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1. O Justiça “natural”
Importante perceber que o sentimento de justiça/injustiça não era o que imperava
na moral das histórias gregas, as histórias homéricas eram muito marcadas por
atos de heroísmo e grandes feitos dos personagens, sendo certo que suas vidas
eram dramaticamente confusas, tudo no superlativo, nada muito pacífico ou
pacato. Apesar disso, a noção de justiça surge1 “[...] dessa relação do homem com
os deuses, da relação do forte com o débil, uma característica aristocrática própria
de heróis” (LEITE, 2008, p.19)
Ora referida como diké2, ora por themis3, certo é que o mito do casamento4 de
Zeus com Themis, da qual nasceu Diké tornou-se um dos mais simbólicos, ainda
nos dias atuais.
1“A noção de justiça parece seguir o pensamento filosófico na Grécia, razão para o jònios que
pretendiam explicar o universo por um princípio físico, pura ideia (espírito) para os eleáticos ou
ainda, números (ideia de igualdade na contraprestação) para os pitagóricos, seguindo assim a
necessidade de ser um produto da necessidade física, da metafísica ou da ordem governante do
cosmos” (LEITE, 2008, p. 19).
2 Segundo Bittar, Almeida (2015, p.79): “Pela expressão Diké “é possível entende-lo em dois
sentidos: um de regra, costume, significando algo mais distante e sagrado (usado mais ou
menos de modo indistinto com thémis), que aparece em Odisséia 11,218 e 14,59; outro, de
justiça em seu caráter mais humano, mais carnal, mais vivo (oposto a thémis), que aparece
em Ilíada 19,180 e oposto a força- bía (Ilíada 16, 388). Na Ilíada a expressão tinha
incorporado um certo sentido de transgressão, algo que se associa a ideia de resistência a
estrutura de classes e parulatinamente a partir do séc. VI a. C.passou a ser considerada
como algo mais universal”.
3 “Do ponto de vista etimológico, em Homero, Themis é empregada na frase que consta da Ilíada
como da Odisséia: ‘e thémis esti’, significando aquilo que esta estabelecido pelo costume. Ou seja,
thémis designa algo cuja significação reporta à conservação, à permanência, à tradição, fazendo
apelo à dimensão de um passado cuja conservação se dá na continuidade dos costumes, dos
hábitos sociais, das tradições ancestrais. Vem revestida, portanto, de uma pressão tradicional, de
Nesse período embrionário o conto ilustrava, e de certa forma legitimava a
intimidade entre a divindade e a justiça (impressão impregnada até os dias atuais).
Mais adiante diké, será traduzida nas línguas latinas por Jus, se torna uma
expressão ligada a alétheia (algo que se aproxima da verdade) e que traz
consigo o embrião da ideia pitagórica de igualdade (ainda numérica e
paritária) por uma decisão que seria a medida (métron) de todo governo.
Neste estágio do desenvolvimento, o homem fazia parte de uma ordem
estabelecida e que era vã a tentativa de se desvencilhar do destino, divino,
predefinido, imutável, conduzida por deuses que revelavam um lugar para cada
um, uma ideia de existência compatível e ajustada a esse cosmos.
Nessa concepção, as normas seriam apenas códigos interpretados a partir de um
padrão originário da natureza, daí que a natureza era compreendida pelos gregos
tradicionais como um padrão que guiava a vida e a arte.
Era o naturalismo grego. Ilustram esse raciocínio a falas de Heráclito5 (535-475
a.C.): “[...] o conflito é o pai de todas as coisas: de alguns faz homens; de alguns,
escravos; de alguns homens livres” (SOUZA; KUHNEN, 2005, p. 29, fragmento
uma pesada herança de antepassados, significando o liame entre o que era e o que será, não
somente num sentido temporal, mas também moral, como medida de dever-ser do comportamento
das novas gerações. ” (BITTAR, ALMEIDA, 2015, p.78)
4 Na teogonia de Hesíodo, Zeus, desde o seu nascimento as escondidas de Crónos (que comia
seus filhos com medo que o destronassem) sob a proteção de Urano (céu) e Gaia (terra), pais de
Thémis¸ passa por inúmeras batalhas, ora contra titãs, ora contra o dragão, até sua vitória e
ascensão na condição de rei dos imortais, em cuja condição toma por esposa Métis e Thémis,
assim, de seu casamento nascem alguns filhos: 1) Bom Governo (Eunomia), Justiça (Diké) e Paz
(Eirene); 2) As Parcas ou Moirai ou partes (Proto, Laquesis e Átopos) (BITTAR, ALMEIDA, 2015,
p.80)
5 “Filho de Blóson, descendente e do fundador de Éfeso, o rei Ândrocles considerado por muitos o
mais importante dos pré-socráticos, conhecido como “o obscuro” escreveu o tratado “Da natureza”.
D. 53). Portanto é aqui que diké é promovida como porta de acesso a verdade,
que é uma compreensão superior, acima da opinião vulgar (doxa) dos homens
mortais (comuns) e destinada aos espíritos superiores (os governantes, filósofos).
Entretanto, como foi esse processo, de que modo surge uma razão superior?
Consultemos o oráculo:
2. O Ser que surge em Tebas com o “decifra-me ou devoro-te” (rebeldia
contra o destino)
“Decifra-me ou devoro-te”6 torna-se o símbolo do desafio continuo do
Fundador da Escola Heraclítica que se preocupava com a explicação do mundo a partir do fogo,
concebido como uma força em movimento” (DOUZINAS, 2009, p. 41).
6Segundo a tragédia grega “Édipo Rei”, Laio, filho de Labaco, nutrira em sua juventude uma
paixão mórbida por Crísipo, filho de Pêlops. Laio raptou Crísipo e foi amaldiçoado por Pêlops,
que desejou a Laio o castigo de morrer sem deixar descendentes. Posteriormente, Laio casou-
se com Jocasta, irmã de Creonte, e tornou-se rei de Tebas. Apesar de um oráculo haver-lhe
anunciado que, como castigo por seus amores antinaturais com Crísipo, se nascesse um
filho dele e de Jocasta, esse filho o mataria, Laio tornou-se pai de um menino. Para tentar fugir
à predição do oráculo, mandou Jocasta dar o recém-nascido a um dos pastores de seus
rebanhos, após perfurar-lhe os pés e amarrá-los. A ordem foi abandoná-lo no monte Citeron
para morrer naquela região inóspita, na esperança de fugir assim à decisão divina. O pastor,
entretanto, movido pela piedade, salvou a vida do filho de Laio e de Jocasta e o entregou a um
companheiro de profissão que costumava levar os rebanhos de Pôlibos, rei de Corinto, às
pastagens situadas no vale de Citeron.
