Este documento apresenta uma história infantil sobre um menino travesso chamado Faéco que acaba caindo em um riacho e é levado para um mundo subaquático povoado por peixes coloridos que falam. A narrativa sugere que a história foi contada ao narrador quando criança por seu pai, o Faéco.
1. A ORCA
,
o MICTORIO
o porco
o RALO
*como você pode ver, a capa parece um tanto estranha...
agora respira fundo e... vamos lá! bem-vindo ao devaneio!
E A CODORNINHA
alugriv_e_otno
OUTUBRO 2007 EDIÇÃO 7
2. ponto_e_virgula
[ su m ário]
OUTUBRO 2007 EDIÇÃO 7
ESCRITORES
Adriana Seguro
; ESPECIAL Fernanda Dutra
Juliana Sakae
25
04
Luisa Frey
Maurício Tussi
Pedro Santos Marina Almeida
Marina Veshagem
e seu script. Pronto pra filmar! nem sabe direito o que fez
Matheus Joffre
Pedro Santos
06 Marina Veshagem Thiago Bora
TODA EDIÇÃO
divaga fofuras infantis ESPECIAL
Luisa Nogueira Loch
18 Entrevista
07 Juliana Sakae EDIÇÃO
Francisco Bosco: ensaísta e letrista. E simpático (: Adriana Seguro
suas fotos e suas (novas) palavras
Matheus Joffre
27
Marina Almeida
10 Marina Almeida Causos&Coisas
DIAGRAMAÇÃO
Orperat utat!!! Duiscil et, quam zzrit, velent do etum Carolina Moura
conta do Faéco e do Saci
volortio odit at niam quis at, conulputet autat!?!? Fernanda Dutra
Juliana Sakae
12 Carolina Moura Maurício Tussi
PROCON
151
não vai para o céu! CAPA
OUVIDORIA Maurício Tussi
revista@revistapontoevirgula.com
14 Adriana Seguro ARTE FINAL
e Luisa Frey Juliana Sakae
Maurício Tussi
foram ao Neco e trouxeram o bom samba
REVISÃO
17 Thiago Bora Fernanda Volkerling
Lucas Sarmanho
... e resolveu encostar o violão Luisa Frey
Marina Veshagem
21 Pedro Santos
Fernanda Dutra Rodrigo Tonetti
ensaia 1 2 3 4 5 6
;
Florianópolis - SC
24 Matheus Joffre
viaja no tempo, relembra o que passou
www.revistapontoevirgula.com
3. [ca r ta ao lei tor ]
A
lguém nos disse que um pouco de angústia faz bem, leva
à reflexão. Foi por angústia que decidimos criar a ponto-
e-vírgula, como uma forma de correr atrás das nossas
paixões jornalísticas.
Mas nossas reflexões não tiveram fim no nascimento da
primeira edição desta revista, talvez elas tenham começado a
amadurecer ali.
Neste sétimo mês, fazemos algo como uma auto-
desconstrução. Depois de termos criado nossas próprias regras,
nosso manual de redação, um semi-estilo, decidimos abandoná-
los provisoriamente.
A ausência de critérios definidos à produção remete ao Projeto
Piloto, publicação online que consideramos o embrião da revista.
Se de alguma forma retornamos, não é por negação a nossos
êxitos, mas por que julgamos importante a reflexão e a auto-
crítica. É assim, acreditamos, que desenvolveremos nossa prática
jornalística.
Em outubro, a ponto-e-vírgula divide suas angústias, ques-
tionamentos e idealismos (por que não?) contigo, leitor.
4. 4
[Pe dro S antos ]
Abrimos em BLACK. CARACTERES: DROPS
FADE IN:
INT. CASA DE ANDRÉ/BANHEIRO – ANOITECER
ELE NO ESPELHO, FAZENDO A BARBA.
Câmera fixa, cortes rápidos. Ele liga o chuveiro, espera
dois segundos, entra no boxe. Corte. Pegando o xampu.
Corte. Cabeça ensaboada. Corte. Plano médio.Desliga.
