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PÓS-VERDADE:
COMO COMPREENDER UM TEMPO EM QUE SE NEGA
A FILOSOFIA E AS CIÊNCIAS HUMANAS
PROF. DR. ROMUALDO PESSOA
INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOAMBIENTAIS DA UFG
LABOTER - IESA
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OS CEGOS E O ELEFANTE (História do folclore Hindu)
Numa cidade da Índia viviam sete sábios cegos. Como seus conselhos eram sempre excelentes,
todas as pessoas que tinham problemas consultavam-nos. Embora fossem amigos, havia uma certa
rivalidade entre eles, que, de vez em quando, discutiam sobre o qual seria o mais sábio. Certa
noite, depois de muito conversarem acerca da verdade da vida e não chegarem a um acordo, o
sétimo sábio ficou tão aborrecido que resolveu ir morar sozinho numa caverna da montanha. Disse
aos companheiros:
Somos cegos para que possamos ouvir e compreender melhor do que as outras pessoas a verdade
da vida. E, em vez de aconselhar os necessitados, vocês ficam aí brigando, como se quisessem
ganhar uma competição. Não agüento mais!Vou-me embora.
No dia seguinte, chegou à cidade um comerciante montado num elefante imenso. Os cegos jamais
haviam tocado nesse animal e correram para a rua ao encontro dele.
O primeiro sábio apalpou a barriga do animal e declarou: Trata-se de um ser gigantesco e muito
forte!Posso tocar os seus músculos e eles não se movem; parecem paredes.
Que bobagem!- disse o segundo sábio, tocando na presa do elefante - Este animal é pontudo como
uma lança, uma arma de guerra.
Ambos se enganam - retrucou o terceiro sábio, que apertava a tromba do elefante - Este animal é
idêntico a uma serpente! Mas não morde, porque não tem dentes na boca. É uma cobra mansa e
macia.
Vocês estão totalmente alucinados!- gritou o quinto sábio, que mexia as orelhas do elefante - Este
animal não se parece com nenhum outro. Seus movimentos são ondeantes, como se seu corpo
fosse uma enorme cortina ambulante.
Vejam só!Todos vocês, mas todos mesmos, estão completamente errados!- irritou-se o sexto sábio,
tocando a pequena cauda do elefante - Este animal é como uma rocha com uma cordinha presa no
corpo. Posso até me pendurar nele.
E assim ficaram horas debatendo, aos gritos, os seis sábios. Até que o sétimo sábio cego, o que
agora habitava a montanha, apareceu conduzido por uma criança. Ouvindo a discussão, pediu ao
menino que desenhasse no chão a figura do elefante. Quando tateou os contornos do desenho,
percebeu que todos os sábios estavam certos e enganados ao mesmo tempo. Agradeceu ao menino
e afirmou:
- Assim os homens se comportam diante da verdade. Pegam apenas uma parte, pensam que é o
todo, e continuam tolos!
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PÓS-VERDADE:
COMO COMPREENDER UM TEMPO EM QUE SE NEGA
A FILOSOFIA E AS CIÊNCIAS HUMANAS
PINT OF SCIENCE – GOIANIA, 22.05.2019
O que venho abordar aqui hoje não tem sido novidade em minhas reflexões e indagações por essa década
deste século, em que o imponderável tem se imposto mais do que em outros tempos. Digo isso até de forma
um pouco provocativa, porque sei, como historiador, o quanto é absolutamente impossível estabelecer
comparações entre épocas, não somente pela natureza dos fatos, mas pelas próprias transformações que as
sociedades passam.
Embora no senso comum as pessoas repitam com frequência que a “história se repete”, isso é uma bobagem
que só demonstra o quanto se desconsideram as relações temporais. Imaginam haver uma repetição de
situações que são completamente desvinculadas de realidades passadas, dentro de outros contextos e noutro
tempo. É a absoluta ausência de capacidade crítica sobre o que é a história e como cada um de nós se situa
no seu tempo. Em nosso tempo e na compreensão dos tempos passados.
Não quero travar aqui uma discussão de caráter acadêmico, até pelo perfil desse movimento “Pint of
Science”, de benfazeja inovação. Que isso que acontece aqui, agora, aconteceu ontem e antes de ontem, por
diversas partes do mundo, numa tentativa de informalmente trazer às pessoas que desejam sair à noite e
relaxar, em busca de um sossego para se livrar das ansiedades e pressões do cotidiano, possa acontecer por
muito mais vezes e se torne um hábito contumaz. Um elo saudável entre o lazer, o conhecimento e o saber.
Por isso farei muito mais uma exposição informal, procurando estabelecer um diálogo não somente com
quem está aqui ouvindo, mas uma espécie de reflexão em voz alta, para que possa também me ajudar a
compreender tudo que acontece à nossa volta, numa rapidez estonteante e num movimento de insanidade
social, numa época em que ser normal pode te deixar meio deslocado da realidade.
Como eu disse inicialmente, venho escrevendo em meu blog – Gramática do Mundo – sobre esse tema
desde que o criei, em 2010. Lá atrás o termo “pós-verdade” ainda não havia se destacado como um
neologismo1
que passaria a caracterizar uma era, marcada pela absoluta ausência de critérios para definir
um acontecimento, ou até mesmo uma notícia inverossímil, desprovida de qualquer sentido ou que tendo
sido inspirada em algum fato real. Mais do que isso, uma era onde se desconstruía a verdade elaborada e se
afirmava a versão desejada. Nada mais importava para que se pudesse estabelecer a verdade, já não havia
mais critério. Verdade passaria a ser aquilo que a minha paixão, a minha fé, o meu sentido desejava que
fosse. O racionalismo, imperioso movimento iluminista que desbancou a era das trevas medievais, decaía
em descrédito juntamente com a filosofia, a história e a sociologia. Claro que isso feito por forças desejosas
em abominarem a crítica.
Em 2016 “pós-verdade” (“post-truth”), foi citada pelo Dicionário de Oxford como a palavra do ano. Então
não estamos falando de algo que decorre de uma conjuntura especifica nossa, advinda de um processo
político complicado que culmina em um personagem que se torna presidente e foi beneficiário desse
ambiente criado por “fake News”, o instrumento que consolida a era da pós-verdade, em todas as suas
dimensões.
Esse fenômeno é característico de uma época que só pode ser compreendida em toda a sua dimensão
histórica. Eu diria que o auge desse tempo de desvio de rota na forma como a sociedade se posicionava foi
o momento em que estourou a crise econômica, no ano de 2007, embora suas causas já viessem de bem
1
Neologismo é um fenômeno linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, ou na atribuição
de um novo sentido a uma palavra já existente. Pode ser fruto de um comportamento espontâneo, próprio do ser
humano e da linguagem, ou artificial, para fins pejorativos ou não (Wikipedia)
4
antes. Mas talvez pudéssemos recuar mais no tempo, e destacar um fato que, literalmente, implodiu as mais
ferrenhas convicções e abriu caminho para uma década de instabilidade crescente, dentro de cada país e
entre boa parte deles. O ataque às Torres Gêmeas, o “World Trade Center”, à Casa Branca (esse ataque
fracassado) e ao Pentágono. O que se sucedeu nos anos seguintes abriu a caixa de pandora, e libertou todos
os males que poderiam gerar perversidades e destruir a democracia e a política.
Vamos fazer a junção dos dois momentos. O “Patriot Act” significou a ausência de liberdades individuais e
a completa perda de privacidade nos EUA e para o mundo. O medo, gerado pelo ataque terrorista, e o uso
desse sentimento a partir de então, para justificar as mais perversas e inomináveis reações, transformou o
mundo e sinalizou uma mudança fundamental na maneira as sociedades se comportavam até então, a partir
de toda a propaganda que se fez em torno da globalização.
A mentira como arma sempre esteve presente ao longo da história da humanidade. Mas a forma como ela se
torna algo quase unânime decorre da exposição permanente de uma versão fantasiosa, repetida infinitas
vezes e “demonstrada” por meio de informações não comprováveis, mas ditas enfaticamente por
autoridades que a repete incessantemente sem que o contraditório seja apresentado. Pouco a pouco as
pessoas vão assimilando aquilo que é dito com insistência, e assim se forma a “opinião pública”. O grande
momento disso foi toda a propaganda feita para justificar a invasão do Iraque pelos EUA, com base em
informações falsas e adredemente construídas com o apoio da grande mídia. Sim, a grande mídia é
responsável pela origem das fake news.
Não vou entrar na análise do que aconteceu desde então, mas os fatos demonstram os equívocos cometidos
nessas ações, e a perversão gerada com a destruição de países, ampliação do deslocamento de populações
pelo mundo, insegurança, aumento da violência, e... a crise econômica global, cujo ápice se deu entre 2007
e 2010, mas que segue gerando instabilidade na economia mundial.
No entanto, as análises feitas pelos grandes jornais poucas relações fazem entre esses atos e a crise mundial.
É como se de repente, do nada, as pessoas começassem a rever seus conceitos, aleatoriamente.
Mas nada é aleatório, tudo decorre de algum tipo de ação, não se pode falar em acaso, mas em causas.
Contudo, negar a verdade, como estratégia de ação e de desconstrução do seu oponente, passou a assumir a
condição de praticamente uma arma, a partir desses fatos que eu acabei de citar. E, em meio à falta de
perspectivas, diante de uma grave crise que quase quebrou o sistema financeiro mundial, o medo adquiriu
uma nova conotação. Já não mais somente diante da guerra, ou da violência cotidiana, mas diante da
ausência de caminhos que indicassem as melhores alternativas para que cada um pudesse acreditar que o
futuro seria melhor.
Passamos a vivenciar, principalmente a partir de 2010 uma virada no comportamento das pessoas,
induzidas por discursos radicais, sectários, alimentados pela fé e instrumentalizados por práticas ultra-
conservadoras, disseminadas em um ambiente tóxico que só piorava como consequência da crise
econômica.
Dois momentos foram marcantes para acentuar esses comportamentos, em meio a um mundo que já não
girava somente em uma direção, mas completamente sem rumo. O primeiro foi a eleição de Barack Obama.
A bem da verdade as “fake-news”, em todas as suas dimensões, se amplificaram incontrolavelmente a partir
de então. Sua eleição despertou nos setores mais conservadores, estimulados pelo fundamentalismo
religioso, um ódio étnico-racial visceral e uma intolerância inédita na relações políticas naquele país. O
“Tea Party”, grupo que surgiu se contrapondo ao Obama se encarregou de espalhar mentiras o envolvendo e
isso prosseguiu por todo o período em que ele foi presidente. Transformou-se numa estratégia política que
teve sua experimentação mais determinante no plebiscito que aconteceu no Reino Unido, quando a
população foi chamada para decidir sobre a continuidade ou não na União Européia. O “Brexit” como esse
movimento foi chamado se constituiu no laboratório por excelência de uma nova prática política, onde a
mentira espalhada persistentemente pelas redes sociais passou a adquirir ares de verdade, e os fatos eram
desconstruídos por discursos toscos, sem fundamentação na realidade, mas que se escoravam nas
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decepções, frustrações, sentimentos de desprezo pelas instituições e pela política, e na incapacidade das
pessoas refletirem criticamente sobre realidades complexas, em um ambiente em que as tecnologias dos
smartfones reduz a capacidade de compreensão, por meios de uma inundação de notícias. As desejadas, e
tornadas críveis, passavam a serem aquelas que melhor se inseriam nos desejos de cada um. A verdade
passa a ter, então, a conotação que cada um deseja dar a suas escolhas. Isso pode representar o fim da
democracia e uma plena derrota da política.
A partir do Brexit, e logo em seguida, com a eleição de Donald Trump, a palavra “fake News” foi
massificada por este que viria a ser o presidente dos EUA. E passou a ser utilizada contra a imprensa toda
vez que suas idéias eram contrariadas ou que reportagens emitiam fatos pérfidos de sua trajetória de rico
empresário. Os ataques nas eleições contra Obama e a sua candidata Hilary Clinton eram repetidas e
compartilhadas celeremente por seus seguidores, sem que houvesse a menor preocupação em checar os
fatos. Ao mesmo tempo, e de forma oportunista, a milhares de quilômetros de distância alguns jovens
penetravam no mundo digital e alimentavam as mentiras, a fim de atraírem para os seus sites o maior
número de visualizações e dessa forma faturarem dinheiro em cima de “fake News”. A cidade de Velez, na
Macedônia, ficou famosa por abrigar um grande número de sites que se especializaram em interferir nas
eleições dos EUA e em outras partes do mundo. Mas isso não se deu somente de forma espontânea, houve
método nisso. Steve Bannon foi talvez o principal estrategista por trás desse processo de difusão de fake
News. Assim como teve também uma participação importante no “Brexit” e nas eleições aqui no Brasil.
Mas é preciso, diante disso, e eu procurei contextualizar para que pudéssemos compreender como se dá
esse fenômeno das fake News, e, principalmente, porque entramos nessa “era da pós-verdade”, saber duas
coisas: o que é a verdade; e porque as pessoas se dispõem a acreditar em mentiras.
Primeiro é necessário compreendermos que a verdade não é, jamais, absoluta. Ela é sempre relativa e
possível de ser questionada, e até mesmo, revista. Nesse aspecto é salutar saber que é a ciência e a
capacidade crítica de investigar e avançar para além do que se deseja demonstrar como definitivo quem
pode colocar qualquer fato sob questionamento. Uma verdade só poderá ser negada a partir da investigação
científica e da comprovação de elementos que, primeiro desconstrua com comprovações aquilo que se
estava afirmando até então, e que, em sequência, se apresente as comprovações do que se deseja apresentar
como algo a substituir o que até então era verdade. Por isso que, em minha opinião, a dialética se constitui
como o melhor método de discussão e investigação. Na medida em que propõe analisar qualquer fato a
partir da identificação de contradições que aponte a falseabilidade naquilo que se apresenta, e, ao mesmo
tempo, se impõe como uma antítese daquilo. Na impossibilidade de que essa antítese se apresente como
algo definitivo, de difícil questionamento, a tese é o caminho para que se possa fazer a junção do
conhecimento anterior com as novas compreensões que pretendem negá-lo.
O que não se pode, jamais, é desconsiderar algo sem que se tenham elementos comprobatórios para isso. A
humanidade avançou exatamente estabelecendo esses pressupostos, em que a cada novas descobertas se
ampliavam o horizonte dos conhecimentos e se avançava na produção de algo qualitativamente superior.
Que não é, jamais, definitivo.
O que se pretende hoje, com alguns discursos obtusos, na desqualificação de áreas importantes das ciências
humanas, é erradicar essa possibilidade de interpretação dialética, visando colocar determinadas visões de
mundo, e interpretações da realidade, como sendo definitivas, ou imutáveis. Isso significa construir um
mundo totalitário, onde o pensamento crítico se tornaria algo marginal e “perigoso”, como aliás funcionou
em um tempo tenebroso, e por isso denominado de trevas medievais. Cito muito o filme “O Nome da
Rosa", que retrata um tempo onde o conhecimento estava sob controle da igreja e os que ousassem pensar
de forma diferente seriam submetidos a julgamentos da inquisição e a serem mortos por questionarem os
dogmas religiosos.
A outra questão, para além da verdade, que precisamos compreender é como e porque as pessoas se
dispõem a acreditar em coisas que são ditas sem que haja a menor lógica por trás, ou sem que exista
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qualquer comprovação de que aquilo é fato e/ou real. Daí a importância de entender a contextualização. O
que vai poder nos aproximar da compreensão do que faz isso ser possível é entender historicamente as
condições reais de existências dessas sociedades e dessas pessoas, que as empurraram numa direção de
cegueira e de crença radical em versões de acontecimentos que não correspondem aquilo que entendemos
ser a verdade, porque possível de ser comprovada.
Naturalmente, colocarei aqui essas versões como sendo as verdades vistas por esses segmentos. Digamos
que as fake news sejam para essas pessoas suas verdades. Para nós, que trabalhamos com o raciocínio
crítico, dialético, a dúvida e a necessidade de comprovação é condição necessária para acreditarmos. O que
move, por outro lado, as pessoas que acreditam em fake news?
Bom, aí entramos em outras análises que se eu fosse me aprofundar não sairíamos tão cedo daqui. Creio
que resumidamente eu poderia colocar como sendo a junção de como a tecnologia tem sido usada para
difusão da informação e como também tem se constituído num componente forte do fortalecimento do
poder das igrejas. Isso, com o uso em larga escala das redes sociais e das mídias, disseminam elaborações
de fatos, versões ao sabor das conotações ideológicas (e aqui não faço distinção, isso serve para as igrejas,
mas serve também para quem segue alguma ideologia, da esquerda à direita) que, repetidamente, se
constitui como aquela verdade que se enquadra no viés ideológico, ou no interesse dos dogmas que se
inspiram em outras verdades ditas como absolutas e imutáveis.
Com esses componentes, aliado às questões conjunturais (crise econômica, crise política, crise de valores,
violência, xenofobia, intolerância... etc...) nos situamos numa realidade em que as pessoas, a partir da
própria situação de radicalidade que ela foi construindo a partir dessas condições analisadas, usam da
seletividade para ler e acreditar somente naquelas notícias e fatos que lhes interessam. Cada um passa,
então, a fazer um filtro nas informações, e eliminam assim, o contraditório. Dessa forma não conseguem
identificar até onde aquilo no qual elas acreditam pode ou não ser verdade. Não há essa possibilidade do
crivo quando eu elimino o contraditório, afasto-me do outro que pense diferente, abomino qualquer outro
tipo de ideia que se contraponha à minha, não aceite um outro indivíduo pelo jeito dele ser, por sua
condição social, de gênero, de escolhas políticas. Assim, cada um passa a ter a sua verdade, e a
compartilhá-la somente com quem a aceite.
Ora, para fechar essa nossa conversa, eu finalizaria levantando uma questão fundamental para esse
momento em que vivemos. A nossa humanidade depende de nossa capacidade de aceitação do outro, das
nossas diferenças, a diversidade é a nossa maior riqueza. As pesquisas científicas existem para
demonstrarem se aquilo que vemos, assistimos e acreditamos, merece ou não a nossa credibilidade. E a
filosofia, a história e a sociologia são áreas da ciência que, juntamente com outras, tratam das relações
humanas, das nossas condições sociais, da forma como nos comportamos e vivemos em sociedade. Na
medida em que abominamos, primeiro, a necessidade de comprovarmos aquilo que nos é mostrado como
verdade, e depois, quando extraímos do rol das ciências aquelas que são responsáveis pela compreensão de
nossas condições humanas, estaremos nos direcionando para um ambiente cada vez mais permissivo do
ponto de vista das relações sociais, intolerante e de não aceitação das diferenças. Penso que isso é
extremamente perigoso, e, guardando-se as devidas proporções, e sem querer ser anacrônico, vai na direção
daquele formato de mundo que o nazi-fascismo tentou fundar em meados do século XX e foi responsável
pela morte de dezenas de milhões de pessoas.
Vivemos um tempo difícil, é verdade, mas devemos reafirmar a necessidade de estabelecermos relações
sociais, solidárias e tolerantes. Enquanto cientistas sociais sabemos da nossa importância. Mas sabemos
também que perfidamente existem mentes reacionárias que agem de maneira sinistra, insensível, e visam
criar um modelo de sociedade onde a tirania e a ausência da crítica conduza as pessoas cegamente em
direção a abismos. Precisamos de um novo movimento iluminista. Luz, e que a claridade impeça que nosso
futuro seja de trevas.
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Para terminar, já que comecei com uma fábula, cito uma outra história popular. De um garoto que se
divertia em mentir. Certa vez com os amigos indo nadar em um rio ele resolveu aprontar suas mentiras.
Gritou que estava se afogando. Todos correram para acudi-lo, mas ele se derramou em risos com sua
mentira. Da segunda vez ele repetiu o fato, e os amigos imaginaram que daquela vez era verdade. Mas o
mentiroso se divertia com isso. Na terceira vez em que ouviu os seus gritos os amigos se negaram a ir, e
acreditavam ser mais uma brincadeira. Só que desta vez era verdade. Assim o garoto conseguiu fazer com
que seus amigos acreditassem que o que dizia era mentira, mesmo que fosse verdade. E a mentira passava a
ser algo natural para ele e os que o seguiam.
Creio que o melhor é construirmos um mundo em que a verdade seja questionável, não por meio de
mentiras, mas por nossa capacidade de crítica, de dúvida e de curiosidade sobre nós mesmos e os
fenômenos que nos cercam.
Minha máxima para hoje e sempre: duvidem de tudo! A verdade estará mais próxima de nós se formos
questionadores da realidade. E fujamos das bolhas que as redes sociais se tornaram. Enquanto é tempo.
Obrigado e abraços.
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O MUNDO NÃO É PLANO. DESCONSTRUINDO A PÓS-MODERNIDADE
Publicado em 01 de agosto de 2017
https://gramaticadomundo.blogspot.com.br/2017/08/o-mundo-nao-e-plano-desconstruindo-pos.html
É instigante falar do “tempo” e do “espaço”, e é necessário, para compreendermos as
transformações e o processo histórico. Trata-se de categorias que se interligam na produção do
saber constituindo tanto a cultura, quanto o território, e é impossível separá-las, pois são
dependentes uma da outra, conforme bem representado numa frase de Elisée Reclus (s.d, p. 108-
114): “Se a História começa primeiro por ser ‘toda geografia’, como disse Michelet, a geografia se
torna gradualmente ‘história’ pela relação contínua do homem sobre o homem”. Essas categorias
representam o caminho pelo qual necessariamente temos de percorrer para compreender toda a
nossa existência, seja no passado, seja no presente. Assim, podem-se compreender a nossa
trajetória e a relação com a natureza, para definição do caminho futuro da humanidade.
O ESPAÇO E A SOMA DOS TEMPOS
Vivemos em um mundo de rápidas transformações. A abordagem dialética que fazemos da vida
nos mostra isso. O impulso que muda, incessantemente, natureza e sociedade é dado por
contradições, pelo antagonismo, pelo estranho “equilíbrio” ecológico que força um choque entre
contrários para manter e preservar a vida, mas que nas relações sociais pode levar a uma inevitável
destruição, principalmente por sermos, nós, humanos, os maiores predadores da natureza. E o que
é pior: predadores de nossa própria espécie.
Como compreender, à luz da história e da geografia, o mundo contemporâneo, cujas características
principais são a velocidade, a rapidez e a profusão de objetos, o intensivo uso da técnica, de novas
espacialidades, de um crescente processo de urbanização e da mercantilização, não somente dos
objetos, mas quase que da totalidade das relações humanas. O espaço da cidade se fragmenta em
uma multiplicidade de territórios, e novas territorialidades definem a maneira como o campo se
enquadra nos interesses sistêmicos, na relação centro-periferia do mundo capitalista.
