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Capitulo
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Capítulo 4 ,21 Capítulo 20
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Capítulo 5 1.,,1 II Capítulo 21
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Capítulo G ./i:{ '; ~ ,I:' f) .11, I ) r ( i' : 1 i I ; I ('" 1 1 1,' !(
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Capítulo 22
Capítulo 7 -) "!
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Capítulo 23
Capítulo 8 """, TI 100
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Capítulo 9 1 Capítulo 24
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Capítulo 10 .,' ,1/1 Capítulo 25
I' ~j( ::111"11 I, I dI ',I l!l i1j 111(!li •• ,- •....•.•••••• rI I: i1 i: I lU
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Capítulo 11 -4 ~3
1 ~' ,' ~ (i í i :' Capítulo 26 1 1 ;~
Capítulo 12 Ii i 1i!: I
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Capítulo 13
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Capítulo 28
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Capítulo 14 . h()
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Capítulo 29
Capítulo 15
i",1 ,Iv
Apêndice
Capítulo 16
3.
4. .'
•
lvan Jaf
mais conhecedores da natureza humana e do VamplrlSmo. Podemos
fedia a abatedouro, como o da maioria
A lnsônia
de nós, mas, ao contrário,
do Vampiro
era
~í
1Itij;':',':,.~~
•
corno um passeio por um campo de lavanda.
estudar, aprender a ler, a pintar, a falar outras línguas. Podemos nos
Eu não sabia nada sobre ela. Tinha sido indicada por um amigo, um
desenvolver espiritualmente. O espírito não volta ao que era antes, du-
rante o dia, como o cabelo e as unhas. joalheiro judeu, vampiro, sofrendo havia séculos ele uma grave mania
de perseguição.
Procurei, portanto, a psicanálise, que é uma das furmas de desen-
Fiquei curioso para conhecer o "relato" dela.
vulvimento ao alcance dos vampiros e o que mais se aproxima de um
"Relato" é a maneira pela qual a pessoa virou vampiro, e quase sem-
tratamento" .
Naturalmente, a psicanalista era uma v~lll1pira também. prt é o tema que surge na cunversa quando dois de nós se encontram
pela primeira vez. Mas não est~ívamos ali para trocar "rt1atus·'.
Como eu poderia me abrir, falar de mim, sc'm disfarces nem men-
() consultório era numa ckpendê'ncia isobda do apartamento.
tiras, P~lLI uma psicanalista humana, normal? Eu a mataria de susto na
Ao contrário do que eu esperava, era alegre, colorido, com quadros
primeira sessão - além da dificuldade de arranjar horário à noite.
abstratos nas paredes, móveis modernos e um grande janelão aberto
H{l muitos profissionais liberais vampiros espalhados por uma ci-
voltado para o parque.
dade grande. Meu técnico de inform{ltica, que me socorre quando um
Ela se sentou numa poltrona preta, de apar2'ncia muito macia e ma-
vírus invade meu computador, entra voando pela janela do meu escri-
ternal; e eu me deitei em seu "divã", um caixão de jequitibá maciço,
tório. Tenho um encadernador de li vrus cuja oficina é em um jazigo
com braçadeiras de prata, acolchoado por dentro com um veludo preto
perpétuo no cemitério do Caju.
espesso e com dois travesseiros de renda branca, um para a cabeça e
Nós precisamos "viver", como qualquer um. E prestamos serviços
uns aos outros. outro para os pés.
_ Deve entrar muita luz do sol aqui, durante o dia - eu disse.
A minha psicanalista-vampiro tinha consultório em um prédio, na
~- Com todo esse janelão ...
orla de um parque com flores, gramados e árvores frondosas. Devia ser
Foi um comentário bobo, que demonstrava todo o meu descon!i)rto.
muito bonito durante o dia, mas isso nem eu nem ela íamos saber nunca.
_ Certamente - ela sorriu. - Mas eu nunca vi.
À noite era sinistro, Icomo nos convén1, con1 morcegos enormes voando
_ É tudo muito bonito. E impedvel - continuei, sem saber ()
I
~
entre as copas das amendoeiras e v~lgabundos com ares ameaçadores.
Ela morava no décimo andar. O edifício era luxuoso, portaria com que fazer.
- Tenho uma ótima diarist~1.
