesse parado. Arregalei os olhos e disse, tentando disfarçar o meu medo: – Não, imagina, não me assusto tão fácil assim! – Mentirinha! Não seja hipócrita: odeio hipocrisias. – falou aquelas palavras, usando um tom de voz sério, o que me deixou ainda mais assustada. A mulher parecia uma bruxa vinda de um conto de terror. Olhou-me nos olhos e estendeu-me as mãos, dizendo: – Venha, vamos caminhar comigo. Creio que tenho algumas respostas para lhe dar e também uma proposta a lhe fazer. Embora assustada, estendi a mão àquela mulher e levantei, acompanhado-a em seguida. Caminhamos em silêncio alguns minutos até que, por fim, ela resolveu falar: – Tenho acompanhado a senhorita desde o berço.
  • 29. Adriana Matheus 29 Admirada com aquela revelação, eu já ia perguntar-lhe como ela me conhecia, sendo que eu nunca a havia visto. Mas ela, percebendo minha intenção, pediu para que eu a deixasse prosseguir: – Sim, eu a conheço desde o ventre de sua madre, niña. – carregou no romani, dando novamente aquela gargalhada sinistra. Prosseguiu com o assunto, que a cada instante mais me intrigava: – A cada cem anos uma de nós, do clã secreto das serpentes, escolhe uma discípula a quem passa os ensinamentos e os poderes. Podendo, assim, descansar o aparelho, partindo para o descanso eterno. Durante anos procurei, no meio de todos os mortais, uma que me fosse perfeita, assim como você. Agora que atingiu a maior idade, poderei resgatá-la e transferir-lhe os meus poderes. – Não estou entendendo, senhora! Resgatar-me? Como assim? De que poderes a senhora está falando? Saiba que, se está brincando, a única coisa que está conseguindo é me assustar. – Prefiro não entrar em detalhes agora, mas lhe prometo que em breve saberá. Agora preciso apenas saber se a senhorita aceita os poderes que quero lhe transferir. – Desculpe-me a sinceridade, mas acho que a senhora não está muito bem. Creio que está em devaneios. Agora, se não se importa, preciso ir embora. Aceite o meu conselho, senhora: vá para casa e não fique a andar sozinha por aí. E também lhe peço que pare com essas histórias insanas, pois se alguém além de mim a ouvir, acabarão confundindo-a com uma louca, ou o que é pior: com uma feiticeira. A velha senhora olhou para mim pacientemente, respondendo-me:
  • 30. UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã 30 – Entendo que esteja confusa, mas preste bem atenção: quando a senhorita mais precisar de mim, é só chamar-me que irei ao seu encontro. Onde quer que esteja, lá estarei. – Desculpe-me, senhora, preciso voltar para casa. Senhora, por favor, não me interprete mal, mas não tenho o menor interesse em participar de nenhum ritual de magia, se é o que a senhora está tentando me dizer. Sou católica e temente a Deus e nunca mudarei minha religião. Saí andando, não querendo prestar atenção naquela velha louca. Onde já se viu?! Que conversa mais estranha! – pensei. Porém, a velha, percebendo que me distanciava rapidamente, gritou: – A senhorita está sendo orgulhosa e presunçosa em achar-se a dona de todas as verdades. Saiba que, neste momento, está sendo traída dentro da sua própria casa. Curiosa como sempre fui, voltei-me para trás imediatamente e perguntei-lhe: – O que a senhora está querendo insinuar? Traída por quem? Está louca, senhora? Vá para casa. Não é bom que ande por aí sozinha. É uma velha louca, não passa disso. Saí andando sem olhar para trás, mas senti seus olhos fitando-me pelas costas. Não satisfeita, ela continuou a gritar: – Sim, sou velha sim, mas não sou louca. Saiba que todas envelhecemos, umas mais que as outras, devido ao tempo de existência terrena. Irá se arrepender por causa da sua arrogância e mau uso das palavras comigo. E nesse dia estarei esperando a senhorita vir atrás de mim a implorar-me por socorro. Dizendo isso, a velha ficou estática no lugar onde havia parado de me seguir. Apenas repetiu: – É só chamar pelo meu nome que virei a seu socorro. Mas, até lá, que o tempo seja o seu mestre.
  • 31. Adriana Matheus 31 Eu havia andado uns dez passos, mas resolvi olhar para trás para vê-la olhando-me pelas costas. Assustei-me de imediato ao perceber que a velha não estava mais atrás de mim, observando-me como eu supunha. Olhei ao redor, mas só havia a areia, os coqueiros e o mar, nada mais. E como eu poderia achá-la, se ela nem ao menos me disse o seu nome? Balancei a cabeça, rindo, achando se tratar mesmo de uma senhora confusa com histórias fantasiosas. De repente, o vento soprou o nome da velha ao meu ouvido. Eleanor... Arrepiei-me dos pés à cabeça e corri em disparada em direção à minha casa, pois, naquele momento, acreditei que a velha fosse um fantasma. Ao chegar a casa, deparei-me com uma cena nada convencional que me deixou ainda mais apreensiva: o médico da família já estava saindo à porta. Tentei interrogá-lo. Porém, ele sacudiu a cabeça, dizendo-me que era assunto de família. Ao entrar, para meu espanto, dentro da minha casa encontravam-se, além dos membros convencionais da minha família, minha tia aos prantos, meu tio e o vigário local. Cumprimentei os visitantes e segui em direção à minha mãe, abraçada à minha irmã, que parecia estar passando muito mal. Como sabia que Eulália não me contaria, indaguei minha mãe. Ela, porém, com um olhar de súplica, olhou para meus tios, que baixaram os olhos. Ela, então, olhou para meu pai, que respondeu em seguida: – A filha é sua; conte logo a ela, mulher! Mamãe, não conseguindo falar, caiu em prantos. Tentei ampará-la para que não caísse ao chão. Meu irmão, porém, percebendo o que ia acontecer, tomou-a nos braços, entregando- a a minha tia Ellen, que parecia envergonhada com a situação. Porém, não dizia uma só palavra e permanecia de olhos baixos na minha presença. Irritada com aquela situação, exasperei-me,
  • 32. UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã 32 perguntando em voz alta e batendo os pés ao chão. Todos me olharam, mas foi meu irmão que me pegou pelo cotovelo e levou-me para a cozinha. Ao chegar à cozinha, ele deu um longo suspiro e prosseguiu, falando: – Sente-se, minha irmã, eu lhe contarei tudo. Sei que não será nada fácil para você, mas lhe contarei tudo. Só peço que se mantenha calma. O problema é com Eulália. – Isso já sabia, mas o que há com nossa irmã de grave que até o padre foi chamado aqui? – Ela está grávida. Um homem lhe fez mal. E o pior é que este homem é comprometido, o que agrava mais ainda a situação dela. – Meu Deus, só não tinha certeza da gravidez, mas sabia que Eulália estava se envolvendo com um homem casado. Isso para mim já era um fato. Coloquei as mãos na boca e depois falei, novamente: – Papai deve estar possesso com essa situação. Pobre Eulália, o que será dela? – Santo Deus, minha irmã, você ainda não entendeu? Ou você é muito ingênua ou está se fazendo de ingênua para não ver a realidade que está à sua frente. – na verdade Pietro estava certo, eu não queria mesmo saber da verdade. Porque sabia que ela seria muito dura para mim. Dei um longo suspiro me fazendo de rogada respondendo em seguida: – Sim, entendi, logicamente que sim. Eulália está em apuros e não é por causa das nossas desavenças que a abandonarei. Nunca a deixarei, e muito menos permitirei que nosso pai a expulse de casa. Ela é só uma menina! Preciso ir agora mesmo para a sala e tentar ajudá-la, mostrando-a que estou do lado dela. Quando eu já estava saindo, Pietro falou:
  • 33. Adriana Matheus 33 – Ainda não percebeu? O homem que fez mal à nossa irmã é Maxuel. Como pode estar preocupada com a situação de nossa irmã se tudo o que ela fez até agora foi apunhalá-la pelas costas? Ela a traiu, minha irmã, tomou seu noivo. E Maxuel, este sim, é um crápula dos grandes, porque sabia que ela é sua irmã querida. Ao ouvir aquelas palavras, voltei para trás e deixei o corpo cair sobre a cadeira que estava no meio da cozinha. Pietro continuava falando e falando, mas eu não ouvia as palavras que saíam de sua boca. Minhas mãos pareciam estar dormentes e tudo começou a rodar à minha volta. Comecei a pensar no quanto fui ingênua em acreditar que Maxuel me amava. Vi meus sonhos e meus planos desfeitos, escorrendo por água abaixo. Fiquei me perguntando quanto tempo perdi com aquele noivado de mentiras e traições. Por certo, todos sabiam, menos eu. Senti- me uma tola. – Sou uma estúpida! – saíram em voz alta aquelas palavras de revolta – Vocês todos sabiam disso, não é, Pietro? – Não. Não sabia; talvez mamãe soubesse. Estou tão confuso e indignado quanto você, acredite. – Não, acredite: ninguém está tão indignada quanto eu, ninguém está tão machucada quanto estou! Fui traída pela minha própria família. Como você acha que estou me sentindo? – Imagino como está se sentindo. _ Não, meu caro irmão, você não conseguiria imaginar como estou me sentindo. – E o que pretende fazer? Creio que lá fora estão todos com as mãos atadas. – Pelo visto deixaram a batata quente para eu segurar. Acredite: farei o que for correto, como sempre. Não é isso que sempre esperam de mim?
