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A ascensão das finanças especulativas1 
Dominique Plihon 
Um dos traços marcantes da economia mundial neste fim de século XX 
consiste na instabilidade que afeta as relações monetárias e financeiras 
internacionais. Há uma sucessão de crises nas Bolsas e no mercado cambial. Esta 
ascensão da instabilidade nos mercados internacionais está diretamente associada 
ao processo de globalização financeira, que atribui um poder exorbitante aos 
mercados e à especulação. 
O processo de globalização financeira 
A globalização financeira é a instauração de um mercado unificado do 
dinheiro em âmbito planetário. Isto significa que as empresas multinacionais 
industriais e financeiras podem contratar empréstimos ou aplicar fundos sem 
limites onde e quando queiram, recorrendo a todos os instrumentos financeiros 
existentes. 
Hoje em dia, o sistema financeiro internacional tornou-se um 
megamercado único do dinheiro, caracterizado por uma dupla unidade: de lugar, 
já que as diversas praças são cada vez mais interconectadas graças às modernas 
redes de comunicações; e de tempo, já que o sistema funciona de modo contínuo, 
vinte e quatro horas por dia, nas praças do Extremo Oriente, da Europa e da 
América do Norte. 
A globalização traduziu-se por um fenômeno de “descompar-timentalização 
dos mercados” (décloisonnement des marchés), mediante a queda 
das fronteiras entre mercados separados até então. Houve a abertura dos mercados 
nacionais para o exterior, em primeiro lugar; mas também, dentro deles, estouro 
dos compartimentos existentes: mercado monetário (dinheiro de curto prazo), 
mercado financeiro (capitais de prazo mais longo), mercado cambial (intercâmbio 
das moedas entre si), mercados a prazo, etc. Doravante, aquele que investe (ou 
toma emprestado) procura o melhor rendimento passando de um título para outro, 
ou de uma moeda para outra, ou de um processo de cobertura para outro: de um 
título de dívida em francos franceses para um em dólar americano, da ação para a 
opção, da opção para o futuro... Em suma, estes mercados particulares (financeiro, 
cambial, de opções, futuro, etc.) tornaram-se subconjuntos de um mercado 
financeiro global que, ele próprio, se tornou mundial. 
(1) Artigo apresentado no Seminário dos Docentes do Instituto de Economia da UNICAMP, Campinas, 
maio 1995. Traduzido do francês por Catherine Marie Mathieu. 
Economia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995
O swap é um exemplo significativo dessas inovações financeiras que são 
destinadas a facilitar a circulação dos capitais. Trata-se de uma troca de débito 
entre duas empresas, permitindo que cada qual possa se beneficiar das condições 
de empréstimo mais favoráveis num determinado mercado. Ilustremos com o caso 
de uma operação de swap em divisas. Uma empresa americana está precisando 
deter marcos alemães para uma de suas filiais. Ela primeiro toma emprestados 
dólares nos Estados Unidos em condições vantajosas, por ser conhecida e bem 
conceituada nesta região. A empresa norte-americana pode então realizar o swap 
(a troca) de seu empréstimo com uma empresa alemã que, de modo simétrico, está 
procurando dólares mas pode mais facilmente obter marcos num melhor preço em 
seu próprio mercado. 
Crescimento vertiginoso das finanças internacionais 
No passado, a função do sistema financeiro internacional era garantir o 
financiamento do comércio mundial e dos balanços de pagamentos. De fato, o 
processo de globalização financeira, em seu início, é satisfatoriamente explicado 
pela necessidade de financiar os desequilíbrios mundiais nos balanços de 
pagamentos (Oliveira-Martins & Plihon, 1990). Em 1986 e 1987, os movimentos 
internacionais brutos de capitais atingiam US$ 300 bilhões, quantia que 
correspondia às necessidades de financiamento mundiais mensuradas por meio da 
soma dos déficits correntes dos grandes países industriais. Posteriormente, no 
entanto, os fluxos financeiros internacionais sofreram uma progressão explosiva, 
numa tal magnitude que não mais podia ser relacionada às necessidades da 
economia mundial (Chesnais, 1994). Os dados a seguir são eloqüentes. Por um 
lado, a soma dos déficits externos correntes mundiais estabilizou-se abaixo de 
US$ 300 bilhões ao ano no começo da década de 90. Por outro, no mesmo 
período, cerca de US$ 1 trilhão circulou por dia nos mercados cambiais das 
principais praças financeiras, o que representou um acréscimo da ordem de 50% 
durante os três anos anteriores. Além disto, as transações no mercado cambial 
induzidas pelas operações financeiras são cinqüenta vezes maiores que aquelas 
relacionadas ao comércio internacional de bens e serviços.2 
A interpretação dos dados é simples: as finanças internacionais estão se 
desenvolvendo hoje de acordo com sua própria lógica, a qual não tem mais que 
uma relação indireta com o financiamento dos intercâmbios e dos investimentos 
na economia mundial. A parte essencial das operações financeiras internacionais 
de hoje consiste nos movimentos permanentes de vaivém entre as moedas e os 
diversos instrumentos financeiros. 
(2) Fonte:Bank of International Settlements (BIS). 
6 2 Economia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995
Predominância da lógica especulativa 
Este crescimento vertiginoso das finanças internacionais corresponde a 
uma mudança sistêmica, no sentido de que a própria natureza do sistema 
transformou-se, já que este passou a ser dominado pela especulação (Bourguignat, 
1995). É famosa a definição clássica da especulação dada em 1939 por Kaldor: 
“compra ou venda de bens com a intenção de revenda (ou recompra) num 
momento ulterior, quando a ação é motivada pela esperança de uma modificação 
do preço vigente e não por uma vantagem decorrente do uso do bem, uma 
qualquer transformação ou a transferência de um mercado a outro”. 
De acordo com esta concepção, as operações especulativas possuem 
quatro características: a) implicam uma tomada de riscos, vale dizer, tomadas de 
posição em taxas de juros e/ou taxas de câmbio; b) são motivadas pela esperança 
de realização de mais-valias relacionadas às variações antecipadas dos preços dos 
ativos; c) são “puras” ou “secas”, ou seja, auto-suficientes, e não têm 
contrapartida direta na esfera real da economia; d) são na maioria das vezes 
realizadas a prazo, ou seja, os capitais envolvidos são tomados emprestados pelos 
especuladores. 
Kaldor distinguia três categorias de operadores dos mercados financeiros: 
aqueles que buscam a cobertura dos riscos de taxas de juros ou de câmbio; os 
arbitragistas, que procuram lucrar com os diferenciais de taxas sem tomar assumir 
riscos; e os especuladores, que se expõem de modo deliberado aos riscos de taxas 
com intuito de realizar lucros sob a forma de ganhos em capital. 
Sem ser inexata, essa abordagem da especulação se mostra hoje em dia 
por demais estreita. Na realidade atual dos mercados, os comportamentos 
especulativos assumiram uma dimensão mais importante. Tornou-se impossível 
estabelecer a linha de demarcação entre especulação pura, arbitragem e proteção 
contra os riscos (Plihon, 1991). Deste modo, a maior parte das arbitragens 
internacionais não é coberta e implica em assumir um risco.3 Na realidade, em se 
tratando de administrar com eficiência um portfólio de ativos multidivisas, de 
otimizar o caixa pluridivisas de uma empresa multinacional, ou ainda de 
transmitir do melhor modo possível uma ordem de cliente no mercado 
interbancário, os comportamentos dizem respeito à lógica especulativa, na medida 
em que resultam de expectativas de variações das cotações dos títulos ou das 
moedas. 
Hoje em dia, uma parte importante das transações financeiras recebe o 
impulso direto das antecipações quanto à evolução futura das cotações. Por outro 
lado, afirmar que os mercados tornaram-se fundamentalmente especulativos 
(3) A maior parte dos fluxos de capitais corresponde a arbitragens não cobertas em câmbio e é descrita 
pela teoria da paridade das taxas de juros não coberta (PTJNC). De acordo com a PTJNC, os diferenciais de 
taxas de juros entre as moedas são iguais às taxas de variação antecipadas das taxas de câmbio. 
Econ omia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995 63
significa também ressaltar dois outros aspectos (Cartapanis, 1994). Em primeiro 
lugar, os atores que raciocinam em prazo muito curto nos mercados são hoje 
predominantes. A crescente miopia de todas as categorias de operadores é 
unanimemente ressaltada (Goodhart, 1988; Goldstein et al., 1993). Em segundo 
lugar, os operadores tendem a se abstrair da realidade dos fundamentos 
(fundamentals) em benefício da busca de uma opinião sobre a tendência do 
mercado. Esse desvio especulativo intervém porque os mercados tornaram-se mais 
voláteis e os investidores carecem de pontos de referência para ancorar suas 
expectativas. 
Os instrumentos da especulação 
As transações de caráter especulativo tomam, em sua maior parte, a forma 
de compra e venda de títulos nos mercados financeiros. Elas são registradas nos 
balanços de pagamentos no item investimentos em portfólio. A evolução recente 
dessas operações financeiras, descrita pelos dados estatísticos do Bank of 
International Settlements (BIS), revela claramente a ascensão destes movimentos 
de capital especulativo. 
Tabela 1 
Movimentos de portfólio 
(média anual em US$ bilhões) 
1976-80 1981-85 1986-90 1991 1992 1993(1) 
SAÍDAS 
Estados Unidos 5,3 6,5 13,6 44,7 48,0 125,4 
Japão 3,4 25,0 85,9 74,3 34,4 51,7 
Europa Ocidental 6,2 27,7 82,1 148,1 168,4 260,6 
- Reino Unido 2,3 13,5 26,6 51,6 55,4 142,4 
Países em desenvolvimento(2) 8,7 3,6 3,5 10,7 10,5 20,5 
- NEI3 da Ásia 0,1 0,2 1,2 2,3 2,3 3,1 
- Outros Ásia 0,0 0,0 0,2 0,3 0,5 2,0 
- América Latina 0,2 0,1 2,3 7,7 6,4 14,8 
ENTRADAS 
Estados Unidos 5,2 29,4 44,7 54,0 67,2 103,9 
Japão 5,1 12,6 26,9 115,3 8,2 -11,1 
Europa Ocidental 16,7 25,9 99,1 185,5 221,8 396,5 
- Reino Unido 2,3 3,5 24,7 34,4 35,7 61,5 
Países em desenvolvimento 1,9 4,1 8,2 27,9 50,7 91,9 
- NEI3 da Ásia 0,1 0,5 0,3 4,2 7,3 13,8 
- Outros Ásia 0,2 1,7 1,3 0,9 0,4 9,7 
- América Latina 1,3 1,2 5,4 22,0 39,7 67,9 
(1) Dados em parte estimados. 
(2) Exclusive Hong Kong. 
(3) Novas Economias Industriais. 
Fonte: Bank of International Settlements (BIS). 
6 4 Economia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995
Tabela 2 
Fluxos internacionais de capitais em investimentos de portfólio e transações subjacentes(1) 
(em % do PIB) 
1975 1980 1985 1990 1993 
Estados Unidos FC 
TS 
0,9 
4,2 
0,7 
9,3 
2,1 
36,4 
0,9 
92,1 
3,8 
134,9 
Japão FC 
TS 
0,6 
1,8 
1,6 
7,7 
5,7 
62,5 
2,5 
121,0 
1,5 
78,7 
Alemanha FC 
TS 
0,4 
5,1 
0,6 
7,5 
3,8 
33,9 
1,6 
54,9 
8,9 
169,6 
França FC 
TS 
0,7 
3,3 
0,7 
6,7 
2,2 
29,1 
4,3 
58,7 
5,2 
196,0 
Itália FC 
TS 
0,1 
0,9 
0,2 
1,1 
0,4 
4,0 
3,5 
26,6 
7,1 
274,6 
Reino Unido FC 
TS 
0,2 
n.d. 