Espaço, urbanização e território. Através dessas categorias e processos buscamos na geografia o
entendimento de como vamos nos adaptando e
transformando a paisagem com o uso da técnica e de
novas tecnologias. Tecnologias, que, vale dizer,
encontram-se à disposição dos próprios geógrafos,
visando buscar informações geoprocessadas mediante
mecanismos sofisticados, uso de satélites capazes de
monitorar todos os cantos do planeta. Nos últimos anos
com o uso crescente de VANT (Veículo Aéreo Não
Tripulado), mais conhecido por sua origem na guerra
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com o nome de “drones”. Isso faz lembrar Milton Santos (1996), quando afirma que já não
podemos mais falar de natureza natural, na medida em que o ecúmeno se torna possível de ser
conhecido e de estar sujeito à ação do homem por mais distante que seja o lugar.
Mas ao definirmos o espaço, pode-se precisar a época de que estamos falando? É possível destacar
espacialidade, territorialidades – mesmo a paisagem que se apresenta para nós como uma
somatória de tempos passados –, sem considerar uma relação temporal em todo o processo de
mudança que se desenrola em nossa volta? Importante lembrar que a vida, de uma forma geral – e
a nossa, em particular – não é estática. Tudo, aliás, é movimento, é transformação, e o que
possibilita isso é o tempo.
Em cada segundo de nossas vidas, encontramos registradas ações que promovem as mudanças. E
somente a nossa memória é capaz de fazer isso. É a nossa memória que possibilita compor a
história e também registrar cada momento através do estudo e da pesquisa científica.
Vivemos, em verdade, incessantemente a história; por isso pode-se afirmar que não existe o
presente, ou que ele é representado somente em frações de segundos, que só podem ser registrados
estaticamente pela fotografia. Porque no instante seguinte, ele já é passado.
Isso é brilhantemente ilustrado na canção “Como uma onda” (Motta, 2000), interpretada por Lulu
Santos:
Nada do que foi será, de novo do jeito que já foi um dia/ tudo passa, tudo sempre
passará,/a vida vem em ondas, como o mar,/ num indo e vindo infinito.
Tudo que se vê não é igual ao que a gente viu há um segundo/ Tudo muda o tempo todo
no mundo/ Não adianta fugir, nem mentir pra si mesmo agora/ Há tanta vida lá fora, aqui
dentro sempre/ como uma onda no mar/ Como uma onda no mar...
O tempo foi definido arbitrariamente quando se trata de contarmos nossa história. Atendeu a
diversos fatores, principalmente de origem religiosa, estabelecendo assim uma diferenciação na
temporalidade dos fatos históricos do ocidente fixados a partir do calendário cristão (ou Juliano)
estabelecido na Idade Média, do calendário judaico, do muçulmano, do chinês etc. Impõe-se o
primeiro como referencial em decorrência do poderio europeu que se espalhou pelo mundo no
processo de colonização, durante o período absolutista, até chegarmos aos dias atuais, em que
estamos conectados com todo o mundo em tempo real, como consequência dos impressionantes
progressos dos meios de comunicação.
Fora o tempo que conta a história da humanidade, deparamo-nos ainda com o tempo geológico,
que permite entender o processo de formação da Terra, ou do tempo estudado por meio da física,
que apresenta o universo em formação e se explica em anos-luz, para dizer da distância entre os
pontos mais distantes e nas mais variadas galáxias.
É claro que tudo isso significa nada mais do que tentarmos entender a vida, as nossas origens e
todo o processo de transformação que nos leva a um ponto de interrogação crucial – a morte –,
que, embora se apresente como o fim de tudo, pode significar também um começo, como num
devir hegeliano.
Contudo, o tempo nada mais é do que o acontecer sucessivo, simultâneo, imediato, da
espacialidade, que representa o movimento e a transmutação do/no espaço. A mudança, o efêmero,
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possibilita compreendermos porque a vida é uma constante renovação do ir-e-vir, do começo e do
fim, do novo e do velho.
Novas possibilidades estão sendo geradas a partir desse entrelaçamento criativo,
possibilidades de um materialismo simultaneamente histórico e geográfico; de uma
dialética tríplice de espaço, tempo e ser social; e de uma reteorização transformadora das
relações entre a história, a geografia e a modernidade.(Soja, 1993, p. 19):
Mas é preciso distinguir o tempo preciso do acontecer, dos eventos que se realizam num
determinado espaço e vermos num possível atavismo a sucessão de acontecimentos que se
interligam e carregam características e marcas do que ficou. Que se entrelaçam e explicam a
simultaneidade da vida embora nem sempre possível de discernimento.
Avançamos um pouco pela interpretação feita por Santos (1996, p. 127):
O tempo como sucessão, o chamado tempo histórico, foi durante muito tempo
considerado como uma ase do estudo geográfico. Pode-se, todavia, perguntar se é assim
mesmo, ou se, ao contrário, o estudo geográfico não é muito mais essa outra forma de ver
o tempo como simultaneidade: pois não há nenhum espaço em que o uso do tempo seja
idêntico para todos os homens, empresas e instituições. Pensamos que a simultaneidade
das diversas temporalidades sobre um pedaço da crosta da Terra é que se constitui o
domínio propriamente dito da Geografia. Poderíamos mesmo dizer, com certa ênfase, que
o tempo como sucessão é abstrato e o tempo como simultaneidade é o tempo concreto, já
que é o tempo da vida de todos. O espaço é que reúne a todos, com suas múltiplas
possibilidades, que são possibilidades diferentes de uso do espaço (do território)
relacionadas com possibilidades diferentes de uso do tempo.
Saindo um pouco da representação conceitual e da relação entre essas duas categorias que se
interligam, vamos ao encontro de outra expressão, para definir o discurso dos que pretendiam que
o final do século XX tenha sido um momento em que a humanidade teria transitado da
modernidade para a pós-modernidade.
DESCONSTRUINDO A MODERNIDADE
É preciso primeiro termos claro que o sentido de modernidade e pós-modernidade tem origem
diferente dos significados que lhes são imputados. Modernismo teria origem nicaraguense, viria
com a criação de uma vertente que buscava livrar-se da influência cultural espanhola (século XIX).
O pós-modernismo seria uma compreensão da existência de uma corrente conservadora no
movimento modernista. Essas expressões, a partir de então, passaram a ser utilizadas, em vários
momentos da história, para definir as mudanças. Seja para se referir ao industrialismo crescente do
século XIX, ou às guerras mundiais, à revolução Meiji no Japão, à revolução soviética e por aí
afora, identificam cada momento expressivo da História como início ou fim da modernidade, e
este em relação à pós-modernidade.
A justificativa para tecer aqui tais considerações, brilhantemente feitas no trabalho do historiador
britânico Anderson (1999), está no fato de sermos chamados a nos referir à “desconstrução” do
mundo. Ou, poderíamos dizer, ao “fim do território”, “desterritorialização”, geograficamente
falando. São expressões que, “carregadas de ideologias”, representaram uma nova maneira de
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buscar entender o mundo a partir das intensas transformações que caracterizaram as décadas finais
do século XX: da modernidade à pós-modernidade.
Contudo, para compreendermos mais amplamente o significado de Modernidade, precisamos ir em
direção à representação de todo um período marcado pelos ideais renascentistas, mas
principalmente iluministas, rousseaunianos ou cartesianos, responsáveis por fundamentação
humanista e materialista, necessária à condução de uma nova época que se opunha fortemente às
trevas medievais, cerceadoras da liberdade e inibidora do conhecimento, principalmente no tocante
às ciências.
Primeiro a revolução Francesa, que em nome da liberdade simboliza o início da era moderna. Seus
ideais, embora revolucionários, distanciaram-se do povo, para quem o discurso era feito, mas
significaram o início de uma época que virá marcada pela intensa transformação das forças
produtivas. Depois a Revolução Russa, que apontando para o fracasso da primeira e atingindo
duramente a burguesia descortina uma nova época sob o comando do proletariado e caminhando
para uma revolução mundial. Embora se diferenciando radicalmente na questão de classe, em
essência, os objetivos das duas não são contraditórios.
O fim da modernidade, então, será definido pelo que vai ser considerado de fracasso desses dois
projetos calcados nos ideais iluministas. As três últimas década do século XX passaram então a ser
marcadas por uma mudança considerável na concepção que se tinha de sociedade e no papel que
desempenhavam as instituições que surgiram daquelas revoluções e visavam garantir condições de
vidas dignas para a maioria da população. Isso tanto pelo socialismo, com uma concepção de
poder e de controle de Estado marcada pelo planejamento e por investimento em setores que
privilegiavam as necessidades do povo, quanto pelo capitalismo, no período em que vigorou o
welfare state (estado de bem-estar social). Esse último significou a estabilidade do sistema e
reduziu as diferenças sociais na maioria dos países europeus e Estados Unidos da América.
A nova era que se descortinou veio marcada por um crescente egoísmo, sob uma lógica que vê na
riqueza fácil, mas mediante uma exploração desenfreada, a condição de se obter sucesso na vida e
se atingir o progresso almejado, não mais dentro de objetivos coletivos ou sociais, mas claramente
individualistas. Não se pensava mais prioritariamente na construção de valores que pugnassem
pela defesa dos interesses humanísticos. Fortalecia-se a lógica de que a busca pelo sucesso pessoal
seria a garantia da solução para uma época em crise em que a hegemonia do poder, do liberalismo
econômico, era contida pelo discurso socializante.
A década de 1980 representou uma época de crise da economia de mercado que afetou gravemente
os países socialistas com seus planejamentos estatais, mas com fraco desempenho na produção de
mercadorias que pudessem disputar mercados. Mercadorias obsoletas circulando por um mercado
em crise, portanto fortemente disputado, em que contam mais a qualidade do produto e o custo que
se racionaliza com um forte investimento em tecnologia, o que equivale a preços mais baixos,
principalmente se a demanda for grande. Por isso, dentre outras causas, o socialismo dito “real”
estremeceu, entrou em crise e caiu quase que paralelamente à queda do que se tornara símbolo
para o Ocidente da chamada “economia de comando” (KURZ, 1992) e dos ideais socialistas: o
muro de Berlim.
12
Com a crise do socialismo abriu-se caminho para se atingir o welfare state, pondo fim a uma era
marcada pelos ideais iluministas. Assim os setores conservadores impuseram uma nova política, a
neoliberal, atacando fortemente os valores incorporados pelas revoluções do século XIX e do
socialismo, e sinalizam para um novo tempo que virá marcado, segundo Santos (1984, p. 33), pela
racionalidade, fluidez e competitividade.
Nesses espaços da RACIONALIDADE, o mercado é tornado tirânico e o Estado tende a
ser impotente. Tudo é disposto para que os fluxos hegemônicos corram livremente,
destruindo e subordinando os demais fluxos hegemônicos corram livremente, destruindo e
subordinando os demais fluxos. Por isso, também o Estado deve ser enfraquecido para
deixar campo livre (e desimpedido) à ação soberana do mercado.
(...)
A exigência da FLUIDEZ manda baixar fronteiras, melhorar os transportes e as
comunicações, eliminar os obstáculos à circulação do dinheiro (ainda que a das
mercadorias possa ficar para depois), suprimir as rugosidades hostis ao galope do capital
hegemônico.
A FLUIDEZ é a condição, mas a ação hegemônica se baseia na COMPETITIVIDADE.
Nos tempos presentes a COMPETITIVIDADE toma como discurso o lugar que, no início
do século, ocupava o Progresso e, no após-guerra, o Desenvolvimento.
A competitividade é um outro nome para a guerra, desta vez uma guerra planetária,
conduzida, na prática, pelas multinacionais, as chancelarias, a burocracia internacional, e
com o apoio, às vezes ostensivos, de intelectuais de dentro e de fora da Universidade.
Caminho aberto para as mudanças, entramos numa época verdadeiramente global, com um forte
impulso em áreas que levariam a uma mudança substancial nas relações sociais, na reconfiguração
geopolítica do mundo, nos valores éticos, morais e culturais.
PÓS-MODERNIDADE: FIM DE TUDO E COMEÇO DE NADA
Passamos a presenciar no fim do século XX uma transformação socioespacial profundamente
acelerada, se compararmos a outros tempos. Uma época em que a aceleração contemporânea dos
fortes, ricos e tecnologicamente bem desenvolvidos contrasta com o tempo lento dos fracos,
pobres e deserdados sociais. A utopia coletivista foi substituída pela corrida ao sucesso individual,
cronometrada pelos índices de qualidades aferidos pelo mercado. Os números, as estatísticas, as
retas e curvas dos gráficos que apontam os caminhos da riqueza sintetizam a frieza dos
relacionamentos humanos. As relações mecânicas, que entronizam os incluídos neste “admirável
mundo novo”, podem servir como exemplo para explicar as enormes contradições acerca do que
ainda consideramos viver societariamente, e se ainda é possível chamar civilização, na acepção
dada ao termo por Braudel (1989), as condições indignas de vida daqueles que não passam de um
traço nesses índices e estão excluídos dos alcances das maravilhas tecnológicas do mundo “pós-
moderno”.
A dialética nos ensina que a contradição é o elemento principal do processo histórico, quer das
transformações que ocorrem quer nas paisagens, quer da própria funcionalidade do espaço, nas
novas espacialidades que se definem no compasso do tempo, como também nas mudanças sociais,
13
nas relações que vão se estabelecendo entre os indivíduos e que possibilitam a eles ultrapassarem
limites. Negar-se e afirmar-se, para depois voltar a negar. O mundo é um verdadeiro laboratório
onde as experiências presentes colocam em xeque as verdades do passado e deixam dúvidas cada
vez maiores sobre as (in) certezas dos novos tempos e do que virá. O novo e o velho se
confundem, e enquanto um demora a surgir o outro teima em não desaparecer. Este é um dilema a
ser enfrentado em qualquer transição.
O mundo é um imenso arcabouço de contradições. Mas muitas delas encontram-se submersas,
relegadas a uma insignificância desproporcional diante da importância que podem ter nas
definições dos rumos que a humanidade pode seguir.
Aparentemente alheios a isso, maravilhados pelos avanços tecnológicos e inebriados pelo discurso
que se impõe pelo poder da mídia e pelos interesses dominantes, os indivíduos submetem-se à
força de argumentos supérfluos, e veem suas condições sociais pela lógica calvinista. Acreditando
piamente na possibilidade de inserção na sociedade de consumo, abdicam de seus direitos como
cidadãos para cada vez mais os substituírem pelos diretos de consumidores. Agem conforme
imaginava Feuerbach – por isso duramente criticado por Karl Marx – partindo da alienação
religiosa e da duplicação do mundo em religioso e terreno. O trabalho que se propõem consiste em
dissolver o mundo religioso em seu fundamento terreno, como apregoam “As teses sobre
Feuerbach”, publicadas em 1845. Apegam-se assim à ideia e à crença da inserção num mundo
hostil e profundamente apartado. Pela ideia acreditam no rompimento das castas, sonham em ser
“emergentes” e desconsideram a estratificação social cada vez mais rígida. Não imaginam sequer
que todo um desmonte estatal à sua volta empurra-os cada vez mais em direção a um fosso
profundo cujas bordas estão cada vez mais distantes.
Nesse mosaico que representa o mundo “pós-moderno” um novo papel foi reservado às cidades.
Em um processo de desterritorialização, que nada mais é do que a reterritorialização: “Os
territórios sempre comportam dentro de si vetores de desterritorialização e reterritorialização”
(HAESBAERT, 2004, p. 127). São elas, as cidades, também exemplos notáveis das contradições
dessa nova época. Do caos ao planejamento tanto jurídico (das leis) quanto estrutural; à redenção,
enquanto lócus assimilador das transformações tecnológicas, e ao novo caos, caracterizado pelo
descompasso entre o arcaico e o moderno, presente em suas formas e em suas paisagens, em seus
fluxos e em suas dinâmicas contraditórias; de centro, que consolida o poder dos indivíduos sobre
as técnicas e as formas, à artificialização da natureza ao seu interesse, principalmente
mercadológico, e de novo ao caos, marcado pelo uso disforme de suas potencialidades, mais a
serviço das máquinas do que dos indivíduos; dos traçados arquitetônicos que consideram mais os
automóveis do que os pedestres, e da transferência para o urbano da lei das selvas, onde o mais
forte sobrevive e resta ao mais fraco apenas se defender ou se esconder.
Assim, seguimos nessa relação tempo-espaço um rumo incerto, mas de uma rapidez
impressionante. Construímos máquinas que engole gente, como na visão profética dos tempos
modernos de Charles Chaplin, mas que são elas próprias rapidamente substituídas por outras que
aceleram ainda mais o processo produtivo. A relação homem-natureza estreita-se perigosamente
visto assim pela rapidez com que são esgotados os recursos naturais, para que possa atender à
visão produtivista e consumista da sociedade de consumo, estritamente dentro da lógica egoísta do
lucro e da ganância que caracteriza o sistema.
14
Mas transformação alguma vivida pelo sistema capitalista até então conseguiu ser mais eficaz, do
ponto de vista de sua lógica, do que os avanços obtidos, atualmente, com os deslocamentos entre
os lugares e a rapidez com que chegam as informações até o mais recôndito lugar do planeta.
Velocidade, informação e ciência a serviço do capital: esses são os ingredientes principais dessa
nova etapa da humanidade. Mas tudo isso, embora disperso pelo mundo, é mantido sob um rígido
controle das grandes corporações financeiras, agora não mais multinacionais, mas transnacionais,
concentradoras de lucros exorbitantes e responsáveis pelo aumento do desemprego, embora
ganhem isenções fiscais dos estados sob o pretexto de empregabilidade. Mas seus cartéis e
oligopólios controlam mercados e destroem os pequenos comércios, como a preparar caminho para
uma necrópole de grandes prédios de paredes destruídas e metais enferrujados. O exemplo disso é
Detroit, uma cidade falida, que viu sua população de mais de 2 milhões se reduzir a pouco mais de
500 mil habitantes[1]. O símbolo de uma realidade onde as corporações se impuseram, mas os
novos tempos marcados pela globalização transferiu riquezas acumuladas virtualmente em um
mundo que migrava rapidamente para uma era de tecnologias. Se novas detroits não surgiram
(ainda) se deve a absoluta adequação aos novos tempos, às custas da aceitação religiosa das
desigualdades sociais, da apartação da sociedade e na crença fatalista do enriquecimento
individual pela fé.
NÃO É UMA CONCLUSÃO
Dessa maneira nos incorporamos a uma nova realidade e a um novo discurso, para os quais
surgiriam elaborações teóricas que visariam dar um encaixe final a essa época em transformação.
As ideias, os conceitos, os valores e a moral passam a se alterar a fim de atender aos interesses
hegemônicos e estabelecer novos parâmetros culturais que condicionariam a sociedade às novas
formas de funcionamento do sistema.
A Universidade não ficou imune a isso, conforme atestou Milton Santos, e dela partiram também
novas formulações no campo da ciência, do conhecimento e do controle ideológico. Deparamo-
nos, assim, com tratados e teses que visavam acomodar essa nova realidade, ao mesmo tempo em
que ela própria se enquadraria nos novos padrões mercadológicos produtivistas de tratar o
conhecimento e a ciência. Daí o sentido que se tentar dar à história, dos que a veem a partir da pós-
modernidade, apontando para a desconstrução do antigo, reinscrevendo e ressituando significações
e acontecimentos bem como a fragmentação dela própria. E o sentido que se tenta dar à geografia,
aos que apontam a desterritorialização também dentro da lógica de justificar as transformações
globalizantes e as imposições do capital.
Nesse tempo de efemeridades, de rapidez não somente nas relações econômicas, mas também nas
superficialidades das relações humanas, fica mais fácil compreender o significado da expressão
criada por Marx no Manifesto Comunista e que ficou marcada pela titulação de Marshall Bermann
(1993) ao seu livro sobre o fim da modernidade:
Todas as relações fixas, enrijecidas, com seu travo de antiguidades e veneráveis
preconceitos e opiniões, foram banidas; todas as novas relações se tornam antiquadas
antes que cheguem a se ossificar. Tudo que é sólido desmancha no ar, tudo o que é
15
sagrado é profanado, e os homens finalmente são levados a enfrentar [...] as verdadeiras
condições de suas vidas e suas relações com seus companheiros humanos.
Com isso não queremos dizer que tudo que surge com a chamada “pós-modernidade” deva ir para
a lata do lixo. Devemos, no entanto, observar atentamente como nesse novo tempo, de um
totalitarismo econômico disfarçado de liberdade e democracia, impõe verdades tidas como
absolutas, as quais têm transformado o mundo num templo em que reina o fundamentalismo, a
violência e a intolerância.
No entanto, é absolutamente falso imaginar que a globalização torna o “mundo plano”, conforme
expôs Thomas Friedman em seu livro que leva esse título, pela maneira como os negócios crescem
e se acelera por meio das facilidades de transporte e de comunicação. Pois o que se viu nessas duas
últimas décadas, em que se propagou a globalização como a vitória definitiva do capitalismo e o
fim da história, foi o poder centralizado pelas poucas grandes corporações e por uma quantidade
ínfima de grandes bilionários, menos de uma centena, que controla metade da riqueza mundial. No
plano geopolítico, a disputa acirrada pela manutenção da hegemonia, pelos Estados Unidos e seus
aliados, impôs ao mundo uma fragmentação e uma violência desmedida, acentuando guerras,
conflitos regionais, migração em massa, crises políticas e o menosprezo à democracia. O mundo
continua sendo um ambiente dominado por pequenos grupos que fazem de tudo para não perderem
o controle da riqueza, mesmo que isso signifique uma ampliação absurda das desigualdades
sociais. Não há planura, no mundo, o que há são ondulações perigosas, que tiram do prumo a
sociedade sempre, pela onda cíclica que afeta permanentemente o sistema.
REFERÊNCIAS:
ANDERSON, Perry. As origens da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1999.
BERMANN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das
Letras, 1993.
BRAUDEL, Fernand. Gramática das civilizações. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização. Rio de Janeiro: Bertran Brasil, 2004.
KURZ, Robert. O colapso da modernização. São Paulo: Paz e Terra, 1992.
MOTTA, Nelson. Como uma onda: In: SANTOS, Lulu. Último romântico. São Paulo: Warner Music Brasil, 2000.
CD ASSIM 022925515728.
RECLUS, Élisee. L’homme et La terre. Tomo I. Trad.: Maria Cecília França. Paris: Universelle, [s.d.]. p. 108-114.
SANTOS, Milton. Técnica, espaço e tempo. São Paulo: Hucitec, 1984.
______________. A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 1996.
SOJA, Edward. Geografia pós-modernas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
(*) A versão original deste artigo foi publicada no livro TEMAS GEOGRÁFICOS, editado pelo Programa de
Educação Tutorial da Geografia (PET-GEO) no ano de 2008. Fiz alterações e adequações para que ele pudesse
contemplar ainda hoje a realidade econômica e social que vivemos, no Brasil e no mundo.
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A BLOGUEIRA LÉSBICA SÍRIA
Publicado em 14 de junho de 2011
https://gramaticadomundo.blogspot.com.br/2011/06/blogueira-lesbica-siria.html
Dubitando ad veritatem parvenimus
(Cícero, pensador romano, 106-43 a.C.)
