1. Arquitectura e vida
Lugares que marcam.
Um lugar sem identidade é um não lugar, uma pessoa sem identidade é uma não pessoa; a identidade é
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feita de existências. Só um corpo amnésico, que perdeu a sua identidade, poderá tornar-se num não-lugar .
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Não pessoas com existências são replicantes .
Esta será a terceira e última parte do artigo dedicado ao branding em Portugal, à identidade gráfica das
organizações e seus principais obreiros nacionais. Na primeira referimo-nos á identidade como imagem de
marca ficcionada no imaginário dos seus públicos e resultado de uma poética de gestão; na segunda
tratamos as marcas como meio de produção de identidade nacional e principal fonte de creditação
internacional; neste mês a identidade será percebida como expressão ontológica dos lugares conquistados
ao esquecimento, marcados pelo afecto e criativamente ocupados.
Como dizia Mário, o ideólogo basco, a nação é o lugar de expressão da nossa liberdade, ideia também
presente no discurso de Mia Couto sobre a língua ou em Siza sobre a arquitectura: um lugar de
reconstruções, um domínio de liberdade.
A identidade projecta-se nas rotinas dos indivíduos, das comunidades e das organizações. Leio o JN,
lembro-me que é o diário mais lido em Portugal — portanto aquele que melhor exprime a identidade deste
povo — e tropeço nas palavras do ministro das Finanças Teixeira dos Santos na inauguração da exposição
de Nadir Afonso, considerando que a identidade dos povos, presente na obra dos seus artistas, é a única
coisa que não se dilui na globalização. As obras de Arte constituem a melhor representação de uma
comunidade, constituindo a máxima expressão da sua cultura. Gaudi, Miró e Picasso para a Catalunha
(curiosa concentração), Joyce e Beckett para a Irlanda, Matisse para França, Malevitch para a Rússia,
Motherwell ou Rothko para o norte da América, Lapa, Siza ou Cabrita Reis como hipótese para Portugal. A
procura da identidade está frequentemente correlacionada com a ameaça da identidade. Com a entrada na
comunidade europeia, e perante as profundas consequências de transformação na estrutura económica do
país, explodiram como cogumelos museus e centros de interpretação por todo o país, preservando a todo o
custo uma memória já moribunda de antigas práticas artesanais e industriais.
Os artistas (e todos os autores em geral) serão expressão de um genius loci (espírito do lugar)? Talvez, mas
também serão eles os principais transformadores dessa condição original.
No mesmo número do JN, lê-se na revista NS que Diana, a princesa de Gales, sabia que a aristocracia por
nascimento era irrelevante, contra a aristocracia da exposição pública (citado de Tina Brown na Newsweek).
Uma aristocracia que já não é genealógica, mas teatralizada, fotográfica e jornalística é a contradição da
aristocracia (gr. aristokratía, “governo dos melhores”), ou talvez não, se reduzirmos a aristocracia a um
fenómeno de pura representação (afinal o que é ser o melhor?) e sabemos que parte do exercício político se
fica a dever ás boas qualidades dramáticas dos seus protagonistas. Um aristocrata sem poder perde toda a
identidade de aristocrata, e com ela a força da sua graça.
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Em Não-Lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade , Marc Auge identifica
antropologicamente como máxima oposição ao “lugar” por excelência que é o lar, os “não-lugares” de
circulação, como as gares, aeroportos, supermercados ou cadeias internacionais de hotéis, ou seja aqueles
sítios que apresentam uma qualidade de indiferença histórica e cultural; a supermodernidade estabelece
com os não lugares um protocolo simbólico de desterritorialização veiculado por cartões de crédito,
passaportes, que hoje começam a ser substituídos simplesmente pela leitura da impressão digital dos
viajantes.
Ricardo Santos, psicólogo clínico e investigador na Universidade de São Paulo, desenvolve outro conceito
sob a mesma chave. O não-lugar em psicologia toma, nas suas palavras, o espaço de realização utópica e
subjectiva onde cada um, a seu modo, busca permanecer — conceito desenvolvido a partir da leitura de A
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Termo recorrente no pensamento de Marc Auge.
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Blade Runner (O caçador de andróides) EUA, 1982, 116 min; realização de Ridley Scott; argumento de Hampton Francher e David
Webb Peoples, baseado no livro de Philip K. Dick; fotografia de Jordan Cronenweth; direcção de Arte de David L. Snyder; música de
Vangelis; distribuição de Columbia TriStar/Warner Bros.
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AUGÉ, Marc, Não-lugares: introdução a uma antropologia da Supermodernidade, Campinas, Papirus, 1994.
