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Universidade de São Paulo
Escola de Comunicações e Artes
Departamento de Relações Públicas, Publicidade e
Turismo
Guilherme Ferracioli Muezerie
Compra-se um Eu:
O consumo como formador da identidade
São Paulo
2015
Universidade de São Paulo
Escola de Comunicações e Artes
Departamento de Relações Públicas, Publicidade e
Turismo
Guilherme Ferracioli Muezerie
Compra-se um Eu:
O consumo como formador da identidade
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado à Escola de
Comunicações e Artes como
requisito parcial para a obtenção do
título de bacharel em Comunicação
Social com habilitação em
Publicidade e Propaganda.
Orientador: Prof. João
Carrascoza
São Paulo
2015
Banca examinadora
Espaço reservado às observações da Banca
Examinadora responsável pela avaliação deste
trabalho, apresentado em _____ de dezembro de
2015, na Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo.
Examinador 1:
_________________________________________
_________________________________________
_________________________________________
_________________________________________
_________________________________________
_________________________________________
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Examinador 2:
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Examinador 3:
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_________________________________________
_________________________________________
_________________________________________
Agradecimentos
Este texto é um pouco mais do que um
simples trabalho acadêmico. É um exercício para a
vida. Aqui vão os agradecimentos para as pessoas que
estiveram nela durante os últimos anos e que
continuarão por vários outros:
À minha mãe e ao meu pai. A ele, por sempre me
deixar ser quem eu quero. A ela, por nunca me deixar
ser qualquer um.
Aos meus tios. Além de exemplos pra mim, sem o
apoio deles, eu não estaria aqui hoje.
À Família Futsal, pelas vitórias dentro e fora de
quadra.
Aos amados: Giu, Dé, Dani, Karina, Aída, Tulio,
Maluf, Alice e Barbara.
Diego e Guilherme, que estão nessa comigo desde o
começo.
Natália Tonello e Shayene Metri.
E um obrigado especial ao Giu e à Carla, pelo tempo
que dedicaram na revisão e capa.
Resumo
Este trabalho propõe uma reflexão sobre
como nossas identidades são construídas a partir do
consumo de bens industrializados. Traça um
panorama das mudanças que vêm ocorrendo no
mundo, desde a modernidade até a pós-modernidade,
e analisa as influências dessas mudanças na
sociedade, no consumo e neste elemento subjetivo
que nos define: a ideia de identidade.
Palavras-chave: Consumo, Identidade, Sociedade de
Consumidores
Índice
Introdução 13
Parte I 21
Da Revolução Industrial ao século XX 23
Parte II 37
A transição entre os modelos de sociedade 39
Cultura consumista e estratificação 49
Distinção e escalada social 56
O Paradigma do Desejo 68
Tempo versus felicidade 74
Parte III 81
Identidades tardias 83
Transição e fragmentação de identidades 86
Liberdade e fetiche 94
Considerações finais 107
Referências bibliográficas 113
13
Introdução
unho de 1965. A então iniciante banda
conhecida como “The Rolling Stones”
estava em turnê pelos Estados Unidos. Britânicos, já
haviam gravado alguns álbuns e alcançado razoável
sucesso no Reino Unido, mas a tão cobiçada
fronteira norte-americana ainda era um desafio. Em
certa madrugada durante a turnê, o guitarrista da
banda, Keith Richards, acordou de um sonho. Um
sonho musical. Levantou-se da cama, lançou mão de
seu gravador e registrou a ideia que havia tido. Na
manhã seguinte, encontrou o registro da canção que,
(pouco) mais tarde, seria conhecida no mundo todo.
“Satisfaction” foi o passaporte dos “Stones”
para o estrelato. Sucesso imediato nos EUA, o single
fez dos britânicos famosos e tornou-se um hino - não
só da banda, mas da época e do rock, o movimento
cultural em que se inseria. Diz-se por aí que um dos
fatores que faz determinada canção se eternizar é a
sua capacidade de se apropriar e exprimir o espírito
J
14
de uma época. Se isso é verdade ou não, pouco
importa. Não há dúvidas de que os “Stones”
conseguiram capturar, em “Satisfaction”, o mundo
que os rodeava com extrema precisão.
Paralelamente ao sucesso da música, o ano de
1965 estava sendo marcante para os americanos.
Lyndon Johnson assumia a presidência com políticas
sociais voltadas para os direitos civis, mas com uma
política econômica liberal e geopoliticamente
expansiva. A Guerra do Vietnã se tornava cada vez
mais dura e o ideal anticomunista transcendia os
campos de batalhas. O consumo massificado torna-se
então a alternativa encontrada para sustentar a
economia, e o consumismo começa a ganhar forma
na sociedade.
Mick Jagger captura esse momento com um
tom irônico, próprio da sua juventude:
15
Quando estou vendo minha TV
E aquele homem vem para me dizer
Quão branca minha camisa pode ser
Mas ele não pode ser um homem, porque ele não fuma
O mesmo cigarro que eu
Não consigo, (...)
Rolling Stones, Satisfaction
Entre outras ironias, a banda critica o hábito
do consumo exagerado que já era massificado àquela
altura. Alguns outros aspectos chamam a atenção na
denúncia de Jagger: o homem que vem à TV falar
personifica a intenção de convencimento e
humanização da propaganda e, ainda mais
interessante, reforça a relação de causalidade ou
dependência explícita que existente entre um
produto: o cigarro - e uma característica de
identidade: o gênero masculino.
Ano de 2008, Cidade Tiradentes, zona leste
de São Paulo. Na periferia da grande metrópole, o
funk nacional, gênero nascido no Rio de Janeiro no
final dos anos 1980, domina a cena musical. O
16
crescimento econômico acelerado do país,
acompanhado pela elevação do nível dos salários e
do emprego, suporta o surgimento de um subgênero
dentro dessa cena musical: o funk ostentação.
Cantado por representantes das classes mais baixas
da sociedade, o estilo era paradoxal ao se caracterizar
por letras que abordam o uso de artigos de luxo,
como roupas, perfumes, carros, motos e bebidas. O
conceito de ostentação toma conta das letras e do
imaginário criado por elas.
No início, os objetos exaltados eram mais
simples. Quando se popularizou, o “MC Boy do
Charmes”, um dos representantes do gênero, já
assinalava o seu desejo em um Citröen Megane. O
desenvolvimento econômico fazia com que o ícone
de consumo se tornasse acessível. Assim, o sonho era
possível e o sucesso, grandioso. Aos poucos, porém,
a dimensão da glória interferiu ligeiramente na
temática. O Megane deu lugar a Ferraris e Lamborghinis,
motos de luxo e bebidas mais caras.
17
O fenômeno econômico tinha forte relação
com o fenômeno cultural. A explosão da demanda,
do consumo e do crédito foram usadas como
ferramentas de distribuição de renda e inclusão social.
Antes, essas camadas da sociedade, que tinham boa
parte de seus direitos negados, também não podiam
consumir, muito menos sonhar. Foi natural que a
inserção delas na sociedade - que se deu por meio da
facilitação do acesso a alguns bens de consumo - lhes
conferisse a impressão de que poder de consumo era,
também, sinônimo de cidadania.
As letras expressavam bem esse sentimento.
Autoestima elevada, conquista de poder e status
social, baladas com camarotes regados a álcool,
carros de luxo, joias e poucas preocupações - a não
ser obter a atenção das mulheres mais desejadas.
Também é possível notar alguns produtos-ícones
para esse grupo. Os campeões de audiência: óculos
da Oakley, uísque Johnnie Walker, energético Red Bull,
tênis Nike e motos Honda. Mas, para além da
distinção social, o que esses jovens da periferia dizem
18
sobre si mesmos ao tentarem se apropriar de tais
símbolos?
Apesar da brutal distância temporal e cultural,
a crítica feita em 1965 e o movimento paulistano que
começou em 2008, de alguma forma, dialogam e se
complementam. E é nesse encandeamento que este
trabalho se apoia. Sua modesta intenção é investigar a
relação que existe entre os produtos industrializados
que consumimos e a maneira como formamos nossas
identidades. Aqui, será traçado um panorama da
transformação do mundo de ontem no mundo de
hoje sob três perspectivas: econômica, social e,
digamos, pessoal.
Primeiro, tentaremos entender, de maneira
geral, como a economia do século XX nos levou a
uma sociedade em que o consumo é parte central das
nossas vidas. Segundo, definiremos algumas das
características da chamada sociedade de
consumidores, além de suas implicações no nosso
modo de vida. Por fim, exploraremos um pouco do
19
conceito de identidade, como o entendimento desse
pensamento mudou ao longo do tempo e suas
características no mundo contemporâneo.
Todavia, antes de começar a leitura, há um
detalhe que não podemos deixar de comentar:
“Satisfaction” é um grito simultâneo de desejo e
frustração. E é esse permanente sentimento de
insatisfação - que a canção reafirma, repetidamente -
que desperta a curiosidade do autor. Aparentemente,
não eram só os “Rolling Stones” que se sentiam
desiludidos e alienados. O próprio funk ostentação
logo viu a amplitude de seu sucesso minguar. Como
prova disso, argumenta-se que, em determinado
momento, o público já não se sentia mais
representado pelos artigos de alto luxo presentes nas
letras e clipes.
Esse grito deve ser objeto de reflexão durante
a leitura do texto.
20
21
Parte I
Como surgiram a sociedade de
consumidores e a cultura consumista
22
23
Da Revolução Industrial ao Século XX
urante vários séculos, o mundo e as
dinâmicas sociais se organizaram de
maneira muito mais simples do que observamos
atualmente. O homem transitou entre sociedades
agrícolas, extrativistas, migratórias até, finalmente, se
consolidar em uma sociedade que, mais
recentemente, passamos a chamar de “sociedade de
produtores”.
Tal sociedade se caracterizou pela
importância e pelo amplo domínio que o trabalho -
ou atividade produtiva - possuía. Nela, a vida das
pessoas era determinada por sua ocupação. Produzir
e construir eram as ações de maior importância e
maior valor, uma vez que a grande maioria dos
cidadãos eram artesãos que viviam de suas
manufaturas.
No século XVIII, a Revolução Industrial
inaugurou uma nova fase no sistema econômico
D
24
mundial. O capitalismo comercial, predominante até
então, aos poucos, deu lugar a um capitalismo
industrial, com a supremacia das máquinas sobre o
trabalho humano tornando-se realidade em pouco
tempo. Logo, os antigos artesãos e comerciantes
deram lugar a um novo grupo de cidadãos: os
trabalhadores e operários.
A Revolução Industrial não só determinou o
nascimento dessa nova classe formada pelos
trabalhadores das fábricas, como também influenciou
a mudança radical de cenário das cidades. Aos
poucos, o crescimento econômico e das
oportunidades atraíram cada vez mais camponeses
das áreas rurais em direção à área urbana. O êxodo
rural e o acelerado crescimento dos centros urbanos -
povoados por burgueses e trabalhadores - também
tiveram implicações mais sutis no modo de vida da
época.
Apesar de, em larga medida, viver
subexplorada e submetida às desumanas e
25
desreguladas condições de trabalho da época, a nova
classe trabalhadora urbana tinha uma renda, fruto de
seus salários. Como estavam afastados de seus locais
de origem e, portanto, de tradições culturais
regionais, restava a esses trabalhadores buscarem
novas formas de divertimento, uma vez que a cultura
erudita dos centros urbanos era dominada pelas elites
e pouco acessível economicamente.
Circos, teatros de rua, óperas, festas
populares e religiosas, como o carnaval, proliferavam
nas cidades e eram um indício do nascimento de uma
cultura “urbano-massiva”. Logo, esse sistema de
produção cultural seguiria o modelo das outras
atividades concentradas nas cidades e começaria a ter
o lucro como objetivo principal de sua elaboração.
Estava, assim, estabelecida uma indústria cultural nas
cidades. Essa indústria de bens simbólicos e
imaginários, que vendia experiências, entretenimento
e emoções é um dos fatores determinantes para
outras rupturas que a vida nas cidades ainda sofreria.
26
Se a cultura havia deixado de ser uma
expressão popular de tradições e identificação
naquele momento, outro aspecto central da vida
daqueles homens e mulheres habitantes dos centros
urbanos já estava mercantilizado há muito tempo. O
trabalho, superexplorado nas fábricas por meio da
exigência cada vez maior de produtividade e das
divisões e especializações da produção, deixava de ter
caráter humanizador e de construção da subjetividade
do homem, e passa a ser mais uma mercadoria posta
em circulação. Os trabalhadores, que já não eram
donos dos meios de produção, não tinham outra
opção senão vender sua força de trabalho para se
sustentar, sacramentando a definição do trabalho
apenas como uma atividade a ser trocada por
dinheiro.
Se a vida dos operários nas fábricas parecia
difícil durante os séculos que se seguiram às primeiras
revoluções industriais, o século XX começou com
rupturas ainda mais traumáticas. Duas guerras
mundiais e uma crise grave no capitalismo
27
internacional abalam o sistema e forçam-no a
procurar alternativas para sustentar a produção em
massa derivada das indústrias.
Políticas econômicas praticadas pelos EUA (e
que se refletiram ou encontraram semelhantes em
diversos outros países do mundo, como no Brasil de
Getúlio Vargas), como o New Deal, nos anos
seguintes à Grande Depressão e o Plano Marshall,
depois da Segunda Guerra Mundial, foram
determinantes para rearranjar o sistema produtivo
mundial e estabelecer as condições para que ele se
mantivesse de pé. O ponto central em torno do qual
essas políticas econômicas orbitavam era simples: o
estímulo ao consumo (figura 1).
28
Figura 1: Americanos aguardando roupas e suprimentos,
durante a enchente do rio Ohio em 1937. Ao fundo, lê-se no
outdoor: ―O padrão de vida mais alto do mundo‖. Este é um
indício de como as políticas de estímulo ocorriam e eram
suportadas pela propaganda ideológica
O sucesso dessas políticas e o pós-guerra
garantiram épocas de bonança para o capitalismo
mundial. O estímulo a um estilo de vida pautado pelo
consumo ganhou outros aliados, sendo um deles um
dos mais representativos e poderosos: a propaganda.
Logo, os esforços publicitários ganharam traços
culturais e o mundo testemunhou a “era de ouro” da
propaganda mundial. Nessa época, chegou ao auge,
também, o famoso “american way of life”, cujos
ícones de consumo e estilo de vida permearam os
sonhos de inúmeras famílias ao redor do mundo.
29
Em 1931, Frederick Lewis Allen, em seu livro
Only Yesterday: An Informal History of the 1920s, relatou
com precisão o sentimento que o consumo e o
padrão de vida que se estabelecia causavam na
sociedade americana da época:
Ainda sim, o americano podia sonhar com o
romântico dia em que ele venderia seus
produtos comuns por um preço fabuloso e
viveria numa grande casa e teria uma frota
de carros brilhantes e relaxaria nas areias de
Palm Beach. E quando ele olhou para o
futuro do seu país, ele viu uma América livre
– não da corrupção, nem do crime, nem da
guerra, nem do controle de Wall Street, nem
do ateísmo, nem do luxo; pois as utopias do
passado o deixaram cético e indiferente. Ele
viu uma América livre da pobreza e do
trabalho pesado. Ele viu uma ordem mágica
construída em cima da ciência e da
prosperidade: estradas carregadas com
30
milhões de automóveis, aviões escurecendo os
céus, linhas de fios de alta tensão carregando
– de colina em colina – o poder de dar vida
a milhares de máquinas salvadoras de
trabalho humano, arranha-céus surgindo
sobre antigos vilarejos, vastas cidades
crescendo sobre massas geométricas de pedras
e cimento, urrando com o tráfego
perfeitamente mecanizado e homens e
mulheres inteligentemente vestidos que
gastam, gastam, gastam o dinheiro que eles
ganharam por estarem distantes o suficiente
para prever – em 1929 – o que estaria para
acontecer1
(ALLEN, 1931, p. 107).
1 Tradução livre. Trecho original: “Still the American could spin
wonderful dreams-of a romantic day when he would sell his
Westinghouse common at a fabulous price and live in a great house
and have a fleet of shining cars and loll at ease on the sands of Palm
Beach. And when he looked toward the future of his country, he could
envision an America set free-not from graft, nor from crime, nor from
war, nor from control by Wall Street, nor from irreligion, nor from lust,
for the utopias of an earlier day left him for the most part skeptical or
indifferent; he envisioned an America set free from poverty and toil.
He saw a magical order built on the new science and the new
prosperity: roads swarming with millions upon millions of automobiles,
airplanes darkening the skies, lines of high-tension wire carrying from
hilltop to hilltop the power to give life to a thousand labor-saving
machines, skyscrapers thrusting above one-time villages, vast cities
rising in great geometrical masses of stone and concrete and roaring
31
Contudo, a intervenção estatal na economia
mundial durante esse período do século XX
encontrou um limite. Já nos anos 60, o sistema de
produção fordista começou a dar sinais de que já não
conseguia produzir bens e gerar lucros em escala
suficiente. Como aponta David Harvey: “Em
retrospecto, parecia haver indícios de problemas
sérios no fordismo já em meados dos anos 60. Na
época, a recuperação da Europa Acidental e do Japão
tinha se completado, seu mercado interno estava
saturado e o impulso para criar mercados de
exportação para os seus excedentes tinha de
começar” (HARVEY, 1973, p. 89).
Com a crise do fordismo e a crise do
petróleo, os anos 1970 foram particularmente difíceis
para o sistema capitalista. Esses problemas
econômicos desencadearam outros problemas
cambiais e fiscais que, por sua vez, diminuíram ainda
with perfectly mechanized traffic-and smartly dressed men and women
spending, spending, spending with the money they had won by being
far-sighted enough to foresee, way back in 1929, what was going to
happen.”
32
mais o poder de compra dos trabalhadores.
Consequentemente, as taxas de lucro do sistema
tornaram-se cada vez menores. Rapidamente foi
possível perceber que, para salvar o sistema, era
necessário dinamizar o modo de produção fordista e
encontrar, com urgência, mercados que pudessem
complementar o consumo exacerbado dos bens
produzidos de maneira excedente.
A solução encontrada se deu por meio de
uma prática desenvolvida alguns anos antes no Japão.
A divisão fordista-taylorista deu lugar, então, a um
modo de produção adequado àquela necessidade: o
toyotismo. O novo sistema produtivo inaugura uma
era de diminuição - ou quase completa eliminação -
dos estoques, de produção em pequenos lotes,
sempre com alta exigência no padrão de qualidade.
Houve uma substituição da padronização em prol da
diversificação e da produtividade. Contudo, para este
estudo, a característica mais interessante e relevante
do toyotismo é a questão da personalização dos
produtos.
33
Aos poucos, consumidores do mundo todo
se acostumaram a ver uma diversidade maior de
produtos nas prateleiras dos mercados. Vendia-se a
ideia de que eles eram feitos de maneira especial,
meticulosamente pensada, personalizada e, por isso,
eram melhores. Relembrando a célebre frase de
Henry Ford sobre o “Model T”: “Todo consumidor
pode ter um carro da cor que ele quiser, desde que
seja preto”.2
O fim dessa era pode ser identificado num
trecho de um texto escrito por Victor Lebow, um
empresário e economista norte-americano. Em 1955,
Lebow escreveu um artigo no “Jounal of Retailing”
sobre o mercado, a indústria e o consumo. Em
determinada altura, ele escreve:
Nossa economia enormemente produtiva
demanda que façamos do consumo nosso
modo de vida, que convertamos a compra e o
2 Tradução livre. Trecho original: “Any customer can have a car painted any
colour that he wants so long as it is black”.
34
uso de bens em rituais, que persigamos
nossas satisfações espirituais e do ego no
consumo. A medida do status social, da
aceitação social, do prestígio deve ser, agora,
encontrada nos nossos padrões de consumo.
O mais básico propósito e significado de
nossas vidas, hoje, expressos em termos de
consumo. Quanto maior a pressão nos
indivíduos para que aceitem os padrões
sociais, mais eles tendem a expressar suas
aspirações e suas individualidades por meio
do que vestem, dirigem e comem – na suas
casas, seus carros, seus padrões de
alimentação e seus hobbies3
(LEBOW,
1955).
3 Tradução livre. Trecho original: “Our enormously productive
economy demands that we make consumption our way of life, that we
convert the buying and use of goods into rituals, that we seek our
spiritual satisfactions, our ego satisfactions, in consumption. The
measure of social status, of social acceptance, of prestige, is now to be
found in our consumptive patterns. The very meaning and significance
of our lives today expressed in consumptive terms. The greater the
pressures upon the individual to conform to safe and accepted social
standards, the more does he tend to express his aspirations and his
individuality in terms of what he wears, drives, eats- his home, his car,
his pattern of food serving, his hobbies.”