2,0 
n.d. 
7,4 
366,0 
4,4 
689,0 
21,7 
1015,82 
Canadá FC 
TS 
0,2 
3,3 
0,7 
9,6 
1,1 
26,7 
0,5 
64,2 
3,1 
152,7 
(1) Fluxos de capitais: valor absoluto do total de entradas e saídas brutas de capitais 
sob a forma de operações de portfólio; transações subjacentes: total das compras 
e vendas entre residentes e não-residentes. 
(2) Dados de 1991, últimos da série. 
FC = Fluxos de capitais. 
TS = Transações subjacentes. 
Fonte: Bank of International Settlements (BIS). 
Constate-se, em primeiro lugar, que os investimentos em portfólio 
cresceram fortemente nesses últimos dez anos nas principais regiões do mundo: o 
volume de entradas e saídas em 1993 foi sete vezes maior que o nível anual médio 
observado durante o período 1981-85 (tabela 1). Mas os dados sobre balanços de 
pagamentos subestimam a realidade, pois registram os saldos, ou seja, fluxos 
líquidos. As transações financeiras efetivas, mensuradas através dos fluxos brutos, 
são ainda maiores: a tabela 2 mostra justamente que os fluxos brutos tiveram uma 
progressão vertiginosa nos últimos anos, ultrapassando facilmente 100% do valor 
do PIB nos principais países industriais. Esta diferença crescente entre fluxos 
líquidos e fluxos brutos permite avaliar a magnitude que as operações 
especulativas assumiram. 
O papel dos mercados de derivativos 
Os produtos derivados, ou derivativos, tornaram-se uma das armas mais 
eficientes da especulação. A primeira função desses instrumentos, que constituem 
uma das maiores inovações financeiras dos últimos vinte anos, consiste em 
propiciar uma cobertura contra os riscos de taxas de juros e de taxas de câmbio; 
vale dizer, contra uma variação prejudicial antecipada de ativos ditos 
“subjacentes”, tais como as ações e as divisas estrangeiras. Deste modo, num 
Econ omia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995 65
período de alta das taxas de juros, um administrador de certo tipo de ações 
procurará se precaver contra o risco de queda futura da cotação de seus ativos 
financeiros. Este administrador pode se precaver por exemplo ao comprar uma 
opção de venda (put) no Mercado de Opções da Praça de Paris (MONEP). O risco 
ligado às taxas é então transferido para uma contrapartida, mediante pagamento de 
um prêmio. 
Os swaps de taxas de juros são um outro instrumento eficiente de 
proteção contra o risco de taxas. Quando se antecipa um aumento das taxas, uma 
empresa endividada com juros variáveis realiza um swap de taxas fixas contra 
taxas variáveis, de modo a estabilizar o peso de sua dívida. 
Ao lado dos operadores que recorrem aos derivativos com intuito de se 
precaver constam os especuladores, no sentido definido anteriormente. Hoje em 
dia, a maior parte (por volta de 75%) das transações que envolvem esses produtos 
é de natureza especulativa. Isto explica seu crescimento vertiginoso: de acordo 
com os dados do Bank of International Settlements (BIS), o valor nocional dos 
derivativos foi multiplicado por treze entre 1986 e 1993, atingindo neste último 
ano pelo menos US$ 13 trilhões nos mercados internacionais. 
Tabela 3 
Mercado de alguns derivativos 
(US$ bilhões) 
1988 1989 1990 1991 1992 1993 
Mercados organizados 1306,0 1768,3 2291,7 3523,4 4640,5 7839,3 
Contratos a prazo de taxas de juros 895,4 1200,6 1454,1 2157,1 2902,2 4960,4 
Opções de taxas de juros 279,2 387,9 599,5 1072,6 1385,4 2362,4 
Contratos a prazo de divisas 11,6 15,6 16,3 17,8 24,5 29,8 
Opções de câmbio 48,0 50,1 56,1 61,2 80,1 81,1 
Contratos a prazo de indicadores de Bolsas 27,8 41,8 69,7 77,3 80,7 119,2 
Opções de indicadores de Bolsas 44,0 72,2 96,0 137,4 167,6 286,4 
Mercados não organizados .... .... 3450,3 4449,4 5345,7 .... 
Trocas de taxas de juros 1010,2 1502,6 2311,5 3065,1 3850,8 .... 
Trocas de divisas 319,7 449,1 577,5 807,2 860,4 .... 
Outros instrumentos conexos .... .... 561,3 577,2 634,5 .... 
Fonte: Bank of International Settlements (BIS). 
O paradoxo levantado pelos derivativos decorre do fato de que estes 
instrumentos têm por objeto a cobertura contra os riscos financeiros e, no entanto, 
tornaram-se uma das causas da instabilidade das cotações contra a qual eles 
supostamente defendem os agentes econômicos. Na verdade, constituem 
instrumentos particularmente eficientes para os especuladores, em função dos 
poderosos efeitos de alavancagem que permitem. Desta maneira, nos mercados 
organizados, os contratos a prazo de instrumentos financeiros permitem que se 
assumam posições especulativas imobilizando apenas uma parte pequena da 
6 6 Economia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995
liquidez sob a forma de depósitos de garantia (3% no MATIF - Mercado a Prazo 
da França). O mesmo acontece no caso das opções de câmbio, em que o prêmio 
pago pelo comprador de opções pode se inscrever numa relação de 1 por 100 com 
o ganho esperado. 
Os atores principais das finanças internacionais 
As operações financeiras internacionais resultam das atividades de três 
categorias de operadores: os bancos, as empresas e os investidores. 
Os bancos controlam cerca de 75% do mercado de derivativos. Alguns 
tomam para si posições especulativas acionando um efeito de alavancagem 25 
vezes maior que os capitais envolvidos. 
Os investidores institucionais estão desempenhando um papel cada vez 
mais relevante. Trata-se em primeiro lugar dos fundos de pensão, particularmente 
poderosos nos Estados Unidos e no Reino Unido, que administram os sistemas de 
aposentadoria por capitalização. Suas aplicações passaram de US$ 3,9 trilhões em 
1986 para US$ 6,9 trilhões em 1993 (US$ 3,6 trilhões nos Estados Unidos). 
Tabela 4 
Magnitude do portfólio global dos fundos de investimentos 
(US$ trilhões) 
1988 1993 
Fundos de Pensão 3,9 6,9 
OACVM (Mutual Funds) 1,8 3,0 
Total 5,7 9,9 
Existem também os Organismos de Aplicação Coletiva em Valores 
Mobiliários (OACVM) ou Mutual Funds, cujos ativos passaram, de 1988 a 1993, 
de US$ 1,8 a US$ 3 trilhões (US$ 2,1 trilhões nos Estados Unidos). Uma 
categoria de investidores é especializada nas operações puramente especulativas: 
são os hedge funds4 ou fundos de alta performance, dos quais o mais importante é 
o famoso Quantum Fund, administrado por G. Soros. Este fundo parece ter 
assumido um papel crucial nos ataques especulativos de 1992-93, que explodiram 
o sistema monetário europeu. Soros teria lucrado US$ 1 bilhão ao jogar pela 
queda da libra esterlina. 
O montante de títulos estrangeiros detidos por investidores é avaliado em 
cerca de US$ 1 trilhão, ou seja, cerca de 10% do total de seus ativos. Esse caráter 
(4) Esses hedge funds, fundos de cobertura, têm um nome muito pouco apropriado, dado que seu 
objetivo primeiro é a especulação. 
Econ omia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995 67
de internacionalização das aplicações está inscrito numa estratégia de 
diversificação por parte dos investidores. De fato, todos os modelos teóricos, entre 
os quais o mais famoso é o modelo de portfólio, mostram que a diversificação 
permite aumentar o rendimento médio e reduzir a volatilidade do rendimento dos 
portfólios. 
No entanto, esses modelos mostram também que a diversificação 
internacional é muito instável, sendo que os pesos ótimos dos ativos em diferentes 
divisas varia muito em função dos rendimentos esperados. Na prática, é o que se 
observa: os ativos estrangeiros detidos pelos investidores não constituem uma 
aplicação estável, já que os investidores modificam com freqüência tanto o seu 
nível quanto o seu grau de cobertura contra os riscos de taxas de juros e de 
câmbio, e passam com facilidade de uma divisa para outra. O grau de 
instabilidade das aplicações é portanto maior no que diz respeito aos ativos 
estrangeiros do que no caso dos ativos nacionais. Deste modo, pode-se pensar que 
os comportamentos de diversificação e de arbitragem entre as praças financeiras 
por parte dos investidores internacionais não deixam de exercer uma 
responsabilidade quanto à instabilidade dos mercados financeiros. 
A responsabilidade dos atores públicos 
As autoridades públicas nacionais desempenharam um papel essencial na 
ascensão das finanças internacionais, de dois modos distintos. Em primeiro lugar, 
ao realizar a desregulamentação e a destaxação das operações financeiras, o que 
facilitou enormemente a mobilidade internacional do capital financeiro. 
A desregulamentação foi um dos elementos impulsores da globalização 
financeira. As autoridades monetárias dos principais países industriais aboliram as 
regulamentações nacionais, de modo a tornar mais fácil a circulação internacional 
do capital. Houve a abertura do sistema financeiro japonês em 1983-84, 
amplamente imposta pelas autoridades americanas, seguida pelo desmantelamento 
dos sistemas nacionais de controle cambial na Europa, com a criação do mercado 
único de capital em 1990. Este processo está inscrito no âmbito de uma onda de 
liberalização dos movimentos de capitais, que se iniciou nos Estados Unidos e 
alastrou-se posteriormente pelo mundo. 
Os atores públicos também contribuíram fortemente para o 
desenvolvimento das finanças mundiais ao recorrerem maciçamente aos mercados 
financeiros internacionais para financiar sua dívida. O crescimento do mercado 
internacional de títulos de dívida foi amplamente sustentado pelos empréstimos 
públicos. A dívida pública constitui atualmente o suporte privilegiado das 
aplicações internacionais. 
6 8 Economia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995
A França: um caso exemplar 
A França, cujo sistema financeiro sofreu recentemente um verdadeiro big 
bang, é uma ilustração muito eloqüente da ascensão das finanças especulativas e 
de suas conseqüências. Assistiu-se primeiro a um aumento violento dos 
movimentos de capitais registrados no balanço de pagamentos (Plihon, 1994). Em 
1980, os fluxos registrados repartiam-se entre 71% para as transações correntes e 
29% para os movimentos de capitais (tabela 5). Em 1993 essa distribuição estava 
totalmente revertida, dado que as transações correntes só representavam 23% e os 
capitais cerca de 77% dos fluxos do balanço de pagamentos da França. Os 
movimentos de capitais ultrapassam agora 100% do PIB, porcentagem que em 
1980 era de apenas 14%. É interessante salientar que essa expansão dos fluxos 
financeiros externos aconteceu quando o balanço das transações correntes estava 
se aproximando de uma situação de equilíbrio, com um saldo médio inferior a 1% 
do PIB no decorrer do período recente! 
Este domínio esmagador dos fluxos financeiros deve-se em grande medida 
ao crescimento explosivo dos investimentos em portfólio (maior que 50% por ano 
em média desde 1990). No entanto, o avanço dos investimentos diretos, mais 
ligados à esfera produtiva, foi muito mais lento: em 1993 não representavam mais 
que 1% dos fluxos registrados no balanço de pagamentos. 