  • 34. UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã 34 Meu irmão baixou a cabeça e nada mais disse. Em seguida, saímos da cozinha, em total silêncio. Na sala, estavam todos murmurando e o casal de traidores estava cada um em seu canto, com as cabeças baixas. Ergui os ombros e olhei para todos ao meu redor. Disse em tom de desprezo: – Maxuel, acompanhe-me até a varanda. Quero falar a sós com você imediatamente. Ele, porém, arregalou os olhos e concordou com a cabeça, parecendo surpreso. Minha mãe tentou me impedir quando eu já estava saindo, dizendo: – Não faça nenhuma bobagem, minha filha, da qual você possa se arrepender mais tarde. Pense em sua irmã: ela é só uma criança inocente. – Já fiz a maior bobagem desta vida quando aceitei me unir a este crápula, cujo sangue que carrega nas veias tem um pouco do meu sangue também. E quanto à minha doce e ingênua irmãzinha, creio que ela não foi tão inocente quando seduziu meu noivo. Portanto, saia da minha frente que farei o que é correto, independente do que seja a vontade de todos vocês. Saí porta afora e fui ter com Maxuel, que estava debruçado no beiral da varanda. Estava com a face pálida, como se estivesse em um navio balançando. Ele parecia que estava tendo uma vertigem. Porém, não me deixei abalar, como fazia de costume. Ele se virou imediatamente quando percebeu a minha presença e veio logo de braços abertos ao meu encontro, dizendo: – Perdoe-me, meu amor, eu a magoei. Mas tudo se resolverá. Nós nos casaremos e quando o bebê de sua irmã nascer, nós o acolheremos como se ele fosse nosso filho. Assim, sua irmã poderá seguir com a vida dela naturalmente e, quem sabe, poderá até se casar!
  • 35. Adriana Matheus 35 Dei um sorriso triste e decepcionado e, depois de repudiar o afeto dele, respondi-lhe: – Pensou em tudo, não é? Como sempre... – Sim, meu amor. Pedirei a meus pais que a levem para a fazenda, onde ela terá total privacidade de gerar essa criança. Ninguém ficará sabendo. Por isso, poderemos criar a criança como se fosse nossa. Dei um sorriso sarcástico e respondi imediatamente, entre dentes: – Essa criança, que você menciona com tamanho desprezo, é seu filho também. E por acaso o senhor achou mesmo que eu faria parte dessa trama inescrupulosa, na qual sou a vítima?! Quer mesmo que eu passe de vítima a vilã? Nunca me prestaria a um papel ridículo e tão baixo como esse de ser sua amante e esposa. Ou acha que eu acreditaria que você e minha irmã não vão continuar se encontrando às minhas costas? Desprezo-o, Maxuel Alencastro. E quanto à minha irmã, ela que fique com o resto de tudo de bom que passei ao seu lado. Não o quero mais, não passarei o resto de minha vida ao lado de um homem que nunca deixará de pensar na cunhada. E também não me sujeitarei à humilhação de ter que criar o filho bastardo daquela pessoa que, a partir de hoje, morreu para mim. A única coisa que me deixa triste é saber que não quis ver a traição dos dois, porque me negava a acreditar que seriam capazes disso comigo. Só lhe direi mais uma coisa: passe o céu e passe a terra, vocês nunca serão felizes ao lado um do outro; não terão um dia de suas malditas vidas que não pensarão na traição que fizeram comigo; e desse desgosto morrerá a minha irmã. – Não, essa não pode ser você! Não acredito que me dará para sua irmã, que não lutará pelo nosso amor. Tudo poderá ser diferente, não percebe? Basta que aceite a minha proposta e tudo ficará bem. Porei uma pedra em cima de suas palavras tolas,
  • 36. UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã 36 pois sei que só está aborrecida comigo, sei que isso passará com o tempo. Dei uma gargalhada que fez com que minha tia chegasse à porta. Porém, não dei importância e continuei: – Nunca farei o que é conveniente para vocês. Farei, sim, o que sei que é correto para mim. Jamais, enquanto eu viver, perdoarei essa traição. Olhei para a porta e vi que todos estavam na varanda, escutando boquiabertos o que eu havia dito. Levantei a cabeça e ressaltei: – Sim, é exatamente isso que disse: não me casarei com Maxuel! Que ele fique com essa mulher que, para mim, a partir de hoje, está morta. E quanto a você, Eulália, reclamava tanto das minhas migalhas e agora terá que viver com elas para o resto de sua vida, pois o resto do homem que estou deixando para você nunca a amará e ainda saberei que você chorará lágrimas de sangue por causa das traições que este crápula cometerá. E reze, mas reze muito, para que essa criança venha com saúde. E, se nascer, reze para que Deus perdoe essa traição e que esse rebento não lhe tire o que lhe é mais precioso. Dizendo isso, virei as costas e saí em direção à praia. Minha mãe estava com a mão à boca. Meu pai não demonstrou nenhuma reação. Minha tia parecia estar passando mal, e o padre ficou a me esconjurar devido à praga que eu havia rogado contra Maxuel e Eulália. Porém, não dei importância nenhuma a ninguém. Sabia que o que disse não era correto. Mas, naquele momento, estava com tanto ódio que meu coração não respondia a nenhuma coerência que viesse do meu cérebro. Não queria ser sensata: queria magoá-los como me magoaram. Queria correr, fugir, sumir de toda aquela sujeira. Sentia-me um lixo humano. Eram seis horas da tarde. Aparentemente estava frio, mas meu corpo não sentia absolutamente nada. Caminhei por horas a
  • 37. Adriana Matheus 37 fio e nem percebi o cair da noite. Quando finalmente parei de andar, percebi que estava sozinha. Então, ajoelhei-me de frente para o mar e gritei o mais alto e forte que pude. Depois, deixei as lágrimas caírem até que secasse todo aquele sentimento de tristeza, dor e perda. Fiquei horas olhando o mar e refletindo sobre tudo. Lembrei-me das palavras da velha quando ela disse que eu estava sendo traída naquele dia, dentro da minha própria casa. Refleti sobre muitas coisas. Percebi o quanto vinha me iludindo quanto ao caráter de Maxuel e Eulália. E se a velha tivesse razão? E se eu fosse uma bruxa? No meu estado normal, nunca havia rogado uma praga em toda a minha vida. E se a velha havia me enfeitiçado e agora estava eu com uma maldição sobre os ombros? Estava tão confusa e cansada, mas não queria voltar para casa. Fiquei parada em frente ao mar, de joelhos sobre a areia úmida e fria. O mar dos meus olhos misturava-se com as águas salgadas do oceano. Sentia-me sozinha e perdida. Não sabia que atitude tomar. Foi quando resolvi pronunciar o nome da velha cigana em voz alta. Queria que ela viesse ao meu socorro. Porém, nada aconteceu. Senti-me impotente e enganada, pois de alguma forma quis acreditar que aquela velha era mesmo capaz de me ajudar. Dentro de mim, uma mistura de sentimentos: queria ser mesmo uma bruxa poderosa, pois, além de aquela ideia fascinar-me, isso me daria poder para destruir aqueles que me haviam machucado. Mas, ao mesmo tempo, sentia medo e dor por ter perdido Maxuel. Senti revolta, impotência e desprezo. Lembrei-me de todos os santos, mas não quis pronunciar o nome de Deus: achava que Ele também havia me traído. Gritei, gritei com todas as forças que havia dentro das minhas entranhas. Gritei alto até que minha voz se calou com o som dos ventos. Levantei-me, meio cambaleando, e resolvi, por fim, voltar para casa. No caminho, eu ia pensando que a