Esse pastor levou o menino chamado Édipo, em alusão a seus pés feridos e inchados
(Oidipous = pés inchados), a seu senhor, o rei Pôlibo, que não tinha filhos e vivia se lamentando
por isso. Pôlibos e sua mulher, Mérope, criaram Édipo como se fosse filho deles. Quando Édipo
chegou à maioridade, foi insultado por um habitante de Corinto que, embriagado, o chamou de filho
adotivo. Diante dessa revelação, Édipo se dirigiu sozinho a Delfos para consultar o oráculo
de Apolo a respeito de sua ascendência. O deus nada lhe disse quanto à sua pergunta, mas
revelou-lhe que ele, um dia, mataria seu pai e se casaria com sua própria mãe.
Édipo, supondo que Pôlibo fosse seu pai e Mérope sua mãe, resolveu não voltar mais a
Corinto. Naquela época, os habitantes de Tebas estavam alarmados com a Esfinge, que vinha
devorando os tebanos incapazes de decifrar os enigmas propostos pelo monstro, pondo em perigo
a cidade toda. Em sua fuga, Édipo passava pelos arredores de Tebas quando, em uma
encruzilhada de três caminhos, avistou um carro em que vinha um homem idoso seguido por
criados. O homem gritou-lhe insolentemente que deixasse o caminho livre para seus cavalos
passarem e um dos criados da comitiva espancou Édipo. Ele reagiu e matou o homem que vinha
no carro, seu desconhecido pai, e os criados que o acompanhavam, a exceção de um, que
fugiu. Ao chegar a Tebas, Édipo, passando pela calamitosa Esfinge, decifrou o enigma que
esta, lhe propôs. A Esfinge desapareceu e Tebas, salva daquele flagelo, fez de Édipo rei da
cidade e lhe deu em casamento Jocasta, viúva de Laio, portanto, sua mãe. Estavam
realizadas assim as duas predições do oráculo, embora Édipo e Jocasta permanecessem na
ignorância da imensidade de seu infortúnio. Por muitos anos, Édipo governou Tebas como um
conhecimento humano. Filosoficamente designa o surgimento do Ser, pois se no
conto, de um lado, o mundo é um cosmos a tal ponto que o destino de Édipo já
estaria traçado antes mesmo de seu nascimento, por outro, o flagelo de sua
triste existência, a história de seu destino trágico, decorre de uma escolha
de seu pai, Laio, bem como de sua própria rebeldia em enfrentar a Esfinge.
Esse dilema grego posto ao tempo de Sófocles é brilhantemente demonstrado na
Trilogia Tebana.7
Como já ressaltado anteriormente, essa ideia não era original; antes, era uma
reação contra tradições inexplicáveis, uma rebeldia dos jovens sofistas contra
velhos tabus religiosos impostos pelas autoridades que governavam as
sociedades gregas em seu início, por conta de se considerarem designadas
pelos oráculos e pela tradição. Dessa forma, a mensagem do enfrentamento
protagonizado por Édipo significa “[...] uma autorização para um ideal de viver
em desarmonia ou em rebeldia contra o destino natural, qualificado pela
emancipação e pelo protagonismo humano” (DOUZINAS, 2009, p. 41).
3. O Antropocentrismo
Na perspectiva antropocêntrica, que surge com os sofistas,8 o homem passa a ser
o primeiro plano da reflexão filosófica, deslocando a preocupação da origem da
grande e valente rei. De seu casamento com Jocasta nasceram duas filhas – Antígona e Ismene –
e dois filhos – Polinices e Etéocles −, que cresciam em meio à paz e à prosperidade
aparentemente presentes no palácio real.
7 A versão adotada é da Trilogia Tebana, traduzida por Mario Gama Kury, 5. ed. Jorge Zahar Editor,
Rio de Janeiro, 1996, p. 17. Segundo as notas do tradutor, ele consultou, sem exclusividade, a
edição do texto grego de A.C. Pearson na coleção “Scriptorum Classicorum Bibliotheca Oxoniesis”,
Oxford, Claredon Press, 1924 (reimpressão de 1946), também as edições comentadas de Lewis
Cambell (Oxford, 1879, segunda edição) e de R.C. Jebb (Cambridge, University Press, várias
datas) e, ainda, as edições de Paul Masqueray (Paris, Les Belles Lettres, 1942) e de Paul Mazon
(Paris, mesma editora, 1967).
8 “Sofistas foram os filósofos provenientes de diversas partes, sendo a sua maioria estrangeiros:
Protágoras, de Abdera; Górgias, de Leontinos; Trasímaco, da Calcedônia; Pródico, de Quios;
Hípias, de Élis. Apenas Antifonte e Crítias eram atenienses. A filosofia que era cultivada em
círculos fechados, passa, com os sofistas, à vida pública, tendo como objetivo formar cidadãos
capazes de sobressair-se nas assembléias. Por isso cultivavam a retórica, dando mais importância
à argumentação, à arte de convencer por discurso do que buscar a verdade” (LEITE, 2008, p. 23).
natureza para uma natureza especial e específica, humana. “O homem como
medida de todas as coisas e que se conhece a si mesmo”9 (PLATÃO, 2004b,
p. 19), segundo Leite (2008, p. 22) esta perspectiva é revolucionária, na medida
em que “[...] o justo deixa de se estabelecer na natureza cujo modus operandi
se caracteriza pela lei do domínio do forte sobre o fraco e, passa a ser o
legal”.
Um pouco mais adiante e com o lema “[...] conhece-te a ti mesmo”, Sócrates
(469-399 a.C.) passa a opor-se à ideia de que o “[...] direito é a expressão dos
mais fortes”10 (LEITE, 2008, p. 25) e, com um inovador método de perguntas,
introduz a ética à filosofia tradicional grega. Para ele, ser ético é cumprir a lei
mesmo que injusta, preceito cujo cumprimento ironicamente o levou à
morte.
