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“Cavalos Selvagens”
Lygia Fagundes Telles
O homem de grandes negócios fecha a pasta de zíper e toma o avião de
tarde. O homem de negócios miúdos enche o bolso de miudezas e toma o
ônibus da madrugada. A mulher elegante faz Cooper e sauna na quinta-
feira. A mulher não elegante faz feira no sábado. A freira faz orações
diariamente em horas certas. A prostituta faz o trottoir todos os dias em
certas horas. O patriarca joga bridge e faz amor segundo o calendário. O
operário joga bilhar e faz amor nos feriados.
Homens, mulheres e crianças – todos com seus dias
previstos e organizados: amanhã tem missa de sétimo
dia, depois de amanhã tem casamento. Batizado na
terça e, na quarta, macarronada, que a feijoada fica
para sábado, comemoração prévia do futebol de
domingo, vitória certa, ora se!...
As obedientes engrenagens das máquina funcionando com suas
rodinhas ensinadas, umas de ouro, outras de aço, estas mais
simples, mais complexas aquelas lá adiante, azeitadas para o
movimento que é uma fatalidade, taque-taque taque-taque...
Apáticos e não apáticos, convulsos e apaziguados, atentos e
delirantes em pleno funcionamento num ritmo implacável.
Às vezes, por
motivos obscuros
ou claros, uma
rodinha da
engrenagem salta
fora e fica
desvairada além
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espaço – onde?
A máquina
prossegue no seu
funcionamento
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condenação,
apenas aquela
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“É um desajustado” – diz o
médico, o amigo íntimo, o primo,
a mulher, a amante, o chefe.
Há que readaptá-lo depressa à
engrenagem familiar e social, apertar
esses parafusos docemente frouxos.
Se o desajustado
é um adolescente,
mais fácil reconduzi-lo
com a ajuda de
psicólogos, analistas, padres,
orientadores, educadores – mas
por que ele ainda não está nos eixos?
Por que tem que haver certas peças resistindo assim
inconformadas? Não interessa curá-lo, mas neutralizá-lo,
taque-taque taque-taque.
Mas às
vezes o
olhar tem
aquela
expressão
que ninguém
alcança
e volta o fervor antigo, cólera e gozo nos descompromissamentos
e rupturas – aguda a lembrança violenta do cheiro de mato que
recusa o asfalto, o elevador, a disciplina, ah! vontade de fugir
sem olhar para trás, desatino e alegria de
um cavalo selvagem, os fogosos
cavalos de crina e narinas
frementes, escapando do
laço do caçador.
Na história de
Arthur Miller, eram
os pobres cavalos
selvagens
destinados a uma
fábrica que os
transformaria num
precioso produto
enlatado. O
instinto, só o
instinto os
advertia das
armadilhas nas
madrugadas. E
fugiam galopando
por montes, rios,
vales – até
quando?
Inexperiência
ou cansaço?
Cavalos e
homens
acabam por
voltar à
engrenagem.
Muitos esquecem mas alguns ainda se lembram e o olhar toma
aquela expressão que ninguém entende, ânsia de liberdade.
De paixão
Em fragmentos de tempo voltam a
ser inabordáveis mas a máquina
vigilante descobre os rebeldes e
aciona o alarme, mais poderoso o
apelo, taque-taque TAQUE-TAQUE!
Inútil. Ei-los de novo desembestados:
“Laçá-los é o mesmo que laçar um sonho”.
LYGIA FAGUNDES TELLES, a dama das letras, é entrevistada
Quem é Lygia? Eu sou essencialmente duas: a social e a solitária. E vejo que a social está se
aposentando. A social é a que divulga seu trabalho, e a solitária é a que fica em casa,
lendo, escrevendo, apreciando o dia. Agora, vejo que a social está desaparecendo
cada vez mais. Estou mais recolhida, com uma certa vontade de me concentrar,
ficar reclusa, mas não amarga. E onde busca inspiração? A inspiração é
um mistério. Nunca sabemos quando vem, quando acaba e por que acabou.