O caso da “blogueira lésbica síria” deve ser um motivo para
refletirmos sobre essa ferramenta importante que temos em mãos.
A internet e as redes sociais tornaram-se nos dias de hoje um
fenômeno irresistível e instrumento de mobilização,
principalmente da juventude, em defesa de várias causas. Sem
dúvida uma arma moderna a facilitar contatos e comunicações.
Mas, como diz o ditado, é uma arma de dois gumes. Sabe-se perfeitamente que pela internet
cometem-se vários crimes, e tanto mais ela se popularize e alcance um número maior de pessoas,
maior o número de ocorrência dos chamados “crimes cibernéticos”. E aí é extremamente
diversificado, como na vida real, o tipo de delito que vai sendo inventado. O objetivo, claro, é
iludir, enganar, se aproveitar da boa vontade das pessoas.
As novas gerações são praticamente dependentes dessas novas tecnologias. Mas são tão
importantes para elas hoje, como foi no século XIX para aquelas outras o surgimento do telégrafo
e do telefone. São instrumentos que contribuem para aproximar as pessoas, e as rápidas
transformações tecnológicas aceleram as mudanças e possibilitam um incremento espetacular nas
novidades, modificando e atualizando essas ferramentas, de tal forma que passam a ser
praticamente imprescindíveis.
Mas pode ser uma arma para aquelas pessoas que se aproveitam das ingenuidades comuns à
juventude, ou mesmo da desinformação que, paradoxalmente, atinge a maioria das pessoas, não só
nessa fase da vida. Como gostava de dizer o geógrafo Milton Santos, vivemos uma época marcada
pelas transformações técnico-científico-informacional, mas a mesma mídia que nos traz a notícia é
ela mesma uma central de boatos e desinformações. São tanto manipulações propositadas, como
falsas verdades, ditas muitas vezes no afã de se conseguir um furo jornalístico que possa elevar o
“ibope” de um determinado meio de comunicação.
Mas, no caso de uma guerra, ou de disputa de interesses poderosíssimos, como vemos atualmente
nos levantes que ocorrem no Oriente Médio, a internet e as redes sociais servem a esse jogo de
contradições. Possibilita uma monumental mobilização popular, mas torna-se também um
elemento a mais a criar confusões entre as pessoas mediante a exploração de informações falsas.
Notícias retumbantes, imediatamente transportadas pelas redes sociais de forma célere, tornam-se
verdades inquestionáveis, muito embora jamais sejam comprovadas, até porque em alguns casos
são falsas.
Isso acontece porque nos dias de hoje a versão tornou-se mais importante do que o fato. Não há
nenhuma preocupação em se averiguar se aquilo que está sendo dito, e até mesmo reproduzido,
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passado adiante, é real ou não. O que implica em dizer que tal prática está se constituindo em
crimes com muitos inocentes cúmplices (ou inocentes úteis).
Muitas vezes as repercussões disso causam estragos nas vidas de algumas pessoas, direta ou
indiretamente atingidas, sem que se possa corrigir depois, deixando traumas para o resto da vida.
Além, claro, de nos casos específicos de disputas de grandes interesses geopolíticos, servir às
canalhices institucionalizadas pelas máquinas de guerras e pelas disputas rapaces por recursos
minerais.
Assim é o caso da “blogueira lésbica síria”, uma espécie de heroína virtual, aclamada por dezenas
de milhares de seguidores e que tinha nome e família: Amina Abdallah Arraf al Omari!
O blog, “A Gay Girl in Damascus”, relatava as agruras de uma mulher lésbica na Síria, e passou a
se constituir em um símbolo contra a ditadura naquele país, envolto em um levante popular, assim
como ocorre em outros países árabes. No começo deste mês, uma prima, também virtual, relatou o
seqüestro de Amina, com detalhes típicos de um roteiro holywoodiano. A propósito, Amina não
passou de uma criação de um cidadão estadunidense, por nome Tom MacMaster. Pode-se acessar
o link seguinte, para mais informações:
http://exame.abril.com.br/tecnologia/facebook/noticias/14-000-pessoas-curtiram-falsa-blogueira-
siria-no-facebook.
Os seguidores do blog no facebook, claro, foram tomados de uma profunda indignação. E contam-
se às dezenas de milhares. Não se sabe se a ira decorre da ilusão por uma heroína ter-se
esfumaçado, ou pelo papel de tolos a que foram submetidos. D. Quixote de La Mancha certamente
estará tendo convulsões de risos em seu túmulo. Afinal, que diferença há em se acreditar que
moinhos de ventos são cavaleiros gigantes?
Bem certo estava Tomé, tido como um dos apóstolos de Jesus Cristo. Duvidando da ressurreição
de seu mestre ele preferiu ver para crer. Segundo reza a lenda, Tomé pôde se encontrar com o
Cristo ressurgido após a crucificação. Mas só acreditou depois de vê-lo e tocar nas feridas em suas
mãos.
Eu sigo duvidando...
"Dubium sapientiae initium”
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TUDO QUE É SÓLIDO DESMANCHA NO AR
Postado em 9 de julho de 2011
http://gramaticadomundo.blogspot.com.br/2011/07/tudo-que-e-solido-desmancha-no-ar.html
Neste texto resolvi me aventurar pela filosofia, tentando fazer uma análise da sociedade atual.
“Pós-pós-moderna”, diriam alguns. Essa onda do pós, que pautou as discussões filosóficas na
última década do século XX, felizmente foi-se junto com os vários tsunamisi
que varreram muitos
lugares, inclusive aquelas duas torres chamadas de “World Trade Center”. Ou após os “subprimes”
nos Estados Unidos transformarem-se em poeiras e ter jogado a economia capitalista em uma das
maiores crises de sua história, perdendo apenas para o “Crash” da bolsa de Nova Iorque em 1929.
Pós-alguma coisa, só no sentido figurativo.
Então, o que virou o mundo nesta década inicial do século XXI? Bom, seria muita pretensão
querer dar resposta a isso, até porque precisaríamos de muitas respostas e não me sinto capaz de
me aventurar em tamanha complexidade. Posso dar palpites sobre alguma coisa... Bingo! Eis a
questão, é sobre isso que quero falar. O mundo das comunicações fáceis difundiu em volta do
planeta várias teorias e criou vários expertises nos mais diversificados assuntos. Eis-me aqui, a
dar também os meus palpites.
Mas não estou me referindo às comunidades virtuais, chamadas redes sociais. Repito o que já disse
em outros textos, elas são instrumentos de divulgação de idéias e opiniões, não podem ser
convertidas em objetos responsáveis pela construção de conceitos, filosofias, teorias etc. As redes
sociais apenas as reproduzem. E vão se constituindo por isso em importantes instrumentos de
difusão acelerada dessas idéias, as quais pretendo abordar, que se libertaram da “Caixa de
Pandora” com o fim da pós-modernidade (ou o que se dizia ser isso) e viraram o mundo de ponta-
cabeça nas duas últimas décadas.
UM MUNDO EM CRISE
É difícil afirmar qual o momento em que uma crise de grandes proporções não tenha afetado o
mundo. Melhor seria dizer que ele está permanentemente em crise. Primeiro é bom lembrar que o
sentido desta palavra vai mudando ao longo da história humana, sendo que etmologicamente,
originando-se do grego Krinein ou krisis, tinha o sentido de “julgar, avaliar, decidir, separar”,
transmutando-se por todo esse tempo, até ser usado na época moderna pela medicina, passando a
representar um momento decisivo de uma situação de doença grave entre a cura e a morte (cf.
dicionário Houaiss da Lingua Portuguesa).
Na abordagem econômica essa palavra ganha a conotação de um sentido semelhante,
demonstrando o auge de contradições que impõe uma “enfermidade” em uma formação
econômico-social, forçando mudanças substanciais e até mesmo substituição de formas de
produção. Segue-se, como decorrência, as alterações dos valores que são construídos sobre os
pilares das estruturas econômicas, a substituição de hábitos, costumes, tradições. A cultura, enfim,
transforma-se fazendo surgir novos elementos que darão à sociedade uma nova feição,
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acompanhando, sempre, a forma como está estruturada as suas bases, seu jeito de produzir. E
outras idéias, impostas pelas novas classes dominantes, substituirão as antigas no controle
ideológico da sociedade.
Nossa percepção de mudanças acompanha as situações peculiares, particulares. Observamos o
nosso redor, aquilo que nos diz respeito específicamente e o dimensionamos à totalidade, e
identificamos no cotidiano elementos que gradativamente vão substituindo comportamentos
antigos. Quando novas atitudes passam a se impor – ás vezes de forma imperceptível – é um sinal
que os valores existentes até então enfraqueceram-se. Isso quase sempre acontece quando, pelas
formas econômicas, os relacionamentos vão se deteriorando e forçando as mudanças.
O período em que os antigos costumes começam a se chocar com essas novidades que vêem
surgindo, acompanhando os estremecimentos na base econômica, passou a ser denominado como
crítico, ou de crises na sociedade. As forças do novo quase sempre se impõem, mas não antes de
criar a sensação que estamos em meio a um caos. A História irá nos mostrar que esse período é na
verdade uma transição entre o velho e o novo, alterando estruturas sociais e formulando novos
valores culturais.
Sempre tenho como referência Milton Santos, a quem dediquei um de meus últimos post, e ele
falava frequentemente que vivemos uma época de transição, naquilo que ele caracterizou como
período técnico-científico-informacional. E acrescentava, que os que vivem em meio à essas
transformações não conseguem perceber que estão em meio à uma transição sistêmica, que é longa
e traz consigo mudanças superestruturais. As idéias, a cultura, vão sendo pouco a pouco afetadas
por essas transformações e geram um conflito, um caos, que representa exatamente o início da
crise que definirá os novos rumos da sociedade. Isso sempre se dá localizadamente, depois se
expandindo para outros lugares, até atingir praticamente toda a humanidade.
ALÉM DO BEM E DO MAL
“Nesses pontos limiares da história exibem-se – justapostos quando não emaranhados um no outro
– uma espécie de tempo tropical de rivalidade e desenvolvimento, magnífico, multiforme,
crescendo e lutando como uma floresta selvagem, e, e de outro lado, um poderoso impulso de
destruição e autodestruição, resultante de egoísmos violentamente opostos, que explodem e
batalham por sol e luz, incapazes de encontrar qualquer limitação, qualquer empecilho, qualquer
consideração dentro da moralidade ao seu dispor”. Isso é Nietzsche (1882), citado por Marshall
Berman, no livro do qual peguei o título deste texto (embora a frase seja originalmente de Marx).
E a discussão que o motivou, e da qual Berman procura analisar, é a respeito das transformações
que aconteciam no século XIX e a crise que possibilitou o advento da modernidade burguesa.
O capitalismo já se iniciara alguns séculos antes, mas ainda explodia na sociedade européia as
mudanças decorrentes de outro tipo de cultura que precisava se impor, acompanhando as
transformações econômicas. O choque entre valores antagônicos, de uma época que se desfazia e
de outra que despontava. O velho e carcomido pensamento medieval se via sob um fogo cruzado
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das idéias burguesas que se impunha e já do seu contrário, as teorias socialistas que refutavam a
burguesia ainda no processo de consolidação de seu poder político.
Já naquela época vamos encontrar situações parecidas com as que vivenciamos nos dias atuais,
compreendendo bem, para não cairmos no anacronismo, que estamos falando de momentos bem
distintos da história da humanidade. Contudo, as características pertinentes a uma crise de choques
de contradições geradas por mudanças sócio-econômicas, são bastante parecidas. E segue-se mais
uma citação extraída da obra de Nietzsche:
“Nada a não ser novos ‘porquês’, nenhuma fórmula comunitária; um novo conluio de
incompreensão e desrespeito mútuo; decadência, vício, e os mais superiores desejos atracados uns
aos outros, de forma horrenda, o gênio da raça jorrando solto sobre a cornucópia do bem e do mal;
uma fatídica simultaneidade de primavera e outono”.
Impactava-se, assim, numa época de espetaculares transformações, de espírito revolucionário, um
rico choque de contradições, mas também de esfumeamento de certezas que se chocam e colidem
com novidades que ainda não estavam definitivamente provadas. Em meio a uma dialética
incontrolável, a meu ver transparecendo o óbvio, explodiam ódios, rancores, expectativas,
anarquia, luta de classes... a modernidade despontava entremeada com a esperança de superação de
um horror que ficava para trás, e de desconfiança pelo que poderia repetir, diante de um vazio de
proposições fúteis e individualistas.
MAIS DO MESMO
Vivemos agora algo parecido. Sem desconsiderarmos o fato de vivermos em uma época
completamente distinta, mais de um século depois do advento da modernidade, continuamos nos
deparando com situações parecida. Talvez com uma novidade, analisando-se um pouco
superficialmente as duas épocas. É provável que mais do que nunca em uma época se ignore tanto
a História como agora. Digo a História como processo, não esse fragmento de fatos analisados
isoladamente, como se as coisas acontecessem desconectadas e fosse possível analisar casos do
cotidiano sem a compreensão de suas origens e de como as contradições forçam as mudanças.
A geração que inicia o século XXI na adolescência, e acredito pela maneira como aprendem as
coisas, imaginam estarem vivendo em um mundo que começou agora. Desconhecem todas as
contradições que nos movem, erguem palavras de ordem completamente anacrônicas, acreditam
piamente que os problemas do mundo é fruto do conflito entre o bem e o mal, e assumem defesa
de causas conservadoras como se as mesmas fossem revolucionárias.
Como a incorporarem, mesmo que ingenuamente, o discurso neopentecostal, tem o olhar fixado no
futuro, e na perspectiva de alcançarem conquistas por reivindicações singelas, aparentemente
radicais. São elementos que compõem a própria maneira como o sistema se retroalimenta. Drogas,
marginalidade, apoliticismo (que não necessariamente é alienação), religiosidade, obsessiva
vontade de enriquecer a qualquer custo, preconceito, liberalismo sexual... tudo são questões que
mantém o sistema seguindo em sua lógica normal. E convivendo com isso há mais de um século.
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A aparente ebulição da sociedade, expressa de várias formas e potencializadas pelas redes sociais,
não carrega em si nada de novo, a não ser no uso dessas novas tecnologias. Mas, ao contrário da
época em que a modernidade desponta, compreendendo isso no sentido filosófico do termo, nos
dias atuais há uma completa indiferença em relação à existência de classes sociais distintas, e à
luta que é travada entre elas. No momento silenciosa, mas com o aprofundamento das crises, a
exemplo do que acontece em alguns países árabes e europeus, e na observância das soluções que
se apresentam para elas, vai claramente sendo definido os campos em disputas. As medidas
radicais tomadas para superar os problemas e impedir o agravamento dessas crises, são sempre
para proteger os meios de produção, a riqueza dos grandes investidores e o patrimônio real ou
virtual dos grandes banqueiros e especuladores.
Enquanto isso se marcha contra tudo, menos contra aquilo que é, em essência, responsável pelas
condições que tornam a sociedade insegura e refém de seus medos e individualidades. Muito
embora todo um aparato repressivo seja mobilizado para conter isso, por uma necessidade de não
se perder o controle do poder bem como para se impor a autoridade, não são essas as formas de
lutas, nem o conteúdo que as movem, que irão fazer com que a burguesia perca o seu sono.
O que dizia Marx, no século XIX, mas com um conteúdo extremamente atual, e irônico em relação
às lutas e combates ideológicos travados pela burguesia, se aplica a movimentos que se
apresentam com idéias avançadas, mas de conteúdos conservadores, que nos dias atuais imaginam
travarem uma luta revolucionária:
“Todas as relações fixas, enrijecidas, com seu travo de antiguidade e
veneráveis preconceitos e opiniões, foram banidas; todas as novas
relações se tornam antiquadas antes de chegarem a ossificar. Tudo o que
é sólido desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens
finalmente são levados a enfrentar (...) as verdadeiras condições de suas
vidas e suas relações com seus companheiros humanos”. ii
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FAKES, FALSÁRIOS E FASCISTAS: COMO DESPERTAR O LADO SOMBRIO DAS
PESSOAS
Publicado em 15 de maio de 2014
http://gramaticadomundo.blogspot.com.br/2014/05/fakes-falsarios-e-fascistas-como.html
Algo de podre está acontecendo nas redes sociais diretamente, e na grande mídia de forma
dissimulada. Com a proximidade das eleições, estão despertando um lado perverso e canalha de
algumas pessoas. Um comportamento que não se manifesta no contato interpessoal, mas encontra
no mundo virtual a coragem de expor comentários virulentos, ofensivos e desrespeitosos. Além de
acusações contra desafetos políticos sem que se apresente qualquer tipo de provas. Aliado a isso, o
pessimismo, a descrença, o medo, vão sendo alardeados de tal forma que as pessoas se sentem
vivendo dentro daquilo que está sendo construído por essas intervenções virtuais. As condições
reais de nossas existências são tridimensionadas e elevadas a um patamar muito mais exagerado do
que a própria realidade se apresenta. O sentimento de impotência e revolta surge naturalmente e
torna as pessoas alvos fáceis das manipulações.
Esse sentimento tem sido despertado mediante uma estratégia que já foi adotada em outros países.
Estou lendo o livro “A Segunda Guerra Fria”, de Moniz Bandeira, e os relatos são
impressionantes. Recheados de dados e referências, o autor demonstra como a maioria das
“revoluções”, ou revoltas, que derrubaram governos em várias partes do mundo, alguns eleitos
legitimamente, iniciaram através de ações desenvolvidas por ONGs estadunidenses, e até mesmo
órgãos oficiais daquele país, como a CIA e a USAID (Agência dos Estados Unidos para o
Desenvolvimento Internacional - United States Agency for International Development).
Uma citação, à página 96, demonstra claramente isso:
“Intervir em eleições estrangeiras sob a máscara de interesse imparcial de ajudar a sociedade civil
tornou-se o precedente do pós-moderno coup d’etat patrocinado pela CIA, no Terceiro Mundo,
adaptado às condições pós-soviéticas”. Johathan Steele, do The Guardian de Londres, em
novembro de 2004.
Dessa data para cá se intensificaram as ações que possibilitaram as chamadas “resistências
pacíficas”, inspiradas nos ensinamentos de Gene Sharp, através de seu livro “Da ditadura à
democracia”, todas elas devidamente apoiadas politicamente por uma infinidade de ONGs, todas
elas financiadas pelo governo dos EUA ou por grandes financistas, como George Soros.
A situação vivida pela Venezuela é consequência dessa estratégia. Como também o foi na Ucrânia,
na Síria, em Honduras etc. Seguramente, isso irá acontecer aqui no Brasil até as eleições e,
acredito, se intensificará na eminência de continuidade do governo atual, com a reeleição da
presidenta Dilma Roussef.
As análises sobre esses processos demonstra que ao não obter sucesso no processo eleitoral
democrático, essas forças ampliam as pressões e instigam revoltas no intuito de desestabilizar os
governos eleitos até o limite da repressão ocasionada pelas forças militares internas. Para isso é
preciso construir uma sensação de desesperança e crença que a desordem e o caos estão
imperando. Retira-se, assim, qualquer ímpeto de resistência a uma possível ação desestabilizadora.
23
O que estamos assistindo é um reposicionamento das forças geopolíticas mundiais em
consequência do agravamento da crise econômica, escondida pela grande mídia e só divulgado en
passant, quando no limite e com escassos comentários. Essa situação de crise tem gerado enormes
dificuldades para os governos de países centrais, tanto os EUA como os principais países
europeus, que nesse primeiro trimestre de 2014 não chegaram a 1% no crescimento de seus PIBs,
com a maioria deles atingindo decrescimento. E o maior índice foi da Alemanha, com 0,8%
(http://g1.globo.com/economia/noticia/2014/05/zona-do-euro-cresce-02-no-primeiro-trimestre-de-
2014.html)
Isso força essas potências a ampliarem seus negócios, mediante o controle político dos países que
estão fora de suas zonas de influência, de forma a pressionarem por mais abertura nos mercados e
o controle de setores estratégicos, para que assim suas corporações possam agir mais livremente de
acordo com seus interesses.
A desinformação, a preguiça de ir atrás da veracidade daquilo que está sendo divulgado, aliado à
alienação peculiar, facilita a adoção desses mecanismos manipuladores, que repetidos à exaustão
assume ares de verdades insofismáveis. Quando, em verdade, e realmente, são situações
determinadas e localizadas, sem representar, como se apregoa, o declínio da civilização
contemporânea, ou algo que o valha. Prato cheio para oportunistas, fascistas e para aqueles que
desejam convencer as pessoas a ingressarem no mundo da ficção religiosa, de seitas que se
deleitam com a desesperança e com o medo das pessoas.
Repercuti em minha página pessoal no Facebook essa percepção, e aqui a reproduzo.
Estou impressionado com a quantidade de pessoas que estão compartilhando postagens produzidas
por páginas organizadas por "fakes". Matérias falsas, ou propagandas subliminares, são
repercutidas sem que haja um mínimo de averiguação sobre a origem das notícias, em sua maioria,
falsas. Algumas são boatos, e boa parte deturpações de notícias antigas. E o que é pior, muitos que
repercutem isso estão na universidade ou tem curso superior. Por causa desse comportamento uma
dona de casa foi linchada e assassinada em Guarujá, SP. Fico em dúvida se é desinformação,
alienação, oportunismo ou má fé mesmo.
Vivemos, um tempo, de potencialidades de práticas antigas, mescladas com ares de modernidade
tecnológica. O boato se dissemina virtualmente, e organiza em júbilo antros de acusadores
odiosos, mas seu prólogo acontece nas formas tradicionais, da violência estúpida em grupo, nos
justiceiros que assumem o papel de juízes, júri e carrascos. Sob os argumentos de ausências de
autoridades, mas diante de situações que são reais, como o descontrole do aparato repressivo e a
agressividade de um setor cada vez mais sob pressão: as polícias militares. Sob o medo, seduzido
por ele e manipulado por outros, a multidão torna-se instrumento daqueles interesses que não se
apresentam perceptivelmente.
Nas sombras, escondem-se os reais interesses, de grupos que disputam avidamente o poder político
e desejam concentrar cada vez mais o poder econômico. Instigam e aproveitam-se dessas
situações, para afinal dar o bote sobre as carcaças de uma sociedade onde as pessoas não se veem
nela, mas apenas os outros. Nesse momento surgem os reformadores do caos, os mesmos, aqueles
que por décadas e séculos controlam as riquezas, concentram rendas e constroem mundos partidos,
sectarizados, mas que vivem protegidos em muralhas repetindo-se, sob novas conformações,
24
mundos antigos e medievais. E as massas, como sempre, cumprem bem o papel de massa de
manobra. Com o perdão da redundância.
Está na hora de construir uma brigada da desconstrução do pessimismo. Mas, como confrontar o
grande poder midiático e o financiamento de grandes corporações e governos hostis, que se
disseminam disfarçadamente nas redes sociais? This is the question!