  • 38. UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã 38 primeira coisa a fazer era tirar minha irmã de dentro do meu quarto. Não queria vê-la novamente, não queria qualquer proximidade com aquela que foi a causadora de toda a minha ruína. Quando finalmente retornei a casa, já passava das dez da noite e minha mãe esperava-me na soleira da varanda. Ela veio ao meu encontro, demonstrando preocupação e dizendo: – Filha, onde você estava? Não consegui dormir de preocupação. Precisava saber notícias sobre você. Porém, não respondi nada e recusei qualquer demonstração de afeto vinda da parte dela. Mas uma coisa me chamou atenção no meio de toda aquela interrogação. Foi quando ela disse: – Seus tios levaram Eulália para viver na casa deles. Acharam melhor que ela ficasse lá, já que vão se casar. Assim também evitará mexericos da parte dos vizinhos. Eu... sei que você não aprovará, filha, mas faremos uma cerimônia bem discreta no próximo sábado. Sua irmã diz que faz questão da sua presença. Ela ficou muito grata por você ter entendido a situação dela, embora ela saiba que você tenha ficado decepcionada com ela. Filha, imagino o quanto você está magoada com sua irmã, mas as coisas nem sempre acontecem como planejamos. Vai ver era o destino de sua irmã casar-se com Maxuel. Olhei para trás com tamanho desprezo que nem mesmo me reconheci, respondendo em seguida: – Quer dizer que além de traidores vocês são todos coniventes com o que os dois fizeram? Não espere que de hoje em diante eu seja a mesma pessoa, mãe. Respirei profundamente e continuei: – Todos vocês me desrespeitaram, traíram-me, e agora alcovitam essa situação, tratando essa história como se Eulália fosse a vítima. Saiba que não irei ao casamento desses dois, que
  • 39. Adriana Matheus 39 estão mortos a partir de hoje para mim. E também, a partir de hoje, não quero mais ouvir falar dessa história. Agora, por favor, deixe-me em paz que quero dormir. Se pudesse, a partir de agora, não acordaria mais só para não ter que vê-los novamente. Dizendo aquelas palavras amarguradas e revoltosas, fechei a porta do quarto, batendo-a à face de minha mãe. Mas pude perceber que ela havia ficado chorando do lado de fora. Pude ouvir seu choro. Sei que me portei mal e de maneira cruel com ela. Mas, naquele momento, não me importava com os sentimentos dos outros, somente com a minha dor – de tão tamanha dava para rasgar o tempo, transformando-me em algo que eu não era: uma mulher amarga e fria. Tranquei as venezianas e coloquei alguns panos rasgados nas arestas para não ver os raios de sol do dia seguinte. Queria solidão absoluta, e o escuro era a forma de esconder a dor que se encontrava na minha alma. Pelo menos eu achava que essa fosse a solução para os meus problemas – o que não é verdade, pois cada vez que estamos passando por um momento muito difícil, temos a tendência de nos isolarmos, sendo que a solução para a dor é somente o tempo. Isolar-se, como fiz, só serviu para uma coisa: prorrogar meu sofrimento. Pois cada vez que ficamos presos a lembranças amarguradas e tristes, permanecemos presos no mesmo lugar. Isso não é bom, porque o tempo voa rapidamente e a vida continua a seguir seu rumo. O preço para quem teima em se agarrar às amarguras da vida é a solidão eterna. Naquele momento, não ouviria ninguém, nem mesmo o meu próprio eu. Joguei-me na cama, agarrando-me ao travesseiro. Acho que estava tão cansada que mal percebi se o sono chegou ou não. O quarto estava totalmente escuro. Não havia deixado nenhuma fresta para que a luz do luar entrasse. De repente, algo
  • 40. UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã 40 muito estranho e nefasto aconteceu. Barulho àquelas horas? Levantei a cabeça para ver o que era. A porta do meu quarto estava entreaberta, mas lembro-me de tê-la trancado pelo lado de dentro. Isso foi o que mais me impressionou. Levantei a cabeça para ver o que ou quem estava me olhando aos pés da cama, pois aquela forte presença incomodava-me. Mas, devido à penumbra, mal consegui ver meus próprios pés. Então, resolvi sentar-me à cama. Foi quando me deparei com um homem bem trajado, com cartola e fraque, na minha cabeceira, olhando-me. Ele sorriu. Era um homem de porte físico forte e, embora fosse muito bonito, havia algo de estranho com ele. Imediatamente indaguei-o, perguntando-lhe o que ele estava fazendo dentro dos meus aposentos e como conseguiu entrar em minha casa sem ser percebido. Ele me respondeu, mas seus lábios não se movimentavam. Era algo imaginário e fora do comum aquela presença masculina dentro do meu quarto. Ao perceber que seus lábios não se movimentavam, mas que podia ouvi-lo, meu corpo arrepiou-se por inteiro. Aquela voz grossa e rouca... Nunca esquecerei! O tom daquela voz era aveludado e ele se expressava polidamente, o que me deu a entender que ele estava tentando não ser ouvido pelos demais da casa. Talvez não fosse fácil, pois, embora ele fosse educadíssimo e falasse muito baixo, a rouquidão daquela voz a deixava no ar. Havia algo de errado, pois cada vez que pronunciava uma palavra comigo, o quarto enchia-se de ecos, como se estivéssemos em uma caverna profunda ou como se as almas estivessem falando junto com ele. Aquilo começou a me assustar, pois aquele homem, com o tom de voz que parecia ter saído do além-túmulo, falou, olhando fixamente nos meus olhos:
  • 41. Adriana Matheus 41 – Você é minha, Emanuelizia... Há muito tempo tenho esperado por você. E agora chegou a hora de buscá-la. Acredite, nunca mais vou deixá-la. Estremeci tanto e senti que, de alguma maneira, minhas forças vitais não me pertenciam mais. Cheguei a urinar de tanto medo. Por fim, as palavras saíram depois de algum esforço. Mas, como meus lábios permaneciam imóveis, prosseguimos em uma conversa telepática. Perguntei-lhe: – Quem é você? – Sou aquele que faz as pedras chorarem, sou o dono do fogo, o último nome no livro do apocalipse, a verdade escondida por trás de muitas fábulas. Sou a voz que ecoa no meio da escuridão, calando-se no silêncio dos mortos. Venho a esta casa cobrar algo que me pertence. Uma dívida muito antiga... – Não o entendo! O senhor é louco? Como foi que o senhor conseguiu entrar em meus aposentos? Quem foi que lhe deu permissão de invadir a minha casa? Vou gritar e logo meu pai estará aqui. – Não preciso de permissão para entrar em lugar algum, pois os lugares são abertos a mim pelos corações de vocês, seres humanos. A maldade, a raiva, a inveja, a vaidade e a desordem que vocês causam no mundo são as principais portas para que eu entre em qualquer lugar que seja. Pode gritar, minha querida: saiba que estou aqui justamente porque ouvi seus gritos na praia. Vim para aliviar a sua dor. Assustada com aquelas palavras, afirmei: – Você é o demônio. Ele, porém, colocou as mãos na cintura e deu uma gargalhada que estremeceu todo o ambiente, respondendo-me em seguida:
  • 42. UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã 42 – Essa é só mais uma das minhas alcunhas, minha querida. A cada dia que passa, um de vocês me batiza com um nome diferente. Mas, para você, apresento-me como Zholar. Dizendo tais palavras, ele se reverenciou a mim da maneira que faziam os cavalheiros e os nobres. Repudiei-o, dizendo: – Arrede-se de mim, criatura sem nome! Não o chamei aqui e não quero nada com você. Sou filha de um Deus vivo e não quero nada com o rei dos mortos. Não passa de um verme. É um imundo e quer minha alma. Pois saiba que não lhe darei. Novamente ele deu a mesma gargalhada debochada e prosseguiu: – Você é tão ingênua como eu imaginava. Saiba que você não tem escolha, minha amada. Além do mais, não estou perguntando o que você quer de mim, – estou afirmando que você é minha. Você é a mulher que foi prometida para ser minha noiva por toda a eternidade. – E quem é você para me impor alguma coisa, sua besta? Jamais cederei às suas vontades. Nunca possuirá a minha alma ou o meu coração, que é puro, pois nunca cometi nenhum delito contra a moral e contra o meu Deus. Sei que você é o pai da maldade e da perversão. Mas, sendo eu filha de Deus, digo-lhe: arrede-se de mim em nome de Jesus, pois jamais serei sua, filho das trevas. Novamente a gargalhada sarcástica e debochada. Em seguida, a criatura respondeu-me. Porém, dessa vez seus olhos tornaram-se perversos e furiosos, brilhando como tochas no escuro do meu quarto: – Todos nós somos filhos Dele, minha amada. E desde quando eu lhe disse que queria uma alma corrompida e um corpo devasso e sujo? Acha mesmo que se eu quisesse já não teria qualquer uma, seja nesta casa ou em qualquer outro lugar?
  • 43. Adriana Matheus 43 Não posso levá-la contra a sua vontade, – o que é uma pena! Mas em breve estarei esperando pelo seu pedido de socorro. Então, cá estarei, pronto a lhe servir. Reverenciou-se novamente e prosseguiu: – Pois este a quem tanto grita e clama com veemência na hora do seu desespero não lhe responderá como não lhe respondeu hoje mais cedo. – dizendo isso, a besta sacudiu a capa. Percebi que por dentro era de veludo cor de carne. Ele aproximou-se de mim. Então, baixei os olhos, pois não queria fitá-lo. Foi quando vi que seus pés eram como os de um bode. Apertei os olhos e senti que o quarto todo gelou, como se estivesse nevando dentro dele. A besta, antes de desaparecer, tocou em meu antebraço esquerdo com os dedos, próximo ao pulso. Senti que suas mãos geladas queimaram minha pele com aquele toque macabro. Sentei-me na cama, assustada e com a respiração ofegante, procurando uma resposta plausível para tudo o que me aconteceu. Estava com o corpo todo suado e havia molhado a camisola de algodão azul. Respirei, olhei ao meu redor e percebi: tudo tinha sido apenas um pesadelo. Dei graças a Deus, sentindo-me aliviada. Preocupada com aquele suposto pesadelo, e imaginando que o havia tido por causa das minhas atitudes de ódio e mágoa contra a minha família, imediatamente fiz minhas orações. Em seguida, retirei os lençóis que havia colocado nas arestas, abri o quarto e deixei a luz entrar, levando para longe as trevas. Olhando para aquela manhã maravilhosa e iluminada, pedi a Deus para me livrar dos maus pensamentos e que me ajudasse a perdoar minha irmã e meu primo. Logo a paz e a harmonia foram tomando lugar na minha alma. Eu não era daquela forma e, de alguma maneira, aquele sentimento vil estava atraindo energias negativas para junto de mim.
  • 44. UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã 44 Acabei de ajeitar a cama e arrumei-me apressadamente, pois estava atrasada para cumprir com meus afazeres matinais. Foi quando, na hora exata em que eu estava me vestindo, percebi que havia uma marca de queimado no meu pulso. Meu Deus! – pensei comigo mesma. Era verdade, eu não havia sonhado. Fiquei tão assustada que saí do quarto às pressas. Eu deveria estar muito pálida, pois minha mãe, ao ver- me, foi logo dizendo: – Emanuelizia, você está se sentindo bem? Está tão pálida! – Sim, mãe, mas me aconteceu um fato muito estranho esta noite. – E o que foi? Depois que ela me trouxe um copo d’água, contei-lhe tudo, em todos os detalhes. A reação dela foi muito estranha, ultrapassou as minhas expectativas: além de ter ficado assustada, ela empalideceu, deixando o corpo cair, jogando-o sobre uma cadeira. Mediante aquela mulher aparentemente aterrorizada, perguntei, curiosa: – Mãe, o que houve? Agora quem está empalidecida é a senhora. Ela baixou a cabeça e depois prosseguiu, contando-me a seguinte história: – Foi há muito tempo e, por isso, nunca dei importância a esse assunto, achando que não passava de uma lenda ou invenção de seus avós, pais de seu pai. Mas eu deveria tê-la contado antes e, principalmente, deveria ter feito alguma coisa. Ela começou a chorar e nada me fazia conseguir consolá- la. A cada instante, eu ficava cada vez mais assustada e curiosa. Interroguei-a, depois que percebi que já estava mais calma.