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2. utopia de um homem que está cansado de Jorge Luís Borges; o não-lugar é o lugar ficcionado de uma
possibilidade no futuro ideal, que questiona o sentido rotineiro do lugar, abrindo a possibilidade a lugares
inexistentes. Pessoas que dormem em transportes públicos, lêem ou simplesmente olham para a paisagem,
isoladas do mundo pelos seus auscultadores, encontram recursos para se proteger através de um não-lugar
de blindagem social, que cria uma espécie de presença ausente, de quem se manifesta indisponível á
comunicação intersubjectiva, ou de quem protege a sua subjectividade organizada pela afirmação do desejo.
As marcas a que recorremos também podem proteger os indivíduos em ambiente social, blindando-os
mesmo.
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Rita Filipe no artigo sobre Eco-design publicado na revista AV em Abril de 2007, recorre a Daniel Miller para
defender que o modelo de consumo pode ser visto não tanto como aquilo que a cultura industrial nos força a
ser, mas pelo que nos permite “ser” através dela e assim, o consumo, superará a dimensão de mera
extensão das condições e relações sociais geradas pela organização da produção, para constituir a sua
negação. Na mesma orientação ideológica, foi publicado em Junho de 2007 uma entrevista a Daniel Miller,
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conduzida por Clara Viana no Público, onde se ressalta a posição critica da antropologia contra a ideia feita
da sociologia, construída a partir de Baudrillard, de que todo o consumo seja consequência dos mecanismos
alienantes de coacção capitalista, reduzidos á condição de limitadores da liberdade humana. Miller, depois
de uma longa observação da relação das pessoas com os artefactos, recupera uma tão ingénua quanto
genuína visão antropológica do comportamento humano que, vê nos objectos, a mediação da superação da
morte e o acto amoroso materno que procura os melhores produtos para a valorização dos seus filhos em
ambiente escolar; se as compras tinham a ver com alguma coisa, antes de mais esse algo era o amor, e não
a manipulação capitalista que, aparentemente, conduziria os seus actos de consumidor. Também nos EUA
vi pela primeira vez mendigos obesos que sobrevivem em torno de lojas McDonalds, onde encontram
alimento a qualquer hora do dia, por um ou dois dólares (que ganham facilmente como arrumadores), um
local para se sentarem, acesso gratuito a instalações sanitárias e ambiente temperado (aquecido no Inverno
e arrefecido no Verão). Há por assim dizer uma função social do McDonalds na sociedade americana, que
não pode ser evitado.
As grandes marcas internacionais, construídas pela tecnicidade industrial ou moderna (Adriano Rodrigues),
têm-se afirmado como hiper-lugares artificiais. A sua adopção pela sociedade veio promover a assunção do
não-lugar abstracto, neutro, amnésico e global do consumismo emergente como identidade social,
hegemonizada pela cultura material das marcas internacionais. É a desertificação cultural do mundo, a
secagem progressiva de toda a biodiversidade cultural, de todas as ecologias tradicionais. As marcas
categorizaram o desejo respondendo-lhe com produtos-argumento que autoregulam a integração dos
indivíduos no sistema social. A Calvin Klein oferecendo uma aparência juvenil, a McDonalds oferecendo
nutrição a baixo custo em ambiente lúdico e infantil, a Nike dando uma nova dignidade ao oprimido social, a
Coca-Cola excitando as psiques juvenis e espantando toda a depressão, a Google como acesso ao
conhecimento, o Smart como meio de sustentação ambiental ou a Apple uma forma de trabalhar mais
inspirada. Cada marca tem vindo a revelar-se como lugar de comunicação estrategicamente dirigida ao
consumidor, categorizando o seu desejo futuro. Lugares construídos universalmente por histórias fantásticas
que, para além de simularem a realidade, são reconstruídas a partir das próprias experiências dos seus
consumidores, uma hiper-realidade de realização, onde a mercadoria é cada vez mais deslocada para a sua
representação e substituída pelo seu valor de troca; isto é o branding, a troca do produto pela promessa que
inspira.
Como escreve José Fernando Guimarães, sabemos com Baudrillard que o pós-modernismo desloca o
conceito de lugar para o conceito de não-lugar (Marc Augé) e que, por isso mesmo, «o espectador passa a
ser parte do simulacrum, o qual é transformado e distorcido de acordo com o seu ponto de vista» (Deleuze).
Ou seja, o espectador toma parte no fenómeno; os públicos reconstroem no seu imaginário as marcas que
os integram. Quando a imprensa se questiona sobre o que torna a maça diferente? Percebe que os
consumidores Apple são os primeiros defensores dos seus produtos, ainda que pagando mais por isso.
Pedro Pina presidente da McCann Erikson em Portugal, justifica o êxito da marca com uma história de
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MILLER, Daniel, Material culture and mass consumption, 1987, citado por Rita Filipe em Eco-design, reinterpretar o artesanato, in
Arquitectura e Vida nº 81, pp. 101-105.