Para os que consideram exagero as minhas conclusões, finalizo com a indicação de uma leitura.
Um artigo escrito por Glenn Greenwald, baseado em documentos dos EUA, vazados pelo analista
de sistema que atuava em uma empresa prestadora de serviços para órgãos de espionagem daquele
país, Edward Snowden, atualmente sob proteção da Rússia, que lhe concedeu asilo.
25
A SERVIDÃO HUMANA MODERNA
Publicado em 01 de maio de 2014
http://gramaticadomundo.blogspot.com.br/2014/05/a-desgraca-deste-mundo-reside-no-fato.html
“A desgraça deste mundo reside no fato de ser muito mais fácil abandonar os bons hábitos do que os
maus”.
William Maugham
O livro “A Servidão Humana”, um clássico da literatura mundial, foi lançado há quase exatos cem
anos, em 1915, e o seu autor Wiliam Somerset Maugham, vivia também, pessoalmente, frente a
dilemas que ainda nos dias de hoje são corriqueiros. Assumir a sua homossexualidade. Mas o
conteúdo dessa obra-prima não está centrada nisso, mas em um forte questionamento sobre as
escolhas feitas pelo indivíduo, diante dos problemas que a vida lhe apresenta. O amor, a família, o
destino, a riqueza, a morte, as deficiências físicas e morais. E os desejos e angústias que permeiam
as nossas decisões, fundamentais para definir nossos destinos. Era o retrato do ser humano em uma
época marcada por transformações cruciais. O início da segunda guerra mundial impunha ao
mundo novas realidades, marcadas pela brutalidade da guerra, e pelo embate ideológico que
redefiniria o mundo. Mas, ainda se discutia sentimentos como bondade, paixão e amor, com
sensibilidade, muito embora a hipocrisia, traço de caráter coletivo da sociedade, já se manifestasse
em atos e comportamentos.
Cem anos depois, o que me proponho aqui é discutir outro tipo de servidão, que tem definido
comportamentos, hábitos e vícios, gerados por uma impressionante dependência tecnológica em
um novo tipo de sociedade, onde nos tornamos consumistas compulsivos, e nos consumimos pelo
grau de escravidão que nos impõem os objetos cada vez mais sofisticados que nos cercam.
Servidão e escravidão podem carregar elementos conceituais diferentes, quando analisamos as
estruturas sociais ao longo de séculos de transformações da história humana. Mas, são palavras
que podem tornar-se sinônimas quando procuramos estabelecer as relações construídas pelo
sistema capitalista e o grau de dependência criada entre os indivíduos e as mercadorias.
Esse fenômeno foi estudado e identificado por Karl Marx já no século XIX. Segundo ele, nas
relações sociais que são estabelecidas na sociedade capitalista o indivíduo ao consumir uma
mercadoria desconhece, em absoluto, todo o processo de produção, no qual está embutida a
exploração da força de trabalho, principal elemento a acarretar a acumulação de riquezas nas mãos
dos poucos que controlam os meios de produção.
As mercadorias foram adquirindo, ao longo da consolidação do sistema capitalista, por sua lógica
entranhada, de garantir por ela os lucros aos comerciantes e à burguesia, o caráter de um fetiche.
Por um lado, à medida em que cada vez mais ela cria uma vida própria, deixando de ser adquirida
simplesmente porque advinda de uma necessidade, tornando-se um objeto de desejo irrefreável
pelo qual os indivíduos se tornam dependentes; e por outro lado porque nesse processo perde-se a
percepção de que ela é fruto da exploração do trabalho alheio, e por ele se garante o lucro, e o seu
valor passa a extrapolar sua significância real, adquirindo um valor artificial ao sabor das
26
manipulações criadas pelo mercado, deixando de ser vista como algo criado pelo trabalho humano
e pelo qual devesse ser medido.
Por esse processo, a vontade do ser humano sucumbe ao que Marx denominou como o “fetichismo
da mercadoria”, invertendo-se a ordem natural das coisas, com as pessoas sendo subsumidas nessa
lógica sistêmica e aceitando serem dominadas pelos objetos. Perde-se, pela dependência criada em
relação às coisas, a capacidade de refletir criticamente sobre o processo de exploração na produção
da mercadoria e substitui a necessidade real, pelo desejo de consumir, afetando duramente a
capacidade do ser humano de controlar de forma consciente a maneira como se dá o processo da
produção.
Dessa forma o dilema se nos apresenta como no enigma da esfinge: “decifra-me ou devoro-te”[1].
Na incapacidade do ser humano decifrar todo o processo produtivo, responsável pela ampliação
desmedida de mercadorias, e a consequente destruição da natureza, torna-se impossível realizar
seus desejos objetivado na frase que já se tornou muito mais o foco de marketing do que de
realizações efetivas para sua concretização: o desenvolvimento sustentável.
Essa dependência, contudo, assume nos dias atuais (muito embora perpassando isso por épocas
passadas desde o surgimento do capitalismo) um estágio preocupante, porque se aproxima do
limite possível de ser tolerado pela natureza, e porque culturalmente consome a juventude,
principalmente, transformando-a em zumbis modernos, espécie de seres inanimados cuja
capacidade de comunicar-se por vias de tecnologias sofisticadas afasta-a do contato e do convívio
natural.
Paradoxalmente, essa escravização aos objetos, notadamente os de forte atração tecnológica,
distanciam as pessoas, quando essas estão próximas, e as aproximam quando estão distantes. A
proximidade passa a ser um empecilho porque impede de usufruir dos desejos doentios de se
comunicar pelos aparelhos sofisticados. Isso pode fazer com que a capacidade de dialogar
presentemente torne as novas gerações frias no convívio social e insensíveis aos contatos
humanos, que tendem a tornar-se fúteis e passageiros.
Não há dúvidas que a tecnologia facilita a vida humana, reduz as distâncias e coloca as pessoas
mais próximas. Mas o preço a pagar por isso tem sido bastante elevado quando se fala das relações
humanas. O mesmo objeto de deslumbre que nos lança no mercado em busca de novidades, não
necessárias, mas desejáveis, torna-se também alvo da marginalidade, quase sempre oriunda de
camadas sociais mais baixa. Cada vez mais aparelhos celulares e tabletes são visados em assaltos e
roubos. Repassados e vendidos no mercado paralelo o baixo preço dessas mercadorias faz com que
ela seja disputada também por pessoas pobres. Com isso, não somente a classe média e os mais
ricos ficam reféns dessas tecnologias, e de mercadorias que não deveriam ser as mais importantes
em suas vidas, cujas necessidades mais prementes são relegadas a planos inferiores. Some-se a
isso as facilidades de créditos que garantem acesso fácil às mercadorias e instigam o consumo. A
alienação gerada por essa lógica consumista e os vícios que dela advém, passam a se fazer presente
também entre os mais pobres, que se veem em um mundo distante daquilo que é a realidade
vivida.
Por todas as classes sociais a dependência tecnológica assume ares de uma epidemia. E aquilo que
deveria ser algo facilitador das relações sociais, torna-se um enorme impedimento para que se
27
tenha a clara noção dos mecanismos reais de produção e do processo de manipulação da realidade
a fim de tornar cada jovem um consumista em potencial.
Podemos argumentar que tais tecnologias, e as redes sociais que elas criam, tem ultimamente
contribuído para aglutinar milhares de jovens em manifestações que tem azucrinado a vida de
governantes. Mas nessas redes sociais vê-se também o lado selvagem, estúpido e odiento de
muitas pessoas, que passam a frequentar um ambiente onde podem tudo, ou pensam que podem, e
o desrespeito passar a se constituir em uma regra que se dissemina numa velocidade
impressionante.
Alimentada pela mídia, estamos construindo via esses mecanismos uma geração marcada pelo
ódio. Mas nesse sentimento não há, infelizmente, uma capacidade crítica suficiente para distinguir
a origem de suas frustrações. O fetichismo, embutido na mercadoria, espalha-se pela sociedade, e a
coragem de se manifestar via redes sociais, bem como a virulência em que essa rebeldia se
transforma em alguns casos, não tem objetividade. Esses jovens, em sua maioria, não se disporiam
a enfrentar os seus piores demônios, pois são eles que produzem seus objetos de desejos. São
alienados e, com esses comportamentos, não causam nenhum medo naqueles que controlam toda a
riqueza, os meios de produção e a cada um deles, por intermédio das mercadorias que desejam.
Não defendo nenhum manifesto Ludista, anti-tecnologia. Mas me preocupa o caminho que
estamos trilhando em direção ao futuro. Como sempre digo, o futuro não existe. Ele é uma
construção idealizada. Quando imaginamos, contudo, aquele tempo que ainda virá, e no qual nos
imaginamos nele, a menos que a morte nos tolha a vida, devemos olhar para o presente. Ele é que
dirá que tipo de mundo estamos construindo.
Faltando um ano para o prazo estabelecido a fim de se resolver os principais problemas da
humanidade, porque é tão difícil se atingir os “objetivos do milênio”?[2] Porque tudo isso depende
do rompimento com as estruturas vigentes no sistema capitalista, cuja prioridade é produzir a uma
meta lunar (ou lunática), sem limites, cada vez mais mercadorias.
Somos arrastados por um turbilhão midiático, de propaganda, que invade cada casa,
indistintamente, a martelar em nossos desejos e a nos impor uma vontade. Sucumbimos a esse
fetichismo, agora ampliado pelo marketing, e deixamos para depois a preocupação com os destinos
da humanidade. Eles deixam de ser nossos quando atingimos essa capacidade consumista e
passamos a querer resolver um problema somente quando ele nos incomoda particularmente.
Somente a crítica, a capacidade de identificar as origens desses males, e rompendo com o
fetichismo (o que não significa abrir mãos dos desejos, mas ter a consciência crítica de seus
limites), pode-se corrigir o rumo que tem nos encaminhado em direção a um abismo.
Certamente essas poucas palavras não surtirão efeito, porque tem alcance limitadíssimo. E muitos
daqueles que lerem isso que escrevo, já possuem essa consciência crítica formada, e sentem a
mesma impotência diante desses problemas. Mas consigo assim me aliviar das culpas, visto ser um
indivíduo do meu tempo, e também algumas vezes cego pelos desejos consumistas.
Exprimo dessa forma um sentimento que demonstra o quão contraditório é o mundo em que
vivemos. Contudo, tenho a consciência da necessidade de mudar o mundo não pela cultura, pelos
hábitos, mas rompendo com as relações sociais de produção que nos escraviza e limita nossa
capacidade de construirmos um mundo mais solidário e menos egoísta. Somente assim, e
28
destruindo essa tradição que está enraizada em nossas entranhas e acompanha a cada nova geração,
poderemos criar outros valores que nos levem a consumir aquilo que é estritamente necessário
para vivermos bem e com dignidade, com o olhar voltado para o passado, os pés firmes no
presente e nossos sonhos utópicos realizáveis a desenhar nossos destinos.
Quem sabe a partir daí possa ser possível falar em desenvolvimento sustentável?
Vejam este vídeo. Fala sobre a maneira como estamos substituindo nossa maneira de interagir, nos
submetendo à dominação dos objetos e da tecnologia: https://youtu.be/EPoUKDuGMLg
29
REFLEXÕES SOBRE O NOSSO TEMPO E O COMPORTAMENTO HUMANO
Publicado em 15 de outubro de 2017
https://gramaticadomundo.blogspot.com/2017/10/reflexoes-sobre-o-nosso-tempo-e-o.html
Fiquei um tempo afastado das postagens no Blog, em função de duas seleções de textos que estive
fazendo, com o objetivo de lançar dois livros com artigos aqui já publicados. Mas nesse período
não deixei de estar atento às polêmicas e situações políticas que afetam o nosso cotidiano.
Expressei em alguns momentos nas redes sociais algumas opiniões, embora bem pontuais, sobre
polêmicas que se disseminaram rapidamente. Situações tornadas mais complexas em função da
condição em que estamos vivendo, com uma radicalidade política que tem feito explodir
comportamentos estúpidos e intolerantes. Contudo, as questões nas quais me senti estimulado a
comentar, tem a ver com o objetivo que me propus a voltar às crônicas neste blog.
Como historiador que analisa as sociedades com base na dialética, percebo que estamos vivendo
uma crise estrutural, sistêmica, consequência do choque de contradições na forma de
funcionamento das relações de produção capitalistas. Em outros tempos, em outras formações
sociais, situações parecidas também aconteceram, levando a transições longas e dolorosas, porque
são situações que intensificam como num efeito dominó, diversas outras crises por todos os setores
da sociedade. Inclusive no crescimento da violência, da intolerância, do individualismo, do
messianismo e dos atos e gestos tresloucados, individuais ou coletivos. A grande diferença,
comparando-se com outros momentos da história, é a rapidez com que os acontecimentos chegam
ao nosso conhecimento, gerando medo e histeria coletiva numa intensidade muito maior. Além de
existirem atualmente mecanismos de comunicação que dão vozes a qualquer um, disseminando
crenças, boatos e ampliando a dimensão dos fatos a níveis bem maiores do que os normais. Ou do
que se poderia considerar normais em determinadas circunstâncias. É o que vem sendo chamado
de "pós-verdade". O que nos assusta, para além dos medos que nos agrilhoam, é saber que noutros
tempos as sociedades só conseguiram sair dessas mesmas crises por meio de grandes guerras. Para
confirmar meu olhar dialético, concluo com uma frase atribuída a Karl Marx, por Vladimir Saflatle
(não consegui encontrar a fonte, por isso atribuo a este): "A situação desesperadora da época na
qual vivo me enche de esperanças". (http://www.ihu.unisinos.br/540154-enfim-o-desespero).
Atenção! Tudo é perigoso.
Acompanhei também, equidistane, a polêmica em torno do “homem nu no museu”, e a reação
conservadora eivada de intolerância que se seguiu. Considero uma aberração estabelecer censuras
a museus. Nos leva de volta para o passado, em tempos nos quais as liberdades individuais foram
sumariamente suprimidas. A diversidade que se apresenta nos museus e teatros refletem as
diferenças que existem em nossa sociedade. Não é segredo, não pode ser escondida. Aliás, as
camadas pobres já não são estimuladas a frequentarem e ver um mundo diferente daqueles que eles
habitualmente vêem e vivem, sejam em museus ou em teatros. Portanto, manifesto apoio a toda e
qualquer forma de luta contra mais esse ataque retrógrado às liberdades.
No entanto eu também tenho minha opinião, e o que desejo é exatamente essa liberdade de
expressá-la. Corpo nu, não é arte pra mim, nem em museu nem nas páginas da playboy ou outras
revistas do gênero, seja masculina, feminina ou LGBT. É simplesmente um corpo nu, objeto de
30
curiosidades e desejos numa sociedade em que o hábito é andar com alguma roupa. Isso é tão
estranho quanto o fato de não poder andar de biquinis ou sungas pelas ruas, mas poder usar e ser
visto/a assim nas praias. Tudo questão cultural. De liberdades outras que se permitem em campos
de nudismo, mesmo que com regras. As performances feitas com corpo nu podem ser feitas com
roupas íntimas, de ceroulas, saias, bermudas ou de qualquer jeito. A arte está nas performances.
Mas essa é a minha opinião. Por isso eu quero ter a liberdade de poder analisar e opinar, de ver ou
de não querer ver. Impor censura nos leva a práticas ditatoriais e totalitárias. É precedente
perigosíssimo, como tantos outros estão acontecendo. É melhor nos ligarmos no grito contido na
música de Caetano: "Atenção: Tudo é perigoso. Tudo é divino maravilhoso. Atenção para o refrão.
É preciso estar atento e forte..."
(https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/44718/)
MENTES ESCRAVIZADAS E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
Para além dessas polêmicas, tenho me batido também contra um vício, que para nós professores,
tem sido um golpe mortal na possibilidade de conseguirmos chegar ao final de uma aula com o
prazer de ter cumprido o nosso papel, podendo receber como feed back uma demonstração de
interesse por mergulhar em busca e transmissão do conhecimento. Refiro-me à dependência
tecnológica que tem afetado a juventude, mas não somente esta, como também às pessoas de uma
maneira geral.
E, quando nós professores, perdemos um bom tempo de nossas aulas, ralhando com alunos e
alunas, insistentemente, para que não usem seus smart-fones em sala de aulas, significa que
chegamos a um ponto de difícil retorno à nossa condição humana.
No livro, “Eu Robô”, escrito em meados do século XX, Isaac Asimov cria, em ficção, diversas
situações que demonstram os avanços da robótica e o desenvolvimento, até mesmo no campo da
inteligência, de máquinas que substituiriam os humanos. No clássico “Blade Runner”, de Philip K.
Dick (1968), os humanos são substituídos por androides, chamados replicantes, que
gradativamente também vão adquirindo inteligência, sensibilidade e a capacidade de sentir prazer.
Para completar os clássicos, também Stanley Kubrick avançou nessa direção, praticamente
afirmando a possibilidade de robôs/andróides serem capazes de desenvolverem suas inteligências,
a partir de protótipos criados por corporações. Todos esses livros ou roteiros foram transpostos
com sucesso para o cinema, este último amplificado por Steven Spielberg (A. I. 2001). A
Inteligência Artificial, elemento presente em todas essas obras de ficção, hoje já ultrapassa essa
condição, e se torna algo objetivamente real, com o desenvolvimento dessa capacidade em
computadores e já também em robôs.
Mas o que tem isso a ver com a minha decepção em relação ao uso desmedido de smart-fones,
inclusive em horário de aula? Porque isso demonstra que, gradativamente, e de forma mais
acentuada com as mais novas gerações, o cérebro vai aos poucos tendo partes descartadas por falta
de uso, já que não somente isso é um objeto de distração, como vai sendo substituído pouco a
pouco pela “inteligência” artificial. E propositadamente coloco a expressão entre aspas, porque
não se trata, enfim de inteligência que possa adquirir capacidade crítica, na medida em que cada
31
vez mais o uso desses aparelhos desvia a atenção da juventude, anestesia sua capacidade de
reflexão de forma mais aprofundada, retira-os implacavelmente do mundo real e contribui para a
disseminação de atos de estupidez e intolerância, na medida em que o poder de discernimento vai,
pouco a pouco, perdendo-se em meio a uma infinidade de informações mal processadas e não
verificadas em suas autenticidades. Com as devidas e raras exceções.
Claro, os aparelhos são os transmissores, os equipamentos que permitem a determinados
programas cumprir esses objetivos. As redes sociais disseminam-se celeremente, afetam
rapidamente a rotina e o cotidiano das pessoas. Parecemos cada vez mais com zumbis, inclusive
em plenas vias urbanas e até mesmo no trânsito, absolutamente distraídos em relação ao mundo
real que nos cerca, e completamente absortos em um mundo virtual, distante e desatento do nosso
lócus.
O uso excessivo de smart-fones já se constitui em um vício. Algo devidamente diagnosticado
como uma patologia, inclusive com tipos de tratamentos semelhantes àquelas pessoas viciadas em
drogas fortes. Naturalmente, como tantos outros vícios, as pessoas não tem essa percepção.
Informam-se, divertem-se, trabalham, leem, estudam, e dessa forma encontram sempre uma
justificativa para o uso exagerado desses aparelhos. Ora, muitos fazem tudo isso. Confesso que
também eu. Mas devemos ter a capacidade de saber dos nossos limites, ou até onde podemos
sucumbir às máquinas. Algo que aliás, o geógrafo Milton Santos, morto em 2001, já alertava para
esse caminho que a humanidade estava seguindo, em que estávamos sendo dominados pelas
máquinas, ou pelos objetos.
Acredito que o limite disso tudo chega a um nível perigoso quando as novas gerações trocam o
saber pelo instrumental, o conhecimento pela informação, a objetividade pela superficialidade, e o
real pelo virtual. Ao nos depararmos com jovens que diante de seus professores, em plena sala de
aula e durante a exposição do seu mestre, prefere acessar esses aparelhos, começamos a nos sentir
derrotados naquilo para o qual dedicamos boa parte de nossas vidas. Já não faz mais sentido,
mesmo que por enquanto ainda não seja uma maioria a fazer isso. Mas se não impomos restrições
essa maioria aparece rapidamente.
Creio que um filme (três, na verdade) nos possibilita discutir isso com precisão. Mais um desses
filmes, naturalmente. Embora tenha sido produzido atemporalmente. Ou seja, antecipou uma
realidade que veio despontando ano a ano depois de sua produção: a trilogia Matrix. Talvez esse
seja um filme de grande relevância para debater com a nova geração, mas duvido que consigamos
convencer aqueles que já estão numa dependência doentia na relação com esses aparelhos.
Ademais, e isso é fato, a maneira como esses aparelhos possibilitam os contatos virtuais, encurtam
as distâncias entre as pessoas, muito embora as distanciem fisicamente, tem possibilitado a difusão
de mentiras, boatos, notícias falsas, “fakes” (que pode ser tudo isso), e potencializado a
disseminação de ódios, preconceitos, intolerância e atos estúpidos, pois criam condições que
encorajam pessoas que não se manifestariam, e não se manifestam, presencialmente.
São caminhos perigosos que trilhamos nesse momento de insensatez, visível nos atos e gestos do
boquirroto que assumiu a condição de presidente da maior potência econômica e militar do
planeta, fazendo bom uso dessas tecnologias e desses mecanismos geradores de estupidez. Sua
campanha foi um exemplo de como nossos destinos estão submetidos às neuroses coletivas
32
provocadas por “verdades” produzidas em laboratórios de marketings. Somos, cada um de nós,
cobaias de novos experimentos que analisam comportamentos e criam inteligências artificiais mais
espertas do que a maioria dos mortais, entregues que nem zumbis aos deslumbramentos
tecnológicos.
Ainda há tempo para adquirir capacidade crítica, resistir e combater. Um outro mundo é possível!
Mas estamos perdendo batalhas importantes.
33
NOTAS:
[1] “Diz uma antiga lenda grega que a deusa Hera enviou a Esfinge (uma besta com cabeça de mulher, asas e corpo de
animal) para atormentar os moradores da cidade de Tebas. A Esfinge cruzava o caminho de todos os que se
aproximavam da cidade e formulava um enigma para o viajante. Quem errava o enigma era devorado pelo monstro.
Um dia, Édipo cruzou com a Esfinge, que lhe propôs o seguinte enigma: “O que durante a manhã tem quatro pernas,
ao meio-dia tem duas e à noite tem três”. Édipo respondeu corretamente* e a Esfinge ficou tão furiosa que se lançou
num precipício. Graças à façanha de derrotar a Esfinge, Édipo tornou-se rei de Tebas e ganhou a mão da rainha
enviuvada, sua própria mãe.”.
(*) Resposta ao enigma: O ser humano. Representado em suas fases de recém-nascido, adulto e na velhice, quando
necessita ser apoiado em uma bengala ou cajado.
[2] Em 2000, a ONU – Organização das Nações Unidas, ao analisar os maiores problemas mundiais, estabeleceu 8
Objetivos do Milênio – ODM, que no Brasil são chamados de 8 Jeitos de Mudar o Mundo – que devem (deveriam) ser
atingidos por todos os países até 2015. 1. Acabar com a fome; 2. Educação básica de qualidade para todos; 3.