São falsas mortes. Ela vai e volta com uma força extraordinária. É
muito imprevista. Digamos que seja uma libertação do inconsciente, de
onde saem os anjos e demônios juntos. É uma forma de você se destrancar.
Através da arte, você consegue não enlouquecer. Se você canaliza suas emoções e
a razão na palavra escrita, na tentativa de alcançar o próximo, você estende a este próximo
essas palavras e formamos uma ponte. E talvez através da palavra eu tenha conseguido, de certo modo,
manter uma certa lucidez (risos). E talvez através desta ponte eu tenha conseguido desviar alguém da
loucura. Neste caso, você se preocupa com o efeito catártico que suas palavras proporcionam no
leitor? No momento em que escrevo, não penso em ajudar o leitor. Eu escrevo pela vocação. Dentro dessa
vocação estão os meus compromissos com a desigualdade social, com a natureza humana, com a solidão,
com o ser humano e sua busca. De repente, então, eu dou os meus recados. Eu considero o meu trabalho
engajado. A função do escritor é denunciar as chagas sociais. (...) Mas eu não tenho o poder político e
financeiro para curar essas chagas. O que lhe falta na vida como escritora? Nunca me senti realizada
como escritora. Meu sentimento em relação à literatura é de insatisfação. Quando o escritor se sente
realizado, completo, maravilhado, ele está perdido. Porque o mundo é doente. (...) Escrevo para contribuir
para o mundo. (...) O que interessa é a imortalidade de minhas palavras.
TEXTOS CONVERGENTES E DIVERGENTES
ADMIRÁVEL GADO NOVO, de Zé Ramalho
Vocês que fazem parte dessa massa que passa nos projetos do futuro
É duro tanto ter que caminhar e dar muito mais do que receber
E ter que demonstrar sua coragem à margem do que possa parecer
E ver que toda essa engrenagem já sente a ferrugem lhe comer
Ê, ô ô, vida de gado, povo marcado, ê, povo feliz
Lá fora faz um tempo confortável,
a vigilância cuida do normal
Os automóveis ouvem a notícia,
os homens a publicam no jornal
E correm através da madrugada a única velhice que chegou
Demoram-se na beira da estrada e passam a contar o que sobrou
Ê, ô ô, vida de gado, povo marcado, ê, povo feliz
O povo foge da ignorância apesar de viver tão perto dela
E sonham com melhores tempos idos, contemplam essa vida numa cela
Esperam nova possibilidade de verem esse mundo se acabar
A arca de Noé, o dirigível, não voam nem se pode flutuar
“ADMIRÁVEL GADO NOVO”, de Zé Ramalho (apontamentos)
Vocês que fazem parte dessa massa ( Massa = Povo, gentes, multidão.)
Que passa nos projetos do futuro (Os governos sempre vendem a imagem do futuro, mas não a realizam.)
É duro tanto ter que caminhar / E dar muito mais do que receber
E ter que demonstrar sua coragem / À margem do que possa parecer ("A margem de“: apesar de.)
E ver que toda essa engrenagem
Já sente a ferrugem lhe comer (Referência ao sistema vigente, corrompido e ineficiente.)
Ê, ô, ô, vida de gado
Povo marcado, ê, povo feliz (Povo como gado, que leva a marca do seu dono gravada a ferro no couro.)
Lá fora faz um tempo confortável
A vigilância cuida do normal (Alusão à paz social que as elites desejam para poder usufruir de sua rapinagem.)
O automóveis ouvem a notícia (As pessoas nos automóveis são substituídas pelos automóveis: metonímia.)
Os homens a publicam no jornal / E correm através da madrugada
A única velhice que chegou (Nada foi arriscado, nem produzido: o futuro repetirá velhas fórmulas)
Demoram-se na beira da estrada
E passam a contar o que sobrou (Crítica ao modo de vida monótono proporcionado pelo sistema.)