35
O toyotismo não só marcou o fim da era em
que tudo era produzido em série, como também
configurou-se na alternativa que possibilitou que o
sistema capitalista continuasse sustentável. Deu
início, também, a uma nova fase, na qual os cidadãos
eram, a todo o momento, instigados a consumir,
consumir e consumir. E, ainda pior: foram levados a
crer que consumir todos os bens de consumo
disponíveis era muito mais do que apenas um hábito:
era um estilo de vida. Os então cidadãos foram, aos
poucos, deixando de se reconhecer como tais e
passaram a se entender e a serem entendidos como
consumidores. Da mesma forma, progressivamente
foram acostumados e incentivados a acreditar que
eram especiais, únicos e, por isso, mereceriam
produtos que refletissem tais particularidades. Foi o
início de um intenso processo de individualização
desses “cidadãos-consumidores” que, como veremos
mais adiante, acarretou em consequências mais
complexas para a aquela ingênua sociedade.
36
Os processos decorrentes desse cenário de
crescente individualização e incentivos irrefreáveis ao
consumo - em larga escala - estão presentes na
maneira como vivemos e nos relacionamos
atualmente. Nossas vidas, nossas subjetividades.
Quem achamos que somos, nossas relações
interpessoais e nossas práticas de consumo
obedecem a esses processos e padrões, de forma
consciente e inconsciente, como será discutido a
seguir.
37
Parte II
A sociedade de consumidores.
38
39
A transição entre dois modelos de
sociedade
intensificação do modelo de estímulo
ao consumo desenfreado, após as
décadas de 1960 e 1970, trouxe consequências que se
refletem na estrutura de nossas sociedades atuais.
Tenham sido graças às forças políticas do mercado
ou à ação direta dos Estados, é certo que o
consumismo se tornou regra:
Para que uma sociedade adquira esse
atributo, a capacidade profundamente
individual de querer, desejar e almejar deve
ser, tal como a capacidade de trabalho na
sociedade de produtores, destacada
(‗alienada‘) dos indivíduos e
reciclada/reificada numa força externa que
coloca a ‗sociedade de consumidores‘ em
movimento e a mantém em curso como uma
forma específica de convívio humano,
A
40
enquanto ao mesmo tempo estabelece
parâmetros específicos para as estratégias
individuais de vida que são eficazes e
manipula as probabilidades de escolha e
conduta individuais (BAUMAN, 2007, p.
41).
Porém, como aponta Bauman, o momento
histórico anterior nos mostrava características
diferentes das atuais. Para ele, “o „consumismo‟ chega
quando o consumo assume o papel-chave que na
sociedade de produtores era exercido pelo trabalho”
(BAUMAN, 2007, p. 41).
Tal sociedade, chamada de “sociedade de
produtores”, foi o tipo de organização que dominou a
vida humana durante a maior parte de nossa
existência moderna. Esse corpo social era regido por
regras e valores diametralmente opostos aos que
observamos nos dias de hoje - dias que fazem parte
de uma estrutura mais complexa, muito suscetível a
41
rápidas mudanças e nos quais as relações são mais
frágeis e efêmeras.
O auge da era dominada pelos “produtores‖ foi
a fase de surgimento e crescimento das grandes
indústrias, dos exércitos de massas, com o domínio
moral das regras burocráticas, que exerciam seu
poder em relação ao comportamento das pessoas.
Esse modelo de regulação e dominação da vida
humana, empenhado em implantar disciplina e
subordinação, criou um ideal de comportamento
individual baseado em sua própria padronização e
rotinização.
Uma sociedade engessada, presa aos padrões
tradicionais e que, portanto, tinha a segurança como
valor máximo. Segurança que deveria permear todas
as instâncias daquela sociedade. No que se refere, por
exemplo, ao consumo, os bens mais valorizados eram
aqueles grandes, resistentes e duráveis. Aqueles nos
quais se depositaria a confiança contra as peripécias
que a vida poderia - e provavelmente iria - pregar.
42
Carros grandes, casas espaçosas, cofres,
eletrodomésticos robustos, joias e outros bens de
valor altíssimo, foram, por muito tempo, sinônimos
de estabilidade, resiliência e perenidade frente ao
sempre imprevisível e incerto destino. E, da mesma
forma que as características desses objetos
representavam por si só um espírito dessa época, as
ide ias de preservação, cuidado e manutenção que
seus donos cultivavam também eram um símbolo
desse paradigma da segurança que regia aquelas vidas.
Esse modelo e essa relação de consumo vão
além da ideia comum de que o desejo das pessoas ao
consumir é, primeiramente, obter e acumular objetos
que proporcionem a elas conforto e respeito. Nas
próprias palavras de Bauman:
A sociedade de produtores, principal modelo
societário da fase 'sólida' da modernidade, foi
basicamente orientada para a segurança.
Nessa busca, apostou no desejo humano de
um ambiente confiável, ordenado e regular,
43
transparente e, como prova, disso, duradouro,
resistente ao tempo e seguro. Esse desejo era
de fato uma matéria-prima bastante
conveniente para que fossem construídos os
tipos de estratégias de vida e padrões
comportamentais indispensáveis para atender
à era do 'tamanho é poder' e do 'grande é
lindo' (...) (BAUMAN, 2007, p. 42).
A transição do antigo modelo de produção
para o modelo que atendeu às necessidades de
reestruturação do capitalismo também marcou uma
reforma da função dos Estados em suas sociedades e
na regulação de suas economias. Para aumentar a
eficiência do sistema, o Estado capitalista deveria
garantir que os encontros entre capital e força de
trabalho acontecessem de forma eficiente - para os
dois lados - e recorrente.
Tais encontros permitiram que a roda do
sistema continuasse a girar, sem empecilhos, e capital
e trabalho puderam manter sua relação de
44
interdependência. Os empregadores mantiveram seus
meios de produção ativos e os trabalhadores
continuaram empregados, tendo sua renda e seus
direitos mais básicos preservados. Para o lado do
capital, incentivos fiscais e industriais. Para o
trabalho, um Estado de bem-estar social:
No entanto, para que alcance tal culminação
em todos os encontros, (...), o capital deve ser
capaz de pagar o preço corrente da
mercadoria, estar disposto a fazê-lo e ser
estimulado a agir de acordo com essa
disposição - garantido por uma política de
seguros endossada pelo Estado contra os
riscos causados pelos notórios caprichos dos
mercados de produtos. O trabalho, por outro
lado, deve ser mantido em condição
impecável, pronto para atrair o olhar de
potenciais compradores, conseguir a
aprovação destes e aliciá-los a comprar o que
estão vendo. Assim como encorajar os
capitalistas a gastarem seu dinheiro com
45
mão-de-obra, torná-la atraente para esses
compradores é pouco provável sem a ativa
colaboração do Estado. As pessoas em busca
de trabalho precisam ser adequadamente
nutridas e saudáveis, acostumadas a um
comportamento disciplinado e possuidoras
das habilidades exigidas pelas rotinas de
trabalho dos empregos que procuram
(BAUMAN, 2007, p. 15).
Esse processo de promoção e qualificação
desses encontros é o que Jürgen Habermas chamou
de "recomodificação" das relações entre trabalho e
capital. Todavia, os Estados nacionais foram
perdendo sua capacidade de suscitar tais encontros. A
partir dos anos 1970, com as crises do petróleo e do
fordismo, a doutrina liberal ganhou força nos debates
econômicos, tendo como objetivos a abertura e a
conquista de novos mercados. Isso forçou os
Estados a diminuírem progressivamente seu poder de
participação e regulação da vida econômica.
Irromperam então diversos processos de
46
terceirização e privatização e os governos foram
abrindo mão de seu papel e de sua responsabilidade
na promoção da recomodificação.
Aos poucos, a alternativa que restou às
pessoas foi procurar na iniciativa privada por
possibilidades que ajudassem a promover o encontro
de sua mão de obra com o capital. Todavia, ao
relegar essa tarefa à iniciativa privada, os Estados
permitiram que os cidadãos consumissem tais
produtos e serviços movidos por um único interesse:
o retorno financeiro.
No caso da educação, por exemplo, se um
governo deixa de prover alternativas públicas e de
qualidade, e passa a incentivar apenas instituições
privadas, as pessoas passarão a consumir educação
visando ao valor que aquele produto agregará ao seu
currículo e, em última instância, ao que será mais
valioso para os olhos do mercado de trabalho.
47
Vários problemas emergem quando o Estado
deixa de promover a recomodificação do capital e do
trabalho. O mais grave deles é que, a partir desse
momento, as pessoas deixam de ser apenas cidadãs
ou indivíduos com subjetividades determinadas por
outros fatores, e começam a se tornar seres
semelhantes às mercadorias, com características
individuais - talvez até exclusivas - que lhes conferem
ou aumentam sua valia, como se possuíssem um
valor de mercado.
Não é apenas a falta de influência das ações
governamentais que torna os humanos mais
parecidos com produtos industrializados, é claro.
Contudo, ocorre que o mercado de trabalho é apenas
um - e, na verdade, um dos mais importantes -
mercados nos quais a vida humana está inserida. O
preço que cobramos e o investimento pessoal em
nossa própria mão de obra são mais algumas das
variáveis que devemos planejar nas nossas vidas
particulares. Porém, as regras que determinam esse
48
jogo de consumo de mão de obra, como relembra
Bauman, valem para todos os tipos de mercado:
Primeira: o destino final de toda mercadoria
colocada à venda é ser consumida por
compradores. Segunda: os compradores
desejarão obter mercadorias para consumo se,
e apenas se, consumi-las for algo que prometa
satisfazer seus desejos. Terceira: o preço que
o potencial consumidor em busca de
satisfação está preparado para pagar pelas
mercadorias em oferta dependerá da
credibilidade dessa promessa e da intensidade
desses desejos (BAUMAN, 2007, p. 18).
Entretanto, diferente do que possa parecer, a
atual condição dos indivíduos participantes da
“sociedade de consumo‖ não se dá pela sua separação
entre agentes consumidores e agentes que serão
consumidos. Pelo contrário: o aspecto mais marcante
de sua condição é que a relação entre sujeitos e
objetos se dá de maneira confusa. É difícil identificar
49
os limites entre um e outro. Suas diferenças estão
borradas, praticamente apagadas. Nessa sociedade,
todos os indivíduos são, ao mesmo tempo,
mercadorias e compradores: “Na sociedade de
consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem
primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter
segura a sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e
recarregar de maneira perpétua as capacidades
esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável”
(BAUMAN, 2007, p. 19).
Cultura consumista e estratificação
desenvolvimento da “sociedade de
consumo‖ se deu de forma gradual,
conforme o estímulo ao consumo foi se tornando
mais intenso e corriqueiro. Essa cultura consumista,
com o tempo, tornou-se tão banalizada que tomou
para si, inclusive, as relações humanas: “Esse feito
notável foi alcançado mediante a anexação e
O
50
colonização, pelos mercados de consumo, do espaço
que se estende entre os indivíduos - esse espaço em
que se estabelecem as ligações que conectam os seres
humanos e se erguem as cercas que os separam”
(BAUMAN, 2007, p. 19).
Para Bauman, na “sociedade de consumidores”, as
relações humanas acontecem da mesma forma que as
relações de compra e venda de produtos. Os seus
participantes, então, se definem, ainda que de forma
subjetiva e inconsciente, como mercadorias
disponíveis num imenso mercado de relações
humanas:
Os encontros dos potenciais consumidores com
os potenciais objetos de consumo tendem a se
tornar as principais unidades da rede
peculiar de interações humanas conhecida, de
maneira abreviada, como ‗sociedade de
consumidores‘. Ou melhor, o ambiente
existencial que se tornou conhecido como
‗sociedade de consumidores‘ se distingue por
51
uma reconstrução das relações humanas a
partir do padrão, e à semelhança, das
relações entre os consumidores e os objetos de
consumo (BAUMAN, 2007, p. 19).
Nesse mercado, em que não se pode precisar
o que - ou quem - é objeto de consumo e o que - ou
quem - é consumidor, tudo é homogêneo. Na
realidade, todos os integrantes desse mercado são
parte de um mesmo ciclo incessante de mercadorias
que esperam encontrar seu destino nas mãos de um
comprador que, por sua vez, consome, pois espera
conseguir encontrar seu destino nas mãos de outro
consumidor que, por sua vez, consome, pois espera
conseguir encontrar seu destino nas mãos de outro
consumidor que, por sua vez…
Esse ciclo vicioso que agoniza os
consumidores/mercadorias é natural: a esperança
fundamental desses sujeitos é construir determinada
subjetividade que seja - e aparente ser - uma
mercadoria com atributos suficientemente atraentes,
52
que os destaquem da “massa de objetos indistinguíveis”
(p.21). Em outras palavras, todos querem consumir,
ao mesmo tempo em que desejam ser consumidos
para se destacar dos demais. Aqui, os atos de
“consumir” e “ser consumido” têm uma relação
recíproca de causa e consequência.
Tal arranjo social só poderia nascer graças a
uma cultura consumista massificada. Para Bauman,
“cultura consumista é a maneira irrefletida pela qual
os indivíduos se comportam, sem considerar quais
são seus objetivos de vida e os meios para alcançá-
los” (BAUMAN, 2007, p. 20). Dessa forma, a
“sociedade de consumidores” representaria, também, um
conjunto de condições existenciais que estimulam os
indivíduos a abraçar a cultura consumista - ainda que
de maneira acrítica.
Os estímulos que a “sociedade de consumidores”
cria atingem a todos, sem exceção. Homens,
mulheres, crianças e indivíduos de diferentes classes
sociais estão sujeitos a abraçar a cultura consumista e
53
defini-la como o estilo de vida a ser seguido. E, mais
do que um estilo de vida, estão propensos a viver
essa cultura como “um direito e um dever humano e
universal” (BAUMAN, 2007, p. 73). A questão que se
impõe aqui é que a “sociedade de consumidores”,
estimulada por uma cultura consumista massificada,
institui a todos, sem distinção, o consumismo como
estilo de vida obrigatório. Uma regra tácita, mas que
prevê consequências graves àqueles que não a
seguem.
Tal sociedade está preparada - e tem o hábito
- de interpelar seus participantes a todo o momento e
os avaliarem segundo sua cultura e suas regras. Dessa
forma, pode avaliar - recompensando ou punindo -
seus membros de acordo com a sua capacidade de
desempenho de consumo e, em última instância,
acaba por desencadear um processo de estratificação,
inclusão e exclusão a partir desses parâmetros.
A ‗sociedade de consumidores‘, em outras
palavras, representa o tipo de sociedade
54
promove, encoraja ou reforça a escolha de um
estilo de vida e uma estratégia social
consumistas, e rejeita todas as opções
culturais alternativas. Uma sociedade em que
se adaptar aos preceitos da cultura de
consumo e segui-los estritamente é, para todos
os fins e propósitos práticos, a única escolha
aprovada de maneira incondicional. Uma
escolha viável e, portanto, plausível - e uma
condição de afiliação (BAUMAN, 2007,
p. 73).
Em adição ao poder de avaliação e segregação
que a cultura consumista impõe incessantemente aos
seus afiliados, ela estabelece o esforço individual
como o único fator responsável pelo sucesso ou pelo
fracasso de seus membros. Esses consumidores são,
então, alvejados por diversos estímulos discursivos
que os farão acreditar que as ferramentas para atingir
o sucesso, a autoestima e o status social que desejam
estão ao alcance de suas mãos, basta um pouco de
empenho. Porém, “consumidores de ambos os sexos,
55
todas as idades e posições sociais irão sentir-se
inadequados, deficientes e abaixo do padrão a não ser
que respondam com prontidão a esses apelos”
(BAUMAN, 2007, p. 74).
Dessa forma, todo e qualquer cidadão que
não consiga desempenho satisfatório no ambiente de
consumo será marginalizado de forma irrevogável.
Em suas interpelações, a sociedade julga improcedente
qualquer argumento que sugira causas estruturais,
históricas ou externas ao indivíduo para justificar tal
fracasso. Por isso, consumir faz-se algo tão
necessário. É, ao mesmo tempo, um investimento e
uma condição de salvação. Consumir da maneira
correta e na quantidade fundamental garante não só
pertencimento, mas também uma posição de
destaque.
56
Distinção e escalada social
ara muitos autores, o consumo, na
sociedade atual, assume papel de dos
principais fatores que estabelecem diferenças sociais
entre indivíduos. Ainda que as organizações sociais se
deem majoritariamente pela determinação dos grupos
que chamamos comumente de classes sociais, cada
ser humano busca diferenciar-se dos demais no
contexto em que se insere. Em maior grau, busca
distinguir-se dos indivíduos de classes sociais
diferentes e, em menor grau, dos próprios
participantes de sua classe social.
Para Pierre Bourdieu, é o habitus o princípio
gerador de todas as práticas humanas. Ele estaria
intimamente relacionado ao gosto individual de cada
ser humano, mas - por mais contraditório que isso
pareça - ele é semelhante entre todos os membros de
uma mesma classe social. Dessa forma, é quase
P
57
instintivo concluir que o habitus define os estilos de
vida de cada uma delas:
O estilo de vida é um conjunto unitário de
preferências distintivas que exprimem, na
lógica específica de cada um dos subespaços
simbólicos, mobília, vestimenta, linguagem ou
hexis corporal, a mesma intenção expressiva,
princípio de unidade de estilo que se entrega
diretamente à intuição e que a análise destrói
ao recortá-lo em universos separados
(BOURDIEU, 1983, p. 83/84).
Neste momento, é pertinente colocar uma
observação. Pertencer a um grupo - ou mesmo se
definir como membro de um grupo - significa, em
linhas gerais, escolher e tomar para si todas aquelas
características e atribuições pertencentes a tal grupo
e, da mesma forma, excluir ou renegar tudo aquilo -
58
ou a maior parte - que pertence ao campo de outros
grupos.4
Nesse sentido, Bourdieu traça algumas
diferenças básicas entre as diferentes classes sociais
no que diz respeito aos seus comportamentos,
hábitos de consumo e acesso a informações e cultura.
Para o autor, as classes populares, por sua
condição econômica e social desprivilegiada, têm
uma característica de conformismo e hedonismo na
maneira como consomem. Esse perfil é, justamente,
consequência do fato de que seu poder de consumo
está restrito aos itens mais básicos e que lhe garantem
sobrevivência. Por sua educação rudimentar e acesso
falho à informação, essas classes detêm apenas um
conhecimento técnico e ignoram o conhecimento
teórico, o que as diferenciam daqueles que são donos
de posições de privilégio.
4 Kath Woodward, em seu livro Understanding Identity, mostra uma série
de componentes da identidade humana. Um dos pontos mencionados
é que as identidades são relacionais. Isto é: elas são construídas por
meio de relações de diferença, como “nós” e “eles”.
59
As classes mais altas, dos setores mais nobres
de uma sociedade, são definidas como o contraponto
exato das classes mais inferiores. São tidas como a
vanguarda do consumo e estendem esse hábito
àqueles itens que podem ser considerados
dispensáveis para o encaminhamento satisfatório de
suas vidas. Ou seja, vivem uma vida de luxo. São os
donos dos meios de produção e, por uma relação de
causa e consequência, são também os donos do
conhecimento teórico e científico dentro da
sociedade.
Ao mesmo tempo, a classe intermediária,
também chamada de “pequeno-burgueses”, encontra-se
em fase de transição em relação às duas classes já
citadas. É fruto da ascensão social e, portanto,
originária das classes mais baixas. Como tal, não
possui grande conhecimento acadêmico - ou teórico,
porém se diferencia, pois apresenta o que Bourdieu
define como “boa vontade cultural”. Ou seja, a classe
intermediária está disposta a buscar e consumir cada
vez mais cultura. E consome, pois, consegue
60
reconhecer o valor que existe na arte e cultura, mas
não detém o conhecimento necessário para
completar satisfatoriamente esse processo de
apropriação cultural. Dessa forma, é induzida a
“comprar” cultura, arte e conhecimento para
consumi-los, mesmo que seja um tipo de
manifestação mais próxima de sua realidade (figura
2).
Figura 2
61
Fica evidente o caráter de oposição com que
as classes sociais se determinam. Soma-se a isso um
processo de transição dessa autodeterminação, no
qual a classe média tenta se afastar da herança das
classes subalternas e se aproximar da tradição cultural
das classes dominantes. Contudo, para a camada
mediana, a impossibilidade de completar sua
apropriação cultural lhe obriga a se contentar com as
formas mais industrializadas de arte e cultura.