Igualdade entre os sexos e valorização da mulher; 4. Reduzir a mortalidade infantil; 5. Melhorar a saúde das gestantes;
6. Combaer a Aids, a malária e outras doenças; 7. Qualidade de vida e respeito ao meio-ambiente; 8. Todo mundo
trabalhando pelo desenvolvimento. (http://www.objetivosdomilenio.org.br/)
i
Bom. Fazendo a revisão desse texto, obrigo-me a esclarecer que nem tudo que é pós foi “varrido”, como afirmei no
início. Em meio a um momento de indefinições, insensatez, intolerância e aprofundamento de uma crise sistêmica
profunda, eis que aparece agora a “pós-verdade”. Mas isso é outra história.
ii
Manifesto Comunista, 1848. APUD Berman, Marshal. Tudo que é sólido desmancha no ar – A aventura da
Modernidade. Cia das Letras, 1993, p. 20).

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  • 1. PÓS-VERDADE: COMO COMPREENDER UM TEMPO EM QUE SE NEGA A FILOSOFIA E AS CIÊNCIAS HUMANAS PROF. DR. ROMUALDO PESSOA INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOAMBIENTAIS DA UFG LABOTER - IESA
  • 2. 2 OS CEGOS E O ELEFANTE (História do folclore Hindu) Numa cidade da Índia viviam sete sábios cegos. Como seus conselhos eram sempre excelentes, todas as pessoas que tinham problemas consultavam-nos. Embora fossem amigos, havia uma certa rivalidade entre eles, que, de vez em quando, discutiam sobre o qual seria o mais sábio. Certa noite, depois de muito conversarem acerca da verdade da vida e não chegarem a um acordo, o sétimo sábio ficou tão aborrecido que resolveu ir morar sozinho numa caverna da montanha. Disse aos companheiros: Somos cegos para que possamos ouvir e compreender melhor do que as outras pessoas a verdade da vida. E, em vez de aconselhar os necessitados, vocês ficam aí brigando, como se quisessem ganhar uma competição. Não agüento mais!Vou-me embora. No dia seguinte, chegou à cidade um comerciante montado num elefante imenso. Os cegos jamais haviam tocado nesse animal e correram para a rua ao encontro dele. O primeiro sábio apalpou a barriga do animal e declarou: Trata-se de um ser gigantesco e muito forte!Posso tocar os seus músculos e eles não se movem; parecem paredes. Que bobagem!- disse o segundo sábio, tocando na presa do elefante - Este animal é pontudo como uma lança, uma arma de guerra. Ambos se enganam - retrucou o terceiro sábio, que apertava a tromba do elefante - Este animal é idêntico a uma serpente! Mas não morde, porque não tem dentes na boca. É uma cobra mansa e macia. Vocês estão totalmente alucinados!- gritou o quinto sábio, que mexia as orelhas do elefante - Este animal não se parece com nenhum outro. Seus movimentos são ondeantes, como se seu corpo fosse uma enorme cortina ambulante. Vejam só!Todos vocês, mas todos mesmos, estão completamente errados!- irritou-se o sexto sábio, tocando a pequena cauda do elefante - Este animal é como uma rocha com uma cordinha presa no corpo. Posso até me pendurar nele. E assim ficaram horas debatendo, aos gritos, os seis sábios. Até que o sétimo sábio cego, o que agora habitava a montanha, apareceu conduzido por uma criança. Ouvindo a discussão, pediu ao menino que desenhasse no chão a figura do elefante. Quando tateou os contornos do desenho, percebeu que todos os sábios estavam certos e enganados ao mesmo tempo. Agradeceu ao menino e afirmou: - Assim os homens se comportam diante da verdade. Pegam apenas uma parte, pensam que é o todo, e continuam tolos!
  • 3. 3 PÓS-VERDADE: COMO COMPREENDER UM TEMPO EM QUE SE NEGA A FILOSOFIA E AS CIÊNCIAS HUMANAS PINT OF SCIENCE – GOIANIA, 22.05.2019 O que venho abordar aqui hoje não tem sido novidade em minhas reflexões e indagações por essa década deste século, em que o imponderável tem se imposto mais do que em outros tempos. Digo isso até de forma um pouco provocativa, porque sei, como historiador, o quanto é absolutamente impossível estabelecer comparações entre épocas, não somente pela natureza dos fatos, mas pelas próprias transformações que as sociedades passam. Embora no senso comum as pessoas repitam com frequência que a “história se repete”, isso é uma bobagem que só demonstra o quanto se desconsideram as relações temporais. Imaginam haver uma repetição de situações que são completamente desvinculadas de realidades passadas, dentro de outros contextos e noutro tempo. É a absoluta ausência de capacidade crítica sobre o que é a história e como cada um de nós se situa no seu tempo. Em nosso tempo e na compreensão dos tempos passados. Não quero travar aqui uma discussão de caráter acadêmico, até pelo perfil desse movimento “Pint of Science”, de benfazeja inovação. Que isso que acontece aqui, agora, aconteceu ontem e antes de ontem, por diversas partes do mundo, numa tentativa de informalmente trazer às pessoas que desejam sair à noite e relaxar, em busca de um sossego para se livrar das ansiedades e pressões do cotidiano, possa acontecer por muito mais vezes e se torne um hábito contumaz. Um elo saudável entre o lazer, o conhecimento e o saber. Por isso farei muito mais uma exposição informal, procurando estabelecer um diálogo não somente com quem está aqui ouvindo, mas uma espécie de reflexão em voz alta, para que possa também me ajudar a compreender tudo que acontece à nossa volta, numa rapidez estonteante e num movimento de insanidade social, numa época em que ser normal pode te deixar meio deslocado da realidade. Como eu disse inicialmente, venho escrevendo em meu blog – Gramática do Mundo – sobre esse tema desde que o criei, em 2010. Lá atrás o termo “pós-verdade” ainda não havia se destacado como um neologismo1 que passaria a caracterizar uma era, marcada pela absoluta ausência de critérios para definir um acontecimento, ou até mesmo uma notícia inverossímil, desprovida de qualquer sentido ou que tendo sido inspirada em algum fato real. Mais do que isso, uma era onde se desconstruía a verdade elaborada e se afirmava a versão desejada. Nada mais importava para que se pudesse estabelecer a verdade, já não havia mais critério. Verdade passaria a ser aquilo que a minha paixão, a minha fé, o meu sentido desejava que fosse. O racionalismo, imperioso movimento iluminista que desbancou a era das trevas medievais, decaía em descrédito juntamente com a filosofia, a história e a sociologia. Claro que isso feito por forças desejosas em abominarem a crítica. Em 2016 “pós-verdade” (“post-truth”), foi citada pelo Dicionário de Oxford como a palavra do ano. Então não estamos falando de algo que decorre de uma conjuntura especifica nossa, advinda de um processo político complicado que culmina em um personagem que se torna presidente e foi beneficiário desse ambiente criado por “fake News”, o instrumento que consolida a era da pós-verdade, em todas as suas dimensões. Esse fenômeno é característico de uma época que só pode ser compreendida em toda a sua dimensão histórica. Eu diria que o auge desse tempo de desvio de rota na forma como a sociedade se posicionava foi o momento em que estourou a crise econômica, no ano de 2007, embora suas causas já viessem de bem 1 Neologismo é um fenômeno linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, ou na atribuição de um novo sentido a uma palavra já existente. Pode ser fruto de um comportamento espontâneo, próprio do ser humano e da linguagem, ou artificial, para fins pejorativos ou não (Wikipedia)
  • 4. 4 antes. Mas talvez pudéssemos recuar mais no tempo, e destacar um fato que, literalmente, implodiu as mais ferrenhas convicções e abriu caminho para uma década de instabilidade crescente, dentro de cada país e entre boa parte deles. O ataque às Torres Gêmeas, o “World Trade Center”, à Casa Branca (esse ataque fracassado) e ao Pentágono. O que se sucedeu nos anos seguintes abriu a caixa de pandora, e libertou todos os males que poderiam gerar perversidades e destruir a democracia e a política. Vamos fazer a junção dos dois momentos. O “Patriot Act” significou a ausência de liberdades individuais e a completa perda de privacidade nos EUA e para o mundo. O medo, gerado pelo ataque terrorista, e o uso desse sentimento a partir de então, para justificar as mais perversas e inomináveis reações, transformou o mundo e sinalizou uma mudança fundamental na maneira as sociedades se comportavam até então, a partir de toda a propaganda que se fez em torno da globalização. A mentira como arma sempre esteve presente ao longo da história da humanidade. Mas a forma como ela se torna algo quase unânime decorre da exposição permanente de uma versão fantasiosa, repetida infinitas vezes e “demonstrada” por meio de informações não comprováveis, mas ditas enfaticamente por autoridades que a repete incessantemente sem que o contraditório seja apresentado. Pouco a pouco as pessoas vão assimilando aquilo que é dito com insistência, e assim se forma a “opinião pública”. O grande momento disso foi toda a propaganda feita para justificar a invasão do Iraque pelos EUA, com base em informações falsas e adredemente construídas com o apoio da grande mídia. Sim, a grande mídia é responsável pela origem das fake news. Não vou entrar na análise do que aconteceu desde então, mas os fatos demonstram os equívocos cometidos nessas ações, e a perversão gerada com a destruição de países, ampliação do deslocamento de populações pelo mundo, insegurança, aumento da violência, e... a crise econômica global, cujo ápice se deu entre 2007 e 2010, mas que segue gerando instabilidade na economia mundial. No entanto, as análises feitas pelos grandes jornais poucas relações fazem entre esses atos e a crise mundial. É como se de repente, do nada, as pessoas começassem a rever seus conceitos, aleatoriamente. Mas nada é aleatório, tudo decorre de algum tipo de ação, não se pode falar em acaso, mas em causas. Contudo, negar a verdade, como estratégia de ação e de desconstrução do seu oponente, passou a assumir a condição de praticamente uma arma, a partir desses fatos que eu acabei de citar. E, em meio à falta de perspectivas, diante de uma grave crise que quase quebrou o sistema financeiro mundial, o medo adquiriu uma nova conotação. Já não mais somente diante da guerra, ou da violência cotidiana, mas diante da ausência de caminhos que indicassem as melhores alternativas para que cada um pudesse acreditar que o futuro seria melhor. Passamos a vivenciar, principalmente a partir de 2010 uma virada no comportamento das pessoas, induzidas por discursos radicais, sectários, alimentados pela fé e instrumentalizados por práticas ultra- conservadoras, disseminadas em um ambiente tóxico que só piorava como consequência da crise econômica. Dois momentos foram marcantes para acentuar esses comportamentos, em meio a um mundo que já não girava somente em uma direção, mas completamente sem rumo. O primeiro foi a eleição de Barack Obama. A bem da verdade as “fake-news”, em todas as suas dimensões, se amplificaram incontrolavelmente a partir de então. Sua eleição despertou nos setores mais conservadores, estimulados pelo fundamentalismo religioso, um ódio étnico-racial visceral e uma intolerância inédita na relações políticas naquele país. O “Tea Party”, grupo que surgiu se contrapondo ao Obama se encarregou de espalhar mentiras o envolvendo e isso prosseguiu por todo o período em que ele foi presidente. Transformou-se numa estratégia política que teve sua experimentação mais determinante no plebiscito que aconteceu no Reino Unido, quando a população foi chamada para decidir sobre a continuidade ou não na União Européia. O “Brexit” como esse movimento foi chamado se constituiu no laboratório por excelência de uma nova prática política, onde a mentira espalhada persistentemente pelas redes sociais passou a adquirir ares de verdade, e os fatos eram desconstruídos por discursos toscos, sem fundamentação na realidade, mas que se escoravam nas
  • 5. 5 decepções, frustrações, sentimentos de desprezo pelas instituições e pela política, e na incapacidade das pessoas refletirem criticamente sobre realidades complexas, em um ambiente em que as tecnologias dos smartfones reduz a capacidade de compreensão, por meios de uma inundação de notícias. As desejadas, e tornadas críveis, passavam a serem aquelas que melhor se inseriam nos desejos de cada um. A verdade passa a ter, então, a conotação que cada um deseja dar a suas escolhas. Isso pode representar o fim da democracia e uma plena derrota da política. A partir do Brexit, e logo em seguida, com a eleição de Donald Trump, a palavra “fake News” foi massificada por este que viria a ser o presidente dos EUA. E passou a ser utilizada contra a imprensa toda vez que suas idéias eram contrariadas ou que reportagens emitiam fatos pérfidos de sua trajetória de rico empresário. Os ataques nas eleições contra Obama e a sua candidata Hilary Clinton eram repetidas e compartilhadas celeremente por seus seguidores, sem que houvesse a menor preocupação em checar os fatos. Ao mesmo tempo, e de forma oportunista, a milhares de quilômetros de distância alguns jovens penetravam no mundo digital e alimentavam as mentiras, a fim de atraírem para os seus sites o maior número de visualizações e dessa forma faturarem dinheiro em cima de “fake News”. A cidade de Velez, na Macedônia, ficou famosa por abrigar um grande número de sites que se especializaram em interferir nas eleições dos EUA e em outras partes do mundo. Mas isso não se deu somente de forma espontânea, houve método nisso. Steve Bannon foi talvez o principal estrategista por trás desse processo de difusão de fake News. Assim como teve também uma participação importante no “Brexit” e nas eleições aqui no Brasil. Mas é preciso, diante disso, e eu procurei contextualizar para que pudéssemos compreender como se dá esse fenômeno das fake News, e, principalmente, porque entramos nessa “era da pós-verdade”, saber duas coisas: o que é a verdade; e porque as pessoas se dispõem a acreditar em mentiras. Primeiro é necessário compreendermos que a verdade não é, jamais, absoluta. Ela é sempre relativa e possível de ser questionada, e até mesmo, revista. Nesse aspecto é salutar saber que é a ciência e a capacidade crítica de investigar e avançar para além do que se deseja demonstrar como definitivo quem pode colocar qualquer fato sob questionamento. Uma verdade só poderá ser negada a partir da investigação científica e da comprovação de elementos que, primeiro desconstrua com comprovações aquilo que se estava afirmando até então, e que, em sequência, se apresente as comprovações do que se deseja apresentar como algo a substituir o que até então era verdade. Por isso que, em minha opinião, a dialética se constitui como o melhor método de discussão e investigação. Na medida em que propõe analisar qualquer fato a partir da identificação de contradições que aponte a falseabilidade naquilo que se apresenta, e, ao mesmo tempo, se impõe como uma antítese daquilo. Na impossibilidade de que essa antítese se apresente como algo definitivo, de difícil questionamento, a tese é o caminho para que se possa fazer a junção do conhecimento anterior com as novas compreensões que pretendem negá-lo. O que não se pode, jamais, é desconsiderar algo sem que se tenham elementos comprobatórios para isso. A humanidade avançou exatamente estabelecendo esses pressupostos, em que a cada novas descobertas se ampliavam o horizonte dos conhecimentos e se avançava na produção de algo qualitativamente superior. Que não é, jamais, definitivo. O que se pretende hoje, com alguns discursos obtusos, na desqualificação de áreas importantes das ciências humanas, é erradicar essa possibilidade de interpretação dialética, visando colocar determinadas visões de mundo, e interpretações da realidade, como sendo definitivas, ou imutáveis. Isso significa construir um mundo totalitário, onde o pensamento crítico se tornaria algo marginal e “perigoso”, como aliás funcionou em um tempo tenebroso, e por isso denominado de trevas medievais. Cito muito o filme “O Nome da Rosa", que retrata um tempo onde o conhecimento estava sob controle da igreja e os que ousassem pensar de forma diferente seriam submetidos a julgamentos da inquisição e a serem mortos por questionarem os dogmas religiosos. A outra questão, para além da verdade, que precisamos compreender é como e porque as pessoas se dispõem a acreditar em coisas que são ditas sem que haja a menor lógica por trás, ou sem que exista
  • 6. 6 qualquer comprovação de que aquilo é fato e/ou real. Daí a importância de entender a contextualização. O que vai poder nos aproximar da compreensão do que faz isso ser possível é entender historicamente as condições reais de existências dessas sociedades e dessas pessoas, que as empurraram numa direção de cegueira e de crença radical em versões de acontecimentos que não correspondem aquilo que entendemos ser a verdade, porque possível de ser comprovada. Naturalmente, colocarei aqui essas versões como sendo as verdades vistas por esses segmentos. Digamos que as fake news sejam para essas pessoas suas verdades. Para nós, que trabalhamos com o raciocínio crítico, dialético, a dúvida e a necessidade de comprovação é condição necessária para acreditarmos. O que move, por outro lado, as pessoas que acreditam em fake news? Bom, aí entramos em outras análises que se eu fosse me aprofundar não sairíamos tão cedo daqui. Creio que resumidamente eu poderia colocar como sendo a junção de como a tecnologia tem sido usada para difusão da informação e como também tem se constituído num componente forte do fortalecimento do poder das igrejas. Isso, com o uso em larga escala das redes sociais e das mídias, disseminam elaborações de fatos, versões ao sabor das conotações ideológicas (e aqui não faço distinção, isso serve para as igrejas, mas serve também para quem segue alguma ideologia, da esquerda à direita) que, repetidamente, se constitui como aquela verdade que se enquadra no viés ideológico, ou no interesse dos dogmas que se inspiram em outras verdades ditas como absolutas e imutáveis. Com esses componentes, aliado às questões conjunturais (crise econômica, crise política, crise de valores, violência, xenofobia, intolerância... etc...) nos situamos numa realidade em que as pessoas, a partir da própria situação de radicalidade que ela foi construindo a partir dessas condições analisadas, usam da seletividade para ler e acreditar somente naquelas notícias e fatos que lhes interessam. Cada um passa, então, a fazer um filtro nas informações, e eliminam assim, o contraditório. Dessa forma não conseguem identificar até onde aquilo no qual elas acreditam pode ou não ser verdade. Não há essa possibilidade do crivo quando eu elimino o contraditório, afasto-me do outro que pense diferente, abomino qualquer outro tipo de ideia que se contraponha à minha, não aceite um outro indivíduo pelo jeito dele ser, por sua condição social, de gênero, de escolhas políticas. Assim, cada um passa a ter a sua verdade, e a compartilhá-la somente com quem a aceite. Ora, para fechar essa nossa conversa, eu finalizaria levantando uma questão fundamental para esse momento em que vivemos. A nossa humanidade depende de nossa capacidade de aceitação do outro, das nossas diferenças, a diversidade é a nossa maior riqueza. As pesquisas científicas existem para demonstrarem se aquilo que vemos, assistimos e acreditamos, merece ou não a nossa credibilidade. E a filosofia, a história e a sociologia são áreas da ciência que, juntamente com outras, tratam das relações humanas, das nossas condições sociais, da forma como nos comportamos e vivemos em sociedade. Na medida em que abominamos, primeiro, a necessidade de comprovarmos aquilo que nos é mostrado como verdade, e depois, quando extraímos do rol das ciências aquelas que são responsáveis pela compreensão de nossas condições humanas, estaremos nos direcionando para um ambiente cada vez mais permissivo do ponto de vista das relações sociais, intolerante e de não aceitação das diferenças. Penso que isso é extremamente perigoso, e, guardando-se as devidas proporções, e sem querer ser anacrônico, vai na direção daquele formato de mundo que o nazi-fascismo tentou fundar em meados do século XX e foi responsável pela morte de dezenas de milhões de pessoas. Vivemos um tempo difícil, é verdade, mas devemos reafirmar a necessidade de estabelecermos relações sociais, solidárias e tolerantes. Enquanto cientistas sociais sabemos da nossa importância. Mas sabemos também que perfidamente existem mentes reacionárias que agem de maneira sinistra, insensível, e visam criar um modelo de sociedade onde a tirania e a ausência da crítica conduza as pessoas cegamente em direção a abismos. Precisamos de um novo movimento iluminista. Luz, e que a claridade impeça que nosso futuro seja de trevas.
  • 7. 7 Para terminar, já que comecei com uma fábula, cito uma outra história popular. De um garoto que se divertia em mentir. Certa vez com os amigos indo nadar em um rio ele resolveu aprontar suas mentiras. Gritou que estava se afogando. Todos correram para acudi-lo, mas ele se derramou em risos com sua mentira. Da segunda vez ele repetiu o fato, e os amigos imaginaram que daquela vez era verdade. Mas o mentiroso se divertia com isso. Na terceira vez em que ouviu os seus gritos os amigos se negaram a ir, e acreditavam ser mais uma brincadeira. Só que desta vez era verdade. Assim o garoto conseguiu fazer com que seus amigos acreditassem que o que dizia era mentira, mesmo que fosse verdade. E a mentira passava a ser algo natural para ele e os que o seguiam. Creio que o melhor é construirmos um mundo em que a verdade seja questionável, não por meio de mentiras, mas por nossa capacidade de crítica, de dúvida e de curiosidade sobre nós mesmos e os fenômenos que nos cercam. Minha máxima para hoje e sempre: duvidem de tudo! A verdade estará mais próxima de nós se formos questionadores da realidade. E fujamos das bolhas que as redes sociais se tornaram. Enquanto é tempo. Obrigado e abraços.