I piso de mármore branco, maçanet;ls douradas, tapetes orientais ... ainda
I bem que eu não sofria de ausência de reflexo, como acontece com aJguns
- Não consigo encontrar uma boa ...
- O nome "diarista" nos deix;l inconscientemente de m3 vontade.
i, vampirus, pois ~lSparedes eram todas espelh~Hbs e o porteiro
muitu assustado.
teria ficldo
__ É verdade. Este mUIHlo IÚO foi feito para os v;unpiros.
tar encontLlr um;l "noturnisra ".
Vou ten-
Apertou minha milo com firmeza. Seu corpo físico devia ter uns 40
I
#
Ela riu. Eu j-jquei olhando para o tetu.
anos. Entre nós é uma gall:' horrorosa dizer que uma vampira é bem con-
Numa primeira sessiío de an;llise, não h3 como evit~n certo p:lI1ico.
servada. Tinha um sorriso muito doce e franco. Um sorrisu de quem resol-
1 () sujeito est;Í prestes a re'olver o passado, a mexer em {lguas p<lrac1as,
veu todos os seus problemas. Um sorriso que deix;lva a gente à vontade.
a revirar todo o lodo do fundo, a fazer a sujeira vir à tona. Ser 'ampiro
Eu a achei muito bonita. Cabelos escuros presos no alto da cabeça.
I Jeam e camisa social de seda preta. Um olhar penetrante,
corujas. Um corpo leve e ágil, como o dos morcegos.
como o das
Dois caninos pon-
só piora as coisas. Eu tinha mais passado que um livro de História.
sujeira, o lodo ... O que eu estava fazendo ali?
- Vamos começar? - ela perguntou, docemente.
E a
tudos se dest;lcando quando sorria.
E foi assim que inici;lmos minhas sessôes de análise, uma vez por
I
•
Quando ela blou meu nome ... seu tom de voz era suave, mas grave,
nlllt'n rn1110se viesse de aJl!um lugar muitu profundo. E seu hálito nilo semana, às quintas-feiras, às três horas da madrugada .
5. r ~
'.
,]
•
e
• lvan Jaf
A lnsôn;a do Vampiro e•• ((li
~~!
Quanto à minha insônia, logo na primeira sessão ela afirmou ser
- Não posso ficar assim eternamente ... (.
1 apenas uma conseqüência.
Ela sorriu:
••
- Conseqüência de quê? - perguntei.
- Não somos tão eternos assim ...
••
•.
"
Tinha razão. É claro que somos bem menos mortais que as pes-
- Estamos aqui para descobrir.
soas comuns, mas também morremos. O sol nos torra. Se cortam (
_ Nlas eu preciso dormir. Tentei me enterrar, sem caixjo, mas nem
. ' nossa cabeça e a afastam bem do resto do corpo, ou se espetam uma Ie-
aSSln1 conseguI.
_ Esse método só dá certo para males físicos, você sabe.
estaca no nosso coração ... () mais comum em vampiros muito antigos
••
- Estou desesperado ...
é enlouquecer e se matar. Se jogam no fogo, ou esperam o sol nascer
••
_ A instll1ia é o sintoma ele uma crise. E ela se agrava nos vampiros, deitados na areia da praia, ou sentados tranqüilamente
do apartamento.
na varanda
••
por terem
preocupe
dias infinitos
com ela. Quando
pela frente. Mas é apenas um sintoma.
a causa passar, a insônia passa.
Não se
Meu apartamento tinha varanda.
- Vamos nos concentrar nas Glusas de sua crise, e não na insônia
••
Ia-
- ela insistiu. - Você acabará dormindo.
- Tudo bem. ••
Ela também explicou que psicanálise para vampiros era diferente a-
da que se pratica com humanos.
- No seu caso, por exemplo, não é possível nos
••
(w.
basearmos nas relações com pais e mães biológicos
porque, depois de tantos séculos, não há como se
••
lembrar direito deles, não é? •••
- Não lembro mesmo. Q.
- Os vampiros têm um segundo nascimento, ••
que é a noite em que viraram mortos-vivos, e esse
••
costuma ser um trauma mais marcante do que () par-
to, o desmame ou uma surra do pai. Nesse segundo ••
nascimento, surge inevitavelmente um segundo pai, ••
~__ ou mãe: o vampi.ro, ou vampira, que os transformou ••
"':~:': em mortos-VIVOS.