Tabela 5 
Estrutura do balanço de pagamentos francês. Divisão dos fluxos reais e financeiros em % dos fluxos totais 
Participação no balanço global (fluxos em %) 1980 1980 1986 1986 1993 1993 
crédito débito crédito débito crédito débito 
Transações correntes 71,1 72,5 56,7 56,2 23,9 23,3 
Movimentos de capitais* 
28,8 
27,5 
43,3 
43,8 
76,1 
- investimentos de portfólio 
(8,0) 
(7,9) 
(34,5) 
(29,1) 
(70,8) 
- investimentos diretos 
(2,0) 
(2,0) 
(1,7) 
(2,4) 
(1,1) 
76,7 
(70,5) 
(1,1) 
Movimentos de capitais (em % do PIB) 14,3 13,8 26,5 27,1 106,9 108,0 
(*) Variação de valor. 
Fonte: A partir dos relatórios anuais do Balanço de Pagamentos do Banco da França. 
O caráter especulativo dessas operações é evidenciado também pela forte 
volatilidade do saldo dos investimentos em portfólio. Após ter aumentado no 
momento do boom dos mercados de Bolsas no início dos anos 90, o saldo sofreu 
violenta reversão em 1994 depois da crise do mercado de títulos de dívida. Essas 
evoluções confirmam que os investidores estrangeiros vão para os títulos 
franceses a partir de uma ótica amplamente especulativa, com intuito de realizar 
mais-valia de curto prazo. 
Percebe-se, por outro lado, que uma parte significativa das compras de 
ativos franceses por não-residentes consiste em títulos da dívida pública 
Econ omia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995 69
(tabela 6). O Tesouro francês foi, de fato, um dos tomadores de empréstimos 
públicos mais dinâmicos nos mercados internacionais. Ofereceu títulos muito 
atraentes aos investidores, notadamente os Títulos Assimiláveis do Tesouro 
(TAT). Essa política teve êxito: cerca da metade dos títulos franceses comprados 
por não-residentes consistiu em títulos públicos (tabela 6) no decorrer dos últimos 
anos. O caráter especulativo desses investimentos é comprovado pelo fato de que 
parte importante das compras de TAT por não-residentes é financiada por 
empréstimos em francos junto aos bancos franceses. 
Tabela 6 
Evolução do balanço de pagamentos francês 
Fluxos líquidos(a) (FF bilhões) 
1989 1990 1991 1992 1993 1994 
I. Investimentos diretos (saldo) -54,3 -98,3 -53,2 -16,8 -0,1 -6,2 
II. Investimentos de 
A. investimentos franceses no exterior 
B. investimentos estrangeiros na França 
C. investimentos em títulos públicos 
razão C/B em % 
D. instrumentos condicionais 
Saldo: A + B + D 
-42,3 
+181,2 
+106,5 
58,8 
- 
-138,8 
-46,1 
+234,1 
+142,0 
65,8 
- 
+188,0 
-84,2 
+167,0 
+46,1 
27,6 
-2,2 
+80,6 
-101,4 
+282,9 
+183,9 
64,8 
+5,5 
+187,0 
7 0 Economia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995 
-171,7 
+194,8 
+90,2 
46,3 
-1,8 
+21,2 
-110,7 
-160,0 
-178,5 
111,5 
-0,8 
-271,7 
III. Outros movimentos de capitais -49,0 -6,3 +10,3 -192,8 -80,0 +221,2 
Balanço global de capitais(b) 
I + II + III 
+35,5 
+83,4 
+37,7 
-22,6 
-58,9 
-56,7 
(a) sinal + : entrada de capital (aumento dos débitos externos). 
sinal - : saída de capital (aumento dos créditos externos). 
(b) inclusive o ajustamento, exclusive as transferências de capital. 
Fonte: a partir dos dados do Banco da França. 
Esses comportamentos especulativos constituem doravante uma 
verdadeira “espada de Dâmocles” por sobre a cabeça das autoridades públicas 
francesas. A política monetária é amplamente ditada pelos interesses dos 
investidores estrangeiros, que hoje detêm cerca de um terço da dívida pública 
francesa. O Banco Central controla com dificuldades suas principais variáveis-objetivos 
(taxa de juros de curto prazo e massa monetária). As taxas de juros 
francesas são determinadas de modo a evitar movimentos de capitais suscetíveis 
de desestabilizar a taxa de câmbio. Do mesmo modo, a quantidade de moeda 
escapa em parte do controle do Banco da França.5 De fato, a evolução da massa 
(5) A endogeneidade da criação monetária de origem externa não se deve apenas ao regime de câmbio 
fixo do franco dentro do Sistema Monetário Europeu (SME). Cada vez mais, ela é ligada à mobilidade de 
capitais com o exterior.
monetária está crescentemente afetada pelas operações monetárias realizadas com 
o exterior, como mostram os dados da tabela 7. 
Tabela 7 
Contribuição das operações com o exterior para a criação de moeda 
(%) 
1989 1990 1991 1992 1993 
Crescimento de M3(*) 
Crescimento de M3 decorrente da contra-partida externa 
+9,6 
-0,6 
+8,9 
-2,3 
+2,5 
+0,2 
+5,2 
+2,8 
-1,5 
+4,8 
(*) Taxa de crescimento em doze meses. 
Fonte: A partir dos relatórios anuais do Conseil National du Crédit. 
A especulação afeta os mercados financeiros emergentes 
No começo dos anos 90, os novos países industrializados da Ásia e da 
América Latina tornaram-se atores relevantes na esfera financeira internacional. 
Isso constitui o fenômeno dos Mercados Financeiros Emergentes (MFE). A 
participação dos MFE na capitalização mundial em Bolsas passou de 2,5% para 
9% entre 1983 e 1993. 
O êxito dos MFE é explicado por seus rendimentos elevados (algumas 
praças financeiras da Ásia conseguiram realizar entre 50% e 100% em 1993). Tais 
rendimentos estão pouco correlacionados com os mercados dos países 
desenvolvidos, fato que favorece a diversificação dos riscos dos investidores 
internacionais. 
A chegada maciça de capitais privados nos MFE, favorável a priori ao 
crescimento dos países receptores, pode provocar a gestação de bolhas 
especulativas. De fato, as entradas de capitais criam a ilusão do êxito financeiro e 
se traduzem por uma sobrevalorização das moedas locais, o que penaliza o 
crescimento. A reação dos mercados financeiros pode gerar crises financeiras 
graves. Enquanto existe confiança por parte dos investidores estrangeiros, a bolha 
especulativa infla. Mas assim que surge um movimento de descrédito instaura-se 
um círculo vicioso em que saídas repentinas e maciças de capitais precipitam a 
explosão da bolha. 
A crise do México de 1994-95 ilustra o perigo das finanças especulativas 
para as economias emergentes: desestabilização do sistema financeiro, degradação 
da solvabilidade, recessão brutal, contágio dos outros MFE. Uma das lições da 
crise do México mostra a incompatibilidade que parece existir entre, de um lado, a 
fragilidade e a necessidade de financiamento estável dos países emergentes e, de 
outro lado, a impaciência e o caráter hiper-reativo dos mercados (CEPII, 1995). 
Econ omia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995 71
Questionamento dos esquemas de análise tradicionais 
O fato de a lógica especulativa ter se tornado dominante nos mercados 
financeiros leva a reconsiderar os esquemas habituais da análise econômica, os 
quais são baseados em três postulados: a homogeneidade dos comportamentos, o 
equilíbrio geral e as expectativas racionais. O funcionamento efetivo dos 
mercados financeiros desmente amplamente essas hipóteses que fundamentam as 
abordagens teóricas mais usuais, em particular a nova escola clássica e a teoria da 
eficiência dos mercados.6 
Os modelos-padrão das finanças supõem a existência de um agente 
representativo que expressa um único tipo de comportamento descrito pelo 
modelo de expectativas racionais. De acordo com essa concepção, todos os 
operadores têm um objetivo de otimização sob a restrição do rendimento de seu 
portfólio. As antecipações são baseadas nas leis econômicas supostamente 
estáveis (os fundamentos), tais como a paridade do poder aquisitivo e a paridade 
das taxas de juros.7 
Essa hipótese de um agente representativo homogêneo é contrária à 
realidade dos mercados financeiros. Sabe-se, efetivamente, que existem duas 
grandes categorias de operadores nos mercados. Ao lado dos fundamentalistas, de 
quem acabamos de tratar, há os chartistas ou noise traders cujo comportamento é 
muito diferente. Eles reagem a rumores e procuram realizar lucros especulativos 
aproveitando-se da volatilidade dos mercados; seu horizonte de tempo é, em geral, 
muito estreito (algumas horas ou algumas semanas). 
Esses profissionais, cujo peso relativo vem crescendo, “fazem o 
mercado”. Eles constituem um meio extremamente hermético em que “todo 
mundo pensa o mesmo no mesmo momento”. Os mínimos rumores ou news se 
revestem então de uma importância considerável em decorrência da miopia dos 
operadores. Em tal contexto, as expectativas vão se formando de acordo com um 
processo mimético. Cada operador baseia suas expectativas naquilo que deverá ser 
a opinião média do mercado, e não em informações econômicas exógenas como, 
por exemplo, o lucro das empresas ou o crescimento econômico. 
Essa abordagem não é nova; foi formulada por Keynes, que justamente 
definiu a especulação como “a atividade que consiste em prever a psicologia do 
mercado”.8 Na situação de incerteza, ou seja, quando o futuro não é 
probabilizável, o mimetismo é um comportamento racional, pois permite 
(6) A teoria da eficiência dos mercados consiste na aplicação aos mercados financeiros e cambiais do 
modelo de concorrência pura e perfeita com expectativas racionais. Sua conclusão mais relevante é que as 
cotações dos títulos e das moedas são eficientes na medida em que refletem toda a informação disponível nos 
mercados. 
(7) Essas teorias explicam a evolução das taxas de câmbio em função dos preços relativos dos bens e 
serviços entre países (paridade do poder aquisitivo) e em função dos diferenciais de taxas de juros (paridade das 
taxas de juros). 
(8) Esta análise está no capítulo XII da Teoria geral. 
7 2 Economia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995
aproveitar a informação supostamente veiculada pelo mercado (Orlean, 1989). 
Essa forma de racionalidade evidentemente é muito diferente daquela postulada 
pela teoria das expectativas racionais. Não há aqui o homo oeconomicus 
otimizador num universo estacionário definido por leis econômicas conhecidas 
por todos. 
Num processo de imitação generalizada, em que cada um copia o outro 
pensando que está possuindo a informação, enquanto nenhum agente está 
informado, o preço que se forma não reflete senão a psicologia do mercado e não 
contém nenhuma informação. É um processo de expectativas auto-realizadoras 
em que um preço vai se autoconfirmar mesmo sendo muito diferente de seu nível 
de equilíbrio fundamental. A cada opinião média do mercado corresponde um 
equilíbrio diferente: trata-se daquilo que a teoria contemporânea chama de 
equilíbrios conjecturais ou equilíbrios múltiplos. Esse conceito de equilíbrios 
múltiplos é usado com freqüência para descrever o funcionamento dos mercados 
financeiros e cambiais (Obstfeld, 1994). Ele vira as costas à concepção-padrão 
segundo a qual os mercados financeiros convergem espontaneamente para um 
equilíbrio geral estacionário. 