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“Os objectos também ajudam a lidar com a morte” entrevista de Clara Viana a Daniel Miller, in P2, Jornal Público de segunda-feira, dia
28 de Maio de 2007, pp. 6-7.
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3. cumprimento de promessas que ultrapassam as expectativas e que, por isso, nunca foi desleal ou desiludiu;
para Carlos Coelho co-fundador da Brandia, a Apple não dissocia os aspectos tangíveis e funcionais dos
intangíveis e emocionais, tendo compreendido desde cedo a importância de responder ás expectativas
afectivas dos seus consumidores. Isa Costa, webdesigner e consumidora Apple, confessa não saber que
algum dia poderia vir a apaixonar-se por um computador até ter um Mac. Os consumidores Apple parecem
revelar uma forte irracionalidade nas suas preferências; no entanto, o que os distingue é reconhecerem
importância à dimensão holística que a Apple oferece de modo incomparável, com produtos desenhados em
torno de uma forte identidade estética gerada a partir da marca “desejo”; para além disso nos computadores
Apple cada parte é coerente com um todo, numa total complementaridade entre software e hardware
convergente com a ideia de qualidade total, em que cada parte, por pequena que seja, deve ter a imagem da
globalidade. Por isso um Apple não é só um instrumento de trabalho, é também um objecto de culto e esta é
uma estratégia do design que a Microsoft nunca superou. Talvez resida aqui a grande diferença que o
“lugar” de origem ditou, distinguindo profundamente um produto concebido por Jobs de outro por Gates.
Um não-lugar, como um não-produto é um lugar em branco, o potencial oriental para poder assumir todos os
lugares, ou seja assunção de todos os lugares em potência: um sitio sem memória, um disco virgem.
Os “produtos brancos”, que para alguns estariam a salvo da contaminação consumista, não são produtos,
são não-produtos; isto é, quando existam não terão identidade, por isso, na maioria das vezes, transformar-
se-ão em produtos plagiados, assumindo a identidade de outros, clonando-os. O design que os assiste não
tem como intenção diferenciar mas confundir, emprestando-lhes uma falsa identidade. Há tempos fui
convidado a integrar equipa de avaliação de produtos comerciais de consumo doméstico que, apresentando
uma identidade visual mimeticamente referida a outros com que concorrem no mercado, se legitimam no
suposto estatuto de produto branco. O que verifiquei, ao observar os produtos hoje disponíveis nos
supermercados, é que a maioria dos produtos embalados pelas marcas das grandes superfícies, concorre
com os seus congéneres que vende nas mesmas prateleiras, copiando descaradamente as suas estratégias
comunicacionais e simbólicas. Os produtos brancos seriam uma espécie de não-produtos, ou de produtos
em potência, mas na verdade são produtos clones, são réplicas.
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Somos memória, diz António Pina , memória social, memória cultural, memória biológica, (o ADN que
transportamos o que é se não memória? memória do passado e memória do futuro…), a memória é assim o
que salvamos de um profundo esquecimento, a cultura; mas como também diz o mesmo autor, aquele que
se recorda é sempre outro e por isso, a cultura é sempre dinâmica e as marcas mutantes. Talvez um dia
recordemos as visitas de sábado ao supermercado, com a nostalgia com que lembramos hoje as antigas
feiras rurais, e as marcas que consumimos tenham no nosso corpo o mesmo peso dos antigos rituais
religiosos.
Na condição pós-moderna mistura-se a memória natural com a cultural mas, como no resto dos seres,
também esta tende irremediavelmente para o esquecimento, cumprindo o inexorável ciclo de nascer,
crescer, reproduzir-se e morrer.
À procura de não lugares na internet, deparo-me com o blog letra corrida, de José Fernando Guimarães
(letracorrida.blogspot.com), onde encontrei uma interessante observação sobre uma perspectiva estética
dos não lugares e consequentemente dos não produtos e das não obras da arte contemporânea. Guimarães
observa a separação entre modernismo e pós-modernismo pela profunda mudança entre uma arte que
deixa de ser representação, para passar a ser realidade em si e por si mesma. Também no exercício
público das marcas se assiste contemporaneamente a uma personalização do produto que remete a marca
para o ambiente da sua realização. A dimensão virtual da comunicação em rede promove a tal inteligência
conectiva que multiplica os lugares para além dos territórios (pós-modernismo); um corpo múltiplo que
nascendo em nenhum lugar, tem vestígios de todos os lugares, apresentando marcas das suas
cumplicidades e relações. O “lugar” de origem já não é se não uma memória transcrita e contaminada e
sobreposta por outros lugares de afecto e de produção do corpo (um autor é sempre uma multidão). Creio
no entanto que um múltiplo lugar não seja um não lugar nem um hiper lugar.