- E ~sse eu reCOf(,I 1:
o lem. F' um van1pJ[o . •••
~ IJtt,.
,"',:-:.• +.' ."
- .
11' •.•.,.,.
maluco.
()J
••
- Nossos segundos pais são mais importan- •••
tes do que os pais biológicos porque não nos •••
dão a vida, mas a quase-eternidade, o que gera uma rela-
ção de amor e ódio muito mais profunda. E duradoura ...
•••
-Entendo ... ••••
- Vamos partir daÍ. Do seu n:lS(llll('lllo (01110 ••••
vampiro. •••
~
6. lvan Jaf
4»
_ Certo. Então vou iniciar contando o meu "relato", em Portugal, no
século ...
Ela colocou a mão direita em meu ombro. Seu toque foi suave e
relaxante. E o mais espantoso é que não a senti se mexer. Eu podia jurar
que não havia sido a mão dela, porque sua voz continuou distante, vin-
do lá da poltrona. Mas só havíamos nós dois ali.
_ Não _ ela disse. - Por favor. Nada de começar pelo "pai" e vir
até o ano 2006 ... Basear o processo psicanalítico num resgate da memória
pessoal de um sujeito de ')00 anos levaria toda a eternidade ...
-- É verclade.
_ Um ego de 500 anos não tem mais jeito - ela riu. - Faremos
uma recapitulação da sua vida, como a psicanálise prega, mas não foca-
da na sua pessoa. Em nossas sessões, você trará à tona histórias de outros
vampiros que conheceu. Vamos ver como eles viveram e enfrentaram
seus destinos. E como o influenciaram.
i •
~,
..
:,
.
.
_ Vou ficar falando dos outros?
_ É uma boa maneira de tentar aplacar a angústia egomaníaca que
faz as pessoas não conseguirem se desligar dos seus problemas pessoais,
não acha?
_ Não sei por onde começar ...
l
h
I,.
_ Escolha alguCm no passado ... Algum vampiro que tenha sido
I importante na sua vida mudado seu destino ...
Ficamos em silêncio. Ela esperava que eu começasse a falar, mas me
....
.
senti vazio e desconfortável.
1~
·f. Mexi-me um pouco no caixão. Fechei os olhos.
I' Deixei afinal o espírito me guiar, para trás, no tempo; nas lembsanças ...
O primeiro a surgir foi Raimundo Pascoal.
Meu velho amigo Raimunclo Pascoal. Um vampiro que, na Lisboa
n
J.
do século XVIIl, enlouqueceu e resolveu ser pai.
I!
.
,I
1
7. •
a• Ivan Jaf
t' 1'1,:) J 11' U ••..• '"'
A Peste Negra matou
de um velho moribundo que agonizava junto a uma pi-
--:'.
milhões de pessoas a
partir do século XIV
lha de cadáveres. clinou a cabeça sobre u meu pescoço e mordeu minha ju-
guIar. Lembro apenas que estremeci e comecei a ouvir meu
o Malle1l5
foi
maleflcarurn
(1111 Illamlal
fi
na Ásia e na Europa. Era o ano da Peste Grande, como ficou conhecida a fi
"
mado por pcldres
A doença, causada coração bater forte, como um tambor numa gruta, cada vez dOnllnlCallos para
por uma bactéria, é terceira e maior epidemia de todas, em que chegaralli a enSllldl os IllquislLiOl'esa
mais fórte, e senti um alívio completo de todas as dores que
transmitida ao homem
pelas pulgas dos ratos.
morrer setecentas pessoas por dia em Lishoa. Já não ha- vinha sofrendo por causa da peste, e chorei de felicidade l"ec(JI-',heu;;ren i as bru'clS
"
•
e seus Illdiefi(io~;, O
via onde enterrar os corpos. Jogavam-se os «HLlveres em enquanto via imagens e ulvia suns dei minha infinci;l. Mel!