Essa ascensão dos comportamentos de especulação transformou a 
dinâmica dos mercados financeiros. Notou-se assim que as variáveis financeiras 
(taxas de juros e de câmbio) seguem leis de distribuição estatísticas que fogem à 
hipótese de distribuição normal postulada pelos modelos tradicionais. A análise 
dos dados sugere, notadamente, que as variáveis financeiras não são estacionárias 
e que sua volatilidade (ou variância) tornou-se instável, com tendências 
explosivas9 (Atlan et al., 1990; Tamisier et al., 1990). Por outro lado, pesquisas 
teóricas recentes mostraram que a interação entre operadores “fundamentalistas” e 
“chartistas” gera uma dinâmica de mercado instável, do tipo caótica, cujas 
características são próximas daquelas empiricamente observadas (Hsieh, 1991; 
Grauwe et al., 1993). 
Em suma, parece desejável reter um modelo diferente daquele postulado 
pela teoria-padrão para explicar o funcionamento dos mercados financeiros, dado 
o papel central assumido pela especulação. Os principais traços distintivos desses 
dois modelos estão apresentados no quadro 1. 
(9) Muitos estudos recentes mostraram que as distribuições estatísticas das cotações dos títulos e das 
moedas são heterocedásticas (inconstância da variância) e leptocúrticas, com distribuição assimétrica e achatada 
nas extremidades (fenômeno de cauda espessa da distribuição). 
Econ omia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995 73
Quadro 1 
Dois modelos teóricos de mercados financeiros 
Modelo I 
“novos clássicos” 
7 4 Economia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995 
Modelo II 
de inspiração keynesiana 
Agregação: passagem 
micro-macro 
Hipótese do agente 
representativo 
Leva em conta a interação entre agentes 
heterogêneos 
Racionalidade dos 
agentes 
Racionalidade individual e 
otimizadora na base 
dos “fundamentos” 
Dois tipos de racionalidade: 
- fundamentalista 
- chartista: racionalidade coletiva, 
mimética 
Ambiente dos 
operadores 
- Leis econômicas estáveis e 
conhecidas por todos 
- Eventos econômicos 
probabilizáveis 
- Processos econômicos complexos, 
irregulares e apenas parcialmente co-nhecidos 
- Eventos econômicos futuros incertos e 
não-probabilizáveis 
Concepção do equilíbrio Equilíbrio geral e convergência 
para um estado estacionário 
- Equilíbrios múltiplos, indeterminação 
do equilíbrio ótimo 
- Possibilidade de processos divergentes 
e explosivos 
A impotência das políticas monetárias 
As autoridades monetárias das principais potências financeiras caíram 
agora na própria armadilha. Por um lado, conforme vimos, os poderes públicos 
nacionais desempenharam um papel de catalisador no crescimento explosivo das 
finanças internacionais. Por outro, a massa de capitais suscetíveis de se deslocar a 
qualquer momento entre as diversas praças financeiras tornou-se uma ameaça 
permanente para as autoridades monetárias. Há quem não hesite em considerar 
que os mercados exercem uma verdadeira tirania sobre as políticas econômicas 
(Bourguignat, 1995). 
De fato, a experiência recente sugere que os instrumentos tradicionais de 
política monetária perderam eficiência. Isto é particularmente verdadeiro, no que 
diz respeito às políticas cambiais dos bancos centrais. No passado, essas políticas 
eram sustentadas por três instrumentos principais: intervenções esterilizadas no 
mercado cambial, manipulação das taxas de juros e controle cambial. A 
liberalização financeira levou à supressão do controle cambial. Quanto aos outros 
dois instrumentos, sua eficiência tornou-se fraca em períodos de crise nos 
mercados. 
As reservas cambiais dos bancos centrais, mesmo aumentadas pelas 
facilidades oficiais de empréstimos, são doravante insuficientes para enfrentar 
ataques especulativos capazes de pôr em jogo quantias consideráveis a partir de 
compromissos relativamente pequenos (particularmente através dos produtos 
derivativos). As reservas oficiais dos dez principais países industriais alcançam 
apenas US$ 400 bilhões, o que é pouco em face dos movimentos de capitais
suscetíveis de se deslocar. Deste modo, durante a crise de julho de 1993, que 
levou à ampliação em ±15% das margens do Sistema Monetário Europeu, o 
Banco da França perdeu – sem êxito – a totalidade de suas reservas em divisas. 
Além disso, a manipulação da taxa de juros tem um efeito limitado frente a um 
movimento de profunda desconfiança em relação a uma moeda (a título de 
ilustração, para defender eficientemente uma moeda vítima de ataques 
especulativos baseados numa desvalorização antecipada de 10% no horizonte de 
um mês, seria necessário elevar até mais de 120% o nível das taxas de curto 
prazo, o que, evidentemente, é incompatível com os objetivos internos da política 
monetária). 
Duas correntes de pensamento estão se opondo quanto ao modo de 
restauração da eficiência das políticas monetárias. A primeira corrente consiste na 
da nova escola clássica, cujas hipóteses mais relevantes foram apresentadas supra 
no quadro 1. Enfatiza-se a credibilidade da política monetária, com base na 
independência do banco central. De acordo com esta abordagem, a impotência das 
políticas monetárias perante a especulação em contexto de perfeita mobilidade de 
capitais pode ser explicada por meio das expectativas auto-realizadoras. Em 
outras palavras, os mercados provocam as crises cambiais ao antecipá-las. São os 
ataques especulativos que causam as modificações de política econômica. 
Quando uma moeda sofre um ataque, um equilíbrio múltiplo se instaura. 
Dependendo da reação do banco central, podem existir dois equilíbrios de longo 
prazo: se o banco central tiver fama de “fraco” (wet central bank), o ataque leva a 
uma desvalorização imediata da moeda, que decorre de uma falta de credibilidade 
da política monetária; se o banco central for “forte” (dry central bank), reage com 
um aperto na política monetária, e se tal reação for antecipada, a taxa de câmbio 
valoriza-se imediatamente. Portanto, de acordo com essa abordagem, um banco 
central crível não sofrerá ataques especulativos. 
Uma segunda concepção da política monetária, de inspiração keynesiana, 
considera que a credibilidade não constitui uma proteção suficiente contra a 
instabilidade decorrente da especulação. A idéia central, nesse caso, é que os 
mercados não podem se auto-regular e estão sujeitos ao risco sistêmico (Aglietta 
et al., 1990). Por risco sistêmico entende-se um risco de instabilidade global que 
resulta da propagação dos movimentos especulativos nos mercados, quando a 
interação dos comportamentos individuais, longe de desembocar em ajustamentos 
corretivos, aprofunda os desequilíbrios. A crise sistêmica está relacionada com o 
funcionamento do próprio sistema, só podendo portanto ser solucionada mediante 
uma regulação de origem externa (fora dos mercados), tal como a intervenção das 
autoridades monetárias. 
A ação reguladora das autoridades pode assumir duas formas principais. 
Em primeiro lugar, trata-se de instaurar uma coordenação forte das políticas 
econômicas entre as principais potências econômicas e financeiras. O principal 
Econ omia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995 75
objetivo dessa medida consiste em enviar aos mercados sinais coerentes que 
forneçam uma âncora para as expectativas dos operadores. Observou-se, de fato, 
que as finanças especulativas traduzem-se por desequilíbrios múltiplos que 
correspondem a expectativas distintas. O único meio de encontrar o “bom” 
equilíbrio consiste em suscitá-lo por intermédio da fixação de objetivos 
concertados de política econômica. Tais tentativas de coordenação ocorreram por 
ocasião dos encontros de cúpula do G7, mas até agora fracassaram, pois os 
nacionalismos monetários continuam levando vantagem mesmo em face da 
dimensão planetária que as finanças adquiriram. 
A segunda série de medidas que permitiriam a redução da especulação 
consiste em executar uma retaxação e uma re-regulamentação das operações 
financeiras. O objetivo, nesse caso, é desacelerar a mobilidade do capital e limitar 
a tomada de riscos nos mercados. Um dos motivos para a desconexão entre a 
economia real e as finanças especulativas é o fato de que estas últimas tomaram 
uma velocidade de rotação demasiadamente rápida. Os preços e as transações nos 
mercados financeiros assumem hoje tal velocidade graças à liberalização e às 
inovações tecnológicas, enquanto as trocas de bens e serviços são por natureza 
muito mais inertes. Convém reduzir esta defasagem entre as velocidades de 
ajustamento das esferas real e financeira, pois ela é fonte de instabilidade, como 
demonstrou, notadamente, Dornbusch (1976), em relação às taxas de câmbio. 
Keynes já sugerira em 1936 que uma taxação das transações financeiras 
aumentaria o peso dos operadores “fundamentalistas” e reduziria a importância da 
especulação. Retomando esta idéia, Dornbusch & Tobin (1978; 1995) propuseram 
a imposição de uma taxa uniforme e universal sobre as transações de câmbio. 
Bastaria uma taxação baixa para desincentivar as transações especulativas de 
curto prazo: uma taxa de 0,5% sobre as arbitragens internacionais, que se 
traduzem num movimento de vaivém entre duas moedas, resultaria num 
sobrecusto de 4% em ritmo anual para as operações em três meses, de 12% para 
as operações em um mês e assim por diante. Essa taxação representaria uma carga 
bem leve para o setor produtivo e inibiria a maior parte dos movimentos 
especulativos. 
Esta proposta foi criticada por sua falta de realismo. De fato, somente 
seria eficiente se todas as praças financeiras a praticassem. No entanto, os 
interesses que ficariam prejudicados por esta medida são tão importantes e 
poderosos que as autoridades monetárias ainda não se atreveram a executá-la. 
Há hoje um consenso quanto à necessidade de elaborar novas políticas de 
regulamentação. A desregulamentação financeira deve, efetivamente, conviver 
com uma regulamentação cautelar rigorosa. Isto significa que a atual liberdade 
dos operadores deve ser contrabalançada pelo respeito a normas estritas de boa 
administração e de cautela. 
7 6 Economia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995
O risco sistêmico torna-se cada vez maior à medida que boa parte das 
operações foge de qualquer controle. Esta observação é particularmente aplicável 
no caso dos mercados derivativos livres, cujo crescimento selvagem ao longo dos 
últimos anos é preocupante. Se por um lado parece que as autoridades públicas 
não estão (ainda) prontas para taxar as operações especulativas, por outro não 
seria de surpreender que os riscos de mercado fossem, num futuro próximo, objeto 
de um controle cautelar cada vez mais rigoroso. A recente inclusão desses riscos 
nas formas de cálculo de taxas de solvabilidade constitui uma primeira etapa nesta 
direção. 
Este artigo procurou mostrar que as finanças internacionais entraram 
numa nova era, dominada pela lógica especulativa. Trata-se de uma mudança 
sistêmica que exige a elaboração de novas concepções de políticas públicas. 
Alguns temas de reflexão foram propostos, mas – como freqüentemente ocorreu 
no passado – o economista e o tomador de decisões público estão hoje atrasados 
em relação à realidade econômica e financeira. 
Dominique Plihon é professor da 
Université de Paris-Nord, Paris, França. 
Referências bibliográficas 
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TOBIN, J. A proposal for international monetary reform. Eastern Economic Journal, v. 4, 1978. 
Resumo 
O texto aborda a predominância da lógica especulativa no processo de globalização financeira. Trata 
dos instrumentos e dos vários atores envolvidos na ascenção das finanças especulativas, observando 
com maior atenção as experiências da França e dos Novos Países Industrializados da Ásia e da 
América Latina. Finalmente, propõe uma reelaboração das concepções das políticas públicas tendo 
em vista as mudanças nas finanças internacionais. 
Palavras-chave: Globalização financeira; Finanças especulativas; Finanças internacionais; Novos 
Países Industrializados. 
Abstract 
This paper approaches the increasing role of speculative logic in the process of financial 
globalisation. Instruments and actors involved with the mounting position of speculative finance are 
dealt with. The particular experiences of France and Asian and Latin American Newly 
Industrializing Countries are used as illustrations. Finally, the author proposes a re-evaluation of 
public policies, at the light of current changes in international finance. 