Ê, ô, ô, vida de gado / Povo marcado, ê, povo feliz
O povo foge da ignorância
Apesar de viver tão perto dela (Exclusão e intersecção social: favelas e bairros ricos; patrão e empregado.)
E sonham com melhores tempos idos / Contemplam essa vida numa cela
Esperam nova possibilidade / De verem esse mundo se acabar
A arca de Noé, o dirigível
Não voam nem se pode flutuar (Imagem hermética: é bela, mas de difícil compreensão.)
Ê, ô, ô, vida de gado / Povo marcado, ê, povo feliz
Que nenhum filho da... se me atravesse no caminho!
O meu caminho é pelo infinito fora até chegar ao fim!
Se sou capaz de chegar ao fim ou não, não é contigo,
E comigo, com Deus, com o sentido-eu da palavra Infinito...
Pra frente!
Meto esporas!
Sinto as esporas, sou o próprio cavalo em que monto,
Porque eu, por minha vontade de me consubstanciar com Deus,
Posso ser tudo, ou posso ser nada, ou qualquer coisa,
Conforme me der na gana... Ninguém tem nada com isso...
Loucura furiosa! Vontade de ganir, de saltar,
De urrar, zurrar, dar pulos, pinotes, gritos com o corpo,
De me cramponner às rodas dos veículos e meter por baixo,
De me meter adiante do giro do chicote que vai bater,
De ser a cadela de todos os cães e eles não bastam,
De ser o volante de todas as máquinas e a velocidade tem limite,
De ser o esmagado, o deixado, o deslocado, o acabado,
(...)
Arre! Vamos lá pra frente!
Se o próprio Deus impede, vamos lá pra frente / Não faz diferença
Vamos lá pra frente sem ser para parte nenhuma
Infinito! Universo! Meta sem meta! Que importa?
(Deixa-me tirar a gravata e desabotoar o colarinho .
Não se pode ter muita energia com a civilização à roda do pescoço ...)
“Saudação
a
Walt
Whitman”,
de
Álvaro
de
Campos
–
Fernando
Pessoa
(excerto)
Eles eram muitos cavalos,
Ao longo dessas grandes serras,
De crinas abertas ao vento,
A galope entre águas e pedras.
Eles eram muitos cavalos,
Donos dos ares e das ervas,
Com tranqüilos olhos macios,
Habituados às densas névoas (...)
Eles eram muitos cavalos,
E uns viram correntes e algemas,
Outros, o sangue sobre a força,
Outros, o crime e as recompensas.
Eles eram muitos cavalos:
E alguns foram postos à venda,
Outros ficaram nos seus pastos,
E houve uns que, depois da sentença,
Levaram o Alferes cortado
Em braços, pernas e cabeça.
E partiram com sua carga
Na mais dolorosa inocência.
Eles eram muitos cavalos.
E morreram por esses montes,
Esses campos, esses abismos,
Tendo servido a tantos homens.
“Dos cavalos da Inconfidência”,
de Cecília Meireles
Proposta de trabalho:
- Identificar o tema nuclear do texto de Lygia F. Telles.
- Relacionar o primeiro parágrafo do texto com o seu desenvolvimento.
- Relacionar as ideias principais do texto às imagens de apetrechos de equitação
e máquinas de cortar frios , ou seja, comparar o texto verbal ao texto não-verbal.
- Após leitura cuidadosa de “Admirável gado novo”, de Zé Ramalho, reescreva o
texto abandonando o aspecto político e enfatizando o cenário cultural, que
marca a “ferro e fogo” a identidade de uma nação.
- Considere o poema de Álvaro de Campos/Fernando Pessoa, em especial, o
efeito conclusivo dos dois últimos versos, para debater o efeito nivelador que a
mídia pode exercer sobre os mais desavisados.
- Os versos “Dos cavalos da Inconfidência” servirão de base, após interpretação
atenciosa, para apresentação de exemplos “dos cavalos da resistência” artística,
ideológica e cultural.