  • 45. Adriana Matheus 45 – O que, mãe, deveria ter sido feito que a senhora não fez? O que a senhora deveria ter me contado e não contou? A senhora agora conseguiu me deixar apreensiva e curiosa. Seus olhos eram pura tristeza e pavor. Depois de enrolar as mãos no avental, ela prosseguiu gaguejando: – No dia do seu nascimento, seu pai e sua avó paterna desejaram que você fosse um menino para que pudesse ajudá-lo na pesca, e também para quebrar a maldição que já vinha acompanhando a família dele havia séculos. Ela levantou-se da cadeira e começou a andar de um lado a outro da cozinha. Levantei-me também, fui à sua direção e segurei-a pelos braços, dizendo: – Tenha calma, mamãe. Sente-se novamente e respire. Agora, diga-me: de que maldição a senhora está falando? – Você não entende, minha filha. A culpa foi minha, pois não fui capaz de dar um primogênito homem a seu pai. Canta a lenda que há muitos e muitos anos uma mulher de nome Carmélia Pontes apaixonou-se por seu tataravô. Porém, ele não correspondeu a ela e ainda a deflorou depois de uma bebedeira, na frente de seus amigos. Deixou a pobre mulher ao relento e à mercê da vergonha e do acaso. Ele nunca se importou com os sentimentos da pobre mulher e sumiu no mundo, só retornando casado com sua tataravó Nércia. Só que a tal mulher para quem seu tataravô havia feito mal era uma feiticeira muito poderosa e lançou uma maldição sobre a família de seu pai. Ela jurou que a sétima mulher a nascer primogênita, a partir daquela geração, antes de completar o vigésimo primeiro aniversário ainda virgem, seria uma praga sobre a terra. Sua alma seria levada pelo Diabo em pessoa. Ela reinaria por toda a eternidade ao seu lado como sua esposa. Quando você nasceu, todos queriam afogá-la, mas seu pai não deixou. Sua avó ficou durante anos sem falar com o seu pai por causa dessa atitude
  • 46. UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã 46 dele. Pois todas as primogênitas da família eram afogadas assim que nasciam. Seu pai, porém, foi um homem de coragem e disse que, se notasse algum mau indício demoníaco em você, ele mesmo o faria. Mas até hoje você nunca deu indícios de nenhum mal sobrenatural ter possuído o seu corpo. Pelo contrário, você é uma jovem meiga e doce. Sua avó faleceu e, de desgosto, os aldeões quiseram nos queimar vivos, então seu pai veio para esta vila. Desde então, ele vem bebendo como um louco. É por isso que me calo diante de certas atitudes violentas que ele comete, não sou omissa como pensam, sou devotada e sei o que ele tem passado carregando nas costas esse segredo durante todos esses anos. Somos amaldiçoados, Emanuelizia, se alguém souber dessa história não teremos chance contra a inquisição. Eles a levarão... Ela baixou a cabeça e calou-se, percebendo sua tristeza prossegui: – A senhora deveria ter me contado isso antes! Essa história muda muito o meu conceito quanto ao caráter de meu pai, embora não justifique que ele a maltrate tanto. Mas o restante da história é loucura! As minhas outras tias, irmãs de papai, tiveram filhas também. Por que a senhora acha que essa infeliz teria que ser eu? – Porque sua tia Feliciana teve três meninas, é certo. Porém, ela teve uma menina antes de todas, que nasceu morta. E a sua outra tia, Marta, só teve um menino. – Mas como? E a Maria da Cruz? É mais velha que Olavo. – Sim, mas Maria da Cruz é fruto de uma desventura que seu tio teve fora do casamento. – Então, Maria da Cruz não é filha legítima de minha tia? Somente de meu tio?
  • 47. Adriana Matheus 47 – Sim. E como todos sabem, seu tio mais velho, irmão de seu pai, é um solteirão. Nunca quis se casar por medo da maldição. Dizem até que ele é um eunuco, que ele mesmo fez isso consigo por medo da maldição. – Mãe... O que será de mim, então? Se esta história for verdadeira, serei uma maldição. – Sim, pois foi por isso que nós a entregamos em casamento para seu primo logo que ele nasceu. Mas parece que deu tudo errado. Diga-me, Emanuelizia, Maxuel nunca foi além com você? – Não, mãe, claro que não. – Pois saiba que preferiria tê-la desvirginada a saber que poderá ser esposa do demo. – Não entendo, mamãe, por que tenho que pagar por tantas coisas. Por que será que o destino reservou uma sina tão cruel como essa para mim? Parece-me que nunca serei amada de verdade, que a minha vida será vagar pela eternidade, causada por um destino cruel. Sinto-me um monstro! Mãe, não quero ser esposa do demônio, sou filha de Deus. Não quero esse destino para mim. Tem que haver algo que possa ser feito! – Não sei o que fazer, filha. Mas, por ora, não falaremos nada com seu pai. Você sabe como é o temperamento dele. Precisamos pensar com calma. Logo irei ao seu quarto e, juntas, pensaremos em alguma coisa. Mas, por ora, fique calma e não pense mais bobagens. Vá dar uma volta pela praia para aliviar seus pensamentos. Não quero que me ajude hoje com a casa. Quero pôr também meus pensamentos em ordem, e a única maneira que consigo isso é ficando sozinha com meus afazeres. Naquele dia, caminhei por mais ou menos duas horas à beira-mar. Depois de ter colocado meus pensamentos em ordem, cheguei à seguinte conclusão: a solução seria encontrar novamente a velha cigana. Porém, não sabia como fazê-lo, pois
  • 48. UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã 48 chamei alto seu nome e nada aconteceu. Dúvidas invadiam a minha mente, pois já não sabia se a velha era real ou apenas mera imaginação. Pensei comigo Será que ela era sonho ou realidade? Pois naquele dia eu havia adormecido na areia. Retornei para casa e tranquei-me no quarto, sem querer ouvir ou falar com ninguém. Não quis almoçar ou jantar. Apenas fiquei sozinha com meus pensamentos, até que... "Nesta vida, mesmo que tudo seja passageiro, é obrigatório que sejamos honestos em nossas conquistas."
  • 49. Adriana Matheus 49 II – A Iniciação inha mãe abriu a porta de maneira silenciosa, entrando na ponta dos pés e tentando não fazer nenhum barulho para não me acordar. Porém, ao ver aquela cena achei hilariante, levantei-me de costas apoiando nos cotovelos e falei- lhe, sorrindo: – Mãe, não precisa ser tão cautelosa para não me acordar, pois já estou acordada. E mesmo se quisesse dormir, não conseguiria. Na verdade, estou esperando-a para tentarmos juntas chegarmos a uma conclusão sobre o que falamos hoje pela manhã. Confesso que passei a tarde toda pensando em uma maneira de tentarmos reverter a minha maldição, mas não consegui pensar em nada. – Filha... Sinto muito, mas não consegui pensar em nada. – disse ela, muito decepcionada, jogando-se na cama e caindo sentada. Levantei-me e fui até a outra extremidade onde ela estava. Ajoelhando-me ao chão, bem à sua frente, falei: – Tenho que lhe contar um fato que não lhe contei hoje cedo. Não estou dizendo que essa é a solução, mas é o único caminho que consegui achar. Mordi os lábios e fiquei fitando-a nos olhos, esperando uma resposta – ou melhor, uma interrogação. Ela estava de cabeça baixa, com as mãos em posição de oração. Por fim, M