  • 8. 8 O MUNDO NÃO É PLANO. DESCONSTRUINDO A PÓS-MODERNIDADE Publicado em 01 de agosto de 2017 https://gramaticadomundo.blogspot.com.br/2017/08/o-mundo-nao-e-plano-desconstruindo-pos.html É instigante falar do “tempo” e do “espaço”, e é necessário, para compreendermos as transformações e o processo histórico. Trata-se de categorias que se interligam na produção do saber constituindo tanto a cultura, quanto o território, e é impossível separá-las, pois são dependentes uma da outra, conforme bem representado numa frase de Elisée Reclus (s.d, p. 108- 114): “Se a História começa primeiro por ser ‘toda geografia’, como disse Michelet, a geografia se torna gradualmente ‘história’ pela relação contínua do homem sobre o homem”. Essas categorias representam o caminho pelo qual necessariamente temos de percorrer para compreender toda a nossa existência, seja no passado, seja no presente. Assim, podem-se compreender a nossa trajetória e a relação com a natureza, para definição do caminho futuro da humanidade. O ESPAÇO E A SOMA DOS TEMPOS Vivemos em um mundo de rápidas transformações. A abordagem dialética que fazemos da vida nos mostra isso. O impulso que muda, incessantemente, natureza e sociedade é dado por contradições, pelo antagonismo, pelo estranho “equilíbrio” ecológico que força um choque entre contrários para manter e preservar a vida, mas que nas relações sociais pode levar a uma inevitável destruição, principalmente por sermos, nós, humanos, os maiores predadores da natureza. E o que é pior: predadores de nossa própria espécie. Como compreender, à luz da história e da geografia, o mundo contemporâneo, cujas características principais são a velocidade, a rapidez e a profusão de objetos, o intensivo uso da técnica, de novas espacialidades, de um crescente processo de urbanização e da mercantilização, não somente dos objetos, mas quase que da totalidade das relações humanas. O espaço da cidade se fragmenta em uma multiplicidade de territórios, e novas territorialidades definem a maneira como o campo se enquadra nos interesses sistêmicos, na relação centro-periferia do mundo capitalista. Espaço, urbanização e território. Através dessas categorias e processos buscamos na geografia o entendimento de como vamos nos adaptando e transformando a paisagem com o uso da técnica e de novas tecnologias. Tecnologias, que, vale dizer, encontram-se à disposição dos próprios geógrafos, visando buscar informações geoprocessadas mediante mecanismos sofisticados, uso de satélites capazes de monitorar todos os cantos do planeta. Nos últimos anos com o uso crescente de VANT (Veículo Aéreo Não Tripulado), mais conhecido por sua origem na guerra
  • 9. 9 com o nome de “drones”. Isso faz lembrar Milton Santos (1996), quando afirma que já não podemos mais falar de natureza natural, na medida em que o ecúmeno se torna possível de ser conhecido e de estar sujeito à ação do homem por mais distante que seja o lugar. Mas ao definirmos o espaço, pode-se precisar a época de que estamos falando? É possível destacar espacialidade, territorialidades – mesmo a paisagem que se apresenta para nós como uma somatória de tempos passados –, sem considerar uma relação temporal em todo o processo de mudança que se desenrola em nossa volta? Importante lembrar que a vida, de uma forma geral – e a nossa, em particular – não é estática. Tudo, aliás, é movimento, é transformação, e o que possibilita isso é o tempo. Em cada segundo de nossas vidas, encontramos registradas ações que promovem as mudanças. E somente a nossa memória é capaz de fazer isso. É a nossa memória que possibilita compor a história e também registrar cada momento através do estudo e da pesquisa científica. Vivemos, em verdade, incessantemente a história; por isso pode-se afirmar que não existe o presente, ou que ele é representado somente em frações de segundos, que só podem ser registrados estaticamente pela fotografia. Porque no instante seguinte, ele já é passado. Isso é brilhantemente ilustrado na canção “Como uma onda” (Motta, 2000), interpretada por Lulu Santos: Nada do que foi será, de novo do jeito que já foi um dia/ tudo passa, tudo sempre passará,/a vida vem em ondas, como o mar,/ num indo e vindo infinito. Tudo que se vê não é igual ao que a gente viu há um segundo/ Tudo muda o tempo todo no mundo/ Não adianta fugir, nem mentir pra si mesmo agora/ Há tanta vida lá fora, aqui dentro sempre/ como uma onda no mar/ Como uma onda no mar... O tempo foi definido arbitrariamente quando se trata de contarmos nossa história. Atendeu a diversos fatores, principalmente de origem religiosa, estabelecendo assim uma diferenciação na temporalidade dos fatos históricos do ocidente fixados a partir do calendário cristão (ou Juliano) estabelecido na Idade Média, do calendário judaico, do muçulmano, do chinês etc. Impõe-se o primeiro como referencial em decorrência do poderio europeu que se espalhou pelo mundo no processo de colonização, durante o período absolutista, até chegarmos aos dias atuais, em que estamos conectados com todo o mundo em tempo real, como consequência dos impressionantes progressos dos meios de comunicação. Fora o tempo que conta a história da humanidade, deparamo-nos ainda com o tempo geológico, que permite entender o processo de formação da Terra, ou do tempo estudado por meio da física, que apresenta o universo em formação e se explica em anos-luz, para dizer da distância entre os pontos mais distantes e nas mais variadas galáxias. É claro que tudo isso significa nada mais do que tentarmos entender a vida, as nossas origens e todo o processo de transformação que nos leva a um ponto de interrogação crucial – a morte –, que, embora se apresente como o fim de tudo, pode significar também um começo, como num devir hegeliano. Contudo, o tempo nada mais é do que o acontecer sucessivo, simultâneo, imediato, da espacialidade, que representa o movimento e a transmutação do/no espaço. A mudança, o efêmero,
  • 10. 10 possibilita compreendermos porque a vida é uma constante renovação do ir-e-vir, do começo e do fim, do novo e do velho. Novas possibilidades estão sendo geradas a partir desse entrelaçamento criativo, possibilidades de um materialismo simultaneamente histórico e geográfico; de uma dialética tríplice de espaço, tempo e ser social; e de uma reteorização transformadora das relações entre a história, a geografia e a modernidade.(Soja, 1993, p. 19): Mas é preciso distinguir o tempo preciso do acontecer, dos eventos que se realizam num determinado espaço e vermos num possível atavismo a sucessão de acontecimentos que se interligam e carregam características e marcas do que ficou. Que se entrelaçam e explicam a simultaneidade da vida embora nem sempre possível de discernimento. Avançamos um pouco pela interpretação feita por Santos (1996, p. 127): O tempo como sucessão, o chamado tempo histórico, foi durante muito tempo considerado como uma ase do estudo geográfico. Pode-se, todavia, perguntar se é assim mesmo, ou se, ao contrário, o estudo geográfico não é muito mais essa outra forma de ver o tempo como simultaneidade: pois não há nenhum espaço em que o uso do tempo seja idêntico para todos os homens, empresas e instituições. Pensamos que a simultaneidade das diversas temporalidades sobre um pedaço da crosta da Terra é que se constitui o domínio propriamente dito da Geografia. Poderíamos mesmo dizer, com certa ênfase, que o tempo como sucessão é abstrato e o tempo como simultaneidade é o tempo concreto, já que é o tempo da vida de todos. O espaço é que reúne a todos, com suas múltiplas possibilidades, que são possibilidades diferentes de uso do espaço (do território) relacionadas com possibilidades diferentes de uso do tempo. Saindo um pouco da representação conceitual e da relação entre essas duas categorias que se interligam, vamos ao encontro de outra expressão, para definir o discurso dos que pretendiam que o final do século XX tenha sido um momento em que a humanidade teria transitado da modernidade para a pós-modernidade. DESCONSTRUINDO A MODERNIDADE É preciso primeiro termos claro que o sentido de modernidade e pós-modernidade tem origem diferente dos significados que lhes são imputados. Modernismo teria origem nicaraguense, viria com a criação de uma vertente que buscava livrar-se da influência cultural espanhola (século XIX). O pós-modernismo seria uma compreensão da existência de uma corrente conservadora no movimento modernista. Essas expressões, a partir de então, passaram a ser utilizadas, em vários momentos da história, para definir as mudanças. Seja para se referir ao industrialismo crescente do século XIX, ou às guerras mundiais, à revolução Meiji no Japão, à revolução soviética e por aí afora, identificam cada momento expressivo da História como início ou fim da modernidade, e este em relação à pós-modernidade. A justificativa para tecer aqui tais considerações, brilhantemente feitas no trabalho do historiador britânico Anderson (1999), está no fato de sermos chamados a nos referir à “desconstrução” do mundo. Ou, poderíamos dizer, ao “fim do território”, “desterritorialização”, geograficamente falando. São expressões que, “carregadas de ideologias”, representaram uma nova maneira de
  • 11. 11 buscar entender o mundo a partir das intensas transformações que caracterizaram as décadas finais do século XX: da modernidade à pós-modernidade. Contudo, para compreendermos mais amplamente o significado de Modernidade, precisamos ir em direção à representação de todo um período marcado pelos ideais renascentistas, mas principalmente iluministas, rousseaunianos ou cartesianos, responsáveis por fundamentação humanista e materialista, necessária à condução de uma nova época que se opunha fortemente às trevas medievais, cerceadoras da liberdade e inibidora do conhecimento, principalmente no tocante às ciências. Primeiro a revolução Francesa, que em nome da liberdade simboliza o início da era moderna. Seus ideais, embora revolucionários, distanciaram-se do povo, para quem o discurso era feito, mas significaram o início de uma época que virá marcada pela intensa transformação das forças produtivas. Depois a Revolução Russa, que apontando para o fracasso da primeira e atingindo duramente a burguesia descortina uma nova época sob o comando do proletariado e caminhando para uma revolução mundial. Embora se diferenciando radicalmente na questão de classe, em essência, os objetivos das duas não são contraditórios. O fim da modernidade, então, será definido pelo que vai ser considerado de fracasso desses dois projetos calcados nos ideais iluministas. As três últimas década do século XX passaram então a ser marcadas por uma mudança considerável na concepção que se tinha de sociedade e no papel que desempenhavam as instituições que surgiram daquelas revoluções e visavam garantir condições de vidas dignas para a maioria da população. Isso tanto pelo socialismo, com uma concepção de poder e de controle de Estado marcada pelo planejamento e por investimento em setores que privilegiavam as necessidades do povo, quanto pelo capitalismo, no período em que vigorou o welfare state (estado de bem-estar social). Esse último significou a estabilidade do sistema e reduziu as diferenças sociais na maioria dos países europeus e Estados Unidos da América. A nova era que se descortinou veio marcada por um crescente egoísmo, sob uma lógica que vê na riqueza fácil, mas mediante uma exploração desenfreada, a condição de se obter sucesso na vida e se atingir o progresso almejado, não mais dentro de objetivos coletivos ou sociais, mas claramente individualistas. Não se pensava mais prioritariamente na construção de valores que pugnassem pela defesa dos interesses humanísticos. Fortalecia-se a lógica de que a busca pelo sucesso pessoal seria a garantia da solução para uma época em crise em que a hegemonia do poder, do liberalismo econômico, era contida pelo discurso socializante. A década de 1980 representou uma época de crise da economia de mercado que afetou gravemente os países socialistas com seus planejamentos estatais, mas com fraco desempenho na produção de mercadorias que pudessem disputar mercados. Mercadorias obsoletas circulando por um mercado em crise, portanto fortemente disputado, em que contam mais a qualidade do produto e o custo que se racionaliza com um forte investimento em tecnologia, o que equivale a preços mais baixos, principalmente se a demanda for grande. Por isso, dentre outras causas, o socialismo dito “real” estremeceu, entrou em crise e caiu quase que paralelamente à queda do que se tornara símbolo para o Ocidente da chamada “economia de comando” (KURZ, 1992) e dos ideais socialistas: o muro de Berlim.
  • 12. 12 Com a crise do socialismo abriu-se caminho para se atingir o welfare state, pondo fim a uma era marcada pelos ideais iluministas. Assim os setores conservadores impuseram uma nova política, a neoliberal, atacando fortemente os valores incorporados pelas revoluções do século XIX e do socialismo, e sinalizam para um novo tempo que virá marcado, segundo Santos (1984, p. 33), pela racionalidade, fluidez e competitividade. Nesses espaços da RACIONALIDADE, o mercado é tornado tirânico e o Estado tende a ser impotente. Tudo é disposto para que os fluxos hegemônicos corram livremente, destruindo e subordinando os demais fluxos hegemônicos corram livremente, destruindo e subordinando os demais fluxos. Por isso, também o Estado deve ser enfraquecido para deixar campo livre (e desimpedido) à ação soberana do mercado. (...) A exigência da FLUIDEZ manda baixar fronteiras, melhorar os transportes e as comunicações, eliminar os obstáculos à circulação do dinheiro (ainda que a das mercadorias possa ficar para depois), suprimir as rugosidades hostis ao galope do capital hegemônico. A FLUIDEZ é a condição, mas a ação hegemônica se baseia na COMPETITIVIDADE. Nos tempos presentes a COMPETITIVIDADE toma como discurso o lugar que, no início do século, ocupava o Progresso e, no após-guerra, o Desenvolvimento. A competitividade é um outro nome para a guerra, desta vez uma guerra planetária, conduzida, na prática, pelas multinacionais, as chancelarias, a burocracia internacional, e com o apoio, às vezes ostensivos, de intelectuais de dentro e de fora da Universidade. Caminho aberto para as mudanças, entramos numa época verdadeiramente global, com um forte impulso em áreas que levariam a uma mudança substancial nas relações sociais, na reconfiguração geopolítica do mundo, nos valores éticos, morais e culturais. PÓS-MODERNIDADE: FIM DE TUDO E COMEÇO DE NADA Passamos a presenciar no fim do século XX uma transformação socioespacial profundamente acelerada, se compararmos a outros tempos. Uma época em que a aceleração contemporânea dos fortes, ricos e tecnologicamente bem desenvolvidos contrasta com o tempo lento dos fracos, pobres e deserdados sociais. A utopia coletivista foi substituída pela corrida ao sucesso individual, cronometrada pelos índices de qualidades aferidos pelo mercado. Os números, as estatísticas, as retas e curvas dos gráficos que apontam os caminhos da riqueza sintetizam a frieza dos relacionamentos humanos. As relações mecânicas, que entronizam os incluídos neste “admirável mundo novo”, podem servir como exemplo para explicar as enormes contradições acerca do que ainda consideramos viver societariamente, e se ainda é possível chamar civilização, na acepção dada ao termo por Braudel (1989), as condições indignas de vida daqueles que não passam de um traço nesses índices e estão excluídos dos alcances das maravilhas tecnológicas do mundo “pós- moderno”. A dialética nos ensina que a contradição é o elemento principal do processo histórico, quer das transformações que ocorrem quer nas paisagens, quer da própria funcionalidade do espaço, nas novas espacialidades que se definem no compasso do tempo, como também nas mudanças sociais,
  • 13. 13 nas relações que vão se estabelecendo entre os indivíduos e que possibilitam a eles ultrapassarem limites. Negar-se e afirmar-se, para depois voltar a negar. O mundo é um verdadeiro laboratório onde as experiências presentes colocam em xeque as verdades do passado e deixam dúvidas cada vez maiores sobre as (in) certezas dos novos tempos e do que virá. O novo e o velho se confundem, e enquanto um demora a surgir o outro teima em não desaparecer. Este é um dilema a ser enfrentado em qualquer transição. O mundo é um imenso arcabouço de contradições. Mas muitas delas encontram-se submersas, relegadas a uma insignificância desproporcional diante da importância que podem ter nas definições dos rumos que a humanidade pode seguir. Aparentemente alheios a isso, maravilhados pelos avanços tecnológicos e inebriados pelo discurso que se impõe pelo poder da mídia e pelos interesses dominantes, os indivíduos submetem-se à força de argumentos supérfluos, e veem suas condições sociais pela lógica calvinista. Acreditando piamente na possibilidade de inserção na sociedade de consumo, abdicam de seus direitos como cidadãos para cada vez mais os substituírem pelos diretos de consumidores. Agem conforme imaginava Feuerbach – por isso duramente criticado por Karl Marx – partindo da alienação religiosa e da duplicação do mundo em religioso e terreno. O trabalho que se propõem consiste em dissolver o mundo religioso em seu fundamento terreno, como apregoam “As teses sobre Feuerbach”, publicadas em 1845. Apegam-se assim à ideia e à crença da inserção num mundo hostil e profundamente apartado. Pela ideia acreditam no rompimento das castas, sonham em ser “emergentes” e desconsideram a estratificação social cada vez mais rígida. Não imaginam sequer que todo um desmonte estatal à sua volta empurra-os cada vez mais em direção a um fosso profundo cujas bordas estão cada vez mais distantes. Nesse mosaico que representa o mundo “pós-moderno” um novo papel foi reservado às cidades. Em um processo de desterritorialização, que nada mais é do que a reterritorialização: “Os territórios sempre comportam dentro de si vetores de desterritorialização e reterritorialização” (HAESBAERT, 2004, p. 127). São elas, as cidades, também exemplos notáveis das contradições dessa nova época. Do caos ao planejamento tanto jurídico (das leis) quanto estrutural; à redenção, enquanto lócus assimilador das transformações tecnológicas, e ao novo caos, caracterizado pelo descompasso entre o arcaico e o moderno, presente em suas formas e em suas paisagens, em seus fluxos e em suas dinâmicas contraditórias; de centro, que consolida o poder dos indivíduos sobre as técnicas e as formas, à artificialização da natureza ao seu interesse, principalmente mercadológico, e de novo ao caos, marcado pelo uso disforme de suas potencialidades, mais a serviço das máquinas do que dos indivíduos; dos traçados arquitetônicos que consideram mais os automóveis do que os pedestres, e da transferência para o urbano da lei das selvas, onde o mais forte sobrevive e resta ao mais fraco apenas se defender ou se esconder. Assim, seguimos nessa relação tempo-espaço um rumo incerto, mas de uma rapidez impressionante. Construímos máquinas que engole gente, como na visão profética dos tempos modernos de Charles Chaplin, mas que são elas próprias rapidamente substituídas por outras que aceleram ainda mais o processo produtivo. A relação homem-natureza estreita-se perigosamente visto assim pela rapidez com que são esgotados os recursos naturais, para que possa atender à visão produtivista e consumista da sociedade de consumo, estritamente dentro da lógica egoísta do lucro e da ganância que caracteriza o sistema.
  • 14. 14 Mas transformação alguma vivida pelo sistema capitalista até então conseguiu ser mais eficaz, do ponto de vista de sua lógica, do que os avanços obtidos, atualmente, com os deslocamentos entre os lugares e a rapidez com que chegam as informações até o mais recôndito lugar do planeta. Velocidade, informação e ciência a serviço do capital: esses são os ingredientes principais dessa nova etapa da humanidade. Mas tudo isso, embora disperso pelo mundo, é mantido sob um rígido controle das grandes corporações financeiras, agora não mais multinacionais, mas transnacionais, concentradoras de lucros exorbitantes e responsáveis pelo aumento do desemprego, embora ganhem isenções fiscais dos estados sob o pretexto de empregabilidade. Mas seus cartéis e oligopólios controlam mercados e destroem os pequenos comércios, como a preparar caminho para uma necrópole de grandes prédios de paredes destruídas e metais enferrujados. O exemplo disso é Detroit, uma cidade falida, que viu sua população de mais de 2 milhões se reduzir a pouco mais de 500 mil habitantes[1]. O símbolo de uma realidade onde as corporações se impuseram, mas os novos tempos marcados pela globalização transferiu riquezas acumuladas virtualmente em um mundo que migrava rapidamente para uma era de tecnologias. Se novas detroits não surgiram (ainda) se deve a absoluta adequação aos novos tempos, às custas da aceitação religiosa das desigualdades sociais, da apartação da sociedade e na crença fatalista do enriquecimento individual pela fé. NÃO É UMA CONCLUSÃO Dessa maneira nos incorporamos a uma nova realidade e a um novo discurso, para os quais surgiriam elaborações teóricas que visariam dar um encaixe final a essa época em transformação. As ideias, os conceitos, os valores e a moral passam a se alterar a fim de atender aos interesses hegemônicos e estabelecer novos parâmetros culturais que condicionariam a sociedade às novas formas de funcionamento do sistema. A Universidade não ficou imune a isso, conforme atestou Milton Santos, e dela partiram também novas formulações no campo da ciência, do conhecimento e do controle ideológico. Deparamo- nos, assim, com tratados e teses que visavam acomodar essa nova realidade, ao mesmo tempo em que ela própria se enquadraria nos novos padrões mercadológicos produtivistas de tratar o conhecimento e a ciência. Daí o sentido que se tentar dar à história, dos que a veem a partir da pós- modernidade, apontando para a desconstrução do antigo, reinscrevendo e ressituando significações e acontecimentos bem como a fragmentação dela própria. E o sentido que se tenta dar à geografia, aos que apontam a desterritorialização também dentro da lógica de justificar as transformações globalizantes e as imposições do capital. Nesse tempo de efemeridades, de rapidez não somente nas relações econômicas, mas também nas superficialidades das relações humanas, fica mais fácil compreender o significado da expressão criada por Marx no Manifesto Comunista e que ficou marcada pela titulação de Marshall Bermann (1993) ao seu livro sobre o fim da modernidade: Todas as relações fixas, enrijecidas, com seu travo de antiguidades e veneráveis preconceitos e opiniões, foram banidas; todas as novas relações se tornam antiquadas antes que cheguem a se ossificar. Tudo que é sólido desmancha no ar, tudo o que é
  • 15. 15 sagrado é profanado, e os homens finalmente são levados a enfrentar [...] as verdadeiras condições de suas vidas e suas relações com seus companheiros humanos. Com isso não queremos dizer que tudo que surge com a chamada “pós-modernidade” deva ir para a lata do lixo. Devemos, no entanto, observar atentamente como nesse novo tempo, de um totalitarismo econômico disfarçado de liberdade e democracia, impõe verdades tidas como absolutas, as quais têm transformado o mundo num templo em que reina o fundamentalismo, a violência e a intolerância. No entanto, é absolutamente falso imaginar que a globalização torna o “mundo plano”, conforme expôs Thomas Friedman em seu livro que leva esse título, pela maneira como os negócios crescem e se acelera por meio das facilidades de transporte e de comunicação. Pois o que se viu nessas duas últimas décadas, em que se propagou a globalização como a vitória definitiva do capitalismo e o fim da história, foi o poder centralizado pelas poucas grandes corporações e por uma quantidade ínfima de grandes bilionários, menos de uma centena, que controla metade da riqueza mundial. No plano geopolítico, a disputa acirrada pela manutenção da hegemonia, pelos Estados Unidos e seus aliados, impôs ao mundo uma fragmentação e uma violência desmedida, acentuando guerras, conflitos regionais, migração em massa, crises políticas e o menosprezo à democracia. O mundo continua sendo um ambiente dominado por pequenos grupos que fazem de tudo para não perderem o controle da riqueza, mesmo que isso signifique uma ampliação absurda das desigualdades sociais. Não há planura, no mundo, o que há são ondulações perigosas, que tiram do prumo a sociedade sempre, pela onda cíclica que afeta permanentemente o sistema. REFERÊNCIAS: ANDERSON, Perry. As origens da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1999. BERMANN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. BRAUDEL, Fernand. Gramática das civilizações. São Paulo: Martins Fontes, 1989. HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização. Rio de Janeiro: Bertran Brasil, 2004. KURZ, Robert. O colapso da modernização. São Paulo: Paz e Terra, 1992. MOTTA, Nelson. Como uma onda: In: SANTOS, Lulu. Último romântico. São Paulo: Warner Music Brasil, 2000. CD ASSIM 022925515728. RECLUS, Élisee. L’homme et La terre. Tomo I. Trad.: Maria Cecília França. Paris: Universelle, [s.d.]. p. 108-114. SANTOS, Milton. Técnica, espaço e tempo. São Paulo: Hucitec, 1984. ______________. A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 1996. SOJA, Edward. Geografia pós-modernas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993. (*) A versão original deste artigo foi publicada no livro TEMAS GEOGRÁFICOS, editado pelo Programa de Educação Tutorial da Geografia (PET-GEO) no ano de 2008. Fiz alterações e adequações para que ele pudesse contemplar ainda hoje a realidade econômica e social que vivemos, no Brasil e no mundo.