Essa mistura de gêneros, essa confusão de
ordens, essa espécie de bricabrique onde se
alinham os produtos legítimos ‗fáceis ou
ultrapassados‘, fora da moda,
desclassificados, portanto, desvalorizados -
posto que um símbolo de distinção
apropriado com atraso perde tudo que faz
seu valor distintivo - e os produtos ‗médios‘ -
do campo de produção em massa, é a imagem
objetivada da cultura pequeno-burguesa
(BOURDIEU, 1983, p. 112).
62
Já para Jean Baudrillard, o consumo: “É uma
função social de prestígio e de distribuição
hierárquica” (BAUDRILLARD, 1996, p. 10).
Tal função tem como maior objetivo a
distinção social. Segundo Baudrillard, essa
diferenciação acontece porque o valor de troca de
uma mercadoria, ou bem de consumo, supera sua real
necessidade, ou seu valor de uso, graças à ideologia
ligada a esse produto. É o que ele chama de “troca-
signo”: existe um significado real para a existência
desse objeto e para a sua troca.
Para o autor, ainda, os objetos e sua
existência, posse e consumo são signos da ascensão
social que os consumidores buscam incessantemente.
O objetivo de cada indivíduo é ser reconhecido como
parte de determinada classe, ou ser aceito por um
determinado grupo, ainda que todos busquem se
diferenciar dentro desses mesmos contextos. Nota-se
um paralelo com o momento histórico, em meados
63
do século XX, quando a indústria encontrou no
toyotismo uma maneira mais eficaz de produzir. Na
lógica do sistema capitalista, essa é a força que
empurra o desenvolvimento econômico, sendo o
consumo o centro do progresso.
Contudo, há alguns detalhes que nos
impedem de assegurar que o consumo, por si só,
pode estabelecer a pretendida distinção social. Para
Baudrillard, a ambicionada ascensão social por meio
do consumo é, na verdade, um movimento cíclico
que ilude o consumidor. O autor alerta que não é
apenas o objeto consumido que determina a
distinção:
Podemos certamente num primeiro tempo,
considerar os objetos em si próprios e a sua
soma como índice de pertença social, mas é
muito mais importante considerá-los, na sua
escolha, organização e prática, como suporte
de uma estrutura global do ambiente
circundante, que é simultaneamente uma
64
estrutura ativa de comportamento
(BAUDRILLARD, 1996, p. 17).
É preciso adicionar à analise outras
características, como a maneira que o produto é
usado, como ele foi comprado, com qual finalidade e
assim por diante. Por isso, é possível notar a ideia de
que existe um choque de classes no que se refere ao
consumo de bens. Mesmo que cidadãos de classes
diferentes consumam o mesmo produto, eles ainda o
farão de maneiras muito diversas. Dessa forma,
existiriam dois grupos diferentes no campo do
consumo: um grupo de pertença, que detém os
objetos como se tivesse um direito adquirido sobre
sua posse; e um grupo de referência, que busca a
todo momento se aproximar do primeiro grupo. É
nessa relação que está todo o jogo de construção da
distinção e o embate entre as classes (figura 3).
65
Figura 3: O Bonde do Canguru fez sucesso na cena
do funk ao afirmar que têm tudo o que querem:
carros r motos de luxo, dinheiro e mulheres.
Além dessa relação, há outro fator - ainda
mais importante - que impede que o consumo seja
fator de ascensão social: a brutal obsolescência dos
produtos que é imposta pela indústria atualmente.
Essa particularidade é central para que o consumidor
esteja preso em um ciclo que não o tirará do lugar na
escala social, pois, como aponta Bourdieu, a
satisfação de um desejo leva à criação de outro
desejo.
66
Mas o contínuo atendimento dessas vontades
tem efeitos diferentes para cada classe social. Para as
mais baixas, tais novas necessidades não passam de
supérfluas, algo que extrapola a necessidade básica,
sendo, portanto, um luxo. Já para as classes mais
altas, elas são, de fato, necessidades. Assim, já é
possível notar que a distinção não vem apenas da
capacidade de cada cidadão em consumir, mas sim da
capacidade individual em continuar consumindo. E,
como aponta Baudrillard, quando uma classe inferior
consegue atingir determinado nível de consumo, as
classes mais altas - na intenção de se manterem
diferentes - rapidamente trocarão seus objetos por
outros mais novos, mais valiosos e mais notáveis.
Lembrando de Hobbes, em ―O Leviatã‖:
E ao homem é impossível viver quando seus
desejos chegam ao fim, tal como quando seus
sentidos e imaginação ficam paralisados. A
felicidade é um contínuo progresso do desejo,
67
de um objeto para outro, não sendo a
obtenção do primeiro outra coisa senão o
caminho para conseguir o
segundo.......Assinalo assim, em primeiro
lugar, como tendência geral de todos os
homens, um perpétuo e irrequieto desejo de
poder e mais poder, que cessa apenas com a
morte (HOBBES, 1651, p. 60).
O Leviatã trata da natureza do homem e da
sua relação com a sociedade e com o Estado. Nesse
trecho, Hobbes postula que o que nos move,
enquanto humanos vivendo fora de sua condição de
natureza, é a satisfação de novos desejos, o que nos
levaria à felicidade. Porém, segundo essa linha de
raciocínio, se a vida é uma sucessão de satisfação e
nascimento de desejos, pode-se afirmar que a
permanência nessa lógica da cultura consumista
também nos relega a uma condição de aflição e
paralisia, pois o desejo íntimo e a busca pelo
progresso e desenvolvimento dentro da estrutura de
68
classes não se completam exclusivamente por meio
do consumo.
O Paradigma do Desejo
frase de Thomas Hobbes se adequa
perfeitamente à definição que
pretendemos fazer da “sociedade de consumidores”. A
relação profunda que existe entre os homens, a
satisfação dos seus desejos e a busca pela felicidade
são, também, pilares nos quais sociedade e economia
voltadas para o consumo se sustentam.
No mundo dominado pelos consumidores, a
satisfação dos desejos tem um papel de destaque,
afinal, é esse um dos objetivos de qualquer relação de
compra. Todavia, esse modelo representa uma
quebra de paradigma em relação ao antigo modelo da
“sociedade de produtores”. É uma aparente contradição:
se antes a segurança era o valor máximo, tendo a
A
69
estabilidade, a prudência e a durabilidade como os
grandes atributos de tudo aquilo que era consumido,
o modelo em que o consumo é ilimitadamente
estimulado não pode partilhar de tais
particularidades.
As mesmas propriedades também eram
transmitidas pelos pesados cofres de aço em
que eram guardadas as joias entre as
periódicas exibições públicas, da mesma
forma que as minas, torres de petróleo,
fábricas e ferrovias que permitiam o
suprimento constante de rubis e diamantes e
os protegiam do perigo de serem vendidos ou
empenhados, e pelos palácios ornamentados,
no interior dos quais os proprietários das
jóias convidavam seus convivas a admirá-las
de perto - e com inveja. Eles eram tão
duradouros quando se desejava e esperava
que fosse a posição social, herdada ou
adquirida, que representavam (BAUMAN,
2007, p. 44).
70
Se consumismo e durabilidade não podiam
coexistir, por razões lógicas e práticas, logo, um novo
modelo precisava surgir e tomar conta dos valores da
recente sociedade de consumidores. Rapidamente, as ideias
de segurança e longo prazo foram banidas do
imaginário coletivo. De certa forma, passaram até a
causar certa repulsa e foram associadas a outras ideias
de conotação negativa, como o tédio e a monotonia. Os
valores dominantes na nova sociedade são o exato
oposto: rapidez, agilidade e efemeridade.
Assim como aponta Hobbes, ao falar da
natureza humana, a essência dessa sociedade baseada
no consumismo não está na satisfação dos desejos
por meio das compras de bens quaisquer. A chave
para sua compreensão reside no fato de que o que a
sustenta - e, em última instância, o que a move - é o
volume crescente de novos desejos que ela estimula.
71
Dificilmente poderia ser de outro jeito, já que
o consumismo, em ajuda oposição às formas
de vida precedentes, associa a felicidade não
tanto à satisfação de necessidades (como suas
‗versões oficiais‘ tendem a deixar implícito),
mas a um volume e uma intensidade de
desejos sempre crescentes, o que por sua vez
implica o uso imediato e a rápida
substituição dos objetos destinados a
satisfazê-la‖ (BAUMAN, 2007, p. 44).
Podemos afirmar que, se temos essa
quantidade excessiva de desejos que tem sido
estimulada pela estrutura da cultura consumista,
ficamos plenamente satisfeitos ao fazer uma compra?
Essa pergunta também evidencia outra
particularidade sobre a sociedade de consumidores. Na
verdade, a série infinita de desejos que sustenta essa
economia não pode dar-se ao luxo de ser satisfeita.
Pelo menos não completamente. É isso que explica a
existência dessa sucessão frenética de aspirações que
notamos. Se nossos desejos fossem plenamente
72
satisfeitos, pela lógica, não teríamos novos desejos e,
dessa forma, a economia voltada para o consumidor
fracassaria.
É a contradição planejada e necessária para a
sobrevivência do sistema. Sistema esse que vende
uma ilusão, pois a maior promessa da sociedade de
consumidores é que ela é o único - ou o melhor -
modelo de sociedade que pode de fato proporcionar
as soluções para todas as aspirações individuais. Não
obstante, a promessa se alimenta da mentira: é
justamente a insatisfação crônica que mantém essa
proposição sedutora.
A sociedade de consumo prospera enquanto
consegue tornar perpétua a não-satisfação de
seus membros (e, assim, em seus próprios
termos, a infelicidade deles). O método
explícito de atingir tal efeito é depreciar e
desvalorizar os produtos de consumo logo
depois de terem sido promovidos no universo
73
dos desejos dos consumidores (BAUMAN,
2007, p.64).
O papel das promessas aqui é de
protagonismo. Todas essas mensagens que circulam
pela sociedade, por definição, devem ser exageradas ou
falaciosas, a fim de garantir a futura frustração e/ou
um consequente novo desejo (figura 4). Seria de se
esperar que, aos poucos, esses discursos perdessem
relevância ou credibilidade, porém sua profusão e
seus exageros são de tal ordem que podem manter
viva a crença no consumo como solução, alívio e
causador da felicidade.
Figura 4: A Chevrolet prometeu algo que,
provavelmente, o Monza não pode cumprir
74
Tempo versus felicidade
uito além do enorme poder de
satisfação dos desejos dos
consumidores, que pretensamente afirma possuir, a
sociedade de consumo promete para seus participantes, a
todo momento, uma ideia ainda mais utópica e,
possivelmente, inalcançável: a felicidade em seu valor
máximo.
A ideia de segurança em longo prazo, que foi
substituída pela satisfação hedonista dos nossos
desejos, também promulgou uma alteração em nossa
relação com o tempo. Se antes as pessoas viviam com
o pensamento na preservação, conservação e
planejamento para se precaver das peripécias do
destino, vivendo com os pensamentos no amanhã,
atualmente, os desejos enfileirados e satisfeitos como
uma produção em série tendem a nos forçar a viver e
buscar contentamento no tempo presente, relegando
o amanhã a um papel de segundo plano.
M
75
É a ideia de que o tempo deixou de ser linear
e passou a ser “pontilhista”: uma série de intervalos
sem conexões entre si, em que o mais relevante é o
instante, o momento. A ideia de progresso e de
continuidade já não existe mais e deu lugar a um
modelo no qual cada ponto, ou momento, é uma
oportunidade única e indispensável de felicidade.
Esse novo modelo vem bem a calhar para a sociedade
de consumidores: num contexto em que os desejos são
recicláveis, o tempo e os momentos que os compõem
também devem ser.
A instabilidade dos desejos e a
insaciabilidade das necessidades, assim como
a resultante tendência ao consumo
instantâneo e à remoção, também
instantânea, de seus objetos, harmonizam-se
bem com a nova liquidez do ambiente em que
as atividades existenciais foram inscritas e
tendem a ser conduzidas no futuro previsível
(BAUMAN, 2007, p. 45).
76
Cada divisão do ―tempo pontilhista‖ é uma
oportunidade inegociável para ser feliz. Mas se essa
oportunidade não se concretiza no valor máximo
dessa sociedade, ela deve ser logo deixada para trás e
trocada por uma nova. Parar no tempo, nesse
sentido, é o erro mais grave que se pode cometer,
pois: “A sociedade de consumidores talvez seja a
única na história humana a prometer felicidade da na
vida terrena, aqui e agora e a cada „agora‟ sucessivo.
Em suma, uma felicidade instantânea e perpétua”
(BAUMAN, 2007, p. 60).
Com tantas ofertas ao dispor de todos e com
tantas chances sucessivas de ser feliz, e sendo o
consumo a ferramenta mais adequada para tal, o ideal
de felicidade deve ser até mais do que um anseio ou
um valor. Em última instância, a felicidade também é
uma métrica de avaliação do sucesso individual na
sociedade de consumidores. Se o sucesso em viver o estilo
consumista é um fator de estratificação, por
consequência, ser feliz também deve ser um método
77
importante para determinar o lugar de cada indivíduo
nessa cultura.
Na verdade, essa é uma relação que pode ser
direta: não só porque a felicidade é o “valor máximo”
dessa sociedade, mas também porque é possível
observar uma grande quantidade de marcas vendendo
a felicidade por meio de seus anúncios. Essa
quantidade descomunal de felicidade que nos rodeia
o tempo todo tem, porém, seu lado perverso. O que
vemos, na verdade, pode ser entendido como
obrigatoriedade; e não como oportunidade. E viver
consumindo para cumprir essa obrigação da cultura
consumista pode, contraditoriamente, não nos
beneficiar com os sorrisos do contentamento:
(...) o consumo não é um sinônimo de
felicidade nem uma atividade que sempre
provoque sua chegada. O consumo, (...), não
é uma máquina patenteada para produzir
uma quantidade crescente de felicidade. O
contrário parece ser válido: como os relatórios
78
coligidos com muito cuidados pelos
pesquisadores deixam implícito, entrar numa
‗esteira hedonista‘ não faz aumentar a soma
total de satisfação de seus praticantes. A
capacidade do consumo para aumentar a
felicidade é bastante limitada; não pode ser
estendida com facilidade para além do nível
de satisfação das ‗necessidades básicas de
existência‘ (...). E com muita frequência o
consumo se mostra desafortunado como ‗fator
de felicidade‘ quando se trata das
‗necessidades do ser‘ ou da ‗auto-realização‘
de Maslow (BAUMAN, 2007, p. 62).
Olhando para a questão sob a perspectiva
coletiva, as economias estruturadas para o consumo,
que são as mais desenvolvidas, também tendem a não
apresentar níveis de satisfação pessoal proporcionais
ao seu aumento de renda - e, presume-se, de
consumo. Ao contrário: esses cidadãos tendem a
sofrer cada vez mais com depressões, estresse, longas
jornadas de trabalho e relacionamentos deteriorados.
79
É essa economia consumista que promove
deslealdade, derruba a autoconfiança, aumenta a
insegurança e causa os mais variados medos que,
concomitantemente, ela pretende aliviar.
O grande fascínio da cultura consumista é,
justamente, a oportunidade de começar de novo. Mas
se as múltiplas chances de renascer e se reinventar
são, na verdade, a única alternativa que essa sociedade
nos oferece - já que a opção por planos e
pensamentos de longo prazo deixou de ser viável, o
que resta aos cidadãos-consumidores é a “contínua
reconstrução da auto-identidade, com a ajuda dos kits
identitários fornecidos pelo mercado” (BAUMAN,
2007. p. 66).
80
81
Parte III
Tipos de identidade e o fetiche em que
acreditamos ao consumir
82
83
Identidades tardias
questão da identidade é explorada pelas
ciências sociais há muito tempo.
Diversas concepções do que compõe essa ideia, do
que é subjetividade e como elas são construídas, em
diferentes épocas da história humana, têm sido
discutidas. É um assunto complexo, abstrato e, mais
importante: composto por um vasto leque de
particularidades, o que faz dessa uma discussão
multifacetada. Por isso, alguns cuidados são
imprescindíveis. Há diversas formas de construir,
determinar e, até mesmo, perceber uma identidade
pessoal, afinal, como diz Bauman, “Perguntar „quem
é você‟ só faz sentido se você acredita que pode ser
outra coisa além de você mesmo” (BAUMAN, 2007,
p. 25). Religião, nacionalidade, etnia, gênero e uma
série extensa de características contribuem para a
formação do eu (figura 5). Porém, neste capítulo,
discutiremos como o consumo - e toda estrutura
social que o cerca - influencia a formação de nossas
identidades, além das implicações desse processo.
A
84
Figura 5: A crise dos refugiados sírios que
chegam à Europa: os imigrantes que têm suas
nacionalidades e seus direitos questionados e, em
breve, também serão forçados a se questionar
sobre suas identidades.
A questão central dessa discussão se baseia no
fato de que os tempos modernos - a depender do
autor: pós-modernidade, modernidade tardia,
modernidade líquida etc. - estão forçando uma
intensa transformação do conceito que, desde o
Iluminismo, tínhamos cristalizado como a definição
da ideia de identidade. Imputava-se a ela a
incumbência de “definir o próprio núcleo ou essência
de nosso ser e fundamentar nossa existência como
sujeitos humanos” (HALL, 1992, p. 10)
85
Atualmente, discute-se sobre o eventual
processo de “descentramento”, ou deslocamento, das
identidades modernas. Esse processo teria sido
deflagrado no momento em que as sociedades
modernas entraram em contraponto fundamental
com as sociedades tradicionais. É a mesma relação de
oposição existente entre a sociedade de produtores e
a sociedade de consumidores. Um modelo voltado
para segurança, perenidade e com o longo prazo
sempre em vista; outro, pensado para o tempo
presente, efêmero, em que tudo se transforma com
uma velocidade nunca antes vista.
Para as sociedades tradicionais, os costumes e
os hábitos eram meios de lidar com o espaço e com o
tempo. Justamente por essa razão, eram sociedades
em que o passado exercia forte influência, e as
mesmas práticas sociais se repetiam de forma
recorrente. Já as sociedades modernas
caracterizaram-se pelas mudanças rápidas e
constantes, além da análise e da reavaliação, a todo o
momento, dessas práticas sociais. Complementa-se a
86
isso o fato de que as sociedades da modernidade
tardia são estruturadas nas diferenças entre seus
sujeitos e construídas sobre os antagonismos e
distinções sociais que tomam conta de toda a sua
estrutura. Isso produz diferentes “posições de
sujeito”, ou identidades (HALL, 1992, p. 17), que se
relacionam e se articulam, mas que mantêm seus
alicerces abertos e parcialmente indefinidos.
“Esse processo produz o sujeito pós-
moderno, conceptualizado como não tendo uma
identidade fixa, essencial ou permanente” (HALL,
1992, p. 18).
Transição e fragmentação das
identidades
maneira como a identidade e a
subjetividade das pessoas é analisadaA
87
mudou durante os séculos. Tais mudanças, como dito
acima, se deram pelas adaptações e evoluções nos
modos de vida, pelos avanços tecnológicos e
científicos e pelas transformações na economia e nas
relações comerciais das sociedades. Para Hall, são
três os tipos de sujeitos que podem ser observados
com mais clareza, ao longo desse processo histórico:
o sujeito do iluminismo, o sujeito sociológico e o
sujeito pós-moderno, por ordem de aparição a partir
das modificações citadas.
Em consonância com as mudanças que o
Iluminismo propôs, o “sujeito iluminista”
apresentava a ideia de se tratar de um ser
autocentrado e indivisível. Extremamente racional,
seria dono de uma natureza interna carregada consigo
desde o nascimento e que não se alteraria mesmo
durante o desenvolvimento da vida. Esse núcleo
imutável de cada ser humano é o que se chamava se
“identidade”.
88
As transformações associadas à modernidade
libertaram o indivíduo de seus apoios estáveis
nas tradições e nas estruturas. Antes se
acreditava que essas eram divinamente
estabelecidas; não estavam sujeitas, portanto,
a mudanças fundamentais. O status, a
classificação e a posição de uma pessoa na
"grande cadeia do ser" — a ordem secular e
divina das coisas — predominavam sobre
qualquer sentimento de que a pessoa fosse
um indivíduo soberano (HALL, 1992, p.
18).
Tão logo a sociedade ganhou contornos
“modernos”, essa concepção de sujeito se alterou. A
ideia que passou a prevalecer salientava que a
identidade era influenciada pela mediação entre o
sujeito e o meio em que ele estava inserido. Assim, a
concepção de uma individualidade imutável, inerente
ao âmago de cada ser humano perdeu influência. Nas
sociedades modernas, o indivíduo já não era mais
entendido como um ser autônomo e alheio às
89
condições externas; suas características naturais não
eram suficientes (figura 6).