- Exemplificar comportamentos de ativismo ou de conformismo nas áreas
midiáticas: cinema (filmes de autor X blockbusters), televisão (Cultura X Globo),
jornalismo (Veja X Caras), programas de entrevistas (Roda Viva X Hebe) etc.
fim

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  • 2. O homem de grandes negócios fecha a pasta de zíper e toma o avião de tarde. O homem de negócios miúdos enche o bolso de miudezas e toma o ônibus da madrugada. A mulher elegante faz Cooper e sauna na quinta- feira. A mulher não elegante faz feira no sábado. A freira faz orações diariamente em horas certas. A prostituta faz o trottoir todos os dias em certas horas. O patriarca joga bridge e faz amor segundo o calendário. O operário joga bilhar e faz amor nos feriados.
  • 3. Homens, mulheres e crianças – todos com seus dias previstos e organizados: amanhã tem missa de sétimo dia, depois de amanhã tem casamento. Batizado na terça e, na quarta, macarronada, que a feijoada fica para sábado, comemoração prévia do futebol de domingo, vitória certa, ora se!...
  • 4. As obedientes engrenagens das máquina funcionando com suas rodinhas ensinadas, umas de ouro, outras de aço, estas mais simples, mais complexas aquelas lá adiante, azeitadas para o movimento que é uma fatalidade, taque-taque taque-taque...
  • 5. Apáticos e não apáticos, convulsos e apaziguados, atentos e delirantes em pleno funcionamento num ritmo implacável.
  • 6.
  • 7. Às vezes, por motivos obscuros ou claros, uma rodinha da engrenagem salta fora e fica desvairada além do tempo, do espaço – onde? A máquina prossegue no seu funcionamento que é uma condenação, apenas aquela rodinha já não faz parte dessa ordem.
  • 8. “É um desajustado” – diz o médico, o amigo íntimo, o primo, a mulher, a amante, o chefe. Há que readaptá-lo depressa à engrenagem familiar e social, apertar esses parafusos docemente frouxos.
  • 9. Se o desajustado é um adolescente, mais fácil reconduzi-lo com a ajuda de psicólogos, analistas, padres, orientadores, educadores – mas por que ele ainda não está nos eixos?
  • 10. Por que tem que haver certas peças resistindo assim inconformadas? Não interessa curá-lo, mas neutralizá-lo, taque-taque taque-taque.
  • 11.
  • 12.
  • 13. Mas às vezes o olhar tem aquela expressão que ninguém alcança
  • 14. e volta o fervor antigo, cólera e gozo nos descompromissamentos e rupturas – aguda a lembrança violenta do cheiro de mato que recusa o asfalto, o elevador, a disciplina, ah! vontade de fugir sem olhar para trás, desatino e alegria de um cavalo selvagem, os fogosos cavalos de crina e narinas frementes, escapando do laço do caçador.
  • 15. Na história de Arthur Miller, eram os pobres cavalos selvagens destinados a uma fábrica que os transformaria num precioso produto enlatado. O instinto, só o instinto os advertia das armadilhas nas madrugadas. E fugiam galopando por montes, rios, vales – até quando?
  • 17.
  • 18. Muitos esquecem mas alguns ainda se lembram e o olhar toma aquela expressão que ninguém entende, ânsia de liberdade. De paixão
  • 19. Em fragmentos de tempo voltam a ser inabordáveis mas a máquina vigilante descobre os rebeldes e aciona o alarme, mais poderoso o apelo, taque-taque TAQUE-TAQUE!
  • 20. Inútil. Ei-los de novo desembestados:
  • 21. “Laçá-los é o mesmo que laçar um sonho”.