Key-words: Financial globalisation; Speculative finance; International financial system; Newly 
Industrializing Countries. 
7 8 Economia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995

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A ascensão das finanças especulativas e a globalização dos mercados

  • 1. A ascensão das finanças especulativas1 Dominique Plihon Um dos traços marcantes da economia mundial neste fim de século XX consiste na instabilidade que afeta as relações monetárias e financeiras internacionais. Há uma sucessão de crises nas Bolsas e no mercado cambial. Esta ascensão da instabilidade nos mercados internacionais está diretamente associada ao processo de globalização financeira, que atribui um poder exorbitante aos mercados e à especulação. O processo de globalização financeira A globalização financeira é a instauração de um mercado unificado do dinheiro em âmbito planetário. Isto significa que as empresas multinacionais industriais e financeiras podem contratar empréstimos ou aplicar fundos sem limites onde e quando queiram, recorrendo a todos os instrumentos financeiros existentes. Hoje em dia, o sistema financeiro internacional tornou-se um megamercado único do dinheiro, caracterizado por uma dupla unidade: de lugar, já que as diversas praças são cada vez mais interconectadas graças às modernas redes de comunicações; e de tempo, já que o sistema funciona de modo contínuo, vinte e quatro horas por dia, nas praças do Extremo Oriente, da Europa e da América do Norte. A globalização traduziu-se por um fenômeno de “descompar-timentalização dos mercados” (décloisonnement des marchés), mediante a queda das fronteiras entre mercados separados até então. Houve a abertura dos mercados nacionais para o exterior, em primeiro lugar; mas também, dentro deles, estouro dos compartimentos existentes: mercado monetário (dinheiro de curto prazo), mercado financeiro (capitais de prazo mais longo), mercado cambial (intercâmbio das moedas entre si), mercados a prazo, etc. Doravante, aquele que investe (ou toma emprestado) procura o melhor rendimento passando de um título para outro, ou de uma moeda para outra, ou de um processo de cobertura para outro: de um título de dívida em francos franceses para um em dólar americano, da ação para a opção, da opção para o futuro... Em suma, estes mercados particulares (financeiro, cambial, de opções, futuro, etc.) tornaram-se subconjuntos de um mercado financeiro global que, ele próprio, se tornou mundial. (1) Artigo apresentado no Seminário dos Docentes do Instituto de Economia da UNICAMP, Campinas, maio 1995. Traduzido do francês por Catherine Marie Mathieu. Economia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995
  • 2. O swap é um exemplo significativo dessas inovações financeiras que são destinadas a facilitar a circulação dos capitais. Trata-se de uma troca de débito entre duas empresas, permitindo que cada qual possa se beneficiar das condições de empréstimo mais favoráveis num determinado mercado. Ilustremos com o caso de uma operação de swap em divisas. Uma empresa americana está precisando deter marcos alemães para uma de suas filiais. Ela primeiro toma emprestados dólares nos Estados Unidos em condições vantajosas, por ser conhecida e bem conceituada nesta região. A empresa norte-americana pode então realizar o swap (a troca) de seu empréstimo com uma empresa alemã que, de modo simétrico, está procurando dólares mas pode mais facilmente obter marcos num melhor preço em seu próprio mercado. Crescimento vertiginoso das finanças internacionais No passado, a função do sistema financeiro internacional era garantir o financiamento do comércio mundial e dos balanços de pagamentos. De fato, o processo de globalização financeira, em seu início, é satisfatoriamente explicado pela necessidade de financiar os desequilíbrios mundiais nos balanços de pagamentos (Oliveira-Martins & Plihon, 1990). Em 1986 e 1987, os movimentos internacionais brutos de capitais atingiam US$ 300 bilhões, quantia que correspondia às necessidades de financiamento mundiais mensuradas por meio da soma dos déficits correntes dos grandes países industriais. Posteriormente, no entanto, os fluxos financeiros internacionais sofreram uma progressão explosiva, numa tal magnitude que não mais podia ser relacionada às necessidades da economia mundial (Chesnais, 1994). Os dados a seguir são eloqüentes. Por um lado, a soma dos déficits externos correntes mundiais estabilizou-se abaixo de US$ 300 bilhões ao ano no começo da década de 90. Por outro, no mesmo período, cerca de US$ 1 trilhão circulou por dia nos mercados cambiais das principais praças financeiras, o que representou um acréscimo da ordem de 50% durante os três anos anteriores. Além disto, as transações no mercado cambial induzidas pelas operações financeiras são cinqüenta vezes maiores que aquelas relacionadas ao comércio internacional de bens e serviços.2 A interpretação dos dados é simples: as finanças internacionais estão se desenvolvendo hoje de acordo com sua própria lógica, a qual não tem mais que uma relação indireta com o financiamento dos intercâmbios e dos investimentos na economia mundial. A parte essencial das operações financeiras internacionais de hoje consiste nos movimentos permanentes de vaivém entre as moedas e os diversos instrumentos financeiros. (2) Fonte:Bank of International Settlements (BIS). 6 2 Economia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995
  • 3. Predominância da lógica especulativa Este crescimento vertiginoso das finanças internacionais corresponde a uma mudança sistêmica, no sentido de que a própria natureza do sistema transformou-se, já que este passou a ser dominado pela especulação (Bourguignat, 1995). É famosa a definição clássica da especulação dada em 1939 por Kaldor: “compra ou venda de bens com a intenção de revenda (ou recompra) num momento ulterior, quando a ação é motivada pela esperança de uma modificação do preço vigente e não por uma vantagem decorrente do uso do bem, uma qualquer transformação ou a transferência de um mercado a outro”. De acordo com esta concepção, as operações especulativas possuem quatro características: a) implicam uma tomada de riscos, vale dizer, tomadas de posição em taxas de juros e/ou taxas de câmbio; b) são motivadas pela esperança de realização de mais-valias relacionadas às variações antecipadas dos preços dos ativos; c) são “puras” ou “secas”, ou seja, auto-suficientes, e não têm contrapartida direta na esfera real da economia; d) são na maioria das vezes realizadas a prazo, ou seja, os capitais envolvidos são tomados emprestados pelos especuladores. Kaldor distinguia três categorias de operadores dos mercados financeiros: aqueles que buscam a cobertura dos riscos de taxas de juros ou de câmbio; os arbitragistas, que procuram lucrar com os diferenciais de taxas sem tomar assumir riscos; e os especuladores, que se expõem de modo deliberado aos riscos de taxas com intuito de realizar lucros sob a forma de ganhos em capital. Sem ser inexata, essa abordagem da especulação se mostra hoje em dia por demais estreita. Na realidade atual dos mercados, os comportamentos especulativos assumiram uma dimensão mais importante. Tornou-se impossível estabelecer a linha de demarcação entre especulação pura, arbitragem e proteção contra os riscos (Plihon, 1991). Deste modo, a maior parte das arbitragens internacionais não é coberta e implica em assumir um risco.3 Na realidade, em se tratando de administrar com eficiência um portfólio de ativos multidivisas, de otimizar o caixa pluridivisas de uma empresa multinacional, ou ainda de transmitir do melhor modo possível uma ordem de cliente no mercado interbancário, os comportamentos dizem respeito à lógica especulativa, na medida em que resultam de expectativas de variações das cotações dos títulos ou das moedas. Hoje em dia, uma parte importante das transações financeiras recebe o impulso direto das antecipações quanto à evolução futura das cotações. Por outro lado, afirmar que os mercados tornaram-se fundamentalmente especulativos (3) A maior parte dos fluxos de capitais corresponde a arbitragens não cobertas em câmbio e é descrita pela teoria da paridade das taxas de juros não coberta (PTJNC). De acordo com a PTJNC, os diferenciais de taxas de juros entre as moedas são iguais às taxas de variação antecipadas das taxas de câmbio. Econ omia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995 63
  • 4. significa também ressaltar dois outros aspectos (Cartapanis, 1994). Em primeiro lugar, os atores que raciocinam em prazo muito curto nos mercados são hoje predominantes. A crescente miopia de todas as categorias de operadores é unanimemente ressaltada (Goodhart, 1988; Goldstein et al., 1993). Em segundo lugar, os operadores tendem a se abstrair da realidade dos fundamentos (fundamentals) em benefício da busca de uma opinião sobre a tendência do mercado. Esse desvio especulativo intervém porque os mercados tornaram-se mais voláteis e os investidores carecem de pontos de referência para ancorar suas expectativas. Os instrumentos da especulação As transações de caráter especulativo tomam, em sua maior parte, a forma de compra e venda de títulos nos mercados financeiros. Elas são registradas nos balanços de pagamentos no item investimentos em portfólio. A evolução recente dessas operações financeiras, descrita pelos dados estatísticos do Bank of International Settlements (BIS), revela claramente a ascensão destes movimentos de capital especulativo. Tabela 1 Movimentos de portfólio (média anual em US$ bilhões) 1976-80 1981-85 1986-90 1991 1992 1993(1) SAÍDAS Estados Unidos 5,3 6,5 13,6 44,7 48,0 125,4 Japão 3,4 25,0 85,9 74,3 34,4 51,7 Europa Ocidental 6,2 27,7 82,1 148,1 168,4 260,6 - Reino Unido 2,3 13,5 26,6 51,6 55,4 142,4 Países em desenvolvimento(2) 8,7 3,6 3,5 10,7 10,5 20,5 - NEI3 da Ásia 0,1 0,2 1,2 2,3 2,3 3,1 - Outros Ásia 0,0 0,0 0,2 0,3 0,5 2,0 - América Latina 0,2 0,1 2,3 7,7 6,4 14,8 ENTRADAS Estados Unidos 5,2 29,4 44,7 54,0 67,2 103,9 Japão 5,1 12,6 26,9 115,3 8,2 -11,1 Europa Ocidental 16,7 25,9 99,1 185,5 221,8 396,5 - Reino Unido 2,3 3,5 24,7 34,4 35,7 61,5 Países em desenvolvimento 1,9 4,1 8,2 27,9 50,7 91,9 - NEI3 da Ásia 0,1 0,5 0,3 4,2 7,3 13,8 - Outros Ásia 0,2 1,7 1,3 0,9 0,4 9,7 - América Latina 1,3 1,2 5,4 22,0 39,7 67,9 (1) Dados em parte estimados. (2) Exclusive Hong Kong. (3) Novas Economias Industriais. Fonte: Bank of International Settlements (BIS). 6 4 Economia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995
  • 5. Tabela 2 Fluxos internacionais de capitais em investimentos de portfólio e transações subjacentes(1) (em % do PIB) 1975 1980 1985 1990 1993 Estados Unidos FC TS 0,9 4,2 0,7 9,3 2,1 36,4 0,9 92,1 3,8 134,9 Japão FC TS 0,6 1,8 1,6 7,7 5,7 62,5 2,5 121,0 1,5 78,7 Alemanha FC TS 0,4 5,1 0,6 7,5 3,8 33,9 1,6 54,9 8,9 169,6 França FC TS 0,7 3,3 0,7 6,7 2,2 29,1 4,3 58,7 5,2 196,0 Itália FC TS 0,1 0,9 0,2 1,1 0,4 4,0 3,5 26,6 7,1 274,6 Reino Unido FC TS 0,2 n.d. 2,0 n.d. 7,4 366,0 4,4 689,0 21,7 1015,82 Canadá FC TS 0,2 3,3 0,7 9,6 1,1 26,7 0,5 64,2 3,1 152,7 (1) Fluxos de capitais: valor absoluto do total de entradas e saídas brutas de capitais sob a forma de operações de portfólio; transações subjacentes: total das compras e vendas entre residentes e não-residentes. (2) Dados de 1991, últimos da série. FC = Fluxos de capitais. TS = Transações subjacentes. Fonte: Bank of International Settlements (BIS). Constate-se, em primeiro lugar, que os investimentos em portfólio cresceram fortemente nesses últimos dez anos nas principais regiões do mundo: o volume de entradas e saídas em 1993 foi sete vezes maior que o nível anual médio observado durante o período 1981-85 (tabela 1). Mas os dados sobre balanços de pagamentos subestimam a realidade, pois registram os saldos, ou seja, fluxos líquidos. As transações financeiras efetivas, mensuradas através dos fluxos brutos, são ainda maiores: a tabela 2 mostra justamente que os fluxos brutos tiveram uma progressão vertiginosa nos últimos anos, ultrapassando facilmente 100% do valor do PIB nos principais países industriais. Esta diferença crescente entre fluxos líquidos e fluxos brutos permite avaliar a magnitude que as operações especulativas assumiram. O papel dos mercados de derivativos Os produtos derivados, ou derivativos, tornaram-se uma das armas mais eficientes da especulação. A primeira função desses instrumentos, que constituem uma das maiores inovações financeiras dos últimos vinte anos, consiste em propiciar uma cobertura contra os riscos de taxas de juros e de taxas de câmbio; vale dizer, contra uma variação prejudicial antecipada de ativos ditos “subjacentes”, tais como as ações e as divisas estrangeiras. Deste modo, num Econ omia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995 65