  • 50. UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã 50 levantou a cabeça e fitou-me meio desconfiada, como se soubesse que o que eu tinha a dizer não era boa coisa. Mediante aquela atitude – que só me passou mais insegurança ainda –, disse a ela: – Ontem, como a senhora disse, não lhe contei tudo o que houve comigo. Ela levantou as sobrancelhas e falou: – E ainda houve mais alguma coisa que você me deveria ter dito? Santo Deus! Deixe-me preparar o espírito – disse ela, recostando mais para trás. Eu, no entanto, estava aflita e ansiosa. Não sabia qual seria a reação dela, mas uma coisa era certa: eu tomaria as minhas próprias decisões. – Escute, mãe, é muito importante! Depois que eu e Eulália discutimos ontem, fui atrás dela nas pedras, tentando saber o motivo pelo qual ela andava tão nervosa e grosseira comigo. Não adiantou muito, pois discutimos mais ainda e só serviu para que sentíssemos mais mágoas uma da outra. Mediante o esforço inútil, saí e fui caminhar à beira da praia. Porém, resolvi parar e descansar. Então, sentei-me em frente ao mar e acho que acabei adormecendo... Não tenho certeza, acho que adormeci ou cochilei, não sei ao certo. O fato é que, ao abrir os olhos, deparei-me com uma senhora, ou melhor, uma velha cigana. Esta mulher disse-me que estava havia tempos me procurando e que me conhecia desde meu nascimento. A princípio, achei que era apenas uma velha louca, pois ela me disse que eu era a sua escolhida e que em breve tomaria o seu lugar. Contou-me coisas... Na hora, não atinei para os fatos, mas agora tudo o que ela me disse está fazendo sentido. Estou decidida a procurá-la. – Emanuelizia, você enlouqueceu? Você não conhece essa mulher! Ela pode ser a mulher que amaldiçoou a família de seu
  • 51. Adriana Matheus 51 pai. Não posso permitir que cometa tamanha sandice. O que ela pode fazer por você? – Não creio que essa mulher seja a mesma que amaldiçoou a família de meu pai; ela deve estar morta há muito tempo. – Minha filha, raciocine um pouco. Não posso permitir que faça isso, é muito arriscado. E se essa mulher estiver compactuando com o demônio? E se isso tudo for uma armadilha? Filha, temos que pensar em todas as possibilidades. Dizem que as feiticeiras podem viver muitos anos, até mesmo séculos. Tem alguma coisa errada nessa história toda. – Mãe, sei que a senhora pode estar certa, mas não vejo outra saída. Acaso a senhora conseguiu pensar em alguma coisa? – Não, infelizmente não. Só que estou temendo por você, filha... Se alguém desconfiar que esteja compactuada com essa mulher e com a magia negra, você poderá sofrer sérias consequências. – Ninguém irá desconfiar, a menos que a senhora conte, é claro. Mãe, se não acharmos uma maneira de me livrar dessa maldição, estarei perdida. Desculpe-me, mas não vejo outra saída que não essa. Ela baixou a cabeça pesarosamente. – Faça o que achar que lhe seja melhor, mas que fique bem claro que não estou de acordo com você. E é melhor tomarmos cuidado com esse tipo de conversa: se seu pai descobrir, ele matará nós duas. – Não se preocupe, mãe, esse será o nosso segredo. Ela deu-me um beijo de boa noite na testa e saiu, retirando-se para o seu leito. Senti no seu silêncio que ela estava receosa. Respirei fundo e deitei-me, tentando adormecer, pois sabia que o dia seguinte seria longo. Amanheceu. Espreguicei-me na cama e levantei-me. Calcei as
  • 52. UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã 52 chinelas e fui abrir a janela para dar uma olhada naquela manhã, que parecia perfeita. Fiz minhas orações, deixando que as palavras saíssem ao vento. Queria comungar com o universo invisível. Depois, disse em voz alta: – Eleanor... Eleanor... Eleanor... Perdoe-me, fui ingrata. Preciso da sua ajuda, por favor. Estou implorando, preciso mesmo da sua ajuda. Pareceu-me não ter surtido efeito algum. Então, vir-me-ei para dentro e fui arrumar-me para o desjejum. De repente, uma fria brisa vinda do mar começou a soprar... Aquele frio gélido arrepiou todo o meu corpo já despido. Quando já estava quase totalmente vestida, minha mãe entrou ofegante pelo quarto, pedindo para eu me vestir rápido, pois parecia que estava vindo uma terrível tempestade e poderia se transformar em um furacão. Peguei meu xale e saí correndo para ajudá-los. Meu pai e meu irmão iriam avisar os demais pescadores, enquanto minha mãe e eu nos dividiríamos e avisaríamos a vizinhança. Foi uma correria. Confesso que nunca vi nada como aquela tempestade antes. Olhei para o céu: ele havia ficado da cor de terra, com nuvens espessas e negras que se juntavam às demais, fazendo parecer que algo ruim iria acontecer. Quando estávamos do lado de fora, na varanda, fiquei perplexa ao ver tamanha confusão. O vento forte havia jogado tudo de um lado a outro, e um verdadeiro caos estava se formando. Fiquei catatônica, imaginando como um dia tão lindo poderia, de uma hora para outra, transformar-se em um dia catastrófico como aquele... Quando dei por mim, meu pai e meu irmão já estavam bem longe e minha mãe seguia rumo ao leste. Eu, porém, estava meio perdida com meus pensamentos e confusões mentais. Naquele momento, meu xale foi arrancado de mim pelo vento forte e jogado na cerca de madeira da varanda. Corri para
  • 53. Adriana Matheus 53 apanhá-lo e, sem querer, acabei olhando para cima. Foi quando vi sobre o telhado de minha casa algo nada convencional. Cheguei a cair de costas de tão assustada que fiquei: em cima do telhado estava a velha Eleanor, flutuando sobre as telhas. Porém, sua aparência era mais jovem e suas vestes eram de um linho fino, marrom e preto, com um xale de renda também preto – o que a fazia parecer ter asas de morcego. A visão era incrivelmente assustadora, mas me fascinou a maneira como ela flutuava. A mulher apontava com a mão esquerda para as cavernas, ao norte. Levei um susto com a minha mãe chamando-me. Então, vir-me-ei, levantando para atendê-la. – Emanuelizia, venha rápido! Preciso que venha comigo à casa dos Carriço. Vamos, menina, eles têm muitos filhos pequenos e vai dar trabalho juntá-los! Ao olhar meu semblante, disse: – O que há, menina? Está pálida como palha de milho! – A senhora não viu aquilo? – Aquilo o quê? – A bruxa! Ela estava em cima do nosso telhado, flutuando! Ela apontava para as cavernas, ao norte. – Não vi nada e acho que você deve esquecer essa bruxa. Pode ter tido um surto de pânico e isso lhe causou essa suposta visão. Se seu pai souber que estou falando com você sobre esses assuntos, poderá expulsar-me de casa. Agora me siga, temos muitos vizinhos que precisarão de nossa ajuda. Concordei com ela, pois ela parecia muito assustada com o suposto furacão que estava se formando. Mas, no exato momento em que estávamos saindo, paramos para observar algo ainda mais estranho: o vento havia parado de soprar e a tempestade parecia estar indo em direção ao oceano. Ficamos sem saber para aonde ir. Olhamo-nos e entendemos que aquela tempestade não era natural, mas sobrenatural. Meu irmão e meu
  • 54. UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã 54 pai estavam retornando, também assustadíssimos. Então, resolvemos esperá-los: quem sabe pudessem nos dar umas respostas para aquele fato inédito e sinistro? Ao se aproximarem, meu pai falou imediatamente: – Vocês viram essa tempestade? Parece que está indo para o mar! Ou melhor, é como se ela tivesse se transformado em um montinho de nuvens e agora está indo mar adentro! Apenas concordamos com a cabeça e ficamos todos juntos, olhando aquele fenômeno. De repente, como em um passe de mágica, a tempestade foi sugada para dentro do oceano. No mesmo instante, um céu límpido e cristalino abriu-se, como se nada tivesse acontecido. Nosso silêncio foi interrompido apenas pela voz do meu irmão, que disse: – Não sei quanto a vocês, mas acho melhor não falarmos disso a mais ninguém. Meu pai, além de concordar com a cabeça, ressaltou: – Mesmo porque poderão dizer que estamos possuídos por espíritos imundos. É melhor todos ficarmos quietos. Deixe que eu vá verificar no vilarejo se alguém soube do indício de alguma tempestade. Isso não foi uma coisa normal... Havia algo de malévolo naquela tempestade e, com certeza, isso foi obra de alguma bruxa. Minha mãe olhou-me nos olhos, como se pedisse socorro. Porém, achei melhor não dizer nada. – O senhor acha que pode ter sido causado por espíritos do mal, meu pai? – perguntou meu irmão, com os olhos arregalados. – Não sei o que foi. Mas, com certeza, pelos anos que tenho em alto-mar, sei que isso não é uma coisa normal. Nunca vi uma tempestade ser sugada para o meio do oceano, desaparecendo tão enigmaticamente.