  • 22. LYGIA FAGUNDES TELLES, a dama das letras, é entrevistada Quem é Lygia? Eu sou essencialmente duas: a social e a solitária. E vejo que a social está se aposentando. A social é a que divulga seu trabalho, e a solitária é a que fica em casa, lendo, escrevendo, apreciando o dia. Agora, vejo que a social está desaparecendo cada vez mais. Estou mais recolhida, com uma certa vontade de me concentrar, ficar reclusa, mas não amarga. E onde busca inspiração? A inspiração é um mistério. Nunca sabemos quando vem, quando acaba e por que acabou. São falsas mortes. Ela vai e volta com uma força extraordinária. É muito imprevista. Digamos que seja uma libertação do inconsciente, de onde saem os anjos e demônios juntos. É uma forma de você se destrancar. Através da arte, você consegue não enlouquecer. Se você canaliza suas emoções e a razão na palavra escrita, na tentativa de alcançar o próximo, você estende a este próximo essas palavras e formamos uma ponte. E talvez através da palavra eu tenha conseguido, de certo modo, manter uma certa lucidez (risos). E talvez através desta ponte eu tenha conseguido desviar alguém da loucura. Neste caso, você se preocupa com o efeito catártico que suas palavras proporcionam no leitor? No momento em que escrevo, não penso em ajudar o leitor. Eu escrevo pela vocação. Dentro dessa vocação estão os meus compromissos com a desigualdade social, com a natureza humana, com a solidão, com o ser humano e sua busca. De repente, então, eu dou os meus recados. Eu considero o meu trabalho engajado. A função do escritor é denunciar as chagas sociais. (...) Mas eu não tenho o poder político e financeiro para curar essas chagas. O que lhe falta na vida como escritora? Nunca me senti realizada como escritora. Meu sentimento em relação à literatura é de insatisfação. Quando o escritor se sente realizado, completo, maravilhado, ele está perdido. Porque o mundo é doente. (...) Escrevo para contribuir para o mundo. (...) O que interessa é a imortalidade de minhas palavras.
  • 23. TEXTOS CONVERGENTES E DIVERGENTES
  • 24. ADMIRÁVEL GADO NOVO, de Zé Ramalho Vocês que fazem parte dessa massa que passa nos projetos do futuro É duro tanto ter que caminhar e dar muito mais do que receber E ter que demonstrar sua coragem à margem do que possa parecer E ver que toda essa engrenagem já sente a ferrugem lhe comer Ê, ô ô, vida de gado, povo marcado, ê, povo feliz Lá fora faz um tempo confortável, a vigilância cuida do normal Os automóveis ouvem a notícia, os homens a publicam no jornal E correm através da madrugada a única velhice que chegou Demoram-se na beira da estrada e passam a contar o que sobrou Ê, ô ô, vida de gado, povo marcado, ê, povo feliz O povo foge da ignorância apesar de viver tão perto dela E sonham com melhores tempos idos, contemplam essa vida numa cela Esperam nova possibilidade de verem esse mundo se acabar A arca de Noé, o dirigível, não voam nem se pode flutuar
  • 25. “ADMIRÁVEL GADO NOVO”, de Zé Ramalho (apontamentos) Vocês que fazem parte dessa massa ( Massa = Povo, gentes, multidão.) Que passa nos projetos do futuro (Os governos sempre vendem a imagem do futuro, mas não a realizam.) É duro tanto ter que caminhar / E dar muito mais do que receber E ter que demonstrar sua coragem / À margem do que possa parecer ("A margem de“: apesar de.) E ver que toda essa engrenagem Já sente a ferrugem lhe comer (Referência ao sistema vigente, corrompido e ineficiente.) Ê, ô, ô, vida de gado Povo marcado, ê, povo feliz (Povo como gado, que leva a marca do seu dono gravada a ferro no couro.) Lá fora faz um tempo confortável A vigilância cuida do normal (Alusão à paz social que as elites desejam para poder usufruir de sua rapinagem.) O automóveis ouvem a notícia (As pessoas nos automóveis são substituídas pelos automóveis: metonímia.) Os homens a publicam no jornal / E correm através da madrugada