  • 6. período de alta das taxas de juros, um administrador de certo tipo de ações procurará se precaver contra o risco de queda futura da cotação de seus ativos financeiros. Este administrador pode se precaver por exemplo ao comprar uma opção de venda (put) no Mercado de Opções da Praça de Paris (MONEP). O risco ligado às taxas é então transferido para uma contrapartida, mediante pagamento de um prêmio. Os swaps de taxas de juros são um outro instrumento eficiente de proteção contra o risco de taxas. Quando se antecipa um aumento das taxas, uma empresa endividada com juros variáveis realiza um swap de taxas fixas contra taxas variáveis, de modo a estabilizar o peso de sua dívida. Ao lado dos operadores que recorrem aos derivativos com intuito de se precaver constam os especuladores, no sentido definido anteriormente. Hoje em dia, a maior parte (por volta de 75%) das transações que envolvem esses produtos é de natureza especulativa. Isto explica seu crescimento vertiginoso: de acordo com os dados do Bank of International Settlements (BIS), o valor nocional dos derivativos foi multiplicado por treze entre 1986 e 1993, atingindo neste último ano pelo menos US$ 13 trilhões nos mercados internacionais. Tabela 3 Mercado de alguns derivativos (US$ bilhões) 1988 1989 1990 1991 1992 1993 Mercados organizados 1306,0 1768,3 2291,7 3523,4 4640,5 7839,3 Contratos a prazo de taxas de juros 895,4 1200,6 1454,1 2157,1 2902,2 4960,4 Opções de taxas de juros 279,2 387,9 599,5 1072,6 1385,4 2362,4 Contratos a prazo de divisas 11,6 15,6 16,3 17,8 24,5 29,8 Opções de câmbio 48,0 50,1 56,1 61,2 80,1 81,1 Contratos a prazo de indicadores de Bolsas 27,8 41,8 69,7 77,3 80,7 119,2 Opções de indicadores de Bolsas 44,0 72,2 96,0 137,4 167,6 286,4 Mercados não organizados .... .... 3450,3 4449,4 5345,7 .... Trocas de taxas de juros 1010,2 1502,6 2311,5 3065,1 3850,8 .... Trocas de divisas 319,7 449,1 577,5 807,2 860,4 .... Outros instrumentos conexos .... .... 561,3 577,2 634,5 .... Fonte: Bank of International Settlements (BIS). O paradoxo levantado pelos derivativos decorre do fato de que estes instrumentos têm por objeto a cobertura contra os riscos financeiros e, no entanto, tornaram-se uma das causas da instabilidade das cotações contra a qual eles supostamente defendem os agentes econômicos. Na verdade, constituem instrumentos particularmente eficientes para os especuladores, em função dos poderosos efeitos de alavancagem que permitem. Desta maneira, nos mercados organizados, os contratos a prazo de instrumentos financeiros permitem que se assumam posições especulativas imobilizando apenas uma parte pequena da 6 6 Economia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995
  • 7. liquidez sob a forma de depósitos de garantia (3% no MATIF - Mercado a Prazo da França). O mesmo acontece no caso das opções de câmbio, em que o prêmio pago pelo comprador de opções pode se inscrever numa relação de 1 por 100 com o ganho esperado. Os atores principais das finanças internacionais As operações financeiras internacionais resultam das atividades de três categorias de operadores: os bancos, as empresas e os investidores. Os bancos controlam cerca de 75% do mercado de derivativos. Alguns tomam para si posições especulativas acionando um efeito de alavancagem 25 vezes maior que os capitais envolvidos. Os investidores institucionais estão desempenhando um papel cada vez mais relevante. Trata-se em primeiro lugar dos fundos de pensão, particularmente poderosos nos Estados Unidos e no Reino Unido, que administram os sistemas de aposentadoria por capitalização. Suas aplicações passaram de US$ 3,9 trilhões em 1986 para US$ 6,9 trilhões em 1993 (US$ 3,6 trilhões nos Estados Unidos). Tabela 4 Magnitude do portfólio global dos fundos de investimentos (US$ trilhões) 1988 1993 Fundos de Pensão 3,9 6,9 OACVM (Mutual Funds) 1,8 3,0 Total 5,7 9,9 Existem também os Organismos de Aplicação Coletiva em Valores Mobiliários (OACVM) ou Mutual Funds, cujos ativos passaram, de 1988 a 1993, de US$ 1,8 a US$ 3 trilhões (US$ 2,1 trilhões nos Estados Unidos). Uma categoria de investidores é especializada nas operações puramente especulativas: são os hedge funds4 ou fundos de alta performance, dos quais o mais importante é o famoso Quantum Fund, administrado por G. Soros. Este fundo parece ter assumido um papel crucial nos ataques especulativos de 1992-93, que explodiram o sistema monetário europeu. Soros teria lucrado US$ 1 bilhão ao jogar pela queda da libra esterlina. O montante de títulos estrangeiros detidos por investidores é avaliado em cerca de US$ 1 trilhão, ou seja, cerca de 10% do total de seus ativos. Esse caráter (4) Esses hedge funds, fundos de cobertura, têm um nome muito pouco apropriado, dado que seu objetivo primeiro é a especulação. Econ omia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995 67
  • 8. de internacionalização das aplicações está inscrito numa estratégia de diversificação por parte dos investidores. De fato, todos os modelos teóricos, entre os quais o mais famoso é o modelo de portfólio, mostram que a diversificação permite aumentar o rendimento médio e reduzir a volatilidade do rendimento dos portfólios. No entanto, esses modelos mostram também que a diversificação internacional é muito instável, sendo que os pesos ótimos dos ativos em diferentes divisas varia muito em função dos rendimentos esperados. Na prática, é o que se observa: os ativos estrangeiros detidos pelos investidores não constituem uma aplicação estável, já que os investidores modificam com freqüência tanto o seu nível quanto o seu grau de cobertura contra os riscos de taxas de juros e de câmbio, e passam com facilidade de uma divisa para outra. O grau de instabilidade das aplicações é portanto maior no que diz respeito aos ativos estrangeiros do que no caso dos ativos nacionais. Deste modo, pode-se pensar que os comportamentos de diversificação e de arbitragem entre as praças financeiras por parte dos investidores internacionais não deixam de exercer uma responsabilidade quanto à instabilidade dos mercados financeiros. A responsabilidade dos atores públicos As autoridades públicas nacionais desempenharam um papel essencial na ascensão das finanças internacionais, de dois modos distintos. Em primeiro lugar, ao realizar a desregulamentação e a destaxação das operações financeiras, o que facilitou enormemente a mobilidade internacional do capital financeiro. A desregulamentação foi um dos elementos impulsores da globalização financeira. As autoridades monetárias dos principais países industriais aboliram as regulamentações nacionais, de modo a tornar mais fácil a circulação internacional do capital. Houve a abertura do sistema financeiro japonês em 1983-84, amplamente imposta pelas autoridades americanas, seguida pelo desmantelamento dos sistemas nacionais de controle cambial na Europa, com a criação do mercado único de capital em 1990. Este processo está inscrito no âmbito de uma onda de liberalização dos movimentos de capitais, que se iniciou nos Estados Unidos e alastrou-se posteriormente pelo mundo. Os atores públicos também contribuíram fortemente para o desenvolvimento das finanças mundiais ao recorrerem maciçamente aos mercados financeiros internacionais para financiar sua dívida. O crescimento do mercado internacional de títulos de dívida foi amplamente sustentado pelos empréstimos públicos. A dívida pública constitui atualmente o suporte privilegiado das aplicações internacionais. 6 8 Economia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995
  • 9. A França: um caso exemplar A França, cujo sistema financeiro sofreu recentemente um verdadeiro big bang, é uma ilustração muito eloqüente da ascensão das finanças especulativas e de suas conseqüências. Assistiu-se primeiro a um aumento violento dos movimentos de capitais registrados no balanço de pagamentos (Plihon, 1994). Em 1980, os fluxos registrados repartiam-se entre 71% para as transações correntes e 29% para os movimentos de capitais (tabela 5). Em 1993 essa distribuição estava totalmente revertida, dado que as transações correntes só representavam 23% e os capitais cerca de 77% dos fluxos do balanço de pagamentos da França. Os movimentos de capitais ultrapassam agora 100% do PIB, porcentagem que em 1980 era de apenas 14%. É interessante salientar que essa expansão dos fluxos financeiros externos aconteceu quando o balanço das transações correntes estava se aproximando de uma situação de equilíbrio, com um saldo médio inferior a 1% do PIB no decorrer do período recente! Este domínio esmagador dos fluxos financeiros deve-se em grande medida ao crescimento explosivo dos investimentos em portfólio (maior que 50% por ano em média desde 1990). No entanto, o avanço dos investimentos diretos, mais ligados à esfera produtiva, foi muito mais lento: em 1993 não representavam mais que 1% dos fluxos registrados no balanço de pagamentos. Tabela 5 Estrutura do balanço de pagamentos francês. Divisão dos fluxos reais e financeiros em % dos fluxos totais Participação no balanço global (fluxos em %) 1980 1980 1986 1986 1993 1993 crédito débito crédito débito crédito débito Transações correntes 71,1 72,5 56,7 56,2 23,9 23,3 Movimentos de capitais* 28,8 27,5 43,3 43,8 76,1 - investimentos de portfólio (8,0) (7,9) (34,5) (29,1) (70,8) - investimentos diretos (2,0) (2,0) (1,7) (2,4) (1,1) 76,7 (70,5) (1,1) Movimentos de capitais (em % do PIB) 14,3 13,8 26,5 27,1 106,9 108,0 (*) Variação de valor. Fonte: A partir dos relatórios anuais do Balanço de Pagamentos do Banco da França. O caráter especulativo dessas operações é evidenciado também pela forte volatilidade do saldo dos investimentos em portfólio. Após ter aumentado no momento do boom dos mercados de Bolsas no início dos anos 90, o saldo sofreu violenta reversão em 1994 depois da crise do mercado de títulos de dívida. Essas evoluções confirmam que os investidores estrangeiros vão para os títulos franceses a partir de uma ótica amplamente especulativa, com intuito de realizar mais-valia de curto prazo. Percebe-se, por outro lado, que uma parte significativa das compras de ativos franceses por não-residentes consiste em títulos da dívida pública Econ omia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995 69
  • 10. (tabela 6). O Tesouro francês foi, de fato, um dos tomadores de empréstimos públicos mais dinâmicos nos mercados internacionais. Ofereceu títulos muito atraentes aos investidores, notadamente os Títulos Assimiláveis do Tesouro (TAT). Essa política teve êxito: cerca da metade dos títulos franceses comprados por não-residentes consistiu em títulos públicos (tabela 6) no decorrer dos últimos anos. O caráter especulativo desses investimentos é comprovado pelo fato de que parte importante das compras de TAT por não-residentes é financiada por empréstimos em francos junto aos bancos franceses. Tabela 6 Evolução do balanço de pagamentos francês Fluxos líquidos(a) (FF bilhões) 1989 1990 1991 1992 1993 1994 I. Investimentos diretos (saldo) -54,3 -98,3 -53,2 -16,8 -0,1 -6,2 II. Investimentos de A. investimentos franceses no exterior B. investimentos estrangeiros na França C. investimentos em títulos públicos razão C/B em % D. instrumentos condicionais Saldo: A + B + D -42,3 +181,2 +106,5 58,8 - -138,8 -46,1 +234,1 +142,0 65,8 - +188,0 -84,2 +167,0 +46,1 27,6 -2,2 +80,6 -101,4 +282,9 +183,9 64,8 +5,5 +187,0 7 0 Economia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995 -171,7 +194,8 +90,2 46,3 -1,8 +21,2 -110,7 -160,0 -178,5 111,5 -0,8 -271,7 III. Outros movimentos de capitais -49,0 -6,3 +10,3 -192,8 -80,0 +221,2 Balanço global de capitais(b) I + II + III +35,5 +83,4 +37,7 -22,6 -58,9 -56,7 (a) sinal + : entrada de capital (aumento dos débitos externos). sinal - : saída de capital (aumento dos créditos externos). (b) inclusive o ajustamento, exclusive as transferências de capital. Fonte: a partir dos dados do Banco da França. Esses comportamentos especulativos constituem doravante uma verdadeira “espada de Dâmocles” por sobre a cabeça das autoridades públicas francesas. A política monetária é amplamente ditada pelos interesses dos investidores estrangeiros, que hoje detêm cerca de um terço da dívida pública francesa. O Banco Central controla com dificuldades suas principais variáveis-objetivos (taxa de juros de curto prazo e massa monetária). As taxas de juros francesas são determinadas de modo a evitar movimentos de capitais suscetíveis de desestabilizar a taxa de câmbio. Do mesmo modo, a quantidade de moeda escapa em parte do controle do Banco da França.5 De fato, a evolução da massa (5) A endogeneidade da criação monetária de origem externa não se deve apenas ao regime de câmbio fixo do franco dentro do Sistema Monetário Europeu (SME). Cada vez mais, ela é ligada à mobilidade de capitais com o exterior.