  • 55. Adriana Matheus 55 Minha mãe olhou para mim. Parecia estar tremendo, com medo de que meu pai desconfiasse de alguma coisa. Voltamos para casa em total silêncio. Ajudei minha mãe nos afazeres de casa e com o almoço. Naquele dia, nem meu pai nem meu irmão quiseram sair de casa. Pareciam receosos. Ficaram arrumando alguns objetos que precisavam de reparos. Almoçamos todos em total silêncio, mas confesso que estava ansiosa para ir à caverna. Assim que terminei o almoço, levantei-me da cadeira e saí às pressas, antes que minha mãe me pedisse para ajudá-la e meu pai me impedisse de sair. Corri o mais que pude até que já havia tomado certa distância de minha casa. Ninguém mais poderia me alcançar. No caminho, fui pensando mil coisas como, por exemplo, o porquê de aquela velha apontara-me as cavernas? As entradas das cavernas eram formadas por inúmeros recifes de corais. Eles formavam nas rochas pequenos laguinhos, onde muitos animais marinhos viviam. As pedras também eram escorregadias e muito perigosas, pois existiam muitos corais venenosos – se me ferissem, poderiam até me matar. Tirei os sapatos e as meias, deixando-os em uma pedra seca. Fiquei imaginando uma maneira de não me ferir. Até que, por fim, abaixei-me e fui deslizando sobre as pedras, pondo meus pés nas águas geladas. Era gostosa a sensação de liberdade que aquelas águas transmitiam-me. Parei para observar os pequenos animais que deslizavam por entre meus pés: peixinhos coloridos de toda espécie. Peguei uma estrela do mar minúscula e fiquei analisando em detalhes a perfeição daquele pequeno ser. Coloquei-a de volta nas águas. Os peixinhos coloridos que nadavam entre as minhas pernas faziam-me cócegas. Eu poderia ficar ali observando a natureza marítima por horas, mas precisava ser um pouco mais apressada. Depois de atravessar aquele pequeno mundo de laguinhos, musgos e minúsculas criaturas; alcancei, por fim, a areia. Andei
  • 56. UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã 56 por alguns minutos a mais até que, finalmente, cheguei às entradas das cavernas. Havia duas entradas, mas a minha intuição me disse para entrar pela abertura da esquerda. A caverna era enorme e estava coberta por estalagmites que faziam um contorno no chão, formando um labirinto. Ao passar em meio a elas, rasguei a bainha do meu vestido, mas não dei muita importância a isso. Fui seguindo as estalagmites até que cheguei a um enorme saguão de rochas, onde uma lagoa de espelhos d’águas havia se formado. No teto, pingavam gotas vindas de inúmeras estalactites, o que explicava aquela incrível lagoa de água cristalina. Algumas daquelas estalactites faziam formar no chão desenhos em forma de espirais, outros pareciam flores e animais. Formas distorcidas que aguçavam a minha imaginação, dando vazão à criatividade dos meus pensamentos jovens. Eu poderia viver ali para sempre se não fosse tão frio – pensei. De repente, uma forte luz atraiu minha atenção para o fundo da caverna. Ao seguir adiante, percebi que o lugar estava sendo habitado por alguém, pois estava cercado de tochas presas nas laterais das paredes. Fui seguindo as tochas até que, mais ao fundo, entrei em um enorme salão de rochas, onde havia um altar todo montado com estranhos símbolos. Um caldeirão estava aceso e um grande livro estava postado ao seu lado – objetos desconhecidos para mim até então. Comecei curiosamente a tocar em alguns deles. Peguei um athame de prata, cujo cabo era de ouro maciço, cravejado de pedras preciosas. Era esplendoroso o tal artefato. Nunca tinha visto nada igual! Depois, fui detalhadamente observando cada objeto que encontrei. Confesso que alguns além de desconhecidos, eram também sombrios. Estava tão distraída que levei um enorme susto quando uma mão gelada tocou-me os ombros, dizendo:
  • 57. Adriana Matheus 57 – Vejo que a menina já está tomando gosto pela magia... Isso é bom! – Nossa, a senhora me assustou! Como foi que conseguiu trazer todos estes objetos para esta caverna? – perguntei ofegante, colocando a mão no peito. Ela sorriu, remexendo o caldeirão de cobre com uma colher de madeira enorme: – Estou aqui há muitos anos. Cada objeto aqui dentro foi trazido a seu tempo. Agora, responda: a que devo a honra de tão cedo tê-la me esperando? Pensei que somente amanhã iria vê-la, mas me enganei. Pelo que vejo, estou ficando velha mesmo. – Não tenho tanto tempo assim. Por isso, tive que vir o quanto antes. Achei que não se importaria, depois da aparição triunfal e quase catastrófica desta manhã... A propósito, como foi que fez aquilo? Ela me sorriu largamente: – Nem mesmo precisando da minha ajuda a menina deixa de ser arrogante, não é? A senhorita tem que aprender a ser mais humilde. Não sou sua escrava. E quanto à aparição, somente com o tempo você conseguirá fazer certas ilusões. – Desculpe-me, estou aqui porque realmente preciso da sua ajuda. Se lhe pareci arrogante, não foi minha intenção. Mas confesso-lhe que a sua aparição foi muito realista para uma mera ilusão. Não sei o que dizer. Se eu um dia chegar a esse nível, serei mesmo uma bruxa muito temida. – Vamos parar com rodeios e ir direto ao ponto crucial que lhe trouxe até aqui. E não me bajule, pois odeio esse tipo de coisa – disse ela, dando um sorrisinho faceiro e virando-se de costas, para remexer outra vez o caldeirão. – Preciso saber se a senhora vai me ajudar. Estou com um problema muito grande. Confesso que, pela primeira vez em minha vida, estou com medo.
  • 58. UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã 58 Ela, porém, virou-se para mim com uma calma, dessas causadas só por Deus, e disse, pegando-me pelo pulso: – Ele a procurou, não foi? E, pelo que vejo, deixou sua marca em você. Com certeza a menina está muito encrencada! – Como a senhora sabe da existência dele? E como sabe que ele me marcou se eu nem lhe contei os fatos ainda? Quem é a senhora, afinal? – perguntei, meio desconfiada. Ela deu uma gargalhada que ecoou por toda a caverna. – Sei todas as coisas que acontecem no mundo. Estou sempre atenta aos fatos e nada me passa despercebido. E é lógico que ele iria procurá-la, pois queremos a mesma pessoa. Eu a quero como discípula e ele a quer por toda a eternidade como sua companheira. Além do mais, não preciso ser uma bruxa para ver que ele deixou a sua marca no seu antebraço. Não sou cega, querida, e ser observadora é uma característica peculiar das bruxas. Estamos sempre atentas aos detalhes. Vá aprendendo para que não se engane, ou seja, para não ser pega de surpresa no meio do caminho. Quanto a quem sou, sou apenas uma velha bruxa cansada de viver por uma longa eternidade. Como disse, não gosto de rodeios e vou logo direto ao assunto: quando vi a marca em seu antebraço, vi que você era uma marcada e soube, então, que eu e a besta queríamos a mesma pessoa. Porém, é claro, temos propósitos diferentes em relação a você, como já citei. – Como a senhora sabe da existência dele e como sabe tanto sobre essa marca? Não me respondeu ainda! Ela deu outra sonora gargalhada. – A menina, pelo que vejo, tem muita curiosidade sobre o assunto. Mas não se preocupe: estarei aqui para lhe responder. Acredite: não estaria aqui hoje se não soubesse quem ele é e do que ele é capaz. E quanto a saber sobre a marca da besta, é simples: já vi essa marca no pulso de outra pessoa antes.
  • 59. Adriana Matheus 59 – Quer dizer que a besta já marcou outra pessoa antes? E quem foi ela? Levantando a manga da túnica negra que vestia, ela mostrou: – Eu. Quando eu tinha a sua idade, a besta procurou-me também, só que por motivos bem diferentes do seu, creio. Ele disse que queria os meus poderes. Por isso, havia me escolhido como sua aliada e discípula. Claro que isso era somente um pretexto para que ele levasse a minha alma. A besta fez de tudo para me convencer: ofereceu-me ouro e prata e tudo o que eu pudesse desejar... Nunca cedi. Por isso, ele me marcou. É assim que ele faz quando não o aceitamos: ele nos marca para sabermos que ele é o soberano. É como se fosse um animal ou senhor de escravos que tem que marcar o seu território e suas mercadorias. – E como a senhora conseguiu se livrar dele? Como? – Não me livrei. Não é possível livrar-se dele com tanta facilidade. Muito tempo depois do nosso primeiro contato, ele voltou a me procurar e disse que eu não teria mais serventia para ele, pois já havia encontrado a mortal que o serviria por toda a eternidade. Mas disse que nos encontraríamos no inferno, pois eu havia trabalhado muito para isso. Sabe como é... não se pode ser perfeita o tempo todo! Pelo que vejo, teremos uma longa tarde, não é? – disse ela ironizando, mas parecendo curiosa em saber a minha história. Contei-lhe em pormenores exatamente como a minha mãe havia me contado. Ela não dizia nada – apenas ouvia e colocava fumo em seu cachimbo. Quando terminei tudo, dei um suspiro e fiquei fitando-a, esperando uma opinião. Na verdade, queria mesmo é que ela me oferecesse ajuda. Ela levantou-se calmamente, voltou ao caldeirão e provou o misterioso preparo.