Figura 6: René Descartes, pai da filosofia
moderna, do pensamento cartesiano e formulador
da frase:
Os sujeitos, na verdade, determinavam suas
identidades na relação com as pessoas de seus
círculos. Elas eram responsáveis pela mediação entre
o ambiente, os valores, as tradições, a cultura e aquele
sujeito. Essa concepção, contudo, não excluiu a ideia
de uma “natureza” internalizada em cada pessoa: ela
só estaria submetida às influências e à mediação que a
interação com a sociedade pressupõe. As outras
diferentes identidades e valores disponíveis no corpo
social terminavam de constituir a subjetividade de
90
cada indivíduo. Essa interação entre sujeitos e
sociedade - sujeitos projetando a si mesmos na
sociedade e internalizando valores e significados
provenientes dela - alinhou os sentimentos
individuais ao lugar que cada um ocupava nessa
estrutura. Dessa forma, as identidades e valores
coletivos tornaram-se intimamente ligados,
unificados e influenciáveis mutuamente.
Ainda era possível, no século XVIII,
imaginar os grandes processos da vida
moderna como estando centrados no
indivíduo ‗sujeito-da-razão‘. Mas à medida
em que as sociedades modernas se tornavam
mais complexas, elas adquiriam uma forma
mais coletiva e social. As teorias clássicas
liberais de governo, baseadas nos direitos e
consentimento individuais, foram obrigadas a
dar conta das estruturas do estado- nação e
das grandes massas que fazem uma
democracia moderna. As leis clássicas da
economia política, da propriedade, do
91
contrato e da troca tinham de atuar, depois
da industrialização, entre as grandes
formações de classe do capitalismo moderno.
O empreendedor individual da Riqueza das
Nações de Adam Smith ou mesmo d'O
capital de Marx foi transformado nos
conglomerados empresariais da economia
moderna. O cidadão individual tornou- se
enredado nas maquinarias burocráticas e
administrativas do estado moderno (HALL,
1992, p. 20).
No contexto da modernidade tardia,
argumenta-se, foram justamente as mudanças dessas
estruturas sociais que, ao se relacionarem com os
indivíduos, promoveram o “surgimento” do “sujeito
pós-moderno”. Ao mesmo tempo, aconteceram
mudanças nas estruturas sociais, que se refletiram nas
identidades “disponíveis” na sociedade, e mudanças
nas identidades individuais. Além disso, o próprio
processo de identificação dos indivíduos na cultura já
92
não se dava da mesma forma, tornando-se mais
transitório.
Essa concepção de sujeito pós-moderno
surgiu a partir da metade do século XX. Para Hall, o
“descentramento” das identidades, que resulta nessa
nova concepção, teria diversos motivos. A
reinterpretação da teoria marxista identificou que o
homem - tido como o autor independente de sua
própria história - era, na verdade, subordinado ao
contexto que lhe fora deixado por seus antepassados
e não tinha o poder soberano sobre seu destino. Os
estudos na área da psicanálise de Freud deram origem
à noção de que a identidade humana se dá, também,
em um ambiente inconsciente e subjetivo. Isso
acarretou circunstâncias de contradição, construção e
interpretação pessoal permanentes. O sistema
linguístico, na visão de Saussure, também teria papel
relevante nesse processo: a linguagem, para ele, era
um sistema social, externo ao controle humano. Ao
homem, caberia apenas a sua manipulação; e não o
controle completo sobre todos os seus significados,
93
interpretações e contradições. A questão do “poder
disciplinar”, de Michel Foucault, adiciona a ideia das
instituições que exercem um papel de controle social
e disciplinam os homens: oficinas, quarteis, escolas,
prisões e hospitais. Por fim, movimentos sociais,
como o feminismo, que colocam em debate questões
de gênero, classe, papeis e obrigações sociais, além
dos limites entre o público e o privado.
Essas transformações sociais e
reinterpretações da questão da identidade dão a
origem a um novo modelo do que é o sujeito
humano: desprovido de um cerne fechado, fixo e
unificado. As identidades no mundo pós-moderno,
dominado pela globalização e pelo consumo de
massas, são múltiplas, contraditórias e encontram-se
em constante definição.
94
Liberdade e fetiche
s ideias de Bauman sobre as identidades
no mundo atual estão plenamente de
acordo com as ideias apresentadas por Hall. Para
Bauman: “A fragilidade e a condição eternamente
provisória da identidade não podem mais ser
escondidas” (BAUMAN, 2005, p.22).
Porém, quando analisamos a questão
identitária não só sob a luz da sociologia clássica,
assim como Hall, mas também sob o conceito da
sociedade de consumidores, notamos outros aspectos
determinantes para sua formação no mundo líquido-
moderno. Hoje, o consumo tem papel fundamental
na definição de muitas das características e valores
que acreditamos dispor. Para além do fato de que a
sociedade de consumo pressupõe a fugacidade de diversos
aspectos da vida, o consumo - que também apresenta
seu caráter de alta frequência e ciclicidade - tomou
para si a responsabilidade de complementar nossas
identidades, por meio dos objetos disponíveis em
A
95
abundância no mercado. Cada compra realizada, cada
produto usado, cada ingresso adquirido nos oferece a
chance exclusiva de construir uma narrativa particular
sobre nós mesmos.
Esse processo de formação das identidades
no mundo pós-moderno, especialmente no mundo
dominado pelas regras do consumo de massas, se dá
pelas noções de autoafirmação e de pertencimento
dos indivíduos na sociedade. Os sujeitos buscam
escolher os componentes de suas identidades e,
posteriormente, procuram reconhecimento de
determinado grupo.
É o que Bauman nos afirma:
Ainda que o que a pessoa esteja lutando
para exibir e tornar reconhecido esteja
destinado pelo ator a preceder, antecipar e
predeterminar a escolha da identidade
individual (atribuições étnicas, raciais,
religiosas ou de gênero reivindicam pertencer
96
a essa categoria do eu), é o impulso de seleção
e o esforço de tornar a escolha publicamente
reconhecível que constituem a autodefinição
do indivíduo líquido-moderno (BAUMAN,
2007, p. 141).
Como se vê, a estrutura do sujeito pós-
moderno, definido por Hall, permanece indefinida na
fase líquida da modernidade. Essa abertura de nossas
definições pessoais está sujeita à influência da cultura
consumista, que oferece aos sujeitos, via mercado,
infinitas oportunidades de escolha para que a
subjetividade de cada um seja confortavelmente
complementada. Porém, seguindo a lógica da cultura
consumista, tais subjetividades são planejadamente
efêmeras, a fim de serem brevemente trocadas por
novas o mais rápido possível.
Construir planos longevos ou cultivar
identidades fixas e bem definidas ao longo de toda a
vida são reflexões das quais fugimos constantemente.
97
As duas ideias se opõem à noção de liberdade de
escolhas que nós, cidadãos-consumidores, tanto
valorizamos. Costumamos achar que a grande
variedade de opções que vemos à nossa volta é o
maior indício da liberdade do qual gozamos. O livre
arbítrio em relação ao que consumir é um valor
inestimável e irrevogável dentro da sociedade de
consumidores. “A identidade coesa, firmemente fixada e
solidamente construída seria um fardo, uma
repressão, uma limitação da liberdade de escolha.
Seria um presságio da incapacidade de destravar a
porta quando a nova oportunidade estiver batendo”
(BAUMAN, 2005, p. 60).
Contudo, não nos damos conta de que todas
as opções que nos são oferecidas já estão
previamente planejadas e chegam aos pontos de
venda já concluídas, disponíveis apenas para serem
consumidas. Nossa ideia de liberdade não inclui o
poder de decisão sobre a produção de tantos
materiais. Não escolhemos suas características,
quantidades, tempo de vida útil e assim por diante.
98
Também não temos a possibilidade de optar por não
consumir. Vivemos sob o constante risco de sermos
expulsos da sociedade se não cumprirmos,
reiteradamente, os ritos do consumo (figura 7).
Figura 7
Logo, se o estilo de consumo que praticamos
é determinante na formação nossas identidades
individuais, mas, ao mesmo tempo, somos obrigados
a consumir mais e mais a todo o momento, numa
frequência cada vez mais alta, é possível inferir que a
construção de nossas identidades por meio do
consumo não se dá de forma livre. Porém, enquanto
indivíduos e cidadãos, acreditamos em uma ilusão de
liberdade: tais identidades, tão frágeis e efêmeras, é
99
que nos dariam a possibilidade de sermos livres.
Porém:
Uma escolha que essa liberdade não iria
reconhecer, garantir ou permitir é a decisão
(ou mesmo a capacidade) de continuar se
apegando à identidade já construída, ou seja,
ao tipo de atividade que também pressupõe, e
necessariamente exige, a preservação e
proteção da rede social na qual a identidade
se baseia ao mesmo tempo em que a reproduz
ativamente (BAUMAN, 2007, p. 136).
O postulado de Bauman nos deixa claro que,
na sociedade de consumidores, as identidades são frágeis e
se alteram a todo momento. Isso acontece porque
seus integrantes são interpelados pelas regras da
cultura consumista e, dessa forma, incentivados a
substituírem suas recém adquiridas identidades por
novos produtos. A todo o momento. Bauman relata
um caso curioso para ilustrar esse fenômeno:
100
Após a introdução das ‗multas em
decorrência do congestionamento‘ para quem
dirigir carros no centro de Londres, ser
‗piloto de motoneta‘ se tornou imediatamente
algo obrigatório para os londrinos
preocupados com a moda (mas não,
obviamente, por muito tempo…). Não foi só
a motoneta que se tornou ‗um must‘, mas
também os trajes especialmente desenhados,
indispensáveis para qualquer um que deseje
apresentar em público sua nova ‗identidade
de piloto de motoneta‘ - como uma jaqueta de
couro da Dolce & Gabana, um tênis
vermelho da Adidas, um capacete prateado
da Gucci ou óculos de sol ao estilo atlético
com lentes amarelas da Jill Sander…
(BAUMAN, 2005, p. 91).
Os motoristas londrinos rapidamente
substituíram suas identidades, motivados por uma
interferência externa. Seja por causa da restrição
101
imposta pela lei, ou por causa da influência de alguma
possível propaganda que incentivou o uso das
motonetas como alternativa, o fato é que os ex-
motoristas recorreram ao consumo de produtos
industrializados para construir, reforçar, e promover
a autoafirmação e o pertencimento de suas novas
identidades. Além das motonetas, que possivelmente
tinham uma razão prática para serem consumidas, a
construção e a afirmação de suas subjetividades
exigiram a aquisição de um “kit identitário”, recheado
de itens de marcas famosas que, em conjunto,
transmitiram socialmente os significados necessários
para que seus donos fossem entendidos como os
pilotos mais modernos de motonetas do centro de
Londres.
É certo que, de forma muito breve, esses
itens estavam ultrapassados, assim como, com efeito,
as identidades que, em conjunto, eles compunham.
Dessa forma, as lojas logo estariam repletas de novos
itens que garantiriam aos consumidores requalificar a
identidade já antiquada. Quem sabe o antigo
102
motorista - e, rapidamente, já antigo piloto de
motoneta - não se tornou um ciclista? Para isso, seria
necessário um kit com capacete, luvas, roupas
esportivas, óculos, tênis adequados e, claro, uma
bicicleta. Talvez, em outra possibilidade, esse
transeunte do centro de Londres tenha decidido usar
o transporte público como alternativa de
deslocamento. Para isso, ele precisou abandonar os
itens que já havia comprado e os substituiu por
roupas formais, um sapato mais confortável, fones de
ouvido, gorros, cachecóis, uma edição do jornal
diário e um café do Starbucks.
A maior atração de uma vida de compras é
a oferta abundante de novos começos e
ressurreições (chances de ‗renascer‘). Embora
essa oferta possa ser ocasionalmente percebida
como fraudulenta e, em última, instância,
frustrante, a estratégia da atenção contínua à
construção e reconstrução da auto-identidade,
com a ajuda dos kits identitários fornecidos
pelo mercado, continuará sendo a única
103
estratégia plausível ou ‗razoável‘ que se pode
seguir um ambiente caleidoscopicamente
instável no qual ‗projetos para toda a vida‘ e
planos de longo prazo não são propostas
realistas, além de serem vistos como
insensatos e desaconselháveis (BAUMAN,
2007, p. 66).
A “oferta fraudulenta” a que Bauman se
refere no trecho acima está relacionada com a
condição em que se dá a produção e o consumo dos
bens na sociedade de consumidores. Na sociedade de
produtores, a natureza do trabalho era escondida por
uma relação mercantilizada e pela venda de sua
capacidade. Já na sociedade de consumidores, a
subjetividade humana é camuflada por essa relação
entre consumidores e mercadorias, fazendo com que
sua verdadeira natureza se anuvie por trás de um
fetiche.
Se, antes, o fetichismo da mercadoria, para
Marx, omitia a interação humana que estava por trás
104
da venda da força de trabalho, o que se vê atualmente
é que o fetichismo da subjetividade, para Bauman,
esconde a natureza inegavelmente humana que reside
no conceito de subjetividade. Porém, as relações de
consumo dessa sociedade ocultam esse caráter, como
se tentassem transferir o poder de construção das
subjetividades para os objetos trocados nas relações
de compra.
A ideia de fetiche pressupõe um aspecto de
fingimento, de disfarce, de devaneio. Já o conceito de
subjetividade define essa concepção como aquele
conjunto de aspectos, características ou condições
que transformam indivíduos em sujeitos. Dessa
forma, é cruel concluir que as relações de compra e
consumo, que nos são impostas a todo momento,
determinam a criação de uma ilusão em relação
àquilo que achamos que somos e pretendemos ser
(figura 8).
105
Figura 8
Toda vez que usamos o cartão de crédito para
realizar uma compra de um bem de consumo,
estamos contratando uma mentira sobre nós
mesmos. Aquele objeto que carrega a promessa de
nos tornar pessoas melhores, mais bonitas, mais
adequadas, mais modernas tem um poder restrito e
temporário de cumprimento da sua incumbência. Em
um primeiro momento, é possível que o objetivo da
compra seja, de fato, alcançado. Podemos realmente
nos sentirmos melhores, mais belos ou nos
adequarmos socialmente a uma situação por conta
dos objetos que compramos e ostentamos. No
entanto, é impossível afirmar que eles estabelecerão
uma relação com o que há de mais íntimo e subjetivo
em nós. Esses itens, na melhor das hipóteses, se
relacionarão de forma eficiente com nossas
106
aparências ideais. No jogo social de signos e
significados, isso pode ser suficiente. Porém, é pouco
se quisermos atribuir a eles a responsabilidade de
completar nossa existência de forma mais profunda.
A frase de Hall elucida bem o que se entende
pelo fetiche das mercadorias. Identidades formadas por
meio do consumo, mesmo que tenhamos a
consciência de sua transitoriedade, não passam de
uma ilusão.
“Se sentimos que temos uma identidade
unificada desde o nascimento até a morte é apenas
porque construímos uma cômoda estória sobre nós
mesmos ou uma confortadora „narrativa do eu‟”
(HALL, 1992, p. 80).
107
Considerações finais
esse relato sobre a vida baseada no
consumo que levamos, pudemos
percorrer algumas das características mais básicas da
sociedade de consumidores, bem como alguns aspectos
sobre a maneira como acreditamos definir nossas
identidades.
É nítida a influência que as decisões
econômicas têm na vida das pessoas. Mais nítido
ainda é o fato de que tais decisões pouco consideram
- ou percebem – sua capacidade de influência. Por
um lado, o desenvolvimento econômico se coloca
como o grande viabilizador do desenvolvimento
humano. Assume o papel de responsável por fazer,
metaforicamente, o planeta girar e se mover, além de
promover o desenvolvimento tecnológico que tanto
impacta a qualidade e a maneira como vivemos
nossas vidas, nossas relações, valores e visões de
mundo. Contudo, pelo outro lado, tal
desenvolvimento também é responsável pela radical
N
108
quebra de paradigmas sociais no mundo pós-
moderno. Gozamos dos benefícios econômicos, mas
pagamos um preço alto para sustentar esse modelo.
Grandes resultados da organização
econômica do século XX, o advento da sociedade de
consumidores e a disseminação da cultura consumista,
provocaram consequências dramáticas para a vida em
comunidade: a cultura do lixo, do grande descarte de
materiais, o consumo não sustentável dos recursos
naturais - que Bauman também define de forma clara,
entre outros.
A mudança de modelo econômico
transformou nossa relação com o trabalho, com
nossos grupos e com os objetos que nos cercam.
Para se fazer uma análise do consumo é importante
notar que os frutos de nossa produção deixaram de
ser símbolo de segurança e estabilidade para serem
sinônimos de distinção, notoriedade, respeito, bom
gosto e, por último, responsáveis por construir
nossas subjetividades. A presença de bens de
109
consumo no nosso cotidiano só aumenta, à medida
que a propaganda e o crédito continuam estimulando
a alta demanda, enquanto as indústrias restringem sua
produção a bens com prazo de validade
extremamente breve. Essa relação material, como era
de se imaginar, não poderia resultar em algo saudável.
Pelo contrário: o exagero extremo sob o qual nos
submetemos à vida de consumo tende a, na maioria
dos casos, nos trazer consequências graves,
especialmente do ponto de vista pessoal.
Ao aceitarmos a lógica do consumo - que, na
verdade, nos é imposta como regra - como condutora
do resto de nossas vidas, trazemos para esses setores,
também, toda a lógica das relações consumistas.
Tornamo-nos seres extremamente individualistas,
mercantilizamos nossas relações, permitimos que
tudo se torne efêmero e passageiro, assemelhamo-
nos mais a mercadorias ambulantes do que a sujeitos,
desejamos e precisamos ser consumidos por
terceiros, afastamos de nós a política e as soluções
coletivas, nos sentimos agoniados e ansiosos, libertos
110
e aprisionados ao mesmo tempo, detentores do
poder de escolha, mas oprimidos pela obrigação de
escolher. E sempre inseguros sobre qual decisão
tomar.
O consumo é, por si só, uma atividade
solitária. Não prevê a construção de ligações
duradouras, sejam elas de qualquer natureza. Da
mesma forma, os poucos vínculos interpessoais que
nos sobram estão empobrecidos: se dão à luz e
semelhança de relações de compra e venda. Sendo
assim, o descarte e a substituição desses vínculos são
quase certos. Acreditamos no fetiche de que as
mercadorias que consumimos têm o poder de
transferir suas características - ou promessas -
diretamente para as nossas individualidades. Cremos,
cegamente, na propaganda que humaniza tais
produtos. E, uma vez que depositamos tanta
credibilidade nisso, passamos a acreditar que temos o
direito - quase divino - de receber produtos sob
encomenda, de acordo com nossas - fajutas e
efêmeras - personalidades. Cresce o nosso
111
individualismo. Somos seres mimados, acostumados
a receber o afago do mercado. Alternativas de
consumo que não se adequem sob medida às nossas
demandas nem serão consideradas. Logo, tudo o que
é público, coletivo e que, por natureza, tem um
caráter genérico e pouco individual, não será capaz de
nos satisfazer. Porém, não somos capazes de
enxergar que não há individualidades representadas
no consumo de bens: ainda são produtos feitos em
massa, genericamente idealizados para suprir
qualquer tipo de identidade que se pretende imaginar.
Por fim, é o hedonismo, com o qual também
nos habituamos, que mais nos frustra. Nossas
identidades estão postas em xeque a todo momento,
necessitando serem repostas e substituídas, para que
possamos cumprir nosso primeiro e mais básico
desejo: sermos felizes. É um ciclo vicioso do qual
não se vê saída. Consumimos, inventamos uma nova
identidade, somos consumidos, consumimos mais,
inventamos outra identidade, somos consumidos e,
assim, sucessiva e indefinidamente.
112
Essa é chave para entender o grito de
descontentamento dos “Rolling Stones”, ainda nos
anos 1960. Grito esse que não foi o único, muito
menos o último. Geração após geração, vemos
exemplos de jovens contestando essa lógica e o caso
do funk não é diferente. Ainda que não se possa
explicar o seu declínio unicamente pela negação da
vida consumista - pelo contrário, aqueles jovens
ainda desejam consumir cada vez mais, a diminuição
dos níveis de consumo produzida pela crise provoca
reflexão.
A questão que resta é: quanto mais
precisaremos consumir para nos darmos conta de
que nossas vidas podem ser menos vazias de sentido?
113
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114
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(acessado em 14 de novembro de 2015).
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(acessado em 14 de novembro de 2015).
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(acessado em 14 de novembro de 2015).
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(acessado em 14 de novembro de 2015).