  • 11. monetária está crescentemente afetada pelas operações monetárias realizadas com o exterior, como mostram os dados da tabela 7. Tabela 7 Contribuição das operações com o exterior para a criação de moeda (%) 1989 1990 1991 1992 1993 Crescimento de M3(*) Crescimento de M3 decorrente da contra-partida externa +9,6 -0,6 +8,9 -2,3 +2,5 +0,2 +5,2 +2,8 -1,5 +4,8 (*) Taxa de crescimento em doze meses. Fonte: A partir dos relatórios anuais do Conseil National du Crédit. A especulação afeta os mercados financeiros emergentes No começo dos anos 90, os novos países industrializados da Ásia e da América Latina tornaram-se atores relevantes na esfera financeira internacional. Isso constitui o fenômeno dos Mercados Financeiros Emergentes (MFE). A participação dos MFE na capitalização mundial em Bolsas passou de 2,5% para 9% entre 1983 e 1993. O êxito dos MFE é explicado por seus rendimentos elevados (algumas praças financeiras da Ásia conseguiram realizar entre 50% e 100% em 1993). Tais rendimentos estão pouco correlacionados com os mercados dos países desenvolvidos, fato que favorece a diversificação dos riscos dos investidores internacionais. A chegada maciça de capitais privados nos MFE, favorável a priori ao crescimento dos países receptores, pode provocar a gestação de bolhas especulativas. De fato, as entradas de capitais criam a ilusão do êxito financeiro e se traduzem por uma sobrevalorização das moedas locais, o que penaliza o crescimento. A reação dos mercados financeiros pode gerar crises financeiras graves. Enquanto existe confiança por parte dos investidores estrangeiros, a bolha especulativa infla. Mas assim que surge um movimento de descrédito instaura-se um círculo vicioso em que saídas repentinas e maciças de capitais precipitam a explosão da bolha. A crise do México de 1994-95 ilustra o perigo das finanças especulativas para as economias emergentes: desestabilização do sistema financeiro, degradação da solvabilidade, recessão brutal, contágio dos outros MFE. Uma das lições da crise do México mostra a incompatibilidade que parece existir entre, de um lado, a fragilidade e a necessidade de financiamento estável dos países emergentes e, de outro lado, a impaciência e o caráter hiper-reativo dos mercados (CEPII, 1995). Econ omia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995 71
  • 12. Questionamento dos esquemas de análise tradicionais O fato de a lógica especulativa ter se tornado dominante nos mercados financeiros leva a reconsiderar os esquemas habituais da análise econômica, os quais são baseados em três postulados: a homogeneidade dos comportamentos, o equilíbrio geral e as expectativas racionais. O funcionamento efetivo dos mercados financeiros desmente amplamente essas hipóteses que fundamentam as abordagens teóricas mais usuais, em particular a nova escola clássica e a teoria da eficiência dos mercados.6 Os modelos-padrão das finanças supõem a existência de um agente representativo que expressa um único tipo de comportamento descrito pelo modelo de expectativas racionais. De acordo com essa concepção, todos os operadores têm um objetivo de otimização sob a restrição do rendimento de seu portfólio. As antecipações são baseadas nas leis econômicas supostamente estáveis (os fundamentos), tais como a paridade do poder aquisitivo e a paridade das taxas de juros.7 Essa hipótese de um agente representativo homogêneo é contrária à realidade dos mercados financeiros. Sabe-se, efetivamente, que existem duas grandes categorias de operadores nos mercados. Ao lado dos fundamentalistas, de quem acabamos de tratar, há os chartistas ou noise traders cujo comportamento é muito diferente. Eles reagem a rumores e procuram realizar lucros especulativos aproveitando-se da volatilidade dos mercados; seu horizonte de tempo é, em geral, muito estreito (algumas horas ou algumas semanas). Esses profissionais, cujo peso relativo vem crescendo, “fazem o mercado”. Eles constituem um meio extremamente hermético em que “todo mundo pensa o mesmo no mesmo momento”. Os mínimos rumores ou news se revestem então de uma importância considerável em decorrência da miopia dos operadores. Em tal contexto, as expectativas vão se formando de acordo com um processo mimético. Cada operador baseia suas expectativas naquilo que deverá ser a opinião média do mercado, e não em informações econômicas exógenas como, por exemplo, o lucro das empresas ou o crescimento econômico. Essa abordagem não é nova; foi formulada por Keynes, que justamente definiu a especulação como “a atividade que consiste em prever a psicologia do mercado”.8 Na situação de incerteza, ou seja, quando o futuro não é probabilizável, o mimetismo é um comportamento racional, pois permite (6) A teoria da eficiência dos mercados consiste na aplicação aos mercados financeiros e cambiais do modelo de concorrência pura e perfeita com expectativas racionais. Sua conclusão mais relevante é que as cotações dos títulos e das moedas são eficientes na medida em que refletem toda a informação disponível nos mercados. (7) Essas teorias explicam a evolução das taxas de câmbio em função dos preços relativos dos bens e serviços entre países (paridade do poder aquisitivo) e em função dos diferenciais de taxas de juros (paridade das taxas de juros). (8) Esta análise está no capítulo XII da Teoria geral. 7 2 Economia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995
  • 13. aproveitar a informação supostamente veiculada pelo mercado (Orlean, 1989). Essa forma de racionalidade evidentemente é muito diferente daquela postulada pela teoria das expectativas racionais. Não há aqui o homo oeconomicus otimizador num universo estacionário definido por leis econômicas conhecidas por todos. Num processo de imitação generalizada, em que cada um copia o outro pensando que está possuindo a informação, enquanto nenhum agente está informado, o preço que se forma não reflete senão a psicologia do mercado e não contém nenhuma informação. É um processo de expectativas auto-realizadoras em que um preço vai se autoconfirmar mesmo sendo muito diferente de seu nível de equilíbrio fundamental. A cada opinião média do mercado corresponde um equilíbrio diferente: trata-se daquilo que a teoria contemporânea chama de equilíbrios conjecturais ou equilíbrios múltiplos. Esse conceito de equilíbrios múltiplos é usado com freqüência para descrever o funcionamento dos mercados financeiros e cambiais (Obstfeld, 1994). Ele vira as costas à concepção-padrão segundo a qual os mercados financeiros convergem espontaneamente para um equilíbrio geral estacionário. Essa ascensão dos comportamentos de especulação transformou a dinâmica dos mercados financeiros. Notou-se assim que as variáveis financeiras (taxas de juros e de câmbio) seguem leis de distribuição estatísticas que fogem à hipótese de distribuição normal postulada pelos modelos tradicionais. A análise dos dados sugere, notadamente, que as variáveis financeiras não são estacionárias e que sua volatilidade (ou variância) tornou-se instável, com tendências explosivas9 (Atlan et al., 1990; Tamisier et al., 1990). Por outro lado, pesquisas teóricas recentes mostraram que a interação entre operadores “fundamentalistas” e “chartistas” gera uma dinâmica de mercado instável, do tipo caótica, cujas características são próximas daquelas empiricamente observadas (Hsieh, 1991; Grauwe et al., 1993). Em suma, parece desejável reter um modelo diferente daquele postulado pela teoria-padrão para explicar o funcionamento dos mercados financeiros, dado o papel central assumido pela especulação. Os principais traços distintivos desses dois modelos estão apresentados no quadro 1. (9) Muitos estudos recentes mostraram que as distribuições estatísticas das cotações dos títulos e das moedas são heterocedásticas (inconstância da variância) e leptocúrticas, com distribuição assimétrica e achatada nas extremidades (fenômeno de cauda espessa da distribuição). Econ omia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995 73
  • 14. Quadro 1 Dois modelos teóricos de mercados financeiros Modelo I “novos clássicos” 7 4 Economia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995 Modelo II de inspiração keynesiana Agregação: passagem micro-macro Hipótese do agente representativo Leva em conta a interação entre agentes heterogêneos Racionalidade dos agentes Racionalidade individual e otimizadora na base dos “fundamentos” Dois tipos de racionalidade: - fundamentalista - chartista: racionalidade coletiva, mimética Ambiente dos operadores - Leis econômicas estáveis e conhecidas por todos - Eventos econômicos probabilizáveis - Processos econômicos complexos, irregulares e apenas parcialmente co-nhecidos - Eventos econômicos futuros incertos e não-probabilizáveis Concepção do equilíbrio Equilíbrio geral e convergência para um estado estacionário - Equilíbrios múltiplos, indeterminação do equilíbrio ótimo - Possibilidade de processos divergentes e explosivos A impotência das políticas monetárias As autoridades monetárias das principais potências financeiras caíram agora na própria armadilha. Por um lado, conforme vimos, os poderes públicos nacionais desempenharam um papel de catalisador no crescimento explosivo das finanças internacionais. Por outro, a massa de capitais suscetíveis de se deslocar a qualquer momento entre as diversas praças financeiras tornou-se uma ameaça permanente para as autoridades monetárias. Há quem não hesite em considerar que os mercados exercem uma verdadeira tirania sobre as políticas econômicas (Bourguignat, 1995). De fato, a experiência recente sugere que os instrumentos tradicionais de política monetária perderam eficiência. Isto é particularmente verdadeiro, no que diz respeito às políticas cambiais dos bancos centrais. No passado, essas políticas eram sustentadas por três instrumentos principais: intervenções esterilizadas no mercado cambial, manipulação das taxas de juros e controle cambial. A liberalização financeira levou à supressão do controle cambial. Quanto aos outros dois instrumentos, sua eficiência tornou-se fraca em períodos de crise nos mercados. As reservas cambiais dos bancos centrais, mesmo aumentadas pelas facilidades oficiais de empréstimos, são doravante insuficientes para enfrentar ataques especulativos capazes de pôr em jogo quantias consideráveis a partir de compromissos relativamente pequenos (particularmente através dos produtos derivativos). As reservas oficiais dos dez principais países industriais alcançam apenas US$ 400 bilhões, o que é pouco em face dos movimentos de capitais