A única velhice que chegou (Nada foi arriscado, nem produzido: o futuro repetirá velhas fórmulas) Demoram-se na beira da estrada E passam a contar o que sobrou (Crítica ao modo de vida monótono proporcionado pelo sistema.) Ê, ô, ô, vida de gado / Povo marcado, ê, povo feliz O povo foge da ignorância Apesar de viver tão perto dela (Exclusão e intersecção social: favelas e bairros ricos; patrão e empregado.) E sonham com melhores tempos idos / Contemplam essa vida numa cela Esperam nova possibilidade / De verem esse mundo se acabar A arca de Noé, o dirigível Não voam nem se pode flutuar (Imagem hermética: é bela, mas de difícil compreensão.) Ê, ô, ô, vida de gado / Povo marcado, ê, povo feliz
  • 26. Que nenhum filho da... se me atravesse no caminho! O meu caminho é pelo infinito fora até chegar ao fim! Se sou capaz de chegar ao fim ou não, não é contigo, E comigo, com Deus, com o sentido-eu da palavra Infinito... Pra frente! Meto esporas! Sinto as esporas, sou o próprio cavalo em que monto, Porque eu, por minha vontade de me consubstanciar com Deus, Posso ser tudo, ou posso ser nada, ou qualquer coisa, Conforme me der na gana... Ninguém tem nada com isso... Loucura furiosa! Vontade de ganir, de saltar, De urrar, zurrar, dar pulos, pinotes, gritos com o corpo, De me cramponner às rodas dos veículos e meter por baixo, De me meter adiante do giro do chicote que vai bater, De ser a cadela de todos os cães e eles não bastam, De ser o volante de todas as máquinas e a velocidade tem limite, De ser o esmagado, o deixado, o deslocado, o acabado, (...) Arre! Vamos lá pra frente! Se o próprio Deus impede, vamos lá pra frente / Não faz diferença Vamos lá pra frente sem ser para parte nenhuma Infinito! Universo! Meta sem meta! Que importa? (Deixa-me tirar a gravata e desabotoar o colarinho . Não se pode ter muita energia com a civilização à roda do pescoço ...) “Saudação a Walt Whitman”, de Álvaro de Campos – Fernando Pessoa (excerto)
  • 27. Eles eram muitos cavalos, Ao longo dessas grandes serras, De crinas abertas ao vento, A galope entre águas e pedras. Eles eram muitos cavalos, Donos dos ares e das ervas, Com tranqüilos olhos macios, Habituados às densas névoas (...) Eles eram muitos cavalos, E uns viram correntes e algemas, Outros, o sangue sobre a força, Outros, o crime e as recompensas. Eles eram muitos cavalos: E alguns foram postos à venda, Outros ficaram nos seus pastos, E houve uns que, depois da sentença, Levaram o Alferes cortado Em braços, pernas e cabeça. E partiram com sua carga Na mais dolorosa inocência. Eles eram muitos cavalos. E morreram por esses montes, Esses campos, esses abismos, Tendo servido a tantos homens. “Dos cavalos da Inconfidência”, de Cecília Meireles
  • 28. Proposta de trabalho: - Identificar o tema nuclear do texto de Lygia F. Telles. - Relacionar o primeiro parágrafo do texto com o seu desenvolvimento. - Relacionar as ideias principais do texto às imagens de apetrechos de equitação e máquinas de cortar frios , ou seja, comparar o texto verbal ao texto não-verbal. - Após leitura cuidadosa de “Admirável gado novo”, de Zé Ramalho, reescreva o texto abandonando o aspecto político e enfatizando o cenário cultural, que marca a “ferro e fogo” a identidade de uma nação. - Considere o poema de Álvaro de Campos/Fernando Pessoa, em especial, o efeito conclusivo dos dois últimos versos, para debater o efeito nivelador que a mídia pode exercer sobre os mais desavisados. - Os versos “Dos cavalos da Inconfidência” servirão de base, após interpretação atenciosa, para apresentação de exemplos “dos cavalos da resistência” artística, ideológica e cultural. - Exemplificar comportamentos de ativismo ou de conformismo nas áreas midiáticas: cinema (filmes de autor X blockbusters), televisão (Cultura X Globo), jornalismo (Veja X Caras), programas de entrevistas (Roda Viva X Hebe) etc.
  • 29. fim