Em seu primeiro estágio, livro inrJic,:w(-l m:;ll()clo:~
valas comuns, às dezenas, para serem comidos pc!os «les,
•
a peste provoca febre de tortura p~lraa
e inchaços na pele, ratos e doninhas. curpu j()j amolecendo e esfriandu, balançando nos hraços
COllfi'-,:.;âu do',; uílfles,
du vampiro como uma calça no v:T:l1 numa noite fria, atC-
chamados de bubos
- dai ser conhecida A peste era fulminante. A pessoa podid cair morta na
qUl·ele-retirou os dentes, arrotou t' me jogou lk volta :1 pi-
,iJf::,'lll de' ilJ:,llll',()es
pdr-cl <, (01 Hk'ncll:~lo •
também como peste
bubônica. Em seguida,
rua sem antes ter sentido nada. A Igreja tinha certeza de que
se tratava de castigo do céu pelos pecados dos cristãos-novos.
lha de cadáveres, COIl1U os hum:lllos Clzem com o pauzill!Jo
FUIplCliI.lldopela
iCllejd ciPPOIS de •
a bactéria invade a
corrente sangüinea O mau cheiro dos corpos apodrecendo era insuportável.
dC'Puisque acabam de chupeIr o picoll-. p"hIIGldo, ulIl',icl"rado
dlltiHIlO (" Ilegal, o •
e causa hemorragia
Mais de um terço da populaç;lo de Lisboa morreu.
Assim que ele se aLIstou tive uma sede terrível e chu-
que IIdU 11!Ii'PUIU sua
•
,
interna Hoje em dia é pei o sangue de um corpo de mulher que estav;l perto, r~puhli(ilG'lo. Ficou
rara e mdlS facilmente
controlada, graças ao
Umas 40 mil pessoas.
também vivo, e que acabara de ser chupado pelo mesmo mui10 f,Hlloso 11<1 época.
NllIl(d loi usado na
•
,. • As epidemias de Peste Negra sempre foram consi-
H
uso de antibióticos.
A Peste Grande foi
a maior epidemia de
deradas grandes geradoras de vampiros. Mas isso é um
mito. O motivo não era a peste em si.
vampiro. Havia sangue dele no pescoço dela.
Foi assim que me tornei vampiro.
Não foi nada grandioso.
illquisi,du Católica, mas
CJdllhouadeptos entre
os protestantes, que
,,
,
também fizeram uma
Portugal. Na época,
Um tratado publicado pela Igreja, denominado Maf.-
intensa caça às bruxas
J muitos a chamaram leus mal(~jicarum, de 1484, e aprovado pelo papa Inocên- -Você está contando o seu "relato". - A psicana-
~ de "peste sem nome", cia VIII, reconheceu a existência dos mortos-vivos. Pou- lista balançou a cabeça. A Reforma Protestante
Ii
porque era proibido
, ~
foi um movimento de 4
/ mencionar a doença. co depois, a Reforma Protestante corroborou a crença de - Saiu sem querer... - me desculpei. contestação das práticas
Prejudicou a economia - Nada aqui sai sem querer. da Igreja Católica no •
que a Peste Negra gerava esses mortos-vivos, com o pró-
do pais, pois mUitos século XVI que dividiu o
r
~
camponeses morreram
e deixaram as terras
prio Lutero afirmando que ouvira cadáveres mastigando
em suas tumbas. Isso só reforçou o mito.
- É que isso tem ligação com a forma como encon-
trei Raimundo ...
cristianismo, fundando
as Igrejas Protestantes,
•
II
da IgrejiJ e dos nobres Martinho Lutero
Ií sem cultivo. O governo
Na verdade, o fato de não se dar um enterro cris-
Não era a Peste Negra, portanto, que gerava os vam- liderou o movimento, "
impôs uma série de tão decente às vítimas, pela rapidez e qHantidade em que apresentando COIllO
medidas preventivas, piros, como acreditava o povo. O que acontecia era que, pl'illcipals reivilldicacóf'~_ II
como o isolamento e morriam, levava o povo a acreditar que os mortos não
o fim ela compra do
a sindlização das casas haviam morrido em paz, e isso jc1os predispunha a achar quando se espalhava a notícia de que a epidemia estava
perdào 1)PloI,pe;ri" I
11
JI dos doentes, além
de punições áqueles
que estavam gerando mortos-vivos. Quando os ouviam assolando uma cidade, vampiros
nham para farrear com o sangue
de todas as partes vi-
fúto dos moribundos.