Discípulo de Sócrates, Platão (427-347 a.C.) expande o conceito extremamente
introspectivo e, ao fundar a Academia, produz uma teoria das cidades ao
regulamentar a sociedade política em três classes distintas diferenciadas por
função. Nesse contexto, a justiça consistiria que cada uma das classes
cumprisse sua função. Os guardiães, artesãos e agricultores deveriam
submeter-se aos governadores (filósofos). No dizer de Adeodato (1996, p. 132),
essa justiça seria “[...] uma espécie de centro de gravidade do sistema
9“Existe um belo em si e por si, um bom, e um grande e assim por diante” (PLATÃO, 2004b, p. 19).
10Trasímaco sustentava que “[...] cada governo, faz as leis para seu próprio proveito: a democracia,
as leis democráticas; a tirania, as leis tirânicas, estabelecidas estas leis, declaram justo, para os
governados, o seu próprio interesse, e castigam quem transgride como violador da lei, culpando-o
de injustiça. Aqui tens, homem excelente, o que afirmo: em todas as cidades o justo é a mesma
coisa, isto é, o que é vantajoso para o governo constituído; ora, este é o mais forte, de onde
se segue, para um homem de bom raciocínio, que em todos os lugares o justo é a mesma
coisa: o interesse do mais forte” (PLATÃO, 2004a, p. 20).
platônico que tinha por premissa quatro virtudes básicas (o autodomínio, a
coragem, a sabedoria e a justiça) e, por consequência, a injustiça seria a ruptura
dessa ordem”.
3. Razão: a técnica comunicativa que vence a inércia da submissão e
conduz “para fora”.
Vimos até aqui que o Ser pertence ao Ente e que este é o “todo material, físico, a
totalidade do ente” e que, com os socráticos o homem suplantou a inércia de
relacionar-se passivamente com a natureza e criou uma técnica própria de
com ela comunicar-se, a essa técnica se denominou razão, portanto, é pela
invenção da razão que o homem pertence ao ente, é por esse método que
ora ele é considerado superior e subjuga o ente (antropocentrismo), ora se
torna fruto (produto) desta técnica (ciência) que a tudo cria (ecocentrismo),
inclusive o Ser, o homem.
Por esta técnica, a razão, procura-se ultrapassar o ente, que originariamente
era “o mesmo” (tô autó), pela metà (trans em grego) phisika (coisas da natureza
em grego), ou seja, além do ente? Para fora do ente. E por que ir para fora do
ente?
– Por que é lá que se concebe o não ente, o inexistente, não é por acaso que o
moribundo se encontra em estado do+ente, ou seja, está em transição, deixando
de fazer parte do ente para transformar-se em inexistente, em breve deixará de
ser um “soprado”.
Com o descolamento do “ente” a vida ganha novas possibilidades, e começam a
surgir os filósofos que se ocupam delas, a libertação do destino traçado pela
natureza vai sendo discutida em outras histórias mitológicas deste período, quem
não conhece por exemplo as discussões do mito cristão do livre arbítrio, originário
desta perspectiva.
Com o mais notável deles, Aristóteles (384-322 a.C.), o objetivo da vida passa a
ser “tornar-se um virtuoso”11 para agir com justiça12 não cumprindo
simplesmente um desígnio, mas desenvolvendo seus talentos ou virtudes,
atributos com os quais a natureza equipou inatamente os homens. O
desenvolvimento das virtudes poderia, então, contribuir para a ordem natural
do cosmos, para que ela realize em plenitude sua finalidade. Por sua vez, a
injustiça, contraria a natureza, impede sua plena realização.
Em que pese a metafísica tivesse gerado uma autonomia do “ser” pela razão,
restava entretanto, evidente a permanente força da natureza, e ainda as
diferentes concepções a seu respeito, como por exemplo, com Parmênides,
era considerado uma ordem estática, composta por leis imutáveis e inertes,
com Heráclito, como algo em movimento.
Para Aristóteles por sua vez, essa inexorável força era sempre percebida de
maneira provisória, experimental, dinâmica, da mesma forma, a justiça, tal e
qual a natureza humana.
Desta forma, o rótulo de metafísica para a filosofia aristotélica se deu na medida
11“Não é, pois por natureza, nem contrariando a natureza que as virtudes se geram em nós. Diga-
se, antes, que somos adaptados por natureza a recebê-las e nos tornarmos perfeitos pelo hábito”
(ARISTÓTELES, 2013, Livro II, 1103a, p. 267).
12“Vemos que todos homens entendem por justiça aquela disposição de caráter que torna as
pessoas propensas a fazer o que é justo, que a faz agir justamente e desejar o que é justo; e do
mesmo modo, por injustiça se entende a disposição que as leva a agir injustamente e desejar o
que é injusto” (ARISTÓTELES, 2013, Livro V, 1129a, p. 321).
em que se distanciava da realidade “natural” buscando um “ideal”, a virtude.
A virtude poderia advir pelo ensino (virtude intelectual) ou ainda pelo hábito
(virtude moral), ambas derivadas de uma prática aprendida, não natural, e
deverão guiar as escolhas, as ações do homem virtuoso.Sendo assim, aquele
que aprende a escolher bem produz o bem, logo, o bem se tornou produto das
escolhas feitas.13 Portanto, a moral transforma-se numa espécie de régua de
medir, em busca de um meio-termo.
A singularidade de Aristóteles estava em identificar, talvez pela primeira vez,
os vetores influenciadores das escolhas (o prazer e a dor) que, por sua vez,
serão boas ou más, segundo essas influências. Esses sentimentos serão a
bússola que guiará a busca pelo menor dos males; o meio-termo calculado
matematicamente (aqui com raízes no platonismo) entre o excesso e a
falta.14 Uma medida introspectiva que “[...] não é uma transcendência metafísica
que chega até o homem, mas uma imanência que nele está” (DOUZINAS, 2009,
p. 42).
3.1. A escolha aprendida de forma racional a partir das experiências.
Os sentimentos aqui mencionados (a dor e o prazer) proporcionam uma
13 “Sendo, pois, duas as espécies de virtude, intelectual e moral, gera-se e cresce graças ao ensino
– por isso requer experiência e tempo; enquanto a virtude moral é adquirida em resultado do
hábito. Por tudo isso, evidencia-se também que nenhuma das virtudes morais, surge em nós
por natureza” (ARISTÓTELES, 2013, Livro II, 1103a, p. 267).