  • 15. suscetíveis de se deslocar. Deste modo, durante a crise de julho de 1993, que levou à ampliação em ±15% das margens do Sistema Monetário Europeu, o Banco da França perdeu – sem êxito – a totalidade de suas reservas em divisas. Além disso, a manipulação da taxa de juros tem um efeito limitado frente a um movimento de profunda desconfiança em relação a uma moeda (a título de ilustração, para defender eficientemente uma moeda vítima de ataques especulativos baseados numa desvalorização antecipada de 10% no horizonte de um mês, seria necessário elevar até mais de 120% o nível das taxas de curto prazo, o que, evidentemente, é incompatível com os objetivos internos da política monetária). Duas correntes de pensamento estão se opondo quanto ao modo de restauração da eficiência das políticas monetárias. A primeira corrente consiste na da nova escola clássica, cujas hipóteses mais relevantes foram apresentadas supra no quadro 1. Enfatiza-se a credibilidade da política monetária, com base na independência do banco central. De acordo com esta abordagem, a impotência das políticas monetárias perante a especulação em contexto de perfeita mobilidade de capitais pode ser explicada por meio das expectativas auto-realizadoras. Em outras palavras, os mercados provocam as crises cambiais ao antecipá-las. São os ataques especulativos que causam as modificações de política econômica. Quando uma moeda sofre um ataque, um equilíbrio múltiplo se instaura. Dependendo da reação do banco central, podem existir dois equilíbrios de longo prazo: se o banco central tiver fama de “fraco” (wet central bank), o ataque leva a uma desvalorização imediata da moeda, que decorre de uma falta de credibilidade da política monetária; se o banco central for “forte” (dry central bank), reage com um aperto na política monetária, e se tal reação for antecipada, a taxa de câmbio valoriza-se imediatamente. Portanto, de acordo com essa abordagem, um banco central crível não sofrerá ataques especulativos. Uma segunda concepção da política monetária, de inspiração keynesiana, considera que a credibilidade não constitui uma proteção suficiente contra a instabilidade decorrente da especulação. A idéia central, nesse caso, é que os mercados não podem se auto-regular e estão sujeitos ao risco sistêmico (Aglietta et al., 1990). Por risco sistêmico entende-se um risco de instabilidade global que resulta da propagação dos movimentos especulativos nos mercados, quando a interação dos comportamentos individuais, longe de desembocar em ajustamentos corretivos, aprofunda os desequilíbrios. A crise sistêmica está relacionada com o funcionamento do próprio sistema, só podendo portanto ser solucionada mediante uma regulação de origem externa (fora dos mercados), tal como a intervenção das autoridades monetárias. A ação reguladora das autoridades pode assumir duas formas principais. Em primeiro lugar, trata-se de instaurar uma coordenação forte das políticas econômicas entre as principais potências econômicas e financeiras. O principal Econ omia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995 75
  • 16. objetivo dessa medida consiste em enviar aos mercados sinais coerentes que forneçam uma âncora para as expectativas dos operadores. Observou-se, de fato, que as finanças especulativas traduzem-se por desequilíbrios múltiplos que correspondem a expectativas distintas. O único meio de encontrar o “bom” equilíbrio consiste em suscitá-lo por intermédio da fixação de objetivos concertados de política econômica. Tais tentativas de coordenação ocorreram por ocasião dos encontros de cúpula do G7, mas até agora fracassaram, pois os nacionalismos monetários continuam levando vantagem mesmo em face da dimensão planetária que as finanças adquiriram. A segunda série de medidas que permitiriam a redução da especulação consiste em executar uma retaxação e uma re-regulamentação das operações financeiras. O objetivo, nesse caso, é desacelerar a mobilidade do capital e limitar a tomada de riscos nos mercados. Um dos motivos para a desconexão entre a economia real e as finanças especulativas é o fato de que estas últimas tomaram uma velocidade de rotação demasiadamente rápida. Os preços e as transações nos mercados financeiros assumem hoje tal velocidade graças à liberalização e às inovações tecnológicas, enquanto as trocas de bens e serviços são por natureza muito mais inertes. Convém reduzir esta defasagem entre as velocidades de ajustamento das esferas real e financeira, pois ela é fonte de instabilidade, como demonstrou, notadamente, Dornbusch (1976), em relação às taxas de câmbio. Keynes já sugerira em 1936 que uma taxação das transações financeiras aumentaria o peso dos operadores “fundamentalistas” e reduziria a importância da especulação. Retomando esta idéia, Dornbusch & Tobin (1978; 1995) propuseram a imposição de uma taxa uniforme e universal sobre as transações de câmbio. Bastaria uma taxação baixa para desincentivar as transações especulativas de curto prazo: uma taxa de 0,5% sobre as arbitragens internacionais, que se traduzem num movimento de vaivém entre duas moedas, resultaria num sobrecusto de 4% em ritmo anual para as operações em três meses, de 12% para as operações em um mês e assim por diante. Essa taxação representaria uma carga bem leve para o setor produtivo e inibiria a maior parte dos movimentos especulativos. Esta proposta foi criticada por sua falta de realismo. De fato, somente seria eficiente se todas as praças financeiras a praticassem. No entanto, os interesses que ficariam prejudicados por esta medida são tão importantes e poderosos que as autoridades monetárias ainda não se atreveram a executá-la. Há hoje um consenso quanto à necessidade de elaborar novas políticas de regulamentação. A desregulamentação financeira deve, efetivamente, conviver com uma regulamentação cautelar rigorosa. Isto significa que a atual liberdade dos operadores deve ser contrabalançada pelo respeito a normas estritas de boa administração e de cautela. 7 6 Economia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995
  • 17. O risco sistêmico torna-se cada vez maior à medida que boa parte das operações foge de qualquer controle. Esta observação é particularmente aplicável no caso dos mercados derivativos livres, cujo crescimento selvagem ao longo dos últimos anos é preocupante. Se por um lado parece que as autoridades públicas não estão (ainda) prontas para taxar as operações especulativas, por outro não seria de surpreender que os riscos de mercado fossem, num futuro próximo, objeto de um controle cautelar cada vez mais rigoroso. A recente inclusão desses riscos nas formas de cálculo de taxas de solvabilidade constitui uma primeira etapa nesta direção. Este artigo procurou mostrar que as finanças internacionais entraram numa nova era, dominada pela lógica especulativa. Trata-se de uma mudança sistêmica que exige a elaboração de novas concepções de políticas públicas. Alguns temas de reflexão foram propostos, mas – como freqüentemente ocorreu no passado – o economista e o tomador de decisões público estão hoje atrasados em relação à realidade econômica e financeira. Dominique Plihon é professor da Université de Paris-Nord, Paris, França. Referências bibliográficas AGLIETTA, M. et al. La globalisation financière: l’aventure obligée. Paris: Economica, 1990. ATLAN, F. et al. Dynamique des taux de change: propriétés statistiques des taux de change. Paris: Caisse des Dépôts et Consignations, 1990. (Document de travail, n. 1/T) BOURGUIGNAT, H. La tyrannie des marchés: essai sur l’économie virtuelle. Paris: Economica, 1995. CARTAPANIS, A. Le rôle déstabilisant des mouvements de capitaux sur le marché des changes. Cahiers Economiques et Monétaires, Paris, n. 43, 1994. CENTRE D’ETUDES PROSPECTIVES ET D’INFORMATIONS INTERNATIONALES-CEPII. Leçons mexicaines. La Lettre du CEPII, Paris, n. 134, apr. 1995. CHESNAIS, F. La mondialisation du capital. Paris: Syros, 1995. DORNBUSCH, R. Expectations and exchange rates dynamics. Journal of Political Economy, Chicago, Ill., v. 84, 1976. EICHENGREEN, B.; TOBIN, J.; WYPLOSZ, C. Two cases for sand in the wheels of international finance. Economic Journal, Oxford, v.105, n.428, p.162-72, jan. 1995. GOLDSTEIN, M. et al. International capital markets: exchange rate management and international capital flows. Washington:International Monetary Fund, 1993. (Worlds economic and financial surveys) GOODHART, C. The foreign exchange market: a random walk with a dragging anchor. Economica, London, nov. 1988. GRAUWE, P. et al. Exchange rate theory: chaotic models of foreign exchange markets. Oxford: Blackwell, 1993. Econ omia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995 77
  • 18. HSIEH, D. Chaos and nonlinear dynamics: application to financial markets. Journal of Finance, New York, v. 46, n.5, 1991. KALDOR, N. Speculation and economic stability. Review of Economic Studies, Bristol, Eng., n.1, 1939. OBSTFELD, M. The logic of currency crises. Cahiers Economiques et Monétaires, Paris, n. 43, 1994. OLIVEIRA-MARTINS, J.; PLIHON, D. L’impact des transferts internationaux d’épargne sur les déséquilibres extérieurs. Economie et Statistiques, Paris, n. 232, 1990. ORLEAN, A. Comportements mimétiques et divergences des opinions sur les marchés financiers. In: BOURGUIGNAT, H.; ARTUS, P., eds. Théorie economique et théorie des marchés financiers. Paris: Economica, 1989. PLIHON, D. Les taux de chang. Paris: La Découverte, 1991. (Repères, n. 103) ________ Mouvements de capitaux et instabilité monétaire. Cahiers Economiques et Monétaires, Paris, n. 43, 1994. TAMISIER, S.; LEMERY, C. Dynamique des taux de change: estimation par un modèle ARCH. Paris: Caisse des Dépots et Consignations, 1990. (Document de travail, n.25/T) TOBIN, J. A proposal for international monetary reform. Eastern Economic Journal, v. 4, 1978. Resumo O texto aborda a predominância da lógica especulativa no processo de globalização financeira. Trata dos instrumentos e dos vários atores envolvidos na ascenção das finanças especulativas, observando com maior atenção as experiências da França e dos Novos Países Industrializados da Ásia e da América Latina. Finalmente, propõe uma reelaboração das concepções das políticas públicas tendo em vista as mudanças nas finanças internacionais. Palavras-chave: Globalização financeira; Finanças especulativas; Finanças internacionais; Novos Países Industrializados. Abstract This paper approaches the increasing role of speculative logic in the process of financial globalisation. Instruments and actors involved with the mounting position of speculative finance are dealt with. The particular experiences of France and Asian and Latin American Newly Industrializing Countries are used as illustrations. Finally, the author proposes a re-evaluation of public policies, at the light of current changes in international finance. Key-words: Financial globalisation; Speculative finance; International financial system; Newly Industrializing Countries. 7 8 Economia e Sociedade, Campinas, (5):61-78, dez.1995