  • 16. 16 A BLOGUEIRA LÉSBICA SÍRIA Publicado em 14 de junho de 2011 https://gramaticadomundo.blogspot.com.br/2011/06/blogueira-lesbica-siria.html Dubitando ad veritatem parvenimus (Cícero, pensador romano, 106-43 a.C.) O caso da “blogueira lésbica síria” deve ser um motivo para refletirmos sobre essa ferramenta importante que temos em mãos. A internet e as redes sociais tornaram-se nos dias de hoje um fenômeno irresistível e instrumento de mobilização, principalmente da juventude, em defesa de várias causas. Sem dúvida uma arma moderna a facilitar contatos e comunicações. Mas, como diz o ditado, é uma arma de dois gumes. Sabe-se perfeitamente que pela internet cometem-se vários crimes, e tanto mais ela se popularize e alcance um número maior de pessoas, maior o número de ocorrência dos chamados “crimes cibernéticos”. E aí é extremamente diversificado, como na vida real, o tipo de delito que vai sendo inventado. O objetivo, claro, é iludir, enganar, se aproveitar da boa vontade das pessoas. As novas gerações são praticamente dependentes dessas novas tecnologias. Mas são tão importantes para elas hoje, como foi no século XIX para aquelas outras o surgimento do telégrafo e do telefone. São instrumentos que contribuem para aproximar as pessoas, e as rápidas transformações tecnológicas aceleram as mudanças e possibilitam um incremento espetacular nas novidades, modificando e atualizando essas ferramentas, de tal forma que passam a ser praticamente imprescindíveis. Mas pode ser uma arma para aquelas pessoas que se aproveitam das ingenuidades comuns à juventude, ou mesmo da desinformação que, paradoxalmente, atinge a maioria das pessoas, não só nessa fase da vida. Como gostava de dizer o geógrafo Milton Santos, vivemos uma época marcada pelas transformações técnico-científico-informacional, mas a mesma mídia que nos traz a notícia é ela mesma uma central de boatos e desinformações. São tanto manipulações propositadas, como falsas verdades, ditas muitas vezes no afã de se conseguir um furo jornalístico que possa elevar o “ibope” de um determinado meio de comunicação. Mas, no caso de uma guerra, ou de disputa de interesses poderosíssimos, como vemos atualmente nos levantes que ocorrem no Oriente Médio, a internet e as redes sociais servem a esse jogo de contradições. Possibilita uma monumental mobilização popular, mas torna-se também um elemento a mais a criar confusões entre as pessoas mediante a exploração de informações falsas. Notícias retumbantes, imediatamente transportadas pelas redes sociais de forma célere, tornam-se verdades inquestionáveis, muito embora jamais sejam comprovadas, até porque em alguns casos são falsas. Isso acontece porque nos dias de hoje a versão tornou-se mais importante do que o fato. Não há nenhuma preocupação em se averiguar se aquilo que está sendo dito, e até mesmo reproduzido,
  • 17. 17 passado adiante, é real ou não. O que implica em dizer que tal prática está se constituindo em crimes com muitos inocentes cúmplices (ou inocentes úteis). Muitas vezes as repercussões disso causam estragos nas vidas de algumas pessoas, direta ou indiretamente atingidas, sem que se possa corrigir depois, deixando traumas para o resto da vida. Além, claro, de nos casos específicos de disputas de grandes interesses geopolíticos, servir às canalhices institucionalizadas pelas máquinas de guerras e pelas disputas rapaces por recursos minerais. Assim é o caso da “blogueira lésbica síria”, uma espécie de heroína virtual, aclamada por dezenas de milhares de seguidores e que tinha nome e família: Amina Abdallah Arraf al Omari! O blog, “A Gay Girl in Damascus”, relatava as agruras de uma mulher lésbica na Síria, e passou a se constituir em um símbolo contra a ditadura naquele país, envolto em um levante popular, assim como ocorre em outros países árabes. No começo deste mês, uma prima, também virtual, relatou o seqüestro de Amina, com detalhes típicos de um roteiro holywoodiano. A propósito, Amina não passou de uma criação de um cidadão estadunidense, por nome Tom MacMaster. Pode-se acessar o link seguinte, para mais informações: http://exame.abril.com.br/tecnologia/facebook/noticias/14-000-pessoas-curtiram-falsa-blogueira- siria-no-facebook. Os seguidores do blog no facebook, claro, foram tomados de uma profunda indignação. E contam- se às dezenas de milhares. Não se sabe se a ira decorre da ilusão por uma heroína ter-se esfumaçado, ou pelo papel de tolos a que foram submetidos. D. Quixote de La Mancha certamente estará tendo convulsões de risos em seu túmulo. Afinal, que diferença há em se acreditar que moinhos de ventos são cavaleiros gigantes? Bem certo estava Tomé, tido como um dos apóstolos de Jesus Cristo. Duvidando da ressurreição de seu mestre ele preferiu ver para crer. Segundo reza a lenda, Tomé pôde se encontrar com o Cristo ressurgido após a crucificação. Mas só acreditou depois de vê-lo e tocar nas feridas em suas mãos. Eu sigo duvidando... "Dubium sapientiae initium”
  • 18. 18 TUDO QUE É SÓLIDO DESMANCHA NO AR Postado em 9 de julho de 2011 http://gramaticadomundo.blogspot.com.br/2011/07/tudo-que-e-solido-desmancha-no-ar.html Neste texto resolvi me aventurar pela filosofia, tentando fazer uma análise da sociedade atual. “Pós-pós-moderna”, diriam alguns. Essa onda do pós, que pautou as discussões filosóficas na última década do século XX, felizmente foi-se junto com os vários tsunamisi que varreram muitos lugares, inclusive aquelas duas torres chamadas de “World Trade Center”. Ou após os “subprimes” nos Estados Unidos transformarem-se em poeiras e ter jogado a economia capitalista em uma das maiores crises de sua história, perdendo apenas para o “Crash” da bolsa de Nova Iorque em 1929. Pós-alguma coisa, só no sentido figurativo. Então, o que virou o mundo nesta década inicial do século XXI? Bom, seria muita pretensão querer dar resposta a isso, até porque precisaríamos de muitas respostas e não me sinto capaz de me aventurar em tamanha complexidade. Posso dar palpites sobre alguma coisa... Bingo! Eis a questão, é sobre isso que quero falar. O mundo das comunicações fáceis difundiu em volta do planeta várias teorias e criou vários expertises nos mais diversificados assuntos. Eis-me aqui, a dar também os meus palpites. Mas não estou me referindo às comunidades virtuais, chamadas redes sociais. Repito o que já disse em outros textos, elas são instrumentos de divulgação de idéias e opiniões, não podem ser convertidas em objetos responsáveis pela construção de conceitos, filosofias, teorias etc. As redes sociais apenas as reproduzem. E vão se constituindo por isso em importantes instrumentos de difusão acelerada dessas idéias, as quais pretendo abordar, que se libertaram da “Caixa de Pandora” com o fim da pós-modernidade (ou o que se dizia ser isso) e viraram o mundo de ponta- cabeça nas duas últimas décadas. UM MUNDO EM CRISE É difícil afirmar qual o momento em que uma crise de grandes proporções não tenha afetado o mundo. Melhor seria dizer que ele está permanentemente em crise. Primeiro é bom lembrar que o sentido desta palavra vai mudando ao longo da história humana, sendo que etmologicamente, originando-se do grego Krinein ou krisis, tinha o sentido de “julgar, avaliar, decidir, separar”, transmutando-se por todo esse tempo, até ser usado na época moderna pela medicina, passando a representar um momento decisivo de uma situação de doença grave entre a cura e a morte (cf. dicionário Houaiss da Lingua Portuguesa). Na abordagem econômica essa palavra ganha a conotação de um sentido semelhante, demonstrando o auge de contradições que impõe uma “enfermidade” em uma formação econômico-social, forçando mudanças substanciais e até mesmo substituição de formas de produção. Segue-se, como decorrência, as alterações dos valores que são construídos sobre os pilares das estruturas econômicas, a substituição de hábitos, costumes, tradições. A cultura, enfim, transforma-se fazendo surgir novos elementos que darão à sociedade uma nova feição,
  • 19. 19 acompanhando, sempre, a forma como está estruturada as suas bases, seu jeito de produzir. E outras idéias, impostas pelas novas classes dominantes, substituirão as antigas no controle ideológico da sociedade. Nossa percepção de mudanças acompanha as situações peculiares, particulares. Observamos o nosso redor, aquilo que nos diz respeito específicamente e o dimensionamos à totalidade, e identificamos no cotidiano elementos que gradativamente vão substituindo comportamentos antigos. Quando novas atitudes passam a se impor – ás vezes de forma imperceptível – é um sinal que os valores existentes até então enfraqueceram-se. Isso quase sempre acontece quando, pelas formas econômicas, os relacionamentos vão se deteriorando e forçando as mudanças. O período em que os antigos costumes começam a se chocar com essas novidades que vêem surgindo, acompanhando os estremecimentos na base econômica, passou a ser denominado como crítico, ou de crises na sociedade. As forças do novo quase sempre se impõem, mas não antes de criar a sensação que estamos em meio a um caos. A História irá nos mostrar que esse período é na verdade uma transição entre o velho e o novo, alterando estruturas sociais e formulando novos valores culturais. Sempre tenho como referência Milton Santos, a quem dediquei um de meus últimos post, e ele falava frequentemente que vivemos uma época de transição, naquilo que ele caracterizou como período técnico-científico-informacional. E acrescentava, que os que vivem em meio à essas transformações não conseguem perceber que estão em meio à uma transição sistêmica, que é longa e traz consigo mudanças superestruturais. As idéias, a cultura, vão sendo pouco a pouco afetadas por essas transformações e geram um conflito, um caos, que representa exatamente o início da crise que definirá os novos rumos da sociedade. Isso sempre se dá localizadamente, depois se expandindo para outros lugares, até atingir praticamente toda a humanidade. ALÉM DO BEM E DO MAL “Nesses pontos limiares da história exibem-se – justapostos quando não emaranhados um no outro – uma espécie de tempo tropical de rivalidade e desenvolvimento, magnífico, multiforme, crescendo e lutando como uma floresta selvagem, e, e de outro lado, um poderoso impulso de destruição e autodestruição, resultante de egoísmos violentamente opostos, que explodem e batalham por sol e luz, incapazes de encontrar qualquer limitação, qualquer empecilho, qualquer consideração dentro da moralidade ao seu dispor”. Isso é Nietzsche (1882), citado por Marshall Berman, no livro do qual peguei o título deste texto (embora a frase seja originalmente de Marx). E a discussão que o motivou, e da qual Berman procura analisar, é a respeito das transformações que aconteciam no século XIX e a crise que possibilitou o advento da modernidade burguesa. O capitalismo já se iniciara alguns séculos antes, mas ainda explodia na sociedade européia as mudanças decorrentes de outro tipo de cultura que precisava se impor, acompanhando as transformações econômicas. O choque entre valores antagônicos, de uma época que se desfazia e de outra que despontava. O velho e carcomido pensamento medieval se via sob um fogo cruzado
  • 20. 20 das idéias burguesas que se impunha e já do seu contrário, as teorias socialistas que refutavam a burguesia ainda no processo de consolidação de seu poder político. Já naquela época vamos encontrar situações parecidas com as que vivenciamos nos dias atuais, compreendendo bem, para não cairmos no anacronismo, que estamos falando de momentos bem distintos da história da humanidade. Contudo, as características pertinentes a uma crise de choques de contradições geradas por mudanças sócio-econômicas, são bastante parecidas. E segue-se mais uma citação extraída da obra de Nietzsche: “Nada a não ser novos ‘porquês’, nenhuma fórmula comunitária; um novo conluio de incompreensão e desrespeito mútuo; decadência, vício, e os mais superiores desejos atracados uns aos outros, de forma horrenda, o gênio da raça jorrando solto sobre a cornucópia do bem e do mal; uma fatídica simultaneidade de primavera e outono”. Impactava-se, assim, numa época de espetaculares transformações, de espírito revolucionário, um rico choque de contradições, mas também de esfumeamento de certezas que se chocam e colidem com novidades que ainda não estavam definitivamente provadas. Em meio a uma dialética incontrolável, a meu ver transparecendo o óbvio, explodiam ódios, rancores, expectativas, anarquia, luta de classes... a modernidade despontava entremeada com a esperança de superação de um horror que ficava para trás, e de desconfiança pelo que poderia repetir, diante de um vazio de proposições fúteis e individualistas. MAIS DO MESMO Vivemos agora algo parecido. Sem desconsiderarmos o fato de vivermos em uma época completamente distinta, mais de um século depois do advento da modernidade, continuamos nos deparando com situações parecida. Talvez com uma novidade, analisando-se um pouco superficialmente as duas épocas. É provável que mais do que nunca em uma época se ignore tanto a História como agora. Digo a História como processo, não esse fragmento de fatos analisados isoladamente, como se as coisas acontecessem desconectadas e fosse possível analisar casos do cotidiano sem a compreensão de suas origens e de como as contradições forçam as mudanças. A geração que inicia o século XXI na adolescência, e acredito pela maneira como aprendem as coisas, imaginam estarem vivendo em um mundo que começou agora. Desconhecem todas as contradições que nos movem, erguem palavras de ordem completamente anacrônicas, acreditam piamente que os problemas do mundo é fruto do conflito entre o bem e o mal, e assumem defesa de causas conservadoras como se as mesmas fossem revolucionárias. Como a incorporarem, mesmo que ingenuamente, o discurso neopentecostal, tem o olhar fixado no futuro, e na perspectiva de alcançarem conquistas por reivindicações singelas, aparentemente radicais. São elementos que compõem a própria maneira como o sistema se retroalimenta. Drogas, marginalidade, apoliticismo (que não necessariamente é alienação), religiosidade, obsessiva vontade de enriquecer a qualquer custo, preconceito, liberalismo sexual... tudo são questões que mantém o sistema seguindo em sua lógica normal. E convivendo com isso há mais de um século.
  • 21. 21 A aparente ebulição da sociedade, expressa de várias formas e potencializadas pelas redes sociais, não carrega em si nada de novo, a não ser no uso dessas novas tecnologias. Mas, ao contrário da época em que a modernidade desponta, compreendendo isso no sentido filosófico do termo, nos dias atuais há uma completa indiferença em relação à existência de classes sociais distintas, e à luta que é travada entre elas. No momento silenciosa, mas com o aprofundamento das crises, a exemplo do que acontece em alguns países árabes e europeus, e na observância das soluções que se apresentam para elas, vai claramente sendo definido os campos em disputas. As medidas radicais tomadas para superar os problemas e impedir o agravamento dessas crises, são sempre para proteger os meios de produção, a riqueza dos grandes investidores e o patrimônio real ou virtual dos grandes banqueiros e especuladores. Enquanto isso se marcha contra tudo, menos contra aquilo que é, em essência, responsável pelas condições que tornam a sociedade insegura e refém de seus medos e individualidades. Muito embora todo um aparato repressivo seja mobilizado para conter isso, por uma necessidade de não se perder o controle do poder bem como para se impor a autoridade, não são essas as formas de lutas, nem o conteúdo que as movem, que irão fazer com que a burguesia perca o seu sono. O que dizia Marx, no século XIX, mas com um conteúdo extremamente atual, e irônico em relação às lutas e combates ideológicos travados pela burguesia, se aplica a movimentos que se apresentam com idéias avançadas, mas de conteúdos conservadores, que nos dias atuais imaginam travarem uma luta revolucionária: “Todas as relações fixas, enrijecidas, com seu travo de antiguidade e veneráveis preconceitos e opiniões, foram banidas; todas as novas relações se tornam antiquadas antes de chegarem a ossificar. Tudo o que é sólido desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens finalmente são levados a enfrentar (...) as verdadeiras condições de suas vidas e suas relações com seus companheiros humanos”. ii
  • 22. 22 FAKES, FALSÁRIOS E FASCISTAS: COMO DESPERTAR O LADO SOMBRIO DAS PESSOAS Publicado em 15 de maio de 2014 http://gramaticadomundo.blogspot.com.br/2014/05/fakes-falsarios-e-fascistas-como.html Algo de podre está acontecendo nas redes sociais diretamente, e na grande mídia de forma dissimulada. Com a proximidade das eleições, estão despertando um lado perverso e canalha de algumas pessoas. Um comportamento que não se manifesta no contato interpessoal, mas encontra no mundo virtual a coragem de expor comentários virulentos, ofensivos e desrespeitosos. Além de acusações contra desafetos políticos sem que se apresente qualquer tipo de provas. Aliado a isso, o pessimismo, a descrença, o medo, vão sendo alardeados de tal forma que as pessoas se sentem vivendo dentro daquilo que está sendo construído por essas intervenções virtuais. As condições reais de nossas existências são tridimensionadas e elevadas a um patamar muito mais exagerado do que a própria realidade se apresenta. O sentimento de impotência e revolta surge naturalmente e torna as pessoas alvos fáceis das manipulações. Esse sentimento tem sido despertado mediante uma estratégia que já foi adotada em outros países. Estou lendo o livro “A Segunda Guerra Fria”, de Moniz Bandeira, e os relatos são impressionantes. Recheados de dados e referências, o autor demonstra como a maioria das “revoluções”, ou revoltas, que derrubaram governos em várias partes do mundo, alguns eleitos legitimamente, iniciaram através de ações desenvolvidas por ONGs estadunidenses, e até mesmo órgãos oficiais daquele país, como a CIA e a USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional - United States Agency for International Development). Uma citação, à página 96, demonstra claramente isso: “Intervir em eleições estrangeiras sob a máscara de interesse imparcial de ajudar a sociedade civil tornou-se o precedente do pós-moderno coup d’etat patrocinado pela CIA, no Terceiro Mundo, adaptado às condições pós-soviéticas”. Johathan Steele, do The Guardian de Londres, em novembro de 2004. Dessa data para cá se intensificaram as ações que possibilitaram as chamadas “resistências pacíficas”, inspiradas nos ensinamentos de Gene Sharp, através de seu livro “Da ditadura à democracia”, todas elas devidamente apoiadas politicamente por uma infinidade de ONGs, todas elas financiadas pelo governo dos EUA ou por grandes financistas, como George Soros. A situação vivida pela Venezuela é consequência dessa estratégia. Como também o foi na Ucrânia, na Síria, em Honduras etc. Seguramente, isso irá acontecer aqui no Brasil até as eleições e, acredito, se intensificará na eminência de continuidade do governo atual, com a reeleição da presidenta Dilma Roussef. As análises sobre esses processos demonstra que ao não obter sucesso no processo eleitoral democrático, essas forças ampliam as pressões e instigam revoltas no intuito de desestabilizar os governos eleitos até o limite da repressão ocasionada pelas forças militares internas. Para isso é preciso construir uma sensação de desesperança e crença que a desordem e o caos estão imperando. Retira-se, assim, qualquer ímpeto de resistência a uma possível ação desestabilizadora.
  • 23. 23 O que estamos assistindo é um reposicionamento das forças geopolíticas mundiais em consequência do agravamento da crise econômica, escondida pela grande mídia e só divulgado en passant, quando no limite e com escassos comentários. Essa situação de crise tem gerado enormes dificuldades para os governos de países centrais, tanto os EUA como os principais países europeus, que nesse primeiro trimestre de 2014 não chegaram a 1% no crescimento de seus PIBs, com a maioria deles atingindo decrescimento. E o maior índice foi da Alemanha, com 0,8% (http://g1.globo.com/economia/noticia/2014/05/zona-do-euro-cresce-02-no-primeiro-trimestre-de- 2014.html) Isso força essas potências a ampliarem seus negócios, mediante o controle político dos países que estão fora de suas zonas de influência, de forma a pressionarem por mais abertura nos mercados e o controle de setores estratégicos, para que assim suas corporações possam agir mais livremente de acordo com seus interesses. A desinformação, a preguiça de ir atrás da veracidade daquilo que está sendo divulgado, aliado à alienação peculiar, facilita a adoção desses mecanismos manipuladores, que repetidos à exaustão assume ares de verdades insofismáveis. Quando, em verdade, e realmente, são situações determinadas e localizadas, sem representar, como se apregoa, o declínio da civilização contemporânea, ou algo que o valha. Prato cheio para oportunistas, fascistas e para aqueles que desejam convencer as pessoas a ingressarem no mundo da ficção religiosa, de seitas que se deleitam com a desesperança e com o medo das pessoas. Repercuti em minha página pessoal no Facebook essa percepção, e aqui a reproduzo. Estou impressionado com a quantidade de pessoas que estão compartilhando postagens produzidas por páginas organizadas por "fakes". Matérias falsas, ou propagandas subliminares, são repercutidas sem que haja um mínimo de averiguação sobre a origem das notícias, em sua maioria, falsas. Algumas são boatos, e boa parte deturpações de notícias antigas. E o que é pior, muitos que repercutem isso estão na universidade ou tem curso superior. Por causa desse comportamento uma dona de casa foi linchada e assassinada em Guarujá, SP. Fico em dúvida se é desinformação, alienação, oportunismo ou má fé mesmo. Vivemos, um tempo, de potencialidades de práticas antigas, mescladas com ares de modernidade tecnológica. O boato se dissemina virtualmente, e organiza em júbilo antros de acusadores odiosos, mas seu prólogo acontece nas formas tradicionais, da violência estúpida em grupo, nos justiceiros que assumem o papel de juízes, júri e carrascos. Sob os argumentos de ausências de autoridades, mas diante de situações que são reais, como o descontrole do aparato repressivo e a agressividade de um setor cada vez mais sob pressão: as polícias militares. Sob o medo, seduzido por ele e manipulado por outros, a multidão torna-se instrumento daqueles interesses que não se apresentam perceptivelmente. Nas sombras, escondem-se os reais interesses, de grupos que disputam avidamente o poder político e desejam concentrar cada vez mais o poder econômico. Instigam e aproveitam-se dessas situações, para afinal dar o bote sobre as carcaças de uma sociedade onde as pessoas não se veem nela, mas apenas os outros. Nesse momento surgem os reformadores do caos, os mesmos, aqueles que por décadas e séculos controlam as riquezas, concentram rendas e constroem mundos partidos, sectarizados, mas que vivem protegidos em muralhas repetindo-se, sob novas conformações,
  • 24. 24 mundos antigos e medievais. E as massas, como sempre, cumprem bem o papel de massa de manobra. Com o perdão da redundância. Está na hora de construir uma brigada da desconstrução do pessimismo. Mas, como confrontar o grande poder midiático e o financiamento de grandes corporações e governos hostis, que se disseminam disfarçadamente nas redes sociais? This is the question! Para os que consideram exagero as minhas conclusões, finalizo com a indicação de uma leitura. Um artigo escrito por Glenn Greenwald, baseado em documentos dos EUA, vazados pelo analista de sistema que atuava em uma empresa prestadora de serviços para órgãos de espionagem daquele país, Edward Snowden, atualmente sob proteção da Rússia, que lhe concedeu asilo.