COllletlcio p " lr"cill';(J('
das E,crlll1r.r', (,11111 ",
,I
,.
que não cumprISsem
as normas: multas,
se mexer. .. Mas era comum cadáveres se mexerem, e até
se autodevorarem, porque muitas pessoas atacada;; pela E tinham liberdade de ação, já que ninguém se preocu-
so elll 1011111) 11,)1,1 !l',
idiolllas de' 1 ,J(I,II',II·.
I
açoitamento e até pava em investigar as mortes. Afirmou a e,II'<I(liI,III'
mesmo a morte. peste, n3 pressa, eram enterradas ainda vivas. Sei disso
moral e IlldIVlilll.rII',II,'
Na embriaguez da hehida, não se preocupavam em
I' porque foi o que aconteceu comigo.
Acordei do torpor da doença dentro de uma cova ain-
da aberta, ao ser puxado para fora por uma figura sombria,
matar as vítimas depois, como deve ser feito; ao contrá-
rio, deixavam restos de seu próprio sangue lambuzados no
atingir a SaiV<lldl', '.1 '111
precisar de rlt(l,II'., ' 1 '1111'
exigia o cat(illi 1"1111 ,
numa noite gelada de dezembro de 1506, em Lisboa. pe~coço delas, as quais, por sua vez, precisavam de sangue
,I Fui erguido no ar sobre os outros cadáveres, e o homem,
muito magro e alto, com uma cabeleira branca imensa, in-
e mordiam os corpos meio-mortos ao lado, bebendo restos
de sangue de vampiro, tornando-sI' v:llllpiros l:llltll("lll, ,_
assim por diante.
8. •
e
• lvan Jaf
As feiterias feram
Raimundo Pascoal foi um desses vampiros a chegar
as primeiras bases a Lisboa em 1569, atraído pela peste, depois de mais de
que os portugueses
montaralT, nas coiônias
trinta anos peregrinando pelos campos miseráveis de
Elas serviam para Portugal, alimentando-se de vacas, ratos e uma ou outra
gual'diu suprimentos
como comida, armas e
rapariga que lhe lembrasse a amada Almerinda.
ferramentas, e também Vinha com uma sede tremenda. Assim que acabou de
como po';to piHa
estclbel"cer trocas de
chupar o sangue do velho, ia partir para o pescoço ele uma
produtos com indlos. negra praticamente morta, com o corpo já coberto pelas fe-
A rir,'iils, no
ridas, quando eu o arrastei para os fundos ele uma constru-
Brasil, foi fumlacla em
15U4 em Cabo friO ção de pedra e ordenei que parasse com aquilo.
- hojl' unia eicldde _ Chupar o sangue dos mortais é uma arte que ne-
do estado cio Rio de
Janeiro.
cessita de capricho e moderação - disse a ele, com meu
ar afetado de vampiro culto.
As capitanias
Eu já era um vampiro experiente nessa época, com
hereditárias foram
criadas para ajudar
4R anos de corpo mortal e mais 63 de vampiro criado
Portugal a colonizar as na metrópole, freqüentando a Corte da Rainha viúva
terras brasileiras
O rei dividiu o território
D. Catarina, levando uma vida calma e refinada, culti-
em enormes "fatias", vando meu espírito, dedicando-me a prazeres eruditos
que iam do litoral até
o interior descollhecido,
como a pintura, a música e a literatura e acompanhando
para entregá-Ias a expansão colonial portuguesa, que, àquela altura, já es-
a quem qUisesse tabelecera feitorias por toda a África e dividira o Brasil
explorar suas riquezas.
Os berlf'ficiados em capitanias hereditárias.
eram c11alllaclos de Não queria ver minha Lisboa infestada de mortos-
r
j •
"donatárlos",
apesar de Ilão serem
os donos da terra,
porque,
vivos sem nenhuma classe; por isso, rondava à noite as
valas onde jogavam os corpos para impedir que vam-
li
reprec,entavam a
autondade máxima 110
piros como Raimundo gerassem mais vampirqs como
local. Os dOllatários Raimundo.
Ilao pilgavam impostos, Ele me escutou, humilde, de cabeça baixa. Eu já esta-
mas deviam fUlldar vilas
e atrair colemos para
va de costas, me afastando, quando ouvi seu pedido:
1
II cultivar a terra, _ Queria ser como o senhor. Estou cansado de ser
,I
um morto-vivo sujo e atrasado, vestindo essas r@upas
' rasgadas e molambentas, retiradas de cadáveres de ce-
mitério. Quero ser assim ... Falar bem ... Usar punhos de
renda, gargantilhas e perucas ...