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5720_10150505388560841_216169690840_8939566_
1754732686_n.jpg?w=538
117
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https://pt.wikipedia.org/wiki/Revolu%C3%A7%C3
%A3o_Industrial
(acessado em 14 de novembro de 2015).
https://pt.wikipedia.org/wiki/New_Deal
(acessado em 14 de novembro de 2015).

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Compra-se um Eu - O consumo como formador da identidade

  • 1. Universidade de São Paulo Escola de Comunicações e Artes Departamento de Relações Públicas, Publicidade e Turismo Guilherme Ferracioli Muezerie Compra-se um Eu: O consumo como formador da identidade São Paulo 2015
  • 2.
  • 3. Universidade de São Paulo Escola de Comunicações e Artes Departamento de Relações Públicas, Publicidade e Turismo Guilherme Ferracioli Muezerie Compra-se um Eu: O consumo como formador da identidade Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Escola de Comunicações e Artes como requisito parcial para a obtenção do título de bacharel em Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda. Orientador: Prof. João Carrascoza São Paulo 2015
  • 4.
  • 5. Banca examinadora Espaço reservado às observações da Banca Examinadora responsável pela avaliação deste trabalho, apresentado em _____ de dezembro de 2015, na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Examinador 1: _________________________________________ _________________________________________ _________________________________________ _________________________________________ _________________________________________ _________________________________________ _________________________________________ _________________________________________ _________________________________________
  • 6.
  • 8.
  • 9. Agradecimentos Este texto é um pouco mais do que um simples trabalho acadêmico. É um exercício para a vida. Aqui vão os agradecimentos para as pessoas que estiveram nela durante os últimos anos e que continuarão por vários outros: À minha mãe e ao meu pai. A ele, por sempre me deixar ser quem eu quero. A ela, por nunca me deixar ser qualquer um. Aos meus tios. Além de exemplos pra mim, sem o apoio deles, eu não estaria aqui hoje. À Família Futsal, pelas vitórias dentro e fora de quadra. Aos amados: Giu, Dé, Dani, Karina, Aída, Tulio, Maluf, Alice e Barbara.
  • 10. Diego e Guilherme, que estão nessa comigo desde o começo. Natália Tonello e Shayene Metri. E um obrigado especial ao Giu e à Carla, pelo tempo que dedicaram na revisão e capa.
  • 11. Resumo Este trabalho propõe uma reflexão sobre como nossas identidades são construídas a partir do consumo de bens industrializados. Traça um panorama das mudanças que vêm ocorrendo no mundo, desde a modernidade até a pós-modernidade, e analisa as influências dessas mudanças na sociedade, no consumo e neste elemento subjetivo que nos define: a ideia de identidade. Palavras-chave: Consumo, Identidade, Sociedade de Consumidores
  • 12.
  • 13. Índice Introdução 13 Parte I 21 Da Revolução Industrial ao século XX 23 Parte II 37 A transição entre os modelos de sociedade 39 Cultura consumista e estratificação 49 Distinção e escalada social 56 O Paradigma do Desejo 68 Tempo versus felicidade 74 Parte III 81 Identidades tardias 83 Transição e fragmentação de identidades 86 Liberdade e fetiche 94 Considerações finais 107 Referências bibliográficas 113
  • 14.
  • 15. 13 Introdução unho de 1965. A então iniciante banda conhecida como “The Rolling Stones” estava em turnê pelos Estados Unidos. Britânicos, já haviam gravado alguns álbuns e alcançado razoável sucesso no Reino Unido, mas a tão cobiçada fronteira norte-americana ainda era um desafio. Em certa madrugada durante a turnê, o guitarrista da banda, Keith Richards, acordou de um sonho. Um sonho musical. Levantou-se da cama, lançou mão de seu gravador e registrou a ideia que havia tido. Na manhã seguinte, encontrou o registro da canção que, (pouco) mais tarde, seria conhecida no mundo todo. “Satisfaction” foi o passaporte dos “Stones” para o estrelato. Sucesso imediato nos EUA, o single fez dos britânicos famosos e tornou-se um hino - não só da banda, mas da época e do rock, o movimento cultural em que se inseria. Diz-se por aí que um dos fatores que faz determinada canção se eternizar é a sua capacidade de se apropriar e exprimir o espírito J
  • 16. 14 de uma época. Se isso é verdade ou não, pouco importa. Não há dúvidas de que os “Stones” conseguiram capturar, em “Satisfaction”, o mundo que os rodeava com extrema precisão. Paralelamente ao sucesso da música, o ano de 1965 estava sendo marcante para os americanos. Lyndon Johnson assumia a presidência com políticas sociais voltadas para os direitos civis, mas com uma política econômica liberal e geopoliticamente expansiva. A Guerra do Vietnã se tornava cada vez mais dura e o ideal anticomunista transcendia os campos de batalhas. O consumo massificado torna-se então a alternativa encontrada para sustentar a economia, e o consumismo começa a ganhar forma na sociedade. Mick Jagger captura esse momento com um tom irônico, próprio da sua juventude:
  • 17. 15 Quando estou vendo minha TV E aquele homem vem para me dizer Quão branca minha camisa pode ser Mas ele não pode ser um homem, porque ele não fuma O mesmo cigarro que eu Não consigo, (...) Rolling Stones, Satisfaction Entre outras ironias, a banda critica o hábito do consumo exagerado que já era massificado àquela altura. Alguns outros aspectos chamam a atenção na denúncia de Jagger: o homem que vem à TV falar personifica a intenção de convencimento e humanização da propaganda e, ainda mais interessante, reforça a relação de causalidade ou dependência explícita que existente entre um produto: o cigarro - e uma característica de identidade: o gênero masculino. Ano de 2008, Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo. Na periferia da grande metrópole, o funk nacional, gênero nascido no Rio de Janeiro no final dos anos 1980, domina a cena musical. O
  • 18. 16 crescimento econômico acelerado do país, acompanhado pela elevação do nível dos salários e do emprego, suporta o surgimento de um subgênero dentro dessa cena musical: o funk ostentação. Cantado por representantes das classes mais baixas da sociedade, o estilo era paradoxal ao se caracterizar por letras que abordam o uso de artigos de luxo, como roupas, perfumes, carros, motos e bebidas. O conceito de ostentação toma conta das letras e do imaginário criado por elas. No início, os objetos exaltados eram mais simples. Quando se popularizou, o “MC Boy do Charmes”, um dos representantes do gênero, já assinalava o seu desejo em um Citröen Megane. O desenvolvimento econômico fazia com que o ícone de consumo se tornasse acessível. Assim, o sonho era possível e o sucesso, grandioso. Aos poucos, porém, a dimensão da glória interferiu ligeiramente na temática. O Megane deu lugar a Ferraris e Lamborghinis, motos de luxo e bebidas mais caras.
  • 19. 17 O fenômeno econômico tinha forte relação com o fenômeno cultural. A explosão da demanda, do consumo e do crédito foram usadas como ferramentas de distribuição de renda e inclusão social. Antes, essas camadas da sociedade, que tinham boa parte de seus direitos negados, também não podiam consumir, muito menos sonhar. Foi natural que a inserção delas na sociedade - que se deu por meio da facilitação do acesso a alguns bens de consumo - lhes conferisse a impressão de que poder de consumo era, também, sinônimo de cidadania. As letras expressavam bem esse sentimento. Autoestima elevada, conquista de poder e status social, baladas com camarotes regados a álcool, carros de luxo, joias e poucas preocupações - a não ser obter a atenção das mulheres mais desejadas. Também é possível notar alguns produtos-ícones para esse grupo. Os campeões de audiência: óculos da Oakley, uísque Johnnie Walker, energético Red Bull, tênis Nike e motos Honda. Mas, para além da distinção social, o que esses jovens da periferia dizem
  • 20. 18 sobre si mesmos ao tentarem se apropriar de tais símbolos? Apesar da brutal distância temporal e cultural, a crítica feita em 1965 e o movimento paulistano que começou em 2008, de alguma forma, dialogam e se complementam. E é nesse encandeamento que este trabalho se apoia. Sua modesta intenção é investigar a relação que existe entre os produtos industrializados que consumimos e a maneira como formamos nossas identidades. Aqui, será traçado um panorama da transformação do mundo de ontem no mundo de hoje sob três perspectivas: econômica, social e, digamos, pessoal. Primeiro, tentaremos entender, de maneira geral, como a economia do século XX nos levou a uma sociedade em que o consumo é parte central das nossas vidas. Segundo, definiremos algumas das características da chamada sociedade de consumidores, além de suas implicações no nosso modo de vida. Por fim, exploraremos um pouco do
  • 21. 19 conceito de identidade, como o entendimento desse pensamento mudou ao longo do tempo e suas características no mundo contemporâneo. Todavia, antes de começar a leitura, há um detalhe que não podemos deixar de comentar: “Satisfaction” é um grito simultâneo de desejo e frustração. E é esse permanente sentimento de insatisfação - que a canção reafirma, repetidamente - que desperta a curiosidade do autor. Aparentemente, não eram só os “Rolling Stones” que se sentiam desiludidos e alienados. O próprio funk ostentação logo viu a amplitude de seu sucesso minguar. Como prova disso, argumenta-se que, em determinado momento, o público já não se sentia mais representado pelos artigos de alto luxo presentes nas letras e clipes. Esse grito deve ser objeto de reflexão durante a leitura do texto.
  • 22. 20
  • 23. 21 Parte I Como surgiram a sociedade de consumidores e a cultura consumista
  • 24. 22
  • 25. 23 Da Revolução Industrial ao Século XX urante vários séculos, o mundo e as dinâmicas sociais se organizaram de maneira muito mais simples do que observamos atualmente. O homem transitou entre sociedades agrícolas, extrativistas, migratórias até, finalmente, se consolidar em uma sociedade que, mais recentemente, passamos a chamar de “sociedade de produtores”. Tal sociedade se caracterizou pela importância e pelo amplo domínio que o trabalho - ou atividade produtiva - possuía. Nela, a vida das pessoas era determinada por sua ocupação. Produzir e construir eram as ações de maior importância e maior valor, uma vez que a grande maioria dos cidadãos eram artesãos que viviam de suas manufaturas. No século XVIII, a Revolução Industrial inaugurou uma nova fase no sistema econômico D
  • 26. 24 mundial. O capitalismo comercial, predominante até então, aos poucos, deu lugar a um capitalismo industrial, com a supremacia das máquinas sobre o trabalho humano tornando-se realidade em pouco tempo. Logo, os antigos artesãos e comerciantes deram lugar a um novo grupo de cidadãos: os trabalhadores e operários. A Revolução Industrial não só determinou o nascimento dessa nova classe formada pelos trabalhadores das fábricas, como também influenciou a mudança radical de cenário das cidades. Aos poucos, o crescimento econômico e das oportunidades atraíram cada vez mais camponeses das áreas rurais em direção à área urbana. O êxodo rural e o acelerado crescimento dos centros urbanos - povoados por burgueses e trabalhadores - também tiveram implicações mais sutis no modo de vida da época. Apesar de, em larga medida, viver subexplorada e submetida às desumanas e
  • 27. 25 desreguladas condições de trabalho da época, a nova classe trabalhadora urbana tinha uma renda, fruto de seus salários. Como estavam afastados de seus locais de origem e, portanto, de tradições culturais regionais, restava a esses trabalhadores buscarem novas formas de divertimento, uma vez que a cultura erudita dos centros urbanos era dominada pelas elites e pouco acessível economicamente. Circos, teatros de rua, óperas, festas populares e religiosas, como o carnaval, proliferavam nas cidades e eram um indício do nascimento de uma cultura “urbano-massiva”. Logo, esse sistema de produção cultural seguiria o modelo das outras atividades concentradas nas cidades e começaria a ter o lucro como objetivo principal de sua elaboração. Estava, assim, estabelecida uma indústria cultural nas cidades. Essa indústria de bens simbólicos e imaginários, que vendia experiências, entretenimento e emoções é um dos fatores determinantes para outras rupturas que a vida nas cidades ainda sofreria.
  • 28. 26 Se a cultura havia deixado de ser uma expressão popular de tradições e identificação naquele momento, outro aspecto central da vida daqueles homens e mulheres habitantes dos centros urbanos já estava mercantilizado há muito tempo. O trabalho, superexplorado nas fábricas por meio da exigência cada vez maior de produtividade e das divisões e especializações da produção, deixava de ter caráter humanizador e de construção da subjetividade do homem, e passa a ser mais uma mercadoria posta em circulação. Os trabalhadores, que já não eram donos dos meios de produção, não tinham outra opção senão vender sua força de trabalho para se sustentar, sacramentando a definição do trabalho apenas como uma atividade a ser trocada por dinheiro. Se a vida dos operários nas fábricas parecia difícil durante os séculos que se seguiram às primeiras revoluções industriais, o século XX começou com rupturas ainda mais traumáticas. Duas guerras mundiais e uma crise grave no capitalismo
  • 29. 27 internacional abalam o sistema e forçam-no a procurar alternativas para sustentar a produção em massa derivada das indústrias. Políticas econômicas praticadas pelos EUA (e que se refletiram ou encontraram semelhantes em diversos outros países do mundo, como no Brasil de Getúlio Vargas), como o New Deal, nos anos seguintes à Grande Depressão e o Plano Marshall, depois da Segunda Guerra Mundial, foram determinantes para rearranjar o sistema produtivo mundial e estabelecer as condições para que ele se mantivesse de pé. O ponto central em torno do qual essas políticas econômicas orbitavam era simples: o estímulo ao consumo (figura 1).
  • 30. 28 Figura 1: Americanos aguardando roupas e suprimentos, durante a enchente do rio Ohio em 1937. Ao fundo, lê-se no outdoor: ―O padrão de vida mais alto do mundo‖. Este é um indício de como as políticas de estímulo ocorriam e eram suportadas pela propaganda ideológica O sucesso dessas políticas e o pós-guerra garantiram épocas de bonança para o capitalismo mundial. O estímulo a um estilo de vida pautado pelo consumo ganhou outros aliados, sendo um deles um dos mais representativos e poderosos: a propaganda. Logo, os esforços publicitários ganharam traços culturais e o mundo testemunhou a “era de ouro” da propaganda mundial. Nessa época, chegou ao auge, também, o famoso “american way of life”, cujos ícones de consumo e estilo de vida permearam os sonhos de inúmeras famílias ao redor do mundo.
  • 31. 29 Em 1931, Frederick Lewis Allen, em seu livro Only Yesterday: An Informal History of the 1920s, relatou com precisão o sentimento que o consumo e o padrão de vida que se estabelecia causavam na sociedade americana da época: Ainda sim, o americano podia sonhar com o romântico dia em que ele venderia seus produtos comuns por um preço fabuloso e viveria numa grande casa e teria uma frota de carros brilhantes e relaxaria nas areias de Palm Beach. E quando ele olhou para o futuro do seu país, ele viu uma América livre – não da corrupção, nem do crime, nem da guerra, nem do controle de Wall Street, nem do ateísmo, nem do luxo; pois as utopias do passado o deixaram cético e indiferente. Ele viu uma América livre da pobreza e do trabalho pesado. Ele viu uma ordem mágica construída em cima da ciência e da prosperidade: estradas carregadas com
  • 32. 30 milhões de automóveis, aviões escurecendo os céus, linhas de fios de alta tensão carregando – de colina em colina – o poder de dar vida a milhares de máquinas salvadoras de trabalho humano, arranha-céus surgindo sobre antigos vilarejos, vastas cidades crescendo sobre massas geométricas de pedras e cimento, urrando com o tráfego perfeitamente mecanizado e homens e mulheres inteligentemente vestidos que gastam, gastam, gastam o dinheiro que eles ganharam por estarem distantes o suficiente para prever – em 1929 – o que estaria para acontecer1 (ALLEN, 1931, p. 107). 1 Tradução livre. Trecho original: “Still the American could spin wonderful dreams-of a romantic day when he would sell his Westinghouse common at a fabulous price and live in a great house and have a fleet of shining cars and loll at ease on the sands of Palm Beach. And when he looked toward the future of his country, he could envision an America set free-not from graft, nor from crime, nor from war, nor from control by Wall Street, nor from irreligion, nor from lust, for the utopias of an earlier day left him for the most part skeptical or indifferent; he envisioned an America set free from poverty and toil. He saw a magical order built on the new science and the new prosperity: roads swarming with millions upon millions of automobiles, airplanes darkening the skies, lines of high-tension wire carrying from hilltop to hilltop the power to give life to a thousand labor-saving machines, skyscrapers thrusting above one-time villages, vast cities rising in great geometrical masses of stone and concrete and roaring
  • 33. 31 Contudo, a intervenção estatal na economia mundial durante esse período do século XX encontrou um limite. Já nos anos 60, o sistema de produção fordista começou a dar sinais de que já não conseguia produzir bens e gerar lucros em escala suficiente. Como aponta David Harvey: “Em retrospecto, parecia haver indícios de problemas sérios no fordismo já em meados dos anos 60. Na época, a recuperação da Europa Acidental e do Japão tinha se completado, seu mercado interno estava saturado e o impulso para criar mercados de exportação para os seus excedentes tinha de começar” (HARVEY, 1973, p. 89). Com a crise do fordismo e a crise do petróleo, os anos 1970 foram particularmente difíceis para o sistema capitalista. Esses problemas econômicos desencadearam outros problemas cambiais e fiscais que, por sua vez, diminuíram ainda with perfectly mechanized traffic-and smartly dressed men and women spending, spending, spending with the money they had won by being far-sighted enough to foresee, way back in 1929, what was going to happen.”
  • 34. 32 mais o poder de compra dos trabalhadores. Consequentemente, as taxas de lucro do sistema tornaram-se cada vez menores. Rapidamente foi possível perceber que, para salvar o sistema, era necessário dinamizar o modo de produção fordista e encontrar, com urgência, mercados que pudessem complementar o consumo exacerbado dos bens produzidos de maneira excedente. A solução encontrada se deu por meio de uma prática desenvolvida alguns anos antes no Japão. A divisão fordista-taylorista deu lugar, então, a um modo de produção adequado àquela necessidade: o toyotismo. O novo sistema produtivo inaugura uma era de diminuição - ou quase completa eliminação - dos estoques, de produção em pequenos lotes, sempre com alta exigência no padrão de qualidade. Houve uma substituição da padronização em prol da diversificação e da produtividade. Contudo, para este estudo, a característica mais interessante e relevante do toyotismo é a questão da personalização dos produtos.
  • 35. 33 Aos poucos, consumidores do mundo todo se acostumaram a ver uma diversidade maior de produtos nas prateleiras dos mercados. Vendia-se a ideia de que eles eram feitos de maneira especial, meticulosamente pensada, personalizada e, por isso, eram melhores. Relembrando a célebre frase de Henry Ford sobre o “Model T”: “Todo consumidor pode ter um carro da cor que ele quiser, desde que seja preto”.2 O fim dessa era pode ser identificado num trecho de um texto escrito por Victor Lebow, um empresário e economista norte-americano. Em 1955, Lebow escreveu um artigo no “Jounal of Retailing” sobre o mercado, a indústria e o consumo. Em determinada altura, ele escreve: Nossa economia enormemente produtiva demanda que façamos do consumo nosso modo de vida, que convertamos a compra e o 2 Tradução livre. Trecho original: “Any customer can have a car painted any colour that he wants so long as it is black”.
  • 36. 34 uso de bens em rituais, que persigamos nossas satisfações espirituais e do ego no consumo. A medida do status social, da aceitação social, do prestígio deve ser, agora, encontrada nos nossos padrões de consumo. O mais básico propósito e significado de nossas vidas, hoje, expressos em termos de consumo. Quanto maior a pressão nos indivíduos para que aceitem os padrões sociais, mais eles tendem a expressar suas aspirações e suas individualidades por meio do que vestem, dirigem e comem – na suas casas, seus carros, seus padrões de alimentação e seus hobbies3 (LEBOW, 1955). 3 Tradução livre. Trecho original: “Our enormously productive economy demands that we make consumption our way of life, that we convert the buying and use of goods into rituals, that we seek our spiritual satisfactions, our ego satisfactions, in consumption. The measure of social status, of social acceptance, of prestige, is now to be found in our consumptive patterns. The very meaning and significance of our lives today expressed in consumptive terms. The greater the pressures upon the individual to conform to safe and accepted social standards, the more does he tend to express his aspirations and his individuality in terms of what he wears, drives, eats- his home, his car, his pattern of food serving, his hobbies.”