  • 60. UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã 60 Depois de sorver aquele líquido, pegou duas tigelas e ofereceu uma delas a mim: – Tome este caldo. Está frio e, como disse, teremos uma longa tarde. Percebendo que eu havia ficado meio receosa, ela prosseguiu: – Se fosse veneno, eu também não iria tomar. Creio, minha criança, que lhe colocaram muitas crendices na cabeça sobre as bruxas. É somente um pouco disso e daquilo... nada demais. Experimente, vai gostar! Ela deu a gargalhada novamente. Sua ironia assustava-me. A velha ficou quieta, sorvendo o líquido e observando enquanto eu remexia o caldo de um lado a outro. Finalmente, respondeu- me: – Sinto lhe informar que seu caso é um caso perdido. – Isso significa que a senhora não irá me ajudar? Pensei que fosse uma bruxa poderosa, mas vejo que não sabe nada e terei que procurar outra pessoa, então. – Nunca disse que não a ajudaria, só lhe disse que o seu caso não tem solução. Você faz parte de uma maldição que não tem mais jeito de ser desfeita, pois a mulher que a lançou já está morta, eu mesma a conheci. Era uma mulher perversa, não media as consequências dos seus atos. Apaixonou-se loucamente por um homem que a humilhou publicamente. Mas ela não o esqueceu e amaldiçoou toda uma geração de primogênitas. Só não imaginei que a minha escolhida seria também a escolhida de satanás e parte dessa maldição tão maquiavélica. Ela deu de ombros e, depois de soltar outra de suas gargalhadas, respondeu: – O que está feito está feito, ora!
  • 61. Adriana Matheus 61 – Então, se não tem jeito de desfazer a maldição, não vejo o porquê de continuar a visitar a senhora. – Arrogante como sempre! Posso não poder desfazer a maldição, mas posso lhe ensinar os poderes da magia para que possa defender-se das artimanhas da besta. Só quero preveni-la para que nunca cometa o mesmo erro da mulher que a amaldiçoou. – E qual foi? Apaixonar-se? – Não, isso é inevitável. Mas nunca deverá colocar um homem como o centro de sua vida. Deverá seguir a magia com respeito e coragem, pois é um caminho muito difícil. Não é um caminho para pessoas fracas e covardes. Os deuses da magia são ciumentos e melindrosos. Gostam de ser tratados com respeito e carinho. E saiba que não é só porque você vai se iniciar na magia que vai poder deixá-la de lado e usá-la apenas quando bem quiser. Não é assim que funciona. A magia exige muita leitura e prática constante. Agora, deixemos de conversa e vamos tomar um caldo. Afinal, bruxas não se alimentam de vento. Dizendo isso, foi se servir de mais caldo – que, embora muito cheiroso, pareceu-me bastante suspeito. – Desculpe, mas o que estamos tomando? – perguntei-lhe. Ela se virou para mim, colocou as mãos na cintura e respondeu-me, seriamente: – Ora, não sabe? Isto é caldo de sapo com orelhas de morcego e patinhas de lagartixa. Cuspi o que me estava à boca na hora. Ela quase rolou ao chão de tanto rir. – Criança tola, é disso que eu lhe falava: na magia, tem que apurar até mesmo seu paladar e olfato. Senão, como poderá diferenciar uma simples canja de galinha de um caldo de frutos do mar? E mais: deve aprender que bruxas não são seres
  • 62. UM OLHAR VALE MAIS QUE MIL PALAVRAS A história de uma cortesã 62 mitológicos. Só comemos comida normal, não voamos em vassouras e não fazemos sacrifícios com animais e seres humanos. Praticamos a boa magia, mas temos ciência da magia negra, embora não a usemos quase nunca. Jamais usamos nossos poderes ou feitiços em benefício próprio, não usamos droga ou qualquer subterfúgio desse tipo em nossos rituais sagrados, e nunca praticamos orgias em nossos sabás. Entendeu? – Sim, entendi. – Espero que sim, sinceramente. Agora tome o seu caldo de frutos do mar e pare de imaginar coisas que nada têm a ver com a verdadeira prática da magia sagrada. – Gostaria de obter a receita. – tentei perguntar-lhe de maneira educada, ainda meio receosa com o caldo. Ela serenamente levantou-se e respondeu com aquela calma que só poderia vir de Deus: – Se vamos trabalhar juntas, é preciso que confie em mim. E o que é mais importante: que aprenda a apurar o seu paladar e o olfato. Caso contrário, teremos sérios problemas com seus preparos. E aprenda a ter um pouco mais de bom humor, pois, apesar de ser ainda jovem, está aparentando muito mais idade do que eu. – Desculpe-me, senhora, mas fica difícil entender o seu humor. Prometo que tentarei de agora em diante. Disse isso baixando a cabeça e tentando passar para ela o maior respeito possível. Não queria que ela se aborrecesse comigo, pois não seria bom para a nossa convivência. Ela, porém, olhou-me friamente, parecendo ter percebido quais eram as minhas reais intenções. Disse-me com um olhar matreiro: – Estou há muitos anos sobre a Terra e não admito que me testem. Não sou eu quem procura respostas, é você. Existem, talvez, duas possibilidades. A primeira é que você deverá perder sua virgindade somente por amor. A segunda é: nunca deverá,
  • 63. Adriana Matheus 63 em hipótese alguma, chamar por ele. Jamais, enquanto você viver, deverá fazer acordo com a besta, mesmo que a sua vida dependa disso. – Somente isso? Então, pode confiar em mim: se depender dessas duas coisas, minha maldição foi quebrada a partir de hoje. – Criança tola! Ninguém é dono do destino e muito menos das próprias vontades. Acha mesmo que se Deus quiser, não te prova isso agora? Ele pode muito bem deixar que a besta aja em sua vida, pondo-lhe um falso amor e quando você perceber, já estará perdida. Deus pode mudar o seu destino quando Ele bem quiser, pois pertence somente a Ele. Você é uma jovem presunçosa se acha que pode controlar seus desejos carnais. As paixões mundanas da Terra fazem-nos tolas e cegas. Cuidado para não cair em uma dessas armadilhas do destino, minha querida. Continua teimando comigo, e o que é pior: achando-se capaz de lutar contra as vontades de Deus. – Se a senhora sabe mesmo todas as coisas, deve saber que acabei de perder meu grande amor e que nunca mais amarei outro homem sobre a Terra. Então, desta vez creio que a senhora está enganada. E nunca, em toda a minha vida, farei um pacto com a besta. Isso está totalmente fora de cogitação. Ela parou de fazer o que estava fazendo, colocou as mãos na cintura e disse: – É a pessoa mais arrogante e tola que já conheci! Nunca, em toda a minha existência carnal, conheci uma pessoa tão presunçosa como a senhorita. Você nunca amou verdadeiramente o seu noivo. Seu casamento iria ser por conveniências. Sua irmã, embora tenha agido de má fé, ela sim o ama. Se quer saber, creio que nunca saberá o que é o verdadeiro amor. Temo que sofra sérias punições por causa dessa sua maneira de achar que é a dona do seu destino e do dos outros.