14 “Sé é assim pois, que cada arte realiza bem o seu trabalho – tendo diante dos olhos o meio
termo e julgando as obras por este padrão; e por isso dizemos muitas vezes que as boas obras de
arte não é possível tirar nem acrescentar nada, subentendendo que o excesso e a falta destroem a
excelência dessas obras, enquanto o meio termo preserva; e para este, como dissemos, se voltam
os artistas no seu trabalho – e, se, ademais disso, a virtude é mais exata e melhor que qualquer
arte, como também o é a natureza, segue-se que a virtude deve ter o atributo de visar o meio
termo. Refiro-me a virtude moral, pois é aquela que diz respeito às paixões e ações, nas
experiência, e, a partir dela, possibilitam escolhas. Nessa perspectiva, as coisas
são escolhidas em função da experiência15 que os sentimentos
proporcionaram.
A isso o filósofo denominou de “Desejo”. Bons desejos produzem boas
escolhas; desejos maus produzem más escolhas. Esse resultado é
racionalmente obtido entre a falta e o excesso das coisas desejadas. Assim,
uma regra matemática e a noção de “experiência” mudaram o paradigma da
natureza como critério de justo.
Paralelamente, Aristóteles aponta os vícios (opostos à virtude) como originários
do mesmo processo e, nesse caso, no lugar do prazer e da dor, seriam
influenciados pela nobreza e a vantagem, por um lado, e pela vilania e prejuízo
por outro.
Tomada como fator de distinção entre homens e animais, a virtude, vista
como o poder de fazer boas escolhas, torna o virtuoso capaz de escolher
bem e produzir vantagens. Ao vilão resta escolher mal e produzir prejuízos,
daí o jargão “a vida seria feita de escolhas”.
A diferença na escolha seria produzida pela racionalidade, sendo certo que quem
foi bem ensinado (o virtuoso) escolhe bem, com nobreza; e, por outro lado, o tolo
racionalmente escolhe de maneira vil o prejuízo.16 O objeto de deliberação é algo
alcançável (coisa) que se deseja racionalmente, portanto a escolha é fruto de um
quais existe excesso, carência e um meio termo” (ARISTÓTELES, 2013, Livro II, 1106b, p.
272).
15 Esta ideia da experiência vivida será fundamental adiante no racionalismo.
desejo deliberado de coisas.
Ocorre que, está teoria é suficiente para explicar as decisões a partir de escolhas
feitas com livre arbítrio, entretanto, existem as decisões a serem tomadas num
ambiente onde não há liberdade (escolhas) e que mesmo assim produzem
consequências.
Para estas, Aristóteles desenvolve um conceito fundamental, a distinção entre as
ações voluntárias e as involuntárias,17 sobre as quais não cabem
deliberações e que, portanto, não resultarão de uma escolha moral, mas da
adoção de um meio para se chegar a um fim. Nesse caso haveria somente uma
doxa (opinião) e não uma decisão, na medida em que nessa condição reflete
simplesmente uma opção entre o verdadeiro ou o falso e não uma escolha
consciente e deliberada.
Bom, mas em que essa distinção importaria?
A busca pela verdade seria fruto de uma decisão involuntária, ou seja, não
fundamentada em uma escolha moral, leia-se aqui como escolha moral, aquele
fruto da razão, ou seja, a partir da experiência vivida, buscando um meio termo
entre os desejos.
Portanto, ao contrário do que acostumados a pensar a escolha racional não
busca a verdade, mas o meio termo, a justiça representada pela boa escolha
16 “O aforismo: ‘[...] ninguém é voluntariamente mau, nem involuntariamente feliz’ parece ser em
parte falso e em parte verdadeiro, porque ninguém é involuntariamente feliz, mas a maldade é
voluntária” (ARISTÓTELES, 2013, Livro III, 1113 a, p. 287).
17 “Atos praticados por escolha são os praticados após deliberação, já aquilo que se faz por
ignorância, embora feito com conhecimento de causa, não depende do agente, ou o que é feito
sob coação” (ARISTÓTELES, 2013, Livro V, 1135a, p. 332).
(virtu) adequada, que pode ser aprendida e praticada.
Esta distinção se tornou fundamental, uma vez que a busca pela verdade (bem
como suas derivações, como a “verdade real” e a “verdade divina”, se tornou um
marco na ciência do Direito, e sua utilização inapropriada, desde o período
medieval até os dias atuais, tem sido adotada como parâmetro de uma busca
por justiça, ao passo que, originariamente, na concepção aristotélica, estava
relacionada apenas com uma “opinião” (algo sobre o qual não há livre
deliberação) e não com uma escolha racional. Esse desvio, talvez − ressalte-se
talvez − explique a adoção da tortura como método em busca da verdade.
Esta foi a tônica, por exemplo, durante toda a inquisição, principalmente durante a
vigência do Malleus Maleficarum, 18 quando os métodos processuais inquisitivos
em “busca da verdade” foram levados ao extremo. Também a Suma Teológica São
Tomás de Aquino na questão 64 (ARNS, 1985, p. 284) chega a afirmar que “[...]
quando sucede às vezes que um inocente é acusado falsamente perante um juiz,
este, para descobrir a verdade o submete à tortura, agindo segundo a justiça,
mas a causa disso é a falta de reconhecimento humano”.
18 A Bíblia ficara aprisionada nos conventos literalmente acorrentada aos púlpitos sendo acessada
apenas por uns poucos, enquanto aguardava o movimento Renascentista e de Reforma de Martin
Lutero, foi publicado o Malleus Maleficarum, em 1487. Compilado por dois inquisidores
dominicanos, Heinrich Kramer e James Sprenger, e fundamentado nas premissas da bula papal
Summis Desiderantes, de autoria do Papa Inocêncio VIII, de 5 de dezembro de 1484, foi
considerado o principal instrumento, durante os séculos XVI e XVII, na perseguição à bruxaria.
Era dividido em três partes: a primeira ensinava os juízes a reconhecerem as bruxas em seus
múltiplos disfarces e atitudes; a segunda expunha todos os tipos de malefícios,
classificando-os e explicando-os; e a terceira regrava as formalidades para agir
"legalmente" contra as bruxas, demonstrando como processá-las, inquiri-las, julgá-las e
condená-las, sempre em busca da “verdade”. Kramer e Sprenger oferecem um guia passo a
passo sobre como conduzir o julgamento de uma bruxa, desde a reunião de provas até o
interrogatório (incluindo técnicas de tortura). É provavelmente o tratado mais importante que foi
publicado no contexto da perseguição da bruxaria do Renascimento. Logo recebeu dezenas de
novas edições por toda a Europa.