PS
O
DR s
o
nt
Sa
o
dr
e
P
Sai enrolado em uma toalha. Corte. Ele de roupa enxugan-
do os cabelos com a toalha. Corte.
por Pedro Santos
INT. CASA DE ANDRÉ/SALA - ANOITECER
Já vestido, pega a carteira, o celular e um drops de
bala. Fecha a porta e sai.
br
EXT. FESTA – NOITE
tu
u Ele com os amigos, conversando. Cerveja na mão (plano
O médio). Câmera atrás deles. Em primeiro plano, a cor
dourada da cerveja. Ao fundo, ELA sentada em uma mureta,
com duas amigas, conversando e tomando cerveja.
Jogo de olhares. Ele olha três vezes; ela, uma. Close
nos olhos. Som alto. Ele sai para buscar mais cerveja.
5. 5
Enche o
c
pre dan opo. Cumprime
n
do uma
olhadel ta três pesso
diferen a
a em di
reção à s no caminho,
te.
se
garota.
Ela, in m-
Passa o -
t
sentada empo: pessoas
. dançand
ela. Pe Jogo de olhar o
es: ele , bebendo. El
ssoas i
a, semp
nd sempre
ele cum
priment o embora. Fes re
o
ta acab lha mais do q
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para a u
ando. D
is amig
e repen e
gu
andando ria, que não os, dá
te,
uma últ
co
sozinho
, em di rresponde. El ima olh
ada
e sai.
reção a
Vai emb
sua cas
EXT. RU ora,
a.
A DESER
TA, BEM
ILUMINA
DA – NO
Câmera ITE
de fren
te. Ele
Rua des
andando
er
no inte ta. Um carro ,
vem cor solitário, na
rior. E
re
LA está calçada
entre e ndo e pára. T .
rês gar
las.
otas
ELA
Vem cá!
Entra a
qui!
Sem hes
it
duas ga ar, ele ENTRA
. Banco
rotas.
ELA sim
plesmen de trás, sent
outra r
epete o a no me
te o be
g
jado e
agarrad esto. André, io das
ija. Em
seguida
entre a
o. ,a
s duas,
sendo b
Corte. ei-
Ele and
ando, s
carro d olitári
e novo. o, na r
ua. Cor
te. A c
Corte. ena no
Ele ENT
RA em c
do corp asa e d
o
direção para fora. A eita na
ca
câmera
se afas ma, um terço
à porta
semi-ab ta
erta. F
ADE OUT lentamente em
FIM. ;
.
6. 6
O louco e a criança olham para o teto
por Marina Veshagem
- Branco, branco... - E quando tão longe? - Tá vendo aquela sombra no canto?
- Peraí, um ponto preto! - Aí o medo fica pequenino e dá uma - Tô.
- E o que é? curiosidade danada, uma vontade de ir - É o olho do nada que piscou pra mim.
- Ah, é uma mosca. lá! - Olha, tá se mexendo...
- Mas neste caso é bom! - O quê?
- Mosca, mosca... Tá aqui, achei!
- O que diz? - Não é, porque se está longe é quase - A sombra, o olho do nada.
- Pequeno inseto do filo dos artrópodes, impossível chegar lá. - O que parece agora?
que tem um par de antenas. Excretam - Mas o buraco longe não é o mesmo - ... um homem!
por tubos de Malpighi... que o perto? - O que ele tá fazendo?
- É... - Tá andando.
- Tubos... Eu também gosto de tubos.
- Presta atenção! Olha, as aranhas são - Então, por que você quer o que não - Pra onde?
parentes das moscas! pode pegar, se há um igual do seu lado? - Pro buraco. Vai vê ele tá curioso para
- Mas então, por que elas fazem teias - Não sei... saber o que tem lá também.
para prender seus parentes? - Olha, olha! Achei mais uma coisa! - Mas qual buraco, o perto ou o longe?
- O longe, né!? O perto dá medo.
- Ah, sei lá! Meu pai disse que parentes - O quê, o quê???
são chatos e só sabem pedir as coisas. - Um nada. - Tá saindo alguma coisa do buraco.
- Vai ver é por isso... Mas seu pai tam- - Um o quê? - O quê?
bém constrói teias pra pegá-los? - Nada. - Uma aranha, a parente da mosca.
- Como assim? - O que ela tá fazendo?