  • 25. 25 A SERVIDÃO HUMANA MODERNA Publicado em 01 de maio de 2014 http://gramaticadomundo.blogspot.com.br/2014/05/a-desgraca-deste-mundo-reside-no-fato.html “A desgraça deste mundo reside no fato de ser muito mais fácil abandonar os bons hábitos do que os maus”. William Maugham O livro “A Servidão Humana”, um clássico da literatura mundial, foi lançado há quase exatos cem anos, em 1915, e o seu autor Wiliam Somerset Maugham, vivia também, pessoalmente, frente a dilemas que ainda nos dias de hoje são corriqueiros. Assumir a sua homossexualidade. Mas o conteúdo dessa obra-prima não está centrada nisso, mas em um forte questionamento sobre as escolhas feitas pelo indivíduo, diante dos problemas que a vida lhe apresenta. O amor, a família, o destino, a riqueza, a morte, as deficiências físicas e morais. E os desejos e angústias que permeiam as nossas decisões, fundamentais para definir nossos destinos. Era o retrato do ser humano em uma época marcada por transformações cruciais. O início da segunda guerra mundial impunha ao mundo novas realidades, marcadas pela brutalidade da guerra, e pelo embate ideológico que redefiniria o mundo. Mas, ainda se discutia sentimentos como bondade, paixão e amor, com sensibilidade, muito embora a hipocrisia, traço de caráter coletivo da sociedade, já se manifestasse em atos e comportamentos. Cem anos depois, o que me proponho aqui é discutir outro tipo de servidão, que tem definido comportamentos, hábitos e vícios, gerados por uma impressionante dependência tecnológica em um novo tipo de sociedade, onde nos tornamos consumistas compulsivos, e nos consumimos pelo grau de escravidão que nos impõem os objetos cada vez mais sofisticados que nos cercam. Servidão e escravidão podem carregar elementos conceituais diferentes, quando analisamos as estruturas sociais ao longo de séculos de transformações da história humana. Mas, são palavras que podem tornar-se sinônimas quando procuramos estabelecer as relações construídas pelo sistema capitalista e o grau de dependência criada entre os indivíduos e as mercadorias. Esse fenômeno foi estudado e identificado por Karl Marx já no século XIX. Segundo ele, nas relações sociais que são estabelecidas na sociedade capitalista o indivíduo ao consumir uma mercadoria desconhece, em absoluto, todo o processo de produção, no qual está embutida a exploração da força de trabalho, principal elemento a acarretar a acumulação de riquezas nas mãos dos poucos que controlam os meios de produção. As mercadorias foram adquirindo, ao longo da consolidação do sistema capitalista, por sua lógica entranhada, de garantir por ela os lucros aos comerciantes e à burguesia, o caráter de um fetiche. Por um lado, à medida em que cada vez mais ela cria uma vida própria, deixando de ser adquirida simplesmente porque advinda de uma necessidade, tornando-se um objeto de desejo irrefreável pelo qual os indivíduos se tornam dependentes; e por outro lado porque nesse processo perde-se a percepção de que ela é fruto da exploração do trabalho alheio, e por ele se garante o lucro, e o seu valor passa a extrapolar sua significância real, adquirindo um valor artificial ao sabor das
  • 26. 26 manipulações criadas pelo mercado, deixando de ser vista como algo criado pelo trabalho humano e pelo qual devesse ser medido. Por esse processo, a vontade do ser humano sucumbe ao que Marx denominou como o “fetichismo da mercadoria”, invertendo-se a ordem natural das coisas, com as pessoas sendo subsumidas nessa lógica sistêmica e aceitando serem dominadas pelos objetos. Perde-se, pela dependência criada em relação às coisas, a capacidade de refletir criticamente sobre o processo de exploração na produção da mercadoria e substitui a necessidade real, pelo desejo de consumir, afetando duramente a capacidade do ser humano de controlar de forma consciente a maneira como se dá o processo da produção. Dessa forma o dilema se nos apresenta como no enigma da esfinge: “decifra-me ou devoro-te”[1]. Na incapacidade do ser humano decifrar todo o processo produtivo, responsável pela ampliação desmedida de mercadorias, e a consequente destruição da natureza, torna-se impossível realizar seus desejos objetivado na frase que já se tornou muito mais o foco de marketing do que de realizações efetivas para sua concretização: o desenvolvimento sustentável. Essa dependência, contudo, assume nos dias atuais (muito embora perpassando isso por épocas passadas desde o surgimento do capitalismo) um estágio preocupante, porque se aproxima do limite possível de ser tolerado pela natureza, e porque culturalmente consome a juventude, principalmente, transformando-a em zumbis modernos, espécie de seres inanimados cuja capacidade de comunicar-se por vias de tecnologias sofisticadas afasta-a do contato e do convívio natural. Paradoxalmente, essa escravização aos objetos, notadamente os de forte atração tecnológica, distanciam as pessoas, quando essas estão próximas, e as aproximam quando estão distantes. A proximidade passa a ser um empecilho porque impede de usufruir dos desejos doentios de se comunicar pelos aparelhos sofisticados. Isso pode fazer com que a capacidade de dialogar presentemente torne as novas gerações frias no convívio social e insensíveis aos contatos humanos, que tendem a tornar-se fúteis e passageiros. Não há dúvidas que a tecnologia facilita a vida humana, reduz as distâncias e coloca as pessoas mais próximas. Mas o preço a pagar por isso tem sido bastante elevado quando se fala das relações humanas. O mesmo objeto de deslumbre que nos lança no mercado em busca de novidades, não necessárias, mas desejáveis, torna-se também alvo da marginalidade, quase sempre oriunda de camadas sociais mais baixa. Cada vez mais aparelhos celulares e tabletes são visados em assaltos e roubos. Repassados e vendidos no mercado paralelo o baixo preço dessas mercadorias faz com que ela seja disputada também por pessoas pobres. Com isso, não somente a classe média e os mais ricos ficam reféns dessas tecnologias, e de mercadorias que não deveriam ser as mais importantes em suas vidas, cujas necessidades mais prementes são relegadas a planos inferiores. Some-se a isso as facilidades de créditos que garantem acesso fácil às mercadorias e instigam o consumo. A alienação gerada por essa lógica consumista e os vícios que dela advém, passam a se fazer presente também entre os mais pobres, que se veem em um mundo distante daquilo que é a realidade vivida. Por todas as classes sociais a dependência tecnológica assume ares de uma epidemia. E aquilo que deveria ser algo facilitador das relações sociais, torna-se um enorme impedimento para que se
  • 27. 27 tenha a clara noção dos mecanismos reais de produção e do processo de manipulação da realidade a fim de tornar cada jovem um consumista em potencial. Podemos argumentar que tais tecnologias, e as redes sociais que elas criam, tem ultimamente contribuído para aglutinar milhares de jovens em manifestações que tem azucrinado a vida de governantes. Mas nessas redes sociais vê-se também o lado selvagem, estúpido e odiento de muitas pessoas, que passam a frequentar um ambiente onde podem tudo, ou pensam que podem, e o desrespeito passar a se constituir em uma regra que se dissemina numa velocidade impressionante. Alimentada pela mídia, estamos construindo via esses mecanismos uma geração marcada pelo ódio. Mas nesse sentimento não há, infelizmente, uma capacidade crítica suficiente para distinguir a origem de suas frustrações. O fetichismo, embutido na mercadoria, espalha-se pela sociedade, e a coragem de se manifestar via redes sociais, bem como a virulência em que essa rebeldia se transforma em alguns casos, não tem objetividade. Esses jovens, em sua maioria, não se disporiam a enfrentar os seus piores demônios, pois são eles que produzem seus objetos de desejos. São alienados e, com esses comportamentos, não causam nenhum medo naqueles que controlam toda a riqueza, os meios de produção e a cada um deles, por intermédio das mercadorias que desejam. Não defendo nenhum manifesto Ludista, anti-tecnologia. Mas me preocupa o caminho que estamos trilhando em direção ao futuro. Como sempre digo, o futuro não existe. Ele é uma construção idealizada. Quando imaginamos, contudo, aquele tempo que ainda virá, e no qual nos imaginamos nele, a menos que a morte nos tolha a vida, devemos olhar para o presente. Ele é que dirá que tipo de mundo estamos construindo. Faltando um ano para o prazo estabelecido a fim de se resolver os principais problemas da humanidade, porque é tão difícil se atingir os “objetivos do milênio”?[2] Porque tudo isso depende do rompimento com as estruturas vigentes no sistema capitalista, cuja prioridade é produzir a uma meta lunar (ou lunática), sem limites, cada vez mais mercadorias. Somos arrastados por um turbilhão midiático, de propaganda, que invade cada casa, indistintamente, a martelar em nossos desejos e a nos impor uma vontade. Sucumbimos a esse fetichismo, agora ampliado pelo marketing, e deixamos para depois a preocupação com os destinos da humanidade. Eles deixam de ser nossos quando atingimos essa capacidade consumista e passamos a querer resolver um problema somente quando ele nos incomoda particularmente. Somente a crítica, a capacidade de identificar as origens desses males, e rompendo com o fetichismo (o que não significa abrir mãos dos desejos, mas ter a consciência crítica de seus limites), pode-se corrigir o rumo que tem nos encaminhado em direção a um abismo. Certamente essas poucas palavras não surtirão efeito, porque tem alcance limitadíssimo. E muitos daqueles que lerem isso que escrevo, já possuem essa consciência crítica formada, e sentem a mesma impotência diante desses problemas. Mas consigo assim me aliviar das culpas, visto ser um indivíduo do meu tempo, e também algumas vezes cego pelos desejos consumistas. Exprimo dessa forma um sentimento que demonstra o quão contraditório é o mundo em que vivemos. Contudo, tenho a consciência da necessidade de mudar o mundo não pela cultura, pelos hábitos, mas rompendo com as relações sociais de produção que nos escraviza e limita nossa capacidade de construirmos um mundo mais solidário e menos egoísta. Somente assim, e
  • 28. 28 destruindo essa tradição que está enraizada em nossas entranhas e acompanha a cada nova geração, poderemos criar outros valores que nos levem a consumir aquilo que é estritamente necessário para vivermos bem e com dignidade, com o olhar voltado para o passado, os pés firmes no presente e nossos sonhos utópicos realizáveis a desenhar nossos destinos. Quem sabe a partir daí possa ser possível falar em desenvolvimento sustentável? Vejam este vídeo. Fala sobre a maneira como estamos substituindo nossa maneira de interagir, nos submetendo à dominação dos objetos e da tecnologia: https://youtu.be/EPoUKDuGMLg
  • 29. 29 REFLEXÕES SOBRE O NOSSO TEMPO E O COMPORTAMENTO HUMANO Publicado em 15 de outubro de 2017 https://gramaticadomundo.blogspot.com/2017/10/reflexoes-sobre-o-nosso-tempo-e-o.html Fiquei um tempo afastado das postagens no Blog, em função de duas seleções de textos que estive fazendo, com o objetivo de lançar dois livros com artigos aqui já publicados. Mas nesse período não deixei de estar atento às polêmicas e situações políticas que afetam o nosso cotidiano. Expressei em alguns momentos nas redes sociais algumas opiniões, embora bem pontuais, sobre polêmicas que se disseminaram rapidamente. Situações tornadas mais complexas em função da condição em que estamos vivendo, com uma radicalidade política que tem feito explodir comportamentos estúpidos e intolerantes. Contudo, as questões nas quais me senti estimulado a comentar, tem a ver com o objetivo que me propus a voltar às crônicas neste blog. Como historiador que analisa as sociedades com base na dialética, percebo que estamos vivendo uma crise estrutural, sistêmica, consequência do choque de contradições na forma de funcionamento das relações de produção capitalistas. Em outros tempos, em outras formações sociais, situações parecidas também aconteceram, levando a transições longas e dolorosas, porque são situações que intensificam como num efeito dominó, diversas outras crises por todos os setores da sociedade. Inclusive no crescimento da violência, da intolerância, do individualismo, do messianismo e dos atos e gestos tresloucados, individuais ou coletivos. A grande diferença, comparando-se com outros momentos da história, é a rapidez com que os acontecimentos chegam ao nosso conhecimento, gerando medo e histeria coletiva numa intensidade muito maior. Além de existirem atualmente mecanismos de comunicação que dão vozes a qualquer um, disseminando crenças, boatos e ampliando a dimensão dos fatos a níveis bem maiores do que os normais. Ou do que se poderia considerar normais em determinadas circunstâncias. É o que vem sendo chamado de "pós-verdade". O que nos assusta, para além dos medos que nos agrilhoam, é saber que noutros tempos as sociedades só conseguiram sair dessas mesmas crises por meio de grandes guerras. Para confirmar meu olhar dialético, concluo com uma frase atribuída a Karl Marx, por Vladimir Saflatle (não consegui encontrar a fonte, por isso atribuo a este): "A situação desesperadora da época na qual vivo me enche de esperanças". (http://www.ihu.unisinos.br/540154-enfim-o-desespero). Atenção! Tudo é perigoso. Acompanhei também, equidistane, a polêmica em torno do “homem nu no museu”, e a reação conservadora eivada de intolerância que se seguiu. Considero uma aberração estabelecer censuras a museus. Nos leva de volta para o passado, em tempos nos quais as liberdades individuais foram sumariamente suprimidas. A diversidade que se apresenta nos museus e teatros refletem as diferenças que existem em nossa sociedade. Não é segredo, não pode ser escondida. Aliás, as camadas pobres já não são estimuladas a frequentarem e ver um mundo diferente daqueles que eles habitualmente vêem e vivem, sejam em museus ou em teatros. Portanto, manifesto apoio a toda e qualquer forma de luta contra mais esse ataque retrógrado às liberdades. No entanto eu também tenho minha opinião, e o que desejo é exatamente essa liberdade de expressá-la. Corpo nu, não é arte pra mim, nem em museu nem nas páginas da playboy ou outras revistas do gênero, seja masculina, feminina ou LGBT. É simplesmente um corpo nu, objeto de
  • 30. 30 curiosidades e desejos numa sociedade em que o hábito é andar com alguma roupa. Isso é tão estranho quanto o fato de não poder andar de biquinis ou sungas pelas ruas, mas poder usar e ser visto/a assim nas praias. Tudo questão cultural. De liberdades outras que se permitem em campos de nudismo, mesmo que com regras. As performances feitas com corpo nu podem ser feitas com roupas íntimas, de ceroulas, saias, bermudas ou de qualquer jeito. A arte está nas performances. Mas essa é a minha opinião. Por isso eu quero ter a liberdade de poder analisar e opinar, de ver ou de não querer ver. Impor censura nos leva a práticas ditatoriais e totalitárias. É precedente perigosíssimo, como tantos outros estão acontecendo. É melhor nos ligarmos no grito contido na música de Caetano: "Atenção: Tudo é perigoso. Tudo é divino maravilhoso. Atenção para o refrão. É preciso estar atento e forte..." (https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/44718/) MENTES ESCRAVIZADAS E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL Para além dessas polêmicas, tenho me batido também contra um vício, que para nós professores, tem sido um golpe mortal na possibilidade de conseguirmos chegar ao final de uma aula com o prazer de ter cumprido o nosso papel, podendo receber como feed back uma demonstração de interesse por mergulhar em busca e transmissão do conhecimento. Refiro-me à dependência tecnológica que tem afetado a juventude, mas não somente esta, como também às pessoas de uma maneira geral. E, quando nós professores, perdemos um bom tempo de nossas aulas, ralhando com alunos e alunas, insistentemente, para que não usem seus smart-fones em sala de aulas, significa que chegamos a um ponto de difícil retorno à nossa condição humana. No livro, “Eu Robô”, escrito em meados do século XX, Isaac Asimov cria, em ficção, diversas situações que demonstram os avanços da robótica e o desenvolvimento, até mesmo no campo da inteligência, de máquinas que substituiriam os humanos. No clássico “Blade Runner”, de Philip K. Dick (1968), os humanos são substituídos por androides, chamados replicantes, que gradativamente também vão adquirindo inteligência, sensibilidade e a capacidade de sentir prazer. Para completar os clássicos, também Stanley Kubrick avançou nessa direção, praticamente afirmando a possibilidade de robôs/andróides serem capazes de desenvolverem suas inteligências, a partir de protótipos criados por corporações. Todos esses livros ou roteiros foram transpostos com sucesso para o cinema, este último amplificado por Steven Spielberg (A. I. 2001). A Inteligência Artificial, elemento presente em todas essas obras de ficção, hoje já ultrapassa essa condição, e se torna algo objetivamente real, com o desenvolvimento dessa capacidade em computadores e já também em robôs. Mas o que tem isso a ver com a minha decepção em relação ao uso desmedido de smart-fones, inclusive em horário de aula? Porque isso demonstra que, gradativamente, e de forma mais acentuada com as mais novas gerações, o cérebro vai aos poucos tendo partes descartadas por falta de uso, já que não somente isso é um objeto de distração, como vai sendo substituído pouco a pouco pela “inteligência” artificial. E propositadamente coloco a expressão entre aspas, porque não se trata, enfim de inteligência que possa adquirir capacidade crítica, na medida em que cada
  • 31. 31 vez mais o uso desses aparelhos desvia a atenção da juventude, anestesia sua capacidade de reflexão de forma mais aprofundada, retira-os implacavelmente do mundo real e contribui para a disseminação de atos de estupidez e intolerância, na medida em que o poder de discernimento vai, pouco a pouco, perdendo-se em meio a uma infinidade de informações mal processadas e não verificadas em suas autenticidades. Com as devidas e raras exceções. Claro, os aparelhos são os transmissores, os equipamentos que permitem a determinados programas cumprir esses objetivos. As redes sociais disseminam-se celeremente, afetam rapidamente a rotina e o cotidiano das pessoas. Parecemos cada vez mais com zumbis, inclusive em plenas vias urbanas e até mesmo no trânsito, absolutamente distraídos em relação ao mundo real que nos cerca, e completamente absortos em um mundo virtual, distante e desatento do nosso lócus. O uso excessivo de smart-fones já se constitui em um vício. Algo devidamente diagnosticado como uma patologia, inclusive com tipos de tratamentos semelhantes àquelas pessoas viciadas em drogas fortes. Naturalmente, como tantos outros vícios, as pessoas não tem essa percepção. Informam-se, divertem-se, trabalham, leem, estudam, e dessa forma encontram sempre uma justificativa para o uso exagerado desses aparelhos. Ora, muitos fazem tudo isso. Confesso que também eu. Mas devemos ter a capacidade de saber dos nossos limites, ou até onde podemos sucumbir às máquinas. Algo que aliás, o geógrafo Milton Santos, morto em 2001, já alertava para esse caminho que a humanidade estava seguindo, em que estávamos sendo dominados pelas máquinas, ou pelos objetos. Acredito que o limite disso tudo chega a um nível perigoso quando as novas gerações trocam o saber pelo instrumental, o conhecimento pela informação, a objetividade pela superficialidade, e o real pelo virtual. Ao nos depararmos com jovens que diante de seus professores, em plena sala de aula e durante a exposição do seu mestre, prefere acessar esses aparelhos, começamos a nos sentir derrotados naquilo para o qual dedicamos boa parte de nossas vidas. Já não faz mais sentido, mesmo que por enquanto ainda não seja uma maioria a fazer isso. Mas se não impomos restrições essa maioria aparece rapidamente. Creio que um filme (três, na verdade) nos possibilita discutir isso com precisão. Mais um desses filmes, naturalmente. Embora tenha sido produzido atemporalmente. Ou seja, antecipou uma realidade que veio despontando ano a ano depois de sua produção: a trilogia Matrix. Talvez esse seja um filme de grande relevância para debater com a nova geração, mas duvido que consigamos convencer aqueles que já estão numa dependência doentia na relação com esses aparelhos. Ademais, e isso é fato, a maneira como esses aparelhos possibilitam os contatos virtuais, encurtam as distâncias entre as pessoas, muito embora as distanciem fisicamente, tem possibilitado a difusão de mentiras, boatos, notícias falsas, “fakes” (que pode ser tudo isso), e potencializado a disseminação de ódios, preconceitos, intolerância e atos estúpidos, pois criam condições que encorajam pessoas que não se manifestariam, e não se manifestam, presencialmente. São caminhos perigosos que trilhamos nesse momento de insensatez, visível nos atos e gestos do boquirroto que assumiu a condição de presidente da maior potência econômica e militar do planeta, fazendo bom uso dessas tecnologias e desses mecanismos geradores de estupidez. Sua campanha foi um exemplo de como nossos destinos estão submetidos às neuroses coletivas
  • 32. 32 provocadas por “verdades” produzidas em laboratórios de marketings. Somos, cada um de nós, cobaias de novos experimentos que analisam comportamentos e criam inteligências artificiais mais espertas do que a maioria dos mortais, entregues que nem zumbis aos deslumbramentos tecnológicos. Ainda há tempo para adquirir capacidade crítica, resistir e combater. Um outro mundo é possível! Mas estamos perdendo batalhas importantes.
  • 33. 33 NOTAS: [1] “Diz uma antiga lenda grega que a deusa Hera enviou a Esfinge (uma besta com cabeça de mulher, asas e corpo de animal) para atormentar os moradores da cidade de Tebas. A Esfinge cruzava o caminho de todos os que se aproximavam da cidade e formulava um enigma para o viajante. Quem errava o enigma era devorado pelo monstro. Um dia, Édipo cruzou com a Esfinge, que lhe propôs o seguinte enigma: “O que durante a manhã tem quatro pernas, ao meio-dia tem duas e à noite tem três”. Édipo respondeu corretamente* e a Esfinge ficou tão furiosa que se lançou num precipício. Graças à façanha de derrotar a Esfinge, Édipo tornou-se rei de Tebas e ganhou a mão da rainha enviuvada, sua própria mãe.”. (*) Resposta ao enigma: O ser humano. Representado em suas fases de recém-nascido, adulto e na velhice, quando necessita ser apoiado em uma bengala ou cajado. [2] Em 2000, a ONU – Organização das Nações Unidas, ao analisar os maiores problemas mundiais, estabeleceu 8 Objetivos do Milênio – ODM, que no Brasil são chamados de 8 Jeitos de Mudar o Mundo – que devem (deveriam) ser atingidos por todos os países até 2015. 1. Acabar com a fome; 2. Educação básica de qualidade para todos; 3. Igualdade entre os sexos e valorização da mulher; 4. Reduzir a mortalidade infantil; 5. Melhorar a saúde das gestantes; 6. Combaer a Aids, a malária e outras doenças; 7. Qualidade de vida e respeito ao meio-ambiente; 8. Todo mundo trabalhando pelo desenvolvimento. (http://www.objetivosdomilenio.org.br/) i Bom. Fazendo a revisão desse texto, obrigo-me a esclarecer que nem tudo que é pós foi “varrido”, como afirmei no início. Em meio a um momento de indefinições, insensatez, intolerância e aprofundamento de uma crise sistêmica profunda, eis que aparece agora a “pós-verdade”. Mas isso é outra história. ii Manifesto Comunista, 1848. APUD Berman, Marshal. Tudo que é sólido desmancha no ar – A aventura da Modernidade. Cia das Letras, 1993, p. 20).