  • 37. 35 O toyotismo não só marcou o fim da era em que tudo era produzido em série, como também configurou-se na alternativa que possibilitou que o sistema capitalista continuasse sustentável. Deu início, também, a uma nova fase, na qual os cidadãos eram, a todo o momento, instigados a consumir, consumir e consumir. E, ainda pior: foram levados a crer que consumir todos os bens de consumo disponíveis era muito mais do que apenas um hábito: era um estilo de vida. Os então cidadãos foram, aos poucos, deixando de se reconhecer como tais e passaram a se entender e a serem entendidos como consumidores. Da mesma forma, progressivamente foram acostumados e incentivados a acreditar que eram especiais, únicos e, por isso, mereceriam produtos que refletissem tais particularidades. Foi o início de um intenso processo de individualização desses “cidadãos-consumidores” que, como veremos mais adiante, acarretou em consequências mais complexas para a aquela ingênua sociedade.
  • 38. 36 Os processos decorrentes desse cenário de crescente individualização e incentivos irrefreáveis ao consumo - em larga escala - estão presentes na maneira como vivemos e nos relacionamos atualmente. Nossas vidas, nossas subjetividades. Quem achamos que somos, nossas relações interpessoais e nossas práticas de consumo obedecem a esses processos e padrões, de forma consciente e inconsciente, como será discutido a seguir.
  • 39. 37 Parte II A sociedade de consumidores.
  • 40. 38
  • 41. 39 A transição entre dois modelos de sociedade intensificação do modelo de estímulo ao consumo desenfreado, após as décadas de 1960 e 1970, trouxe consequências que se refletem na estrutura de nossas sociedades atuais. Tenham sido graças às forças políticas do mercado ou à ação direta dos Estados, é certo que o consumismo se tornou regra: Para que uma sociedade adquira esse atributo, a capacidade profundamente individual de querer, desejar e almejar deve ser, tal como a capacidade de trabalho na sociedade de produtores, destacada (‗alienada‘) dos indivíduos e reciclada/reificada numa força externa que coloca a ‗sociedade de consumidores‘ em movimento e a mantém em curso como uma forma específica de convívio humano, A
  • 42. 40 enquanto ao mesmo tempo estabelece parâmetros específicos para as estratégias individuais de vida que são eficazes e manipula as probabilidades de escolha e conduta individuais (BAUMAN, 2007, p. 41). Porém, como aponta Bauman, o momento histórico anterior nos mostrava características diferentes das atuais. Para ele, “o „consumismo‟ chega quando o consumo assume o papel-chave que na sociedade de produtores era exercido pelo trabalho” (BAUMAN, 2007, p. 41). Tal sociedade, chamada de “sociedade de produtores”, foi o tipo de organização que dominou a vida humana durante a maior parte de nossa existência moderna. Esse corpo social era regido por regras e valores diametralmente opostos aos que observamos nos dias de hoje - dias que fazem parte de uma estrutura mais complexa, muito suscetível a
  • 43. 41 rápidas mudanças e nos quais as relações são mais frágeis e efêmeras. O auge da era dominada pelos “produtores‖ foi a fase de surgimento e crescimento das grandes indústrias, dos exércitos de massas, com o domínio moral das regras burocráticas, que exerciam seu poder em relação ao comportamento das pessoas. Esse modelo de regulação e dominação da vida humana, empenhado em implantar disciplina e subordinação, criou um ideal de comportamento individual baseado em sua própria padronização e rotinização. Uma sociedade engessada, presa aos padrões tradicionais e que, portanto, tinha a segurança como valor máximo. Segurança que deveria permear todas as instâncias daquela sociedade. No que se refere, por exemplo, ao consumo, os bens mais valorizados eram aqueles grandes, resistentes e duráveis. Aqueles nos quais se depositaria a confiança contra as peripécias que a vida poderia - e provavelmente iria - pregar.
  • 44. 42 Carros grandes, casas espaçosas, cofres, eletrodomésticos robustos, joias e outros bens de valor altíssimo, foram, por muito tempo, sinônimos de estabilidade, resiliência e perenidade frente ao sempre imprevisível e incerto destino. E, da mesma forma que as características desses objetos representavam por si só um espírito dessa época, as ide ias de preservação, cuidado e manutenção que seus donos cultivavam também eram um símbolo desse paradigma da segurança que regia aquelas vidas. Esse modelo e essa relação de consumo vão além da ideia comum de que o desejo das pessoas ao consumir é, primeiramente, obter e acumular objetos que proporcionem a elas conforto e respeito. Nas próprias palavras de Bauman: A sociedade de produtores, principal modelo societário da fase 'sólida' da modernidade, foi basicamente orientada para a segurança. Nessa busca, apostou no desejo humano de um ambiente confiável, ordenado e regular,
  • 45. 43 transparente e, como prova, disso, duradouro, resistente ao tempo e seguro. Esse desejo era de fato uma matéria-prima bastante conveniente para que fossem construídos os tipos de estratégias de vida e padrões comportamentais indispensáveis para atender à era do 'tamanho é poder' e do 'grande é lindo' (...) (BAUMAN, 2007, p. 42). A transição do antigo modelo de produção para o modelo que atendeu às necessidades de reestruturação do capitalismo também marcou uma reforma da função dos Estados em suas sociedades e na regulação de suas economias. Para aumentar a eficiência do sistema, o Estado capitalista deveria garantir que os encontros entre capital e força de trabalho acontecessem de forma eficiente - para os dois lados - e recorrente. Tais encontros permitiram que a roda do sistema continuasse a girar, sem empecilhos, e capital e trabalho puderam manter sua relação de
  • 46. 44 interdependência. Os empregadores mantiveram seus meios de produção ativos e os trabalhadores continuaram empregados, tendo sua renda e seus direitos mais básicos preservados. Para o lado do capital, incentivos fiscais e industriais. Para o trabalho, um Estado de bem-estar social: No entanto, para que alcance tal culminação em todos os encontros, (...), o capital deve ser capaz de pagar o preço corrente da mercadoria, estar disposto a fazê-lo e ser estimulado a agir de acordo com essa disposição - garantido por uma política de seguros endossada pelo Estado contra os riscos causados pelos notórios caprichos dos mercados de produtos. O trabalho, por outro lado, deve ser mantido em condição impecável, pronto para atrair o olhar de potenciais compradores, conseguir a aprovação destes e aliciá-los a comprar o que estão vendo. Assim como encorajar os capitalistas a gastarem seu dinheiro com
  • 47. 45 mão-de-obra, torná-la atraente para esses compradores é pouco provável sem a ativa colaboração do Estado. As pessoas em busca de trabalho precisam ser adequadamente nutridas e saudáveis, acostumadas a um comportamento disciplinado e possuidoras das habilidades exigidas pelas rotinas de trabalho dos empregos que procuram (BAUMAN, 2007, p. 15). Esse processo de promoção e qualificação desses encontros é o que Jürgen Habermas chamou de "recomodificação" das relações entre trabalho e capital. Todavia, os Estados nacionais foram perdendo sua capacidade de suscitar tais encontros. A partir dos anos 1970, com as crises do petróleo e do fordismo, a doutrina liberal ganhou força nos debates econômicos, tendo como objetivos a abertura e a conquista de novos mercados. Isso forçou os Estados a diminuírem progressivamente seu poder de participação e regulação da vida econômica. Irromperam então diversos processos de
  • 48. 46 terceirização e privatização e os governos foram abrindo mão de seu papel e de sua responsabilidade na promoção da recomodificação. Aos poucos, a alternativa que restou às pessoas foi procurar na iniciativa privada por possibilidades que ajudassem a promover o encontro de sua mão de obra com o capital. Todavia, ao relegar essa tarefa à iniciativa privada, os Estados permitiram que os cidadãos consumissem tais produtos e serviços movidos por um único interesse: o retorno financeiro. No caso da educação, por exemplo, se um governo deixa de prover alternativas públicas e de qualidade, e passa a incentivar apenas instituições privadas, as pessoas passarão a consumir educação visando ao valor que aquele produto agregará ao seu currículo e, em última instância, ao que será mais valioso para os olhos do mercado de trabalho.
  • 49. 47 Vários problemas emergem quando o Estado deixa de promover a recomodificação do capital e do trabalho. O mais grave deles é que, a partir desse momento, as pessoas deixam de ser apenas cidadãs ou indivíduos com subjetividades determinadas por outros fatores, e começam a se tornar seres semelhantes às mercadorias, com características individuais - talvez até exclusivas - que lhes conferem ou aumentam sua valia, como se possuíssem um valor de mercado. Não é apenas a falta de influência das ações governamentais que torna os humanos mais parecidos com produtos industrializados, é claro. Contudo, ocorre que o mercado de trabalho é apenas um - e, na verdade, um dos mais importantes - mercados nos quais a vida humana está inserida. O preço que cobramos e o investimento pessoal em nossa própria mão de obra são mais algumas das variáveis que devemos planejar nas nossas vidas particulares. Porém, as regras que determinam esse
  • 50. 48 jogo de consumo de mão de obra, como relembra Bauman, valem para todos os tipos de mercado: Primeira: o destino final de toda mercadoria colocada à venda é ser consumida por compradores. Segunda: os compradores desejarão obter mercadorias para consumo se, e apenas se, consumi-las for algo que prometa satisfazer seus desejos. Terceira: o preço que o potencial consumidor em busca de satisfação está preparado para pagar pelas mercadorias em oferta dependerá da credibilidade dessa promessa e da intensidade desses desejos (BAUMAN, 2007, p. 18). Entretanto, diferente do que possa parecer, a atual condição dos indivíduos participantes da “sociedade de consumo‖ não se dá pela sua separação entre agentes consumidores e agentes que serão consumidos. Pelo contrário: o aspecto mais marcante de sua condição é que a relação entre sujeitos e objetos se dá de maneira confusa. É difícil identificar
  • 51. 49 os limites entre um e outro. Suas diferenças estão borradas, praticamente apagadas. Nessa sociedade, todos os indivíduos são, ao mesmo tempo, mercadorias e compradores: “Na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter segura a sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável” (BAUMAN, 2007, p. 19). Cultura consumista e estratificação desenvolvimento da “sociedade de consumo‖ se deu de forma gradual, conforme o estímulo ao consumo foi se tornando mais intenso e corriqueiro. Essa cultura consumista, com o tempo, tornou-se tão banalizada que tomou para si, inclusive, as relações humanas: “Esse feito notável foi alcançado mediante a anexação e O
  • 52. 50 colonização, pelos mercados de consumo, do espaço que se estende entre os indivíduos - esse espaço em que se estabelecem as ligações que conectam os seres humanos e se erguem as cercas que os separam” (BAUMAN, 2007, p. 19). Para Bauman, na “sociedade de consumidores”, as relações humanas acontecem da mesma forma que as relações de compra e venda de produtos. Os seus participantes, então, se definem, ainda que de forma subjetiva e inconsciente, como mercadorias disponíveis num imenso mercado de relações humanas: Os encontros dos potenciais consumidores com os potenciais objetos de consumo tendem a se tornar as principais unidades da rede peculiar de interações humanas conhecida, de maneira abreviada, como ‗sociedade de consumidores‘. Ou melhor, o ambiente existencial que se tornou conhecido como ‗sociedade de consumidores‘ se distingue por
  • 53. 51 uma reconstrução das relações humanas a partir do padrão, e à semelhança, das relações entre os consumidores e os objetos de consumo (BAUMAN, 2007, p. 19). Nesse mercado, em que não se pode precisar o que - ou quem - é objeto de consumo e o que - ou quem - é consumidor, tudo é homogêneo. Na realidade, todos os integrantes desse mercado são parte de um mesmo ciclo incessante de mercadorias que esperam encontrar seu destino nas mãos de um comprador que, por sua vez, consome, pois espera conseguir encontrar seu destino nas mãos de outro consumidor que, por sua vez, consome, pois espera conseguir encontrar seu destino nas mãos de outro consumidor que, por sua vez… Esse ciclo vicioso que agoniza os consumidores/mercadorias é natural: a esperança fundamental desses sujeitos é construir determinada subjetividade que seja - e aparente ser - uma mercadoria com atributos suficientemente atraentes,
  • 54. 52 que os destaquem da “massa de objetos indistinguíveis” (p.21). Em outras palavras, todos querem consumir, ao mesmo tempo em que desejam ser consumidos para se destacar dos demais. Aqui, os atos de “consumir” e “ser consumido” têm uma relação recíproca de causa e consequência. Tal arranjo social só poderia nascer graças a uma cultura consumista massificada. Para Bauman, “cultura consumista é a maneira irrefletida pela qual os indivíduos se comportam, sem considerar quais são seus objetivos de vida e os meios para alcançá- los” (BAUMAN, 2007, p. 20). Dessa forma, a “sociedade de consumidores” representaria, também, um conjunto de condições existenciais que estimulam os indivíduos a abraçar a cultura consumista - ainda que de maneira acrítica. Os estímulos que a “sociedade de consumidores” cria atingem a todos, sem exceção. Homens, mulheres, crianças e indivíduos de diferentes classes sociais estão sujeitos a abraçar a cultura consumista e
  • 55. 53 defini-la como o estilo de vida a ser seguido. E, mais do que um estilo de vida, estão propensos a viver essa cultura como “um direito e um dever humano e universal” (BAUMAN, 2007, p. 73). A questão que se impõe aqui é que a “sociedade de consumidores”, estimulada por uma cultura consumista massificada, institui a todos, sem distinção, o consumismo como estilo de vida obrigatório. Uma regra tácita, mas que prevê consequências graves àqueles que não a seguem. Tal sociedade está preparada - e tem o hábito - de interpelar seus participantes a todo o momento e os avaliarem segundo sua cultura e suas regras. Dessa forma, pode avaliar - recompensando ou punindo - seus membros de acordo com a sua capacidade de desempenho de consumo e, em última instância, acaba por desencadear um processo de estratificação, inclusão e exclusão a partir desses parâmetros. A ‗sociedade de consumidores‘, em outras palavras, representa o tipo de sociedade
  • 56. 54 promove, encoraja ou reforça a escolha de um estilo de vida e uma estratégia social consumistas, e rejeita todas as opções culturais alternativas. Uma sociedade em que se adaptar aos preceitos da cultura de consumo e segui-los estritamente é, para todos os fins e propósitos práticos, a única escolha aprovada de maneira incondicional. Uma escolha viável e, portanto, plausível - e uma condição de afiliação (BAUMAN, 2007, p. 73). Em adição ao poder de avaliação e segregação que a cultura consumista impõe incessantemente aos seus afiliados, ela estabelece o esforço individual como o único fator responsável pelo sucesso ou pelo fracasso de seus membros. Esses consumidores são, então, alvejados por diversos estímulos discursivos que os farão acreditar que as ferramentas para atingir o sucesso, a autoestima e o status social que desejam estão ao alcance de suas mãos, basta um pouco de empenho. Porém, “consumidores de ambos os sexos,
  • 57. 55 todas as idades e posições sociais irão sentir-se inadequados, deficientes e abaixo do padrão a não ser que respondam com prontidão a esses apelos” (BAUMAN, 2007, p. 74). Dessa forma, todo e qualquer cidadão que não consiga desempenho satisfatório no ambiente de consumo será marginalizado de forma irrevogável. Em suas interpelações, a sociedade julga improcedente qualquer argumento que sugira causas estruturais, históricas ou externas ao indivíduo para justificar tal fracasso. Por isso, consumir faz-se algo tão necessário. É, ao mesmo tempo, um investimento e uma condição de salvação. Consumir da maneira correta e na quantidade fundamental garante não só pertencimento, mas também uma posição de destaque.
  • 58. 56 Distinção e escalada social ara muitos autores, o consumo, na sociedade atual, assume papel de dos principais fatores que estabelecem diferenças sociais entre indivíduos. Ainda que as organizações sociais se deem majoritariamente pela determinação dos grupos que chamamos comumente de classes sociais, cada ser humano busca diferenciar-se dos demais no contexto em que se insere. Em maior grau, busca distinguir-se dos indivíduos de classes sociais diferentes e, em menor grau, dos próprios participantes de sua classe social. Para Pierre Bourdieu, é o habitus o princípio gerador de todas as práticas humanas. Ele estaria intimamente relacionado ao gosto individual de cada ser humano, mas - por mais contraditório que isso pareça - ele é semelhante entre todos os membros de uma mesma classe social. Dessa forma, é quase P
  • 59. 57 instintivo concluir que o habitus define os estilos de vida de cada uma delas: O estilo de vida é um conjunto unitário de preferências distintivas que exprimem, na lógica específica de cada um dos subespaços simbólicos, mobília, vestimenta, linguagem ou hexis corporal, a mesma intenção expressiva, princípio de unidade de estilo que se entrega diretamente à intuição e que a análise destrói ao recortá-lo em universos separados (BOURDIEU, 1983, p. 83/84). Neste momento, é pertinente colocar uma observação. Pertencer a um grupo - ou mesmo se definir como membro de um grupo - significa, em linhas gerais, escolher e tomar para si todas aquelas características e atribuições pertencentes a tal grupo e, da mesma forma, excluir ou renegar tudo aquilo -
  • 60. 58 ou a maior parte - que pertence ao campo de outros grupos.4 Nesse sentido, Bourdieu traça algumas diferenças básicas entre as diferentes classes sociais no que diz respeito aos seus comportamentos, hábitos de consumo e acesso a informações e cultura. Para o autor, as classes populares, por sua condição econômica e social desprivilegiada, têm uma característica de conformismo e hedonismo na maneira como consomem. Esse perfil é, justamente, consequência do fato de que seu poder de consumo está restrito aos itens mais básicos e que lhe garantem sobrevivência. Por sua educação rudimentar e acesso falho à informação, essas classes detêm apenas um conhecimento técnico e ignoram o conhecimento teórico, o que as diferenciam daqueles que são donos de posições de privilégio. 4 Kath Woodward, em seu livro Understanding Identity, mostra uma série de componentes da identidade humana. Um dos pontos mencionados é que as identidades são relacionais. Isto é: elas são construídas por meio de relações de diferença, como “nós” e “eles”.
  • 61. 59 As classes mais altas, dos setores mais nobres de uma sociedade, são definidas como o contraponto exato das classes mais inferiores. São tidas como a vanguarda do consumo e estendem esse hábito àqueles itens que podem ser considerados dispensáveis para o encaminhamento satisfatório de suas vidas. Ou seja, vivem uma vida de luxo. São os donos dos meios de produção e, por uma relação de causa e consequência, são também os donos do conhecimento teórico e científico dentro da sociedade. Ao mesmo tempo, a classe intermediária, também chamada de “pequeno-burgueses”, encontra-se em fase de transição em relação às duas classes já citadas. É fruto da ascensão social e, portanto, originária das classes mais baixas. Como tal, não possui grande conhecimento acadêmico - ou teórico, porém se diferencia, pois apresenta o que Bourdieu define como “boa vontade cultural”. Ou seja, a classe intermediária está disposta a buscar e consumir cada vez mais cultura. E consome, pois, consegue
  • 62. 60 reconhecer o valor que existe na arte e cultura, mas não detém o conhecimento necessário para completar satisfatoriamente esse processo de apropriação cultural. Dessa forma, é induzida a “comprar” cultura, arte e conhecimento para consumi-los, mesmo que seja um tipo de manifestação mais próxima de sua realidade (figura 2). Figura 2
  • 63. 61 Fica evidente o caráter de oposição com que as classes sociais se determinam. Soma-se a isso um processo de transição dessa autodeterminação, no qual a classe média tenta se afastar da herança das classes subalternas e se aproximar da tradição cultural das classes dominantes. Contudo, para a camada mediana, a impossibilidade de completar sua apropriação cultural lhe obriga a se contentar com as formas mais industrializadas de arte e cultura. Essa mistura de gêneros, essa confusão de ordens, essa espécie de bricabrique onde se alinham os produtos legítimos ‗fáceis ou ultrapassados‘, fora da moda, desclassificados, portanto, desvalorizados - posto que um símbolo de distinção apropriado com atraso perde tudo que faz seu valor distintivo - e os produtos ‗médios‘ - do campo de produção em massa, é a imagem objetivada da cultura pequeno-burguesa (BOURDIEU, 1983, p. 112).