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A justa razao

  • 1. 1. O Justiça “natural” Importante perceber que o sentimento de justiça/injustiça não era o que imperava na moral das histórias gregas, as histórias homéricas eram muito marcadas por atos de heroísmo e grandes feitos dos personagens, sendo certo que suas vidas eram dramaticamente confusas, tudo no superlativo, nada muito pacífico ou pacato. Apesar disso, a noção de justiça surge1 “[...] dessa relação do homem com os deuses, da relação do forte com o débil, uma característica aristocrática própria de heróis” (LEITE, 2008, p.19) Ora referida como diké2, ora por themis3, certo é que o mito do casamento4 de Zeus com Themis, da qual nasceu Diké tornou-se um dos mais simbólicos, ainda nos dias atuais. 1“A noção de justiça parece seguir o pensamento filosófico na Grécia, razão para o jònios que pretendiam explicar o universo por um princípio físico, pura ideia (espírito) para os eleáticos ou ainda, números (ideia de igualdade na contraprestação) para os pitagóricos, seguindo assim a necessidade de ser um produto da necessidade física, da metafísica ou da ordem governante do cosmos” (LEITE, 2008, p. 19). 2 Segundo Bittar, Almeida (2015, p.79): “Pela expressão Diké “é possível entende-lo em dois sentidos: um de regra, costume, significando algo mais distante e sagrado (usado mais ou menos de modo indistinto com thémis), que aparece em Odisséia 11,218 e 14,59; outro, de justiça em seu caráter mais humano, mais carnal, mais vivo (oposto a thémis), que aparece em Ilíada 19,180 e oposto a força- bía (Ilíada 16, 388). Na Ilíada a expressão tinha incorporado um certo sentido de transgressão, algo que se associa a ideia de resistência a estrutura de classes e parulatinamente a partir do séc. VI a. C.passou a ser considerada como algo mais universal”. 3 “Do ponto de vista etimológico, em Homero, Themis é empregada na frase que consta da Ilíada como da Odisséia: ‘e thémis esti’, significando aquilo que esta estabelecido pelo costume. Ou seja, thémis designa algo cuja significação reporta à conservação, à permanência, à tradição, fazendo apelo à dimensão de um passado cuja conservação se dá na continuidade dos costumes, dos hábitos sociais, das tradições ancestrais. Vem revestida, portanto, de uma pressão tradicional, de
  • 2. Nesse período embrionário o conto ilustrava, e de certa forma legitimava a intimidade entre a divindade e a justiça (impressão impregnada até os dias atuais). Mais adiante diké, será traduzida nas línguas latinas por Jus, se torna uma expressão ligada a alétheia (algo que se aproxima da verdade) e que traz consigo o embrião da ideia pitagórica de igualdade (ainda numérica e paritária) por uma decisão que seria a medida (métron) de todo governo. Neste estágio do desenvolvimento, o homem fazia parte de uma ordem estabelecida e que era vã a tentativa de se desvencilhar do destino, divino, predefinido, imutável, conduzida por deuses que revelavam um lugar para cada um, uma ideia de existência compatível e ajustada a esse cosmos. Nessa concepção, as normas seriam apenas códigos interpretados a partir de um padrão originário da natureza, daí que a natureza era compreendida pelos gregos tradicionais como um padrão que guiava a vida e a arte. Era o naturalismo grego. Ilustram esse raciocínio a falas de Heráclito5 (535-475 a.C.): “[...] o conflito é o pai de todas as coisas: de alguns faz homens; de alguns, escravos; de alguns homens livres” (SOUZA; KUHNEN, 2005, p. 29, fragmento uma pesada herança de antepassados, significando o liame entre o que era e o que será, não somente num sentido temporal, mas também moral, como medida de dever-ser do comportamento das novas gerações. ” (BITTAR, ALMEIDA, 2015, p.78) 4 Na teogonia de Hesíodo, Zeus, desde o seu nascimento as escondidas de Crónos (que comia seus filhos com medo que o destronassem) sob a proteção de Urano (céu) e Gaia (terra), pais de Thémis¸ passa por inúmeras batalhas, ora contra titãs, ora contra o dragão, até sua vitória e ascensão na condição de rei dos imortais, em cuja condição toma por esposa Métis e Thémis, assim, de seu casamento nascem alguns filhos: 1) Bom Governo (Eunomia), Justiça (Diké) e Paz (Eirene); 2) As Parcas ou Moirai ou partes (Proto, Laquesis e Átopos) (BITTAR, ALMEIDA, 2015, p.80) 5 “Filho de Blóson, descendente e do fundador de Éfeso, o rei Ândrocles considerado por muitos o mais importante dos pré-socráticos, conhecido como “o obscuro” escreveu o tratado “Da natureza”.