' Alguém que sinceramente nos admira, que diz que
fará tudo para ser como nós, nos é irresistível.
Foi assim que começou nossa amizade.
1
9. •
~
a
• lvan Jaf
A lnsônia do Vampiro
fv10uros eram os povos
árabes muçuimanos
o rei acabou mesmo partindo para a África, com oi-
tocentas naus. Raimundo quis ir junto, mas tive de con- simplesmente sumira num turbilhão de sangue e areia. A idéia de !Juinto
do Norte da j1.frica que
ocuparam a região Quando a primeira nau chegou a Lisboa trazendo a no- el'a uma
da Peninsula Ibérica
vencê-ia da inutilidade de um soldado que só poderia
antiga profecia, Uplca
combater à noite. tícia, Raimundo Pascoai estava no cais, como tàzia todas as
durante a expansão do do per'íocJo barroco
Império Muçulmano, no Foi sorte meu amigu nio ter ido. O rei nio quis se- noites desde que o rei partira. Ao saber que o corpo não fóra portugués >:'.;11,:,
século VIII d.C encontrado, gritou que D. Sebastião não havia l1lorrido 1 segundo d qual PortuCJa!
O domínio rnuçulmaflo
guir os conselhos prudentes de guerrear a partir da costa, sucecierlcl os quatro
começou em 711 e 56 apoiando-se na esquadra naval. Resolveu ir terra adentru Tanto confundira o rei consigo mesmo que acredi- g'·alld~·, wlll;~'''QS ela
temllrlOU em 1492, tava que D. Sebastião era imortal como um vampiro. E AntlCluldacle 82IJllónia,
e vencer o inImIgo em casa.
(-0111 as ~Juerras dp Medu-- F;!"~~;"i,C; I'pua
comcçou a gritar no meio do povo que o rei voltaria I
reconquista. Os mouros gostar:lm dess:1 estratégia. Deixaram que ~ P,:II Ia f C p"clre
O longo perlodo ele os inimigos se afundassem cada vez mais nas areias du (:OIllO ninguém queria acreditar na morte física do j('SUltCi ,tJltUI"iIG 2Ira
dominação rJei>:ou It:,'Uf~J('-11 il~'UL: d ,;cie,'d no
deserto. Quando jj n:lo havia mais :ígua nem comida, rei, nJO havia mesmo um corpo para provar sua morte, e
marcas profundas da IIIUI"I"lt-'lllu H-:"I CI,-ie a
cultura .31'abc 1--13
ilrl9ua, D. Sebastiio e us 16 mil homens que ainda estavam de pé o fmatismo católico da época bcilitava a crença em qual- IÇJI·f::'.icl CI:ltcJlic':1 l:Jusc(j':a
na arqultf'llüa e nas rede]ir ;':1Réiorma
fóram atacadus e destroçados. Os poucos que conseguiram quer absurdo, a verSJO de Raimundo Pascoal se propa- f'rol,,·~.tilllll· que fiCOU
praticas ITltilt,lres dos ,,O
gou como f~)go em palha st'cI. (Lllil
povos daquela região escapar levaram a Lisboa :1 notícia: não haviam visto o rei C cntre:-
E, na verdade, chegou até nossos dias. r~E-"rcnl(iJ) I reunindo
de Portugal morrer nem cair prisioneiro. D. Sebasti:lo
. • Constantlnopla, Ele er: um vampiro teimoso. Se ainda estivesse mor-
un-Ia PI"oposta poiitKa
I! PaiesliIld e f'v'lt1rro(os
forar1l palcos de grandes to-vivo, seria sebastianista até hoje, ou seja, acreditaria
P I ell(jlu:,a
o c1cslitlQ e a missão da
Coroa Pmtuguesa
pala ailrrnar
de
batalhas entre crrstaos
que D. SebastiJo não morrera e que voltaria para levar IUtlt& cristãos e Judeus
e muçulmanos durante
as Cruzadas- uma Portugal novamente aos seus dias de glória, consertando tluma única crença.
série ele batalhasqú'é tudo o que está errado e fundando o <)Ul!lt,) !lll!,t'li ••.
os árabes muçulmanos
11 Mas D. Sebastião nJO apareceu nunca mais. Nem os
I . e os europeus cristilos
travaram ao longo de deram notícias dele. Portugal, tendo gasto o
partr' da Id,1dc· Média
que nJO tinha na empreitada,
r.