  • 64. 62 Já para Jean Baudrillard, o consumo: “É uma função social de prestígio e de distribuição hierárquica” (BAUDRILLARD, 1996, p. 10). Tal função tem como maior objetivo a distinção social. Segundo Baudrillard, essa diferenciação acontece porque o valor de troca de uma mercadoria, ou bem de consumo, supera sua real necessidade, ou seu valor de uso, graças à ideologia ligada a esse produto. É o que ele chama de “troca- signo”: existe um significado real para a existência desse objeto e para a sua troca. Para o autor, ainda, os objetos e sua existência, posse e consumo são signos da ascensão social que os consumidores buscam incessantemente. O objetivo de cada indivíduo é ser reconhecido como parte de determinada classe, ou ser aceito por um determinado grupo, ainda que todos busquem se diferenciar dentro desses mesmos contextos. Nota-se um paralelo com o momento histórico, em meados
  • 65. 63 do século XX, quando a indústria encontrou no toyotismo uma maneira mais eficaz de produzir. Na lógica do sistema capitalista, essa é a força que empurra o desenvolvimento econômico, sendo o consumo o centro do progresso. Contudo, há alguns detalhes que nos impedem de assegurar que o consumo, por si só, pode estabelecer a pretendida distinção social. Para Baudrillard, a ambicionada ascensão social por meio do consumo é, na verdade, um movimento cíclico que ilude o consumidor. O autor alerta que não é apenas o objeto consumido que determina a distinção: Podemos certamente num primeiro tempo, considerar os objetos em si próprios e a sua soma como índice de pertença social, mas é muito mais importante considerá-los, na sua escolha, organização e prática, como suporte de uma estrutura global do ambiente circundante, que é simultaneamente uma
  • 66. 64 estrutura ativa de comportamento (BAUDRILLARD, 1996, p. 17). É preciso adicionar à analise outras características, como a maneira que o produto é usado, como ele foi comprado, com qual finalidade e assim por diante. Por isso, é possível notar a ideia de que existe um choque de classes no que se refere ao consumo de bens. Mesmo que cidadãos de classes diferentes consumam o mesmo produto, eles ainda o farão de maneiras muito diversas. Dessa forma, existiriam dois grupos diferentes no campo do consumo: um grupo de pertença, que detém os objetos como se tivesse um direito adquirido sobre sua posse; e um grupo de referência, que busca a todo momento se aproximar do primeiro grupo. É nessa relação que está todo o jogo de construção da distinção e o embate entre as classes (figura 3).
  • 67. 65 Figura 3: O Bonde do Canguru fez sucesso na cena do funk ao afirmar que têm tudo o que querem: carros r motos de luxo, dinheiro e mulheres. Além dessa relação, há outro fator - ainda mais importante - que impede que o consumo seja fator de ascensão social: a brutal obsolescência dos produtos que é imposta pela indústria atualmente. Essa particularidade é central para que o consumidor esteja preso em um ciclo que não o tirará do lugar na escala social, pois, como aponta Bourdieu, a satisfação de um desejo leva à criação de outro desejo.
  • 68. 66 Mas o contínuo atendimento dessas vontades tem efeitos diferentes para cada classe social. Para as mais baixas, tais novas necessidades não passam de supérfluas, algo que extrapola a necessidade básica, sendo, portanto, um luxo. Já para as classes mais altas, elas são, de fato, necessidades. Assim, já é possível notar que a distinção não vem apenas da capacidade de cada cidadão em consumir, mas sim da capacidade individual em continuar consumindo. E, como aponta Baudrillard, quando uma classe inferior consegue atingir determinado nível de consumo, as classes mais altas - na intenção de se manterem diferentes - rapidamente trocarão seus objetos por outros mais novos, mais valiosos e mais notáveis. Lembrando de Hobbes, em ―O Leviatã‖: E ao homem é impossível viver quando seus desejos chegam ao fim, tal como quando seus sentidos e imaginação ficam paralisados. A felicidade é um contínuo progresso do desejo,
  • 69. 67 de um objeto para outro, não sendo a obtenção do primeiro outra coisa senão o caminho para conseguir o segundo.......Assinalo assim, em primeiro lugar, como tendência geral de todos os homens, um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte (HOBBES, 1651, p. 60). O Leviatã trata da natureza do homem e da sua relação com a sociedade e com o Estado. Nesse trecho, Hobbes postula que o que nos move, enquanto humanos vivendo fora de sua condição de natureza, é a satisfação de novos desejos, o que nos levaria à felicidade. Porém, segundo essa linha de raciocínio, se a vida é uma sucessão de satisfação e nascimento de desejos, pode-se afirmar que a permanência nessa lógica da cultura consumista também nos relega a uma condição de aflição e paralisia, pois o desejo íntimo e a busca pelo progresso e desenvolvimento dentro da estrutura de
  • 70. 68 classes não se completam exclusivamente por meio do consumo. O Paradigma do Desejo frase de Thomas Hobbes se adequa perfeitamente à definição que pretendemos fazer da “sociedade de consumidores”. A relação profunda que existe entre os homens, a satisfação dos seus desejos e a busca pela felicidade são, também, pilares nos quais sociedade e economia voltadas para o consumo se sustentam. No mundo dominado pelos consumidores, a satisfação dos desejos tem um papel de destaque, afinal, é esse um dos objetivos de qualquer relação de compra. Todavia, esse modelo representa uma quebra de paradigma em relação ao antigo modelo da “sociedade de produtores”. É uma aparente contradição: se antes a segurança era o valor máximo, tendo a A
  • 71. 69 estabilidade, a prudência e a durabilidade como os grandes atributos de tudo aquilo que era consumido, o modelo em que o consumo é ilimitadamente estimulado não pode partilhar de tais particularidades. As mesmas propriedades também eram transmitidas pelos pesados cofres de aço em que eram guardadas as joias entre as periódicas exibições públicas, da mesma forma que as minas, torres de petróleo, fábricas e ferrovias que permitiam o suprimento constante de rubis e diamantes e os protegiam do perigo de serem vendidos ou empenhados, e pelos palácios ornamentados, no interior dos quais os proprietários das jóias convidavam seus convivas a admirá-las de perto - e com inveja. Eles eram tão duradouros quando se desejava e esperava que fosse a posição social, herdada ou adquirida, que representavam (BAUMAN, 2007, p. 44).
  • 72. 70 Se consumismo e durabilidade não podiam coexistir, por razões lógicas e práticas, logo, um novo modelo precisava surgir e tomar conta dos valores da recente sociedade de consumidores. Rapidamente, as ideias de segurança e longo prazo foram banidas do imaginário coletivo. De certa forma, passaram até a causar certa repulsa e foram associadas a outras ideias de conotação negativa, como o tédio e a monotonia. Os valores dominantes na nova sociedade são o exato oposto: rapidez, agilidade e efemeridade. Assim como aponta Hobbes, ao falar da natureza humana, a essência dessa sociedade baseada no consumismo não está na satisfação dos desejos por meio das compras de bens quaisquer. A chave para sua compreensão reside no fato de que o que a sustenta - e, em última instância, o que a move - é o volume crescente de novos desejos que ela estimula.
  • 73. 71 Dificilmente poderia ser de outro jeito, já que o consumismo, em ajuda oposição às formas de vida precedentes, associa a felicidade não tanto à satisfação de necessidades (como suas ‗versões oficiais‘ tendem a deixar implícito), mas a um volume e uma intensidade de desejos sempre crescentes, o que por sua vez implica o uso imediato e a rápida substituição dos objetos destinados a satisfazê-la‖ (BAUMAN, 2007, p. 44). Podemos afirmar que, se temos essa quantidade excessiva de desejos que tem sido estimulada pela estrutura da cultura consumista, ficamos plenamente satisfeitos ao fazer uma compra? Essa pergunta também evidencia outra particularidade sobre a sociedade de consumidores. Na verdade, a série infinita de desejos que sustenta essa economia não pode dar-se ao luxo de ser satisfeita. Pelo menos não completamente. É isso que explica a existência dessa sucessão frenética de aspirações que notamos. Se nossos desejos fossem plenamente
  • 74. 72 satisfeitos, pela lógica, não teríamos novos desejos e, dessa forma, a economia voltada para o consumidor fracassaria. É a contradição planejada e necessária para a sobrevivência do sistema. Sistema esse que vende uma ilusão, pois a maior promessa da sociedade de consumidores é que ela é o único - ou o melhor - modelo de sociedade que pode de fato proporcionar as soluções para todas as aspirações individuais. Não obstante, a promessa se alimenta da mentira: é justamente a insatisfação crônica que mantém essa proposição sedutora. A sociedade de consumo prospera enquanto consegue tornar perpétua a não-satisfação de seus membros (e, assim, em seus próprios termos, a infelicidade deles). O método explícito de atingir tal efeito é depreciar e desvalorizar os produtos de consumo logo depois de terem sido promovidos no universo
  • 75. 73 dos desejos dos consumidores (BAUMAN, 2007, p.64). O papel das promessas aqui é de protagonismo. Todas essas mensagens que circulam pela sociedade, por definição, devem ser exageradas ou falaciosas, a fim de garantir a futura frustração e/ou um consequente novo desejo (figura 4). Seria de se esperar que, aos poucos, esses discursos perdessem relevância ou credibilidade, porém sua profusão e seus exageros são de tal ordem que podem manter viva a crença no consumo como solução, alívio e causador da felicidade. Figura 4: A Chevrolet prometeu algo que, provavelmente, o Monza não pode cumprir
  • 76. 74 Tempo versus felicidade uito além do enorme poder de satisfação dos desejos dos consumidores, que pretensamente afirma possuir, a sociedade de consumo promete para seus participantes, a todo momento, uma ideia ainda mais utópica e, possivelmente, inalcançável: a felicidade em seu valor máximo. A ideia de segurança em longo prazo, que foi substituída pela satisfação hedonista dos nossos desejos, também promulgou uma alteração em nossa relação com o tempo. Se antes as pessoas viviam com o pensamento na preservação, conservação e planejamento para se precaver das peripécias do destino, vivendo com os pensamentos no amanhã, atualmente, os desejos enfileirados e satisfeitos como uma produção em série tendem a nos forçar a viver e buscar contentamento no tempo presente, relegando o amanhã a um papel de segundo plano. M
  • 77. 75 É a ideia de que o tempo deixou de ser linear e passou a ser “pontilhista”: uma série de intervalos sem conexões entre si, em que o mais relevante é o instante, o momento. A ideia de progresso e de continuidade já não existe mais e deu lugar a um modelo no qual cada ponto, ou momento, é uma oportunidade única e indispensável de felicidade. Esse novo modelo vem bem a calhar para a sociedade de consumidores: num contexto em que os desejos são recicláveis, o tempo e os momentos que os compõem também devem ser. A instabilidade dos desejos e a insaciabilidade das necessidades, assim como a resultante tendência ao consumo instantâneo e à remoção, também instantânea, de seus objetos, harmonizam-se bem com a nova liquidez do ambiente em que as atividades existenciais foram inscritas e tendem a ser conduzidas no futuro previsível (BAUMAN, 2007, p. 45).
  • 78. 76 Cada divisão do ―tempo pontilhista‖ é uma oportunidade inegociável para ser feliz. Mas se essa oportunidade não se concretiza no valor máximo dessa sociedade, ela deve ser logo deixada para trás e trocada por uma nova. Parar no tempo, nesse sentido, é o erro mais grave que se pode cometer, pois: “A sociedade de consumidores talvez seja a única na história humana a prometer felicidade da na vida terrena, aqui e agora e a cada „agora‟ sucessivo. Em suma, uma felicidade instantânea e perpétua” (BAUMAN, 2007, p. 60). Com tantas ofertas ao dispor de todos e com tantas chances sucessivas de ser feliz, e sendo o consumo a ferramenta mais adequada para tal, o ideal de felicidade deve ser até mais do que um anseio ou um valor. Em última instância, a felicidade também é uma métrica de avaliação do sucesso individual na sociedade de consumidores. Se o sucesso em viver o estilo consumista é um fator de estratificação, por consequência, ser feliz também deve ser um método
  • 79. 77 importante para determinar o lugar de cada indivíduo nessa cultura. Na verdade, essa é uma relação que pode ser direta: não só porque a felicidade é o “valor máximo” dessa sociedade, mas também porque é possível observar uma grande quantidade de marcas vendendo a felicidade por meio de seus anúncios. Essa quantidade descomunal de felicidade que nos rodeia o tempo todo tem, porém, seu lado perverso. O que vemos, na verdade, pode ser entendido como obrigatoriedade; e não como oportunidade. E viver consumindo para cumprir essa obrigação da cultura consumista pode, contraditoriamente, não nos beneficiar com os sorrisos do contentamento: (...) o consumo não é um sinônimo de felicidade nem uma atividade que sempre provoque sua chegada. O consumo, (...), não é uma máquina patenteada para produzir uma quantidade crescente de felicidade. O contrário parece ser válido: como os relatórios
  • 80. 78 coligidos com muito cuidados pelos pesquisadores deixam implícito, entrar numa ‗esteira hedonista‘ não faz aumentar a soma total de satisfação de seus praticantes. A capacidade do consumo para aumentar a felicidade é bastante limitada; não pode ser estendida com facilidade para além do nível de satisfação das ‗necessidades básicas de existência‘ (...). E com muita frequência o consumo se mostra desafortunado como ‗fator de felicidade‘ quando se trata das ‗necessidades do ser‘ ou da ‗auto-realização‘ de Maslow (BAUMAN, 2007, p. 62). Olhando para a questão sob a perspectiva coletiva, as economias estruturadas para o consumo, que são as mais desenvolvidas, também tendem a não apresentar níveis de satisfação pessoal proporcionais ao seu aumento de renda - e, presume-se, de consumo. Ao contrário: esses cidadãos tendem a sofrer cada vez mais com depressões, estresse, longas jornadas de trabalho e relacionamentos deteriorados.
  • 81. 79 É essa economia consumista que promove deslealdade, derruba a autoconfiança, aumenta a insegurança e causa os mais variados medos que, concomitantemente, ela pretende aliviar. O grande fascínio da cultura consumista é, justamente, a oportunidade de começar de novo. Mas se as múltiplas chances de renascer e se reinventar são, na verdade, a única alternativa que essa sociedade nos oferece - já que a opção por planos e pensamentos de longo prazo deixou de ser viável, o que resta aos cidadãos-consumidores é a “contínua reconstrução da auto-identidade, com a ajuda dos kits identitários fornecidos pelo mercado” (BAUMAN, 2007. p. 66).
  • 82. 80
  • 83. 81 Parte III Tipos de identidade e o fetiche em que acreditamos ao consumir
  • 84. 82
  • 85. 83 Identidades tardias questão da identidade é explorada pelas ciências sociais há muito tempo. Diversas concepções do que compõe essa ideia, do que é subjetividade e como elas são construídas, em diferentes épocas da história humana, têm sido discutidas. É um assunto complexo, abstrato e, mais importante: composto por um vasto leque de particularidades, o que faz dessa uma discussão multifacetada. Por isso, alguns cuidados são imprescindíveis. Há diversas formas de construir, determinar e, até mesmo, perceber uma identidade pessoal, afinal, como diz Bauman, “Perguntar „quem é você‟ só faz sentido se você acredita que pode ser outra coisa além de você mesmo” (BAUMAN, 2007, p. 25). Religião, nacionalidade, etnia, gênero e uma série extensa de características contribuem para a formação do eu (figura 5). Porém, neste capítulo, discutiremos como o consumo - e toda estrutura social que o cerca - influencia a formação de nossas identidades, além das implicações desse processo. A
  • 86. 84 Figura 5: A crise dos refugiados sírios que chegam à Europa: os imigrantes que têm suas nacionalidades e seus direitos questionados e, em breve, também serão forçados a se questionar sobre suas identidades. A questão central dessa discussão se baseia no fato de que os tempos modernos - a depender do autor: pós-modernidade, modernidade tardia, modernidade líquida etc. - estão forçando uma intensa transformação do conceito que, desde o Iluminismo, tínhamos cristalizado como a definição da ideia de identidade. Imputava-se a ela a incumbência de “definir o próprio núcleo ou essência de nosso ser e fundamentar nossa existência como sujeitos humanos” (HALL, 1992, p. 10)
  • 87. 85 Atualmente, discute-se sobre o eventual processo de “descentramento”, ou deslocamento, das identidades modernas. Esse processo teria sido deflagrado no momento em que as sociedades modernas entraram em contraponto fundamental com as sociedades tradicionais. É a mesma relação de oposição existente entre a sociedade de produtores e a sociedade de consumidores. Um modelo voltado para segurança, perenidade e com o longo prazo sempre em vista; outro, pensado para o tempo presente, efêmero, em que tudo se transforma com uma velocidade nunca antes vista. Para as sociedades tradicionais, os costumes e os hábitos eram meios de lidar com o espaço e com o tempo. Justamente por essa razão, eram sociedades em que o passado exercia forte influência, e as mesmas práticas sociais se repetiam de forma recorrente. Já as sociedades modernas caracterizaram-se pelas mudanças rápidas e constantes, além da análise e da reavaliação, a todo o momento, dessas práticas sociais. Complementa-se a
  • 88. 86 isso o fato de que as sociedades da modernidade tardia são estruturadas nas diferenças entre seus sujeitos e construídas sobre os antagonismos e distinções sociais que tomam conta de toda a sua estrutura. Isso produz diferentes “posições de sujeito”, ou identidades (HALL, 1992, p. 17), que se relacionam e se articulam, mas que mantêm seus alicerces abertos e parcialmente indefinidos. “Esse processo produz o sujeito pós- moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente” (HALL, 1992, p. 18). Transição e fragmentação das identidades maneira como a identidade e a subjetividade das pessoas é analisadaA
  • 89. 87 mudou durante os séculos. Tais mudanças, como dito acima, se deram pelas adaptações e evoluções nos modos de vida, pelos avanços tecnológicos e científicos e pelas transformações na economia e nas relações comerciais das sociedades. Para Hall, são três os tipos de sujeitos que podem ser observados com mais clareza, ao longo desse processo histórico: o sujeito do iluminismo, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno, por ordem de aparição a partir das modificações citadas. Em consonância com as mudanças que o Iluminismo propôs, o “sujeito iluminista” apresentava a ideia de se tratar de um ser autocentrado e indivisível. Extremamente racional, seria dono de uma natureza interna carregada consigo desde o nascimento e que não se alteraria mesmo durante o desenvolvimento da vida. Esse núcleo imutável de cada ser humano é o que se chamava se “identidade”.
  • 90. 88 As transformações associadas à modernidade libertaram o indivíduo de seus apoios estáveis nas tradições e nas estruturas. Antes se acreditava que essas eram divinamente estabelecidas; não estavam sujeitas, portanto, a mudanças fundamentais. O status, a classificação e a posição de uma pessoa na "grande cadeia do ser" — a ordem secular e divina das coisas — predominavam sobre qualquer sentimento de que a pessoa fosse um indivíduo soberano (HALL, 1992, p. 18). Tão logo a sociedade ganhou contornos “modernos”, essa concepção de sujeito se alterou. A ideia que passou a prevalecer salientava que a identidade era influenciada pela mediação entre o sujeito e o meio em que ele estava inserido. Assim, a concepção de uma individualidade imutável, inerente ao âmago de cada ser humano perdeu influência. Nas sociedades modernas, o indivíduo já não era mais entendido como um ser autônomo e alheio às
  • 91. 89 condições externas; suas características naturais não eram suficientes (figura 6). Figura 6: René Descartes, pai da filosofia moderna, do pensamento cartesiano e formulador da frase: Os sujeitos, na verdade, determinavam suas identidades na relação com as pessoas de seus círculos. Elas eram responsáveis pela mediação entre o ambiente, os valores, as tradições, a cultura e aquele sujeito. Essa concepção, contudo, não excluiu a ideia de uma “natureza” internalizada em cada pessoa: ela só estaria submetida às influências e à mediação que a interação com a sociedade pressupõe. As outras diferentes identidades e valores disponíveis no corpo social terminavam de constituir a subjetividade de
  • 92. 90 cada indivíduo. Essa interação entre sujeitos e sociedade - sujeitos projetando a si mesmos na sociedade e internalizando valores e significados provenientes dela - alinhou os sentimentos individuais ao lugar que cada um ocupava nessa estrutura. Dessa forma, as identidades e valores coletivos tornaram-se intimamente ligados, unificados e influenciáveis mutuamente. Ainda era possível, no século XVIII, imaginar os grandes processos da vida moderna como estando centrados no indivíduo ‗sujeito-da-razão‘. Mas à medida em que as sociedades modernas se tornavam mais complexas, elas adquiriam uma forma mais coletiva e social. As teorias clássicas liberais de governo, baseadas nos direitos e consentimento individuais, foram obrigadas a dar conta das estruturas do estado- nação e das grandes massas que fazem uma democracia moderna. As leis clássicas da economia política, da propriedade, do
  • 93. 91 contrato e da troca tinham de atuar, depois da industrialização, entre as grandes formações de classe do capitalismo moderno. O empreendedor individual da Riqueza das Nações de Adam Smith ou mesmo d'O capital de Marx foi transformado nos conglomerados empresariais da economia moderna. O cidadão individual tornou- se enredado nas maquinarias burocráticas e administrativas do estado moderno (HALL, 1992, p. 20). No contexto da modernidade tardia, argumenta-se, foram justamente as mudanças dessas estruturas sociais que, ao se relacionarem com os indivíduos, promoveram o “surgimento” do “sujeito pós-moderno”. Ao mesmo tempo, aconteceram mudanças nas estruturas sociais, que se refletiram nas identidades “disponíveis” na sociedade, e mudanças nas identidades individuais. Além disso, o próprio processo de identificação dos indivíduos na cultura já
  • 94. 92 não se dava da mesma forma, tornando-se mais transitório. Essa concepção de sujeito pós-moderno surgiu a partir da metade do século XX. Para Hall, o “descentramento” das identidades, que resulta nessa nova concepção, teria diversos motivos. A reinterpretação da teoria marxista identificou que o homem - tido como o autor independente de sua própria história - era, na verdade, subordinado ao contexto que lhe fora deixado por seus antepassados e não tinha o poder soberano sobre seu destino. Os estudos na área da psicanálise de Freud deram origem à noção de que a identidade humana se dá, também, em um ambiente inconsciente e subjetivo. Isso acarretou circunstâncias de contradição, construção e interpretação pessoal permanentes. O sistema linguístico, na visão de Saussure, também teria papel relevante nesse processo: a linguagem, para ele, era um sistema social, externo ao controle humano. Ao homem, caberia apenas a sua manipulação; e não o controle completo sobre todos os seus significados,
  • 95. 93 interpretações e contradições. A questão do “poder disciplinar”, de Michel Foucault, adiciona a ideia das instituições que exercem um papel de controle social e disciplinam os homens: oficinas, quarteis, escolas, prisões e hospitais. Por fim, movimentos sociais, como o feminismo, que colocam em debate questões de gênero, classe, papeis e obrigações sociais, além dos limites entre o público e o privado. Essas transformações sociais e reinterpretações da questão da identidade dão a origem a um novo modelo do que é o sujeito humano: desprovido de um cerne fechado, fixo e unificado. As identidades no mundo pós-moderno, dominado pela globalização e pelo consumo de massas, são múltiplas, contraditórias e encontram-se em constante definição.