  • 3. D. 53). Portanto é aqui que diké é promovida como porta de acesso a verdade, que é uma compreensão superior, acima da opinião vulgar (doxa) dos homens mortais (comuns) e destinada aos espíritos superiores (os governantes, filósofos). Entretanto, como foi esse processo, de que modo surge uma razão superior? Consultemos o oráculo: 2. O Ser que surge em Tebas com o “decifra-me ou devoro-te” (rebeldia contra o destino) “Decifra-me ou devoro-te”6 torna-se o símbolo do desafio continuo do Fundador da Escola Heraclítica que se preocupava com a explicação do mundo a partir do fogo, concebido como uma força em movimento” (DOUZINAS, 2009, p. 41). 6Segundo a tragédia grega “Édipo Rei”, Laio, filho de Labaco, nutrira em sua juventude uma paixão mórbida por Crísipo, filho de Pêlops. Laio raptou Crísipo e foi amaldiçoado por Pêlops, que desejou a Laio o castigo de morrer sem deixar descendentes. Posteriormente, Laio casou- se com Jocasta, irmã de Creonte, e tornou-se rei de Tebas. Apesar de um oráculo haver-lhe anunciado que, como castigo por seus amores antinaturais com Crísipo, se nascesse um filho dele e de Jocasta, esse filho o mataria, Laio tornou-se pai de um menino. Para tentar fugir à predição do oráculo, mandou Jocasta dar o recém-nascido a um dos pastores de seus rebanhos, após perfurar-lhe os pés e amarrá-los. A ordem foi abandoná-lo no monte Citeron para morrer naquela região inóspita, na esperança de fugir assim à decisão divina. O pastor, entretanto, movido pela piedade, salvou a vida do filho de Laio e de Jocasta e o entregou a um companheiro de profissão que costumava levar os rebanhos de Pôlibos, rei de Corinto, às pastagens situadas no vale de Citeron. Esse pastor levou o menino chamado Édipo, em alusão a seus pés feridos e inchados (Oidipous = pés inchados), a seu senhor, o rei Pôlibo, que não tinha filhos e vivia se lamentando por isso. Pôlibos e sua mulher, Mérope, criaram Édipo como se fosse filho deles. Quando Édipo chegou à maioridade, foi insultado por um habitante de Corinto que, embriagado, o chamou de filho adotivo. Diante dessa revelação, Édipo se dirigiu sozinho a Delfos para consultar o oráculo de Apolo a respeito de sua ascendência. O deus nada lhe disse quanto à sua pergunta, mas revelou-lhe que ele, um dia, mataria seu pai e se casaria com sua própria mãe. Édipo, supondo que Pôlibo fosse seu pai e Mérope sua mãe, resolveu não voltar mais a Corinto. Naquela época, os habitantes de Tebas estavam alarmados com a Esfinge, que vinha devorando os tebanos incapazes de decifrar os enigmas propostos pelo monstro, pondo em perigo a cidade toda. Em sua fuga, Édipo passava pelos arredores de Tebas quando, em uma encruzilhada de três caminhos, avistou um carro em que vinha um homem idoso seguido por criados. O homem gritou-lhe insolentemente que deixasse o caminho livre para seus cavalos passarem e um dos criados da comitiva espancou Édipo. Ele reagiu e matou o homem que vinha no carro, seu desconhecido pai, e os criados que o acompanhavam, a exceção de um, que fugiu. Ao chegar a Tebas, Édipo, passando pela calamitosa Esfinge, decifrou o enigma que esta, lhe propôs. A Esfinge desapareceu e Tebas, salva daquele flagelo, fez de Édipo rei da cidade e lhe deu em casamento Jocasta, viúva de Laio, portanto, sua mãe. Estavam realizadas assim as duas predições do oráculo, embora Édipo e Jocasta permanecessem na ignorância da imensidade de seu infortúnio. Por muitos anos, Édipo governou Tebas como um
  • 4. conhecimento humano. Filosoficamente designa o surgimento do Ser, pois se no conto, de um lado, o mundo é um cosmos a tal ponto que o destino de Édipo já estaria traçado antes mesmo de seu nascimento, por outro, o flagelo de sua triste existência, a história de seu destino trágico, decorre de uma escolha de seu pai, Laio, bem como de sua própria rebeldia em enfrentar a Esfinge. Esse dilema grego posto ao tempo de Sófocles é brilhantemente demonstrado na Trilogia Tebana.7 Como já ressaltado anteriormente, essa ideia não era original; antes, era uma reação contra tradições inexplicáveis, uma rebeldia dos jovens sofistas contra velhos tabus religiosos impostos pelas autoridades que governavam as sociedades gregas em seu início, por conta de se considerarem designadas pelos oráculos e pela tradição. Dessa forma, a mensagem do enfrentamento protagonizado por Édipo significa “[...] uma autorização para um ideal de viver em desarmonia ou em rebeldia contra o destino natural, qualificado pela emancipação e pelo protagonismo humano” (DOUZINAS, 2009, p. 41). 3. O Antropocentrismo Na perspectiva antropocêntrica, que surge com os sofistas,8 o homem passa a ser o primeiro plano da reflexão filosófica, deslocando a preocupação da origem da grande e valente rei. De seu casamento com Jocasta nasceram duas filhas – Antígona e Ismene – e dois filhos – Polinices e Etéocles −, que cresciam em meio à paz e à prosperidade aparentemente presentes no palácio real. 7 A versão adotada é da Trilogia Tebana, traduzida por Mario Gama Kury, 5. ed. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1996, p. 17. Segundo as notas do tradutor, ele consultou, sem exclusividade, a edição do texto grego de A.C. Pearson na coleção “Scriptorum Classicorum Bibliotheca Oxoniesis”, Oxford, Claredon Press, 1924 (reimpressão de 1946), também as edições comentadas de Lewis Cambell (Oxford, 1879, segunda edição) e de R.C. Jebb (Cambridge, University Press, várias datas) e, ainda, as edições de Paul Masqueray (Paris, Les Belles Lettres, 1942) e de Paul Mazon (Paris, mesma editora, 1967). 8 “Sofistas foram os filósofos provenientes de diversas partes, sendo a sua maioria estrangeiros: Protágoras, de Abdera; Górgias, de Leontinos; Trasímaco, da Calcedônia; Pródico, de Quios; Hípias, de Élis. Apenas Antifonte e Crítias eram atenienses. A filosofia que era cultivada em círculos fechados, passa, com os sofistas, à vida pública, tendo como objetivo formar cidadãos capazes de sobressair-se nas assembléias. Por isso cultivavam a retórica, dando mais importância à argumentação, à arte de convencer por discurso do que buscar a verdade” (LEITE, 2008, p. 23).