~
por rdzéJe', pollticas
p religiosas. Urna das
_
prltlClpeil'. dlspllta'. era
perdido a maior parte de seus
fidalgos e precisando pegar di-
If pelei posse dil <' idildr.' de
Jerusalem, local silnto nheiro com a Espanha par:l pag:1r
i
,
pala ludeus,
e IllUçullTlallos
Cttstilus
I
'.----'-,'--=:~_;;F;,:~----_/.r--'--_
L---- ------.
11
.. ..
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d
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I'
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11
10. e
•
•
lvan Jaf
o resgate aos mouros pelos nobres que sobreviveram, acabou anexado à
Espanha, em 1580, e se afundou de vez.
Com o reino passando por tantas dificuldades, o povo tão desiludido
e miserável, o sebastianismo criado pelo meu amigo tornou-se uma epide-
mia espiritual, alienante, como as novelas de tevê hoje em dia.
Nesse período, eu morava na minha quinta, a uns vinte quilômetros
de Lisboa. Construíra, num porão sem janelas, de paredes de pedra,
um sarcélfago de mármore com uma tampa bem pesada, onde instalei
um cômodo caixão de nogueira para passar confortavelmente os dias. À
noite, saía para passear em Lisboa, onde possuía um pequeno sobrado
no Bairro Alto, e ia à Ópera, ao teatro e às festas na Corte. Era recebido
normalmente, sem que ninguém desconfiasse ele que tninha pele com-
pletamente branca não era pó-de-arroz.
Algumas noites, não resistindo à tentação de beber sangue humano,
atacava alguma fielalga. Depois, me apropriava de seus bens, principal-
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~.
,I mente ouro e jélias, e dessa fórma juntava dois remorsos num só.
L Raimundo Pascoal seguia meus passos.
Vestia-se como eu, aprendia a andar como eu, lia o que eu lia (de-
pois que o ensinei a ler), assistia aos espetáculos que eu recomendava,
enfim, tentava ser uma cópia mais nova de mim.
II
n Mas era meio louco. Isso acontece com freqüência. Simplesmente
I,
há espíritos que não se adaptam ao vampirismo.
Nunca esqueceu Almerinda.
I;.
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Fora transformado em vampiro justamente quando o que mais
I
1I
queria na vida era casar-se e ter filhos. Essa impossibilidade
desesperou para o resto de suas noites.
eterna o
_ Não se deve transformar uma pessoa em vampiro se ela est~1pres-
li tes a realizar um desejo -lembrou minha psicanalista. - Seu espírito
t I fica preso a esse desejo irrealizável.
_ É verdade - concordei.
n' _ Assim como levamos as marcas do nosso corpo físico para a eterni-
, . dade dos mortos-vivos, também levamos os desejos insatisfeitos.
_ E naquele tempo não havia psicanálise ... Minha sorte é que, de-
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pois de semanas na agonia da peste, quando fui transformado em vam-
piro, já não desejava mais nada a não ser morrer.
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11. •
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• lvan Jaf
A lnsônia do Vampiro
~]
:
Santos Padres são os
"Pais da IgreJa", que
culpa em dela, por "ter a madre seca". Talvez, por ser tros afirmavam que os distraíam os ataques de piolhos, os quais infesta-
viveram entre os séculos
religiosa demais, não inspirasse muito a libido real. vam as perucas da nobreza, chupando mais sangue que todos os vampiros
,] ',< 11e VII, no Oriente e no Não era para ser uma gravidez comum. O rei pre- portugueses juntos. Para os crentes, Deus podia estar querendo dispensar
OCidente, d'lvu',gando
cisava procriar com sua rainha e ter um filho homem, a o rei e fazer que a rainha concebesse sem pecar, como lvIaria, pijra que, no
e construindo mUitos
dos conceitos e normas fim de assegurar uma suceSSJO tranqüila. Por isso nJO se futuro, Portugal tivesse um novo Messias como soberano ... que bem podia
da Igreja Católica que falou em outra coisa por muito tem po em Lisboa: como ser o próprio D. Sebastião, como imaginava Raimundo Pascoa1.
vigoram até hoje
I Muitos deles foram
perseguidos e mortos
fazer D. João V ser pai.