  • 96. 94 Liberdade e fetiche s ideias de Bauman sobre as identidades no mundo atual estão plenamente de acordo com as ideias apresentadas por Hall. Para Bauman: “A fragilidade e a condição eternamente provisória da identidade não podem mais ser escondidas” (BAUMAN, 2005, p.22). Porém, quando analisamos a questão identitária não só sob a luz da sociologia clássica, assim como Hall, mas também sob o conceito da sociedade de consumidores, notamos outros aspectos determinantes para sua formação no mundo líquido- moderno. Hoje, o consumo tem papel fundamental na definição de muitas das características e valores que acreditamos dispor. Para além do fato de que a sociedade de consumo pressupõe a fugacidade de diversos aspectos da vida, o consumo - que também apresenta seu caráter de alta frequência e ciclicidade - tomou para si a responsabilidade de complementar nossas identidades, por meio dos objetos disponíveis em A
  • 97. 95 abundância no mercado. Cada compra realizada, cada produto usado, cada ingresso adquirido nos oferece a chance exclusiva de construir uma narrativa particular sobre nós mesmos. Esse processo de formação das identidades no mundo pós-moderno, especialmente no mundo dominado pelas regras do consumo de massas, se dá pelas noções de autoafirmação e de pertencimento dos indivíduos na sociedade. Os sujeitos buscam escolher os componentes de suas identidades e, posteriormente, procuram reconhecimento de determinado grupo. É o que Bauman nos afirma: Ainda que o que a pessoa esteja lutando para exibir e tornar reconhecido esteja destinado pelo ator a preceder, antecipar e predeterminar a escolha da identidade individual (atribuições étnicas, raciais, religiosas ou de gênero reivindicam pertencer
  • 98. 96 a essa categoria do eu), é o impulso de seleção e o esforço de tornar a escolha publicamente reconhecível que constituem a autodefinição do indivíduo líquido-moderno (BAUMAN, 2007, p. 141). Como se vê, a estrutura do sujeito pós- moderno, definido por Hall, permanece indefinida na fase líquida da modernidade. Essa abertura de nossas definições pessoais está sujeita à influência da cultura consumista, que oferece aos sujeitos, via mercado, infinitas oportunidades de escolha para que a subjetividade de cada um seja confortavelmente complementada. Porém, seguindo a lógica da cultura consumista, tais subjetividades são planejadamente efêmeras, a fim de serem brevemente trocadas por novas o mais rápido possível. Construir planos longevos ou cultivar identidades fixas e bem definidas ao longo de toda a vida são reflexões das quais fugimos constantemente.
  • 99. 97 As duas ideias se opõem à noção de liberdade de escolhas que nós, cidadãos-consumidores, tanto valorizamos. Costumamos achar que a grande variedade de opções que vemos à nossa volta é o maior indício da liberdade do qual gozamos. O livre arbítrio em relação ao que consumir é um valor inestimável e irrevogável dentro da sociedade de consumidores. “A identidade coesa, firmemente fixada e solidamente construída seria um fardo, uma repressão, uma limitação da liberdade de escolha. Seria um presságio da incapacidade de destravar a porta quando a nova oportunidade estiver batendo” (BAUMAN, 2005, p. 60). Contudo, não nos damos conta de que todas as opções que nos são oferecidas já estão previamente planejadas e chegam aos pontos de venda já concluídas, disponíveis apenas para serem consumidas. Nossa ideia de liberdade não inclui o poder de decisão sobre a produção de tantos materiais. Não escolhemos suas características, quantidades, tempo de vida útil e assim por diante.
  • 100. 98 Também não temos a possibilidade de optar por não consumir. Vivemos sob o constante risco de sermos expulsos da sociedade se não cumprirmos, reiteradamente, os ritos do consumo (figura 7). Figura 7 Logo, se o estilo de consumo que praticamos é determinante na formação nossas identidades individuais, mas, ao mesmo tempo, somos obrigados a consumir mais e mais a todo o momento, numa frequência cada vez mais alta, é possível inferir que a construção de nossas identidades por meio do consumo não se dá de forma livre. Porém, enquanto indivíduos e cidadãos, acreditamos em uma ilusão de liberdade: tais identidades, tão frágeis e efêmeras, é
  • 101. 99 que nos dariam a possibilidade de sermos livres. Porém: Uma escolha que essa liberdade não iria reconhecer, garantir ou permitir é a decisão (ou mesmo a capacidade) de continuar se apegando à identidade já construída, ou seja, ao tipo de atividade que também pressupõe, e necessariamente exige, a preservação e proteção da rede social na qual a identidade se baseia ao mesmo tempo em que a reproduz ativamente (BAUMAN, 2007, p. 136). O postulado de Bauman nos deixa claro que, na sociedade de consumidores, as identidades são frágeis e se alteram a todo momento. Isso acontece porque seus integrantes são interpelados pelas regras da cultura consumista e, dessa forma, incentivados a substituírem suas recém adquiridas identidades por novos produtos. A todo o momento. Bauman relata um caso curioso para ilustrar esse fenômeno:
  • 102. 100 Após a introdução das ‗multas em decorrência do congestionamento‘ para quem dirigir carros no centro de Londres, ser ‗piloto de motoneta‘ se tornou imediatamente algo obrigatório para os londrinos preocupados com a moda (mas não, obviamente, por muito tempo…). Não foi só a motoneta que se tornou ‗um must‘, mas também os trajes especialmente desenhados, indispensáveis para qualquer um que deseje apresentar em público sua nova ‗identidade de piloto de motoneta‘ - como uma jaqueta de couro da Dolce & Gabana, um tênis vermelho da Adidas, um capacete prateado da Gucci ou óculos de sol ao estilo atlético com lentes amarelas da Jill Sander… (BAUMAN, 2005, p. 91). Os motoristas londrinos rapidamente substituíram suas identidades, motivados por uma interferência externa. Seja por causa da restrição
  • 103. 101 imposta pela lei, ou por causa da influência de alguma possível propaganda que incentivou o uso das motonetas como alternativa, o fato é que os ex- motoristas recorreram ao consumo de produtos industrializados para construir, reforçar, e promover a autoafirmação e o pertencimento de suas novas identidades. Além das motonetas, que possivelmente tinham uma razão prática para serem consumidas, a construção e a afirmação de suas subjetividades exigiram a aquisição de um “kit identitário”, recheado de itens de marcas famosas que, em conjunto, transmitiram socialmente os significados necessários para que seus donos fossem entendidos como os pilotos mais modernos de motonetas do centro de Londres. É certo que, de forma muito breve, esses itens estavam ultrapassados, assim como, com efeito, as identidades que, em conjunto, eles compunham. Dessa forma, as lojas logo estariam repletas de novos itens que garantiriam aos consumidores requalificar a identidade já antiquada. Quem sabe o antigo
  • 104. 102 motorista - e, rapidamente, já antigo piloto de motoneta - não se tornou um ciclista? Para isso, seria necessário um kit com capacete, luvas, roupas esportivas, óculos, tênis adequados e, claro, uma bicicleta. Talvez, em outra possibilidade, esse transeunte do centro de Londres tenha decidido usar o transporte público como alternativa de deslocamento. Para isso, ele precisou abandonar os itens que já havia comprado e os substituiu por roupas formais, um sapato mais confortável, fones de ouvido, gorros, cachecóis, uma edição do jornal diário e um café do Starbucks. A maior atração de uma vida de compras é a oferta abundante de novos começos e ressurreições (chances de ‗renascer‘). Embora essa oferta possa ser ocasionalmente percebida como fraudulenta e, em última, instância, frustrante, a estratégia da atenção contínua à construção e reconstrução da auto-identidade, com a ajuda dos kits identitários fornecidos pelo mercado, continuará sendo a única
  • 105. 103 estratégia plausível ou ‗razoável‘ que se pode seguir um ambiente caleidoscopicamente instável no qual ‗projetos para toda a vida‘ e planos de longo prazo não são propostas realistas, além de serem vistos como insensatos e desaconselháveis (BAUMAN, 2007, p. 66). A “oferta fraudulenta” a que Bauman se refere no trecho acima está relacionada com a condição em que se dá a produção e o consumo dos bens na sociedade de consumidores. Na sociedade de produtores, a natureza do trabalho era escondida por uma relação mercantilizada e pela venda de sua capacidade. Já na sociedade de consumidores, a subjetividade humana é camuflada por essa relação entre consumidores e mercadorias, fazendo com que sua verdadeira natureza se anuvie por trás de um fetiche. Se, antes, o fetichismo da mercadoria, para Marx, omitia a interação humana que estava por trás
  • 106. 104 da venda da força de trabalho, o que se vê atualmente é que o fetichismo da subjetividade, para Bauman, esconde a natureza inegavelmente humana que reside no conceito de subjetividade. Porém, as relações de consumo dessa sociedade ocultam esse caráter, como se tentassem transferir o poder de construção das subjetividades para os objetos trocados nas relações de compra. A ideia de fetiche pressupõe um aspecto de fingimento, de disfarce, de devaneio. Já o conceito de subjetividade define essa concepção como aquele conjunto de aspectos, características ou condições que transformam indivíduos em sujeitos. Dessa forma, é cruel concluir que as relações de compra e consumo, que nos são impostas a todo momento, determinam a criação de uma ilusão em relação àquilo que achamos que somos e pretendemos ser (figura 8).
  • 107. 105 Figura 8 Toda vez que usamos o cartão de crédito para realizar uma compra de um bem de consumo, estamos contratando uma mentira sobre nós mesmos. Aquele objeto que carrega a promessa de nos tornar pessoas melhores, mais bonitas, mais adequadas, mais modernas tem um poder restrito e temporário de cumprimento da sua incumbência. Em um primeiro momento, é possível que o objetivo da compra seja, de fato, alcançado. Podemos realmente nos sentirmos melhores, mais belos ou nos adequarmos socialmente a uma situação por conta dos objetos que compramos e ostentamos. No entanto, é impossível afirmar que eles estabelecerão uma relação com o que há de mais íntimo e subjetivo em nós. Esses itens, na melhor das hipóteses, se relacionarão de forma eficiente com nossas
  • 108. 106 aparências ideais. No jogo social de signos e significados, isso pode ser suficiente. Porém, é pouco se quisermos atribuir a eles a responsabilidade de completar nossa existência de forma mais profunda. A frase de Hall elucida bem o que se entende pelo fetiche das mercadorias. Identidades formadas por meio do consumo, mesmo que tenhamos a consciência de sua transitoriedade, não passam de uma ilusão. “Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora „narrativa do eu‟” (HALL, 1992, p. 80).
  • 109. 107 Considerações finais esse relato sobre a vida baseada no consumo que levamos, pudemos percorrer algumas das características mais básicas da sociedade de consumidores, bem como alguns aspectos sobre a maneira como acreditamos definir nossas identidades. É nítida a influência que as decisões econômicas têm na vida das pessoas. Mais nítido ainda é o fato de que tais decisões pouco consideram - ou percebem – sua capacidade de influência. Por um lado, o desenvolvimento econômico se coloca como o grande viabilizador do desenvolvimento humano. Assume o papel de responsável por fazer, metaforicamente, o planeta girar e se mover, além de promover o desenvolvimento tecnológico que tanto impacta a qualidade e a maneira como vivemos nossas vidas, nossas relações, valores e visões de mundo. Contudo, pelo outro lado, tal desenvolvimento também é responsável pela radical N
  • 110. 108 quebra de paradigmas sociais no mundo pós- moderno. Gozamos dos benefícios econômicos, mas pagamos um preço alto para sustentar esse modelo. Grandes resultados da organização econômica do século XX, o advento da sociedade de consumidores e a disseminação da cultura consumista, provocaram consequências dramáticas para a vida em comunidade: a cultura do lixo, do grande descarte de materiais, o consumo não sustentável dos recursos naturais - que Bauman também define de forma clara, entre outros. A mudança de modelo econômico transformou nossa relação com o trabalho, com nossos grupos e com os objetos que nos cercam. Para se fazer uma análise do consumo é importante notar que os frutos de nossa produção deixaram de ser símbolo de segurança e estabilidade para serem sinônimos de distinção, notoriedade, respeito, bom gosto e, por último, responsáveis por construir nossas subjetividades. A presença de bens de
  • 111. 109 consumo no nosso cotidiano só aumenta, à medida que a propaganda e o crédito continuam estimulando a alta demanda, enquanto as indústrias restringem sua produção a bens com prazo de validade extremamente breve. Essa relação material, como era de se imaginar, não poderia resultar em algo saudável. Pelo contrário: o exagero extremo sob o qual nos submetemos à vida de consumo tende a, na maioria dos casos, nos trazer consequências graves, especialmente do ponto de vista pessoal. Ao aceitarmos a lógica do consumo - que, na verdade, nos é imposta como regra - como condutora do resto de nossas vidas, trazemos para esses setores, também, toda a lógica das relações consumistas. Tornamo-nos seres extremamente individualistas, mercantilizamos nossas relações, permitimos que tudo se torne efêmero e passageiro, assemelhamo- nos mais a mercadorias ambulantes do que a sujeitos, desejamos e precisamos ser consumidos por terceiros, afastamos de nós a política e as soluções coletivas, nos sentimos agoniados e ansiosos, libertos
  • 112. 110 e aprisionados ao mesmo tempo, detentores do poder de escolha, mas oprimidos pela obrigação de escolher. E sempre inseguros sobre qual decisão tomar. O consumo é, por si só, uma atividade solitária. Não prevê a construção de ligações duradouras, sejam elas de qualquer natureza. Da mesma forma, os poucos vínculos interpessoais que nos sobram estão empobrecidos: se dão à luz e semelhança de relações de compra e venda. Sendo assim, o descarte e a substituição desses vínculos são quase certos. Acreditamos no fetiche de que as mercadorias que consumimos têm o poder de transferir suas características - ou promessas - diretamente para as nossas individualidades. Cremos, cegamente, na propaganda que humaniza tais produtos. E, uma vez que depositamos tanta credibilidade nisso, passamos a acreditar que temos o direito - quase divino - de receber produtos sob encomenda, de acordo com nossas - fajutas e efêmeras - personalidades. Cresce o nosso
  • 113. 111 individualismo. Somos seres mimados, acostumados a receber o afago do mercado. Alternativas de consumo que não se adequem sob medida às nossas demandas nem serão consideradas. Logo, tudo o que é público, coletivo e que, por natureza, tem um caráter genérico e pouco individual, não será capaz de nos satisfazer. Porém, não somos capazes de enxergar que não há individualidades representadas no consumo de bens: ainda são produtos feitos em massa, genericamente idealizados para suprir qualquer tipo de identidade que se pretende imaginar. Por fim, é o hedonismo, com o qual também nos habituamos, que mais nos frustra. Nossas identidades estão postas em xeque a todo momento, necessitando serem repostas e substituídas, para que possamos cumprir nosso primeiro e mais básico desejo: sermos felizes. É um ciclo vicioso do qual não se vê saída. Consumimos, inventamos uma nova identidade, somos consumidos, consumimos mais, inventamos outra identidade, somos consumidos e, assim, sucessiva e indefinidamente.
  • 114. 112 Essa é chave para entender o grito de descontentamento dos “Rolling Stones”, ainda nos anos 1960. Grito esse que não foi o único, muito menos o último. Geração após geração, vemos exemplos de jovens contestando essa lógica e o caso do funk não é diferente. Ainda que não se possa explicar o seu declínio unicamente pela negação da vida consumista - pelo contrário, aqueles jovens ainda desejam consumir cada vez mais, a diminuição dos níveis de consumo produzida pela crise provoca reflexão. A questão que resta é: quanto mais precisaremos consumir para nos darmos conta de que nossas vidas podem ser menos vazias de sentido?
  • 115. 113 Referências bibliográficas LIMONCIC, Flávio. "Os inventores do New Deal" - Estado e sindicatos no combate à Grande Depressão. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2009. ALLEN, Frederick Lewis. Only Yesterday: An Informal History of the 1920s. New York: Harper and Row. 1931. HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo, Edições Loyola, 1992. BOURDIEU, Pierre. Gostos de classe e estilos de vida. Em: ORTIZ, Renato (org). Pierre Bourdieu: Sociologia. São Paulo, Ática, 1983. HOBBES, Thomas. Leviatã, ou Matéria - Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. São Paulo, Abril Cultural, 1979.
  • 116. 114 BAUMAN, Zigmunt. Identidade. Rio de Janeiro, Zahar, 2005. BAUMAN, Zigmunt. A vida para consumo. A transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro, Zahar, 2007. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós- modernidade. Rio de janeiro, DP&A; 2005. LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal. Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo, Companhia das Letras, 2007. DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron. O Mundo dos Bens: para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro, UFRJ, 2004. STREECK, Wolfgang. O cidadão como consumidor. Considerações sobre a invasão da política pelo mercado. São Paulo, Revista Piauí, edição 79, Abril, 2013.
  • 117. 115 MARTINHO, Luís Mauro Sá. Comunicação & Identidade: quem você pensa que é? São Paulo, Paulus, 2010. The Rise of Lowsumerism: https://www.youtube.com/watch?v=jk5gLBIhJtA (acessado em 14 de novembro de 2015). http://www.cefetsp.br/edu/eso/globalizacao/toyoti smodireito.html (acessado em 14 de novembro de 2015). http://time.com/3879426/the-american-way- photos-from-the-great-ohio-river-flood-of-1937/ (acessado em 14 de novembro de 2015). http://www1.folha.uol.com.br/mundo/ 2015/09/1679805-paises-da-europa-se- dividem-sobre-acolhida-a- refugiados.shtml (acessado em 14 de novembro de 2015).
  • 118. 116 http://brasil.elpais.com/brasil/2015/08/04/cultura/ 1438683623_512184.html (acessado em 14 de novembro de 2015). http://g1.globo.com/economia/pme/noticia/2015/ 09/funk-ostentacao-mira-mercado-de-11-milhoes-de- consumidores.html (acessado em 14 de novembro de 2015). http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/06 /150608_vert_cul_satisfaction_stones_ml (acessado em 14 de novembro de 2015). http://farofafa.cartacapital.com.br/2014/01/28/refl exoes-contraditorias-sobre-funk-ostentacao/ (acessado em 14 de novembro de 2015). https://academiae.files.wordpress.com/2012/02/42 5720_10150505388560841_216169690840_8939566_ 1754732686_n.jpg?w=538
  • 119. 117 (acessado em 14 de novembro de 2015). https://pt.wikipedia.org/wiki/Revolu%C3%A7%C3 %A3o_Industrial (acessado em 14 de novembro de 2015). https://pt.wikipedia.org/wiki/New_Deal (acessado em 14 de novembro de 2015).