  • 5. natureza para uma natureza especial e específica, humana. “O homem como medida de todas as coisas e que se conhece a si mesmo”9 (PLATÃO, 2004b, p. 19), segundo Leite (2008, p. 22) esta perspectiva é revolucionária, na medida em que “[...] o justo deixa de se estabelecer na natureza cujo modus operandi se caracteriza pela lei do domínio do forte sobre o fraco e, passa a ser o legal”. Um pouco mais adiante e com o lema “[...] conhece-te a ti mesmo”, Sócrates (469-399 a.C.) passa a opor-se à ideia de que o “[...] direito é a expressão dos mais fortes”10 (LEITE, 2008, p. 25) e, com um inovador método de perguntas, introduz a ética à filosofia tradicional grega. Para ele, ser ético é cumprir a lei mesmo que injusta, preceito cujo cumprimento ironicamente o levou à morte. Discípulo de Sócrates, Platão (427-347 a.C.) expande o conceito extremamente introspectivo e, ao fundar a Academia, produz uma teoria das cidades ao regulamentar a sociedade política em três classes distintas diferenciadas por função. Nesse contexto, a justiça consistiria que cada uma das classes cumprisse sua função. Os guardiães, artesãos e agricultores deveriam submeter-se aos governadores (filósofos). No dizer de Adeodato (1996, p. 132), essa justiça seria “[...] uma espécie de centro de gravidade do sistema 9“Existe um belo em si e por si, um bom, e um grande e assim por diante” (PLATÃO, 2004b, p. 19). 10Trasímaco sustentava que “[...] cada governo, faz as leis para seu próprio proveito: a democracia, as leis democráticas; a tirania, as leis tirânicas, estabelecidas estas leis, declaram justo, para os governados, o seu próprio interesse, e castigam quem transgride como violador da lei, culpando-o de injustiça. Aqui tens, homem excelente, o que afirmo: em todas as cidades o justo é a mesma coisa, isto é, o que é vantajoso para o governo constituído; ora, este é o mais forte, de onde se segue, para um homem de bom raciocínio, que em todos os lugares o justo é a mesma coisa: o interesse do mais forte” (PLATÃO, 2004a, p. 20).
  • 6. platônico que tinha por premissa quatro virtudes básicas (o autodomínio, a coragem, a sabedoria e a justiça) e, por consequência, a injustiça seria a ruptura dessa ordem”. 3. Razão: a técnica comunicativa que vence a inércia da submissão e conduz “para fora”. Vimos até aqui que o Ser pertence ao Ente e que este é o “todo material, físico, a totalidade do ente” e que, com os socráticos o homem suplantou a inércia de relacionar-se passivamente com a natureza e criou uma técnica própria de com ela comunicar-se, a essa técnica se denominou razão, portanto, é pela invenção da razão que o homem pertence ao ente, é por esse método que ora ele é considerado superior e subjuga o ente (antropocentrismo), ora se torna fruto (produto) desta técnica (ciência) que a tudo cria (ecocentrismo), inclusive o Ser, o homem. Por esta técnica, a razão, procura-se ultrapassar o ente, que originariamente era “o mesmo” (tô autó), pela metà (trans em grego) phisika (coisas da natureza em grego), ou seja, além do ente? Para fora do ente. E por que ir para fora do ente? – Por que é lá que se concebe o não ente, o inexistente, não é por acaso que o moribundo se encontra em estado do+ente, ou seja, está em transição, deixando de fazer parte do ente para transformar-se em inexistente, em breve deixará de ser um “soprado”. Com o descolamento do “ente” a vida ganha novas possibilidades, e começam a surgir os filósofos que se ocupam delas, a libertação do destino traçado pela
  • 7. natureza vai sendo discutida em outras histórias mitológicas deste período, quem não conhece por exemplo as discussões do mito cristão do livre arbítrio, originário desta perspectiva. Com o mais notável deles, Aristóteles (384-322 a.C.), o objetivo da vida passa a ser “tornar-se um virtuoso”11 para agir com justiça12 não cumprindo simplesmente um desígnio, mas desenvolvendo seus talentos ou virtudes, atributos com os quais a natureza equipou inatamente os homens. O desenvolvimento das virtudes poderia, então, contribuir para a ordem natural do cosmos, para que ela realize em plenitude sua finalidade. Por sua vez, a injustiça, contraria a natureza, impede sua plena realização. Em que pese a metafísica tivesse gerado uma autonomia do “ser” pela razão, restava entretanto, evidente a permanente força da natureza, e ainda as diferentes concepções a seu respeito, como por exemplo, com Parmênides, era considerado uma ordem estática, composta por leis imutáveis e inertes, com Heráclito, como algo em movimento. Para Aristóteles por sua vez, essa inexorável força era sempre percebida de maneira provisória, experimental, dinâmica, da mesma forma, a justiça, tal e qual a natureza humana. Desta forma, o rótulo de metafísica para a filosofia aristotélica se deu na medida 11“Não é, pois por natureza, nem contrariando a natureza que as virtudes se geram em nós. Diga- se, antes, que somos adaptados por natureza a recebê-las e nos tornarmos perfeitos pelo hábito” (ARISTÓTELES, 2013, Livro II, 1103a, p. 267). 12“Vemos que todos homens entendem por justiça aquela disposição de caráter que torna as pessoas propensas a fazer o que é justo, que a faz agir justamente e desejar o que é justo; e do mesmo modo, por injustiça se entende a disposição que as leva a agir injustamente e desejar o que é injusto” (ARISTÓTELES, 2013, Livro V, 1129a, p. 321).