Sabemos que o pós-modernismo é o fim das grandes narrativas (Lyotard), irromper da textualidade e do
fragmento (Barthes). Sabemos que a noção de arqueologia do saber, herança do nietzscheano conceito
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PINA, Manuel António, em entrevista conduzida por Sérgio Almeida, JN de Domingo, 1 de Julho de 2007, pp. 58-59.
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4. de genealogia, desarticula a arquitectura das humanidades, que obedecia a uma lógica de poder, o poder
institucional (Foucault). Sabemos que o conceito de rizoma implica o imanente (Nietzsche), e questiona,
mais uma vez, o poder institucional (Deleuze e Guattari). Sabemos que ao sublinhar o fragmento (tema
recorrente em Benjamin), nos aproximamos do romantismo, numa estética do fragmentário (Hölderlin), do
pulsional (Wagner), do monumental, do heróico (tragédia grega, ou conceito romano de fatum, “destino”).
Caixa de destaque:
O signo está para a comunicação como o átomo para a física ou a célula para a biologia (Charles Morris,
1938); o signo é constituído por um nível significante (o que representa e está presente) e um nível de
significado (o que é referido, mas ausente; Saussure, segundo o modelo diádico). Para Peirce, a
representação traduz-se pelo modelo triádico formado pelos vértices do representante (“R” aquele que
representa), pelo objecto da representação (“O” o que é representado) e pelo instrumento interprete (“I”
processo ou tecnologia da interpretação).
No triângulo de relações de que é constituído o signo, encontramos a produção de distintos factores
representacionais em conformidade com a natureza das ligações em presença, entre os pólos geradores de
significado:
Do movimento do objecto para o representador decorre a representação;
Do movimento do representador para o intérprete decorre a expressão;
Do movimento do intérprete para o objecto decorre o conhecimento.
Tomemos esta abstracção de Peirce como um triângulo produtor de comunicação formado por um autor
(representante), por uma intenção (objecto) e por um meio de relação (interprete), e teremos o esquema
triangular da produção de design (autor, programa e tecnologia).
Os artefactos do design entendem-se como signos, quando analisados no contexto representacional da
comunicação (correspondendo talvez ao principal motivo de desempenho económico que parece ter hoje);
No entanto não se pode reduzir um artefacto, um dispositivo, uma máquina operativa à sua dimensão
sígnica, devendo sempre entender-se o design como entidade operacional que intervém no meio ambiente,
alterando as condições estabelecidas e o equilíbrio das forças em presença - essa é a sua dimensão mais
prática (e arcaica) na resolução tecnológica de problemas.
Ao confrontar a estrutura triangular do signo de Peirce com o modelo de design de Aveiro, verifica-se como
principal a diferença entre o “objecto” (Peirce) e o “programa” (Aveiro), a superação do nível real para o irreal
ou ambicionado. De certa forma é como se o objecto presente fosse substituído por uma intencionalidade
futura, atribuindo à operação uma dimensão projectual. Esta será talvez a primeira condição de autonomia
identitária do design, a necessidade de se orientar sempre para o novo, tomando na oportunidade que se
abre, o pretexto para novas possibilidades. Se na semiótica, a representação decorre da relação do objecto
com o representante (autor), no projecto da relação entre o programa e o autor decorre a gestão, atribuindo
uma dimensão mais operativa, dinâmica e transformadora, ou seja mais artificial.
Ainda em Peirce, da relação entre a tecnologia interprete e o objecto decorrerá o conhecimento; da relação
entre o objecto e o representador decorre a representação e da relação entre o representador e a tecnologia
interprete decorre a expressão. De facto mantém-se alguma semelhança nos pressupostos verificados no
modelo triangular do design. Da relação entre o autor e tecnologia decorre a arte (tomando como objecto e
programa a experiência existencial do seu representador ou autor). Da relação entre tecnologia e objecto
decorre a engenharia (que tomará como objecto e programa a optimização tecnológica, isentando-a de
qualquer contaminação subjectiva). Da relação entre o programa e o autor decorre a gestão, como a
actividade que se funda na estratégica (domínio do futuro por objectivos) ao criar as condições conducentes
a um determinado resultado, antecipadamente imaginado e desejado pelo próprio autor.
A marca, observada pela semiótica, será pois construída, enquanto signo e artefacto, pelo Design como
resultado peirceano da triplica intervenção do gestor, do engenheiro e do artista, ou seja como conhecimento
abstracto (tecnologia / programa), representação estratégica (programa / autor) e expressão poética (autor /
tecnologia).
Francisco Providência
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