Foi então que Raimundo
.
Pascoal voltou a pensar no
Alguns, mais práticos, sugeriam uma infinidade
tros, promessas
cle- chás, emplas-
e obrig:lvam a rainha a reZilr o ten;o na cama, emhaixo
I
I
por suas atlvlrlarlps
Idelas, Santo Ago"tlnho
e São Jerônlmo foram
algum dos Salltos
e
assunto com obsessão, como se o problema
se também
patriotismo.
o seu, numa mistura de desejo
do rei fos-
particular e
de s~u cobertor de penas trazido da Áustria, depois qllC' () rt'i pilrtia, rl~-
pt'tindo sem parar uma "ave-mari;
do vosso ventre ... " até dormir.
cht'ia cle-graça (...), bendito C- u frutu
Padres,
Dizem que ela se confessava minutos antes de fIzer St'xo, (UIll medo
Em 1580, o relllo - Raimundo projetava-se na figura elos' reis - a dt' morrer em pecado durante o ato.
português se
subordinou à Espanha
psicanalista Lllou. - O rei é uma encarnação ela figura Raim1l1do Pascoal acompanhou toda eSsa movimt'ntac,:ãu. Rezava
paterna e estabelece um vínculo muito forte com seus o terço, fazia l1ovena, sofria com os alarmes falsos, sempre aflito para
,
,.
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A Rl'stauraçãc),
seis décadas
se deu por uma
ocorrida
depois, súdi tos. saber das novidades.
n
,I. conspiração formada - Pois é. () problema de D. João V passou a ser o Foi um dos que mais vibraram quando, afinal, a notícia da gravi-
por UITI grupo de
problema do meu amigo vampiro. Gerar um filho. dez se espalhou. Era como se o filho fosse dele, e, a rainha, sua amada
nobres que levou o
Almerinda.
duque de Bragança ao
,I o
.1
trono, restabelecerldo a sexo real virara assunto de Estado. A rainha Porém, como o filho 11:10 era dele, pass;lda a euforia Raimundo
"
soberania portuguesa,
D. Maria Ana Josefa chegara da Áustria havia j~l dois caiu na realidade, e numa melanculia profunda. Deixou de freqüentar
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anos para dar infantes à Coroa, e nada. () rei, toda a Cor- as festas na Corte, a ()pera, o teatro. Saía à l1oÍtl', solitário, pelas vielas
te o sabia, cumpria a sua parte duas vezes por semana, imundas de Lisboa, percorria os bairros pobres cLt cidade, alimentan-
,
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1.
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" religiosamente. O povo fazia nove nas e oraçê'>es. , du-se do sangue de cães vadios que perambubvillll aus milhares por
A rainha seguia os preceitos médicos. Ficava abso- toda a parte.
p lutamente imóvel depois de o rei sair ela cama, l;;jara que Às vezes mordia o pescoço de algum bêbado in(ol1scit'nte nas sarje-
não se perturbassem os líquidus comuns, Nas vésperas, tas e aparecia na quinta embriagado, resmungando sem pilLtr que que-
LlZia suas devoções, visitava o convento elas carmelitas ria ser pai, amaldiçoando () dia em que havia se tornado vampiro e se
11 descalças da Conceição dos Cardais, rezava novenas para afastara de Almerinda.
J I São Francisco Xavier, proferia o nome dos santos de hora Tive paciência. Era meu amigo.
em hora, inteirava-se dos martírios a seu favor e ~utros Cuidava dele, Seguia-o à noite para ver por onde andava. Vigiava
f
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II
. sacrifícios particulares de padres e freiras nos conventos para saber quem eram suas companhias. Que pescoços mordia.
I. por todo o reino. E nada. E, já na cama com o rei, antes
do ato, rezavam os dois, para que dessa nova tentativa
Culpo-me, ainda hoje, por não estar com ele na madrugada
25 de abril de 1755, quando tudo aconteceu.
do dia
l' ; resultasse afinal um herdeiro para o trono.
,, I Uns diziam ser a quantidade de percevejos na cama
ll' real que impedia
A l,,;vn 'l F.n~ rl" nllP
a gravidez,
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e para isso rezavam a Santo
lilr",~~f'rb nr:lp':lf' rb (,o(,f'ir:l.Oll-