  • 8. em que se distanciava da realidade “natural” buscando um “ideal”, a virtude. A virtude poderia advir pelo ensino (virtude intelectual) ou ainda pelo hábito (virtude moral), ambas derivadas de uma prática aprendida, não natural, e deverão guiar as escolhas, as ações do homem virtuoso.Sendo assim, aquele que aprende a escolher bem produz o bem, logo, o bem se tornou produto das escolhas feitas.13 Portanto, a moral transforma-se numa espécie de régua de medir, em busca de um meio-termo. A singularidade de Aristóteles estava em identificar, talvez pela primeira vez, os vetores influenciadores das escolhas (o prazer e a dor) que, por sua vez, serão boas ou más, segundo essas influências. Esses sentimentos serão a bússola que guiará a busca pelo menor dos males; o meio-termo calculado matematicamente (aqui com raízes no platonismo) entre o excesso e a falta.14 Uma medida introspectiva que “[...] não é uma transcendência metafísica que chega até o homem, mas uma imanência que nele está” (DOUZINAS, 2009, p. 42). 3.1. A escolha aprendida de forma racional a partir das experiências. Os sentimentos aqui mencionados (a dor e o prazer) proporcionam uma 13 “Sendo, pois, duas as espécies de virtude, intelectual e moral, gera-se e cresce graças ao ensino – por isso requer experiência e tempo; enquanto a virtude moral é adquirida em resultado do hábito. Por tudo isso, evidencia-se também que nenhuma das virtudes morais, surge em nós por natureza” (ARISTÓTELES, 2013, Livro II, 1103a, p. 267). 14 “Sé é assim pois, que cada arte realiza bem o seu trabalho – tendo diante dos olhos o meio termo e julgando as obras por este padrão; e por isso dizemos muitas vezes que as boas obras de arte não é possível tirar nem acrescentar nada, subentendendo que o excesso e a falta destroem a excelência dessas obras, enquanto o meio termo preserva; e para este, como dissemos, se voltam os artistas no seu trabalho – e, se, ademais disso, a virtude é mais exata e melhor que qualquer arte, como também o é a natureza, segue-se que a virtude deve ter o atributo de visar o meio termo. Refiro-me a virtude moral, pois é aquela que diz respeito às paixões e ações, nas
  • 9. experiência, e, a partir dela, possibilitam escolhas. Nessa perspectiva, as coisas são escolhidas em função da experiência15 que os sentimentos proporcionaram. A isso o filósofo denominou de “Desejo”. Bons desejos produzem boas escolhas; desejos maus produzem más escolhas. Esse resultado é racionalmente obtido entre a falta e o excesso das coisas desejadas. Assim, uma regra matemática e a noção de “experiência” mudaram o paradigma da natureza como critério de justo. Paralelamente, Aristóteles aponta os vícios (opostos à virtude) como originários do mesmo processo e, nesse caso, no lugar do prazer e da dor, seriam influenciados pela nobreza e a vantagem, por um lado, e pela vilania e prejuízo por outro. Tomada como fator de distinção entre homens e animais, a virtude, vista como o poder de fazer boas escolhas, torna o virtuoso capaz de escolher bem e produzir vantagens. Ao vilão resta escolher mal e produzir prejuízos, daí o jargão “a vida seria feita de escolhas”. A diferença na escolha seria produzida pela racionalidade, sendo certo que quem foi bem ensinado (o virtuoso) escolhe bem, com nobreza; e, por outro lado, o tolo racionalmente escolhe de maneira vil o prejuízo.16 O objeto de deliberação é algo alcançável (coisa) que se deseja racionalmente, portanto a escolha é fruto de um quais existe excesso, carência e um meio termo” (ARISTÓTELES, 2013, Livro II, 1106b, p. 272). 15 Esta ideia da experiência vivida será fundamental adiante no racionalismo.
  • 10. desejo deliberado de coisas. Ocorre que, está teoria é suficiente para explicar as decisões a partir de escolhas feitas com livre arbítrio, entretanto, existem as decisões a serem tomadas num ambiente onde não há liberdade (escolhas) e que mesmo assim produzem consequências. Para estas, Aristóteles desenvolve um conceito fundamental, a distinção entre as ações voluntárias e as involuntárias,17 sobre as quais não cabem deliberações e que, portanto, não resultarão de uma escolha moral, mas da adoção de um meio para se chegar a um fim. Nesse caso haveria somente uma doxa (opinião) e não uma decisão, na medida em que nessa condição reflete simplesmente uma opção entre o verdadeiro ou o falso e não uma escolha consciente e deliberada. Bom, mas em que essa distinção importaria? A busca pela verdade seria fruto de uma decisão involuntária, ou seja, não fundamentada em uma escolha moral, leia-se aqui como escolha moral, aquele fruto da razão, ou seja, a partir da experiência vivida, buscando um meio termo entre os desejos. Portanto, ao contrário do que acostumados a pensar a escolha racional não busca a verdade, mas o meio termo, a justiça representada pela boa escolha 16 “O aforismo: ‘[...] ninguém é voluntariamente mau, nem involuntariamente feliz’ parece ser em parte falso e em parte verdadeiro, porque ninguém é involuntariamente feliz, mas a maldade é voluntária” (ARISTÓTELES, 2013, Livro III, 1113 a, p. 287). 17 “Atos praticados por escolha são os praticados após deliberação, já aquilo que se faz por ignorância, embora feito com conhecimento de causa, não depende do agente, ou o que é feito sob coação” (ARISTÓTELES, 2013, Livro V, 1135a, p. 332).
  • 11. (virtu) adequada, que pode ser aprendida e praticada. Esta distinção se tornou fundamental, uma vez que a busca pela verdade (bem como suas derivações, como a “verdade real” e a “verdade divina”, se tornou um marco na ciência do Direito, e sua utilização inapropriada, desde o período medieval até os dias atuais, tem sido adotada como parâmetro de uma busca por justiça, ao passo que, originariamente, na concepção aristotélica, estava relacionada apenas com uma “opinião” (algo sobre o qual não há livre deliberação) e não com uma escolha racional. Esse desvio, talvez − ressalte-se talvez − explique a adoção da tortura como método em busca da verdade. Esta foi a tônica, por exemplo, durante toda a inquisição, principalmente durante a vigência do Malleus Maleficarum, 18 quando os métodos processuais inquisitivos em “busca da verdade” foram levados ao extremo. Também a Suma Teológica São Tomás de Aquino na questão 64 (ARNS, 1985, p. 284) chega a afirmar que “[...] quando sucede às vezes que um inocente é acusado falsamente perante um juiz, este, para descobrir a verdade o submete à tortura, agindo segundo a justiça, mas a causa disso é a falta de reconhecimento humano”. 18 A Bíblia ficara aprisionada nos conventos literalmente acorrentada aos púlpitos sendo acessada apenas por uns poucos, enquanto aguardava o movimento Renascentista e de Reforma de Martin Lutero, foi publicado o Malleus Maleficarum, em 1487. Compilado por dois inquisidores dominicanos, Heinrich Kramer e James Sprenger, e fundamentado nas premissas da bula papal Summis Desiderantes, de autoria do Papa Inocêncio VIII, de 5 de dezembro de 1484, foi considerado o principal instrumento, durante os séculos XVI e XVII, na perseguição à bruxaria. Era dividido em três partes: a primeira ensinava os juízes a reconhecerem as bruxas em seus múltiplos disfarces e atitudes; a segunda expunha todos os tipos de malefícios, classificando-os e explicando-os; e a terceira regrava as formalidades para agir "legalmente" contra as bruxas, demonstrando como processá-las, inquiri-las, julgá-las e condená-las, sempre em busca da “verdade”. Kramer e Sprenger oferecem um guia passo a passo sobre como conduzir o julgamento de uma bruxa, desde a reunião de provas até o interrogatório (incluindo técnicas de tortura). É provavelmente o tratado mais importante que foi publicado no contexto da perseguição da bruxaria do Renascimento. Logo recebeu dezenas de novas edições por toda a Europa.