- Não, ele finge que gosta deles. - Uma teia.
- Ah bom... Mas o que mais tem aí em - Olhe para aquele canto mais ali. O que
cima? você vê? - O quê?
;
- Hum... Tem uns buracos. - ... nada... - É, uma teia.
- Não gosto de buracos... - Então, o nada tá ali. - E fez o que com ela?
- Mas como você sabe que ele tá ali se
- Por quê? não tem nada? ;
- Quando eles tão perto são tão escu- - ... enroscou no homem e puxou pro
ros... E eu não os conheço, parece que o buraco...
medo mora lá dentro.
*pintura Van Gogh “Girassóis”
7. 7
por Juliana Sakae
*fotos Juliana Sakae
do Lat. mole
v.int.,
sentir a propriedade do Lat. querere
física de um objeto v.tr.,
erroneamente. querer não-querer.
“nomear é fazer ver, é criar,
s.f.,
levar à existência”
consciência de sentir-se
Pierre Bourdieu
acordado durante o sono.
8. 8
*fotos Juliana Sakae
s.f.,
perceber uma parte do corpo s.m.,
como algo estranho a ele reação involuntária que transmite a sensa-
ção interior de pensar uma dada reação.
s.f.,
vontade involuntária de contrair os músculos
do corpo;
op;
espreguiçar.
9. 9
*fotos Juliana Sakae
adj.,
s.f., perspectiva de visão alterada ao
reprodução inconsciente de uma imagem imaginar-se no corpo de outrem.
fixa na mente. s.f.,
nó no peito que
indica agonia
profunda;
ansiedade;
Bot.,
;
cada uma das
peças do cálice do Fran. trés penser ;
das flores. concentrar-se pontualmente;
visão atordoada pelo excesso de concentração.
10. 10
Conto do Faeco
´ por Marina Almeida
F
aéco era um menino muito sapeca. do pela correnteza, viu diversos peixes,
Ao longo de seus seis anos adquiriu todos muito coloridos e conversando
uma capacidade de criar confusão alegremente entre si. Faéco tentou se
maior do que a de qualquer outra crian- comunicar, para avisá-los que era uma HISTÓRIA DO FAÉCO
ça. Por morar em uma cidade pequena, criança e precisava voltar para casa an-
estava acostumado a brincar na rua, no tes que a bruxa Gilda chegasse, mas o Faéco é meu pai. Ouvi essa história
quintal, sem se preocupar com nada. cada vez que falava saiam várias bolhas por toda a minha infância. Ele jura
que é verdade.
A única pessoa capaz de fazer com que e nenhum som. O menino estava cada
o A Bruxa Gilda é, na verdade,
Faéco ficasse quieto era a bruxa Gilda. vez mais assustado e tratou de se pren-
minha tia. Segundo meu pai ela era
Ela deixava o menino amarrado ao pé der num galho para não ir mais longe do realmente uma bruxa, mas virou
da mesa da sala, com uma corda que que já tinha ido. fada quando se casou. Ela andava
chegava apenas ao banheiro. Guilhermina estava desesperada, em uma vassoura que não fazia
curvas, obrigando-a a descer cada
A bruxa Gilda não gostava de des- quando alguns peixinhos saíram da tor-
vez que precisava mudar de direção.
perdícios e, por isso, exigia que se trans- neira para dizer que a espuma que veio
Minha tia nunca confirmou a história,
formasse os restos de sabão em novas da casa estava se comportando de modo mas também nunca desmentiu.
pedras. É aí que a história começa. estranho. Ela percebeu que Faéco virou o Guilhermina era mesmo a
Em um belo dia de sol, Guilhermi- espuma por causa do feitiço da bruxa cozinheira da casa do meu
pai, quando ele era criança.
na, a cozinheira da casa, estava mexen- Gilda. Então, pegou um pote de marga-
Sempre a conheci como Lena,
do uma enorme panela com os restos de rina e correu para o rio, guiada por um
mas meu pai insiste em
sabão enquanto Faéco brincava no quin- peixinho muito jovem, todo listrado de chamá-la de Guilhermina.
tal, subindo em árvores e pulando para azul e a amarelo. Recolheu a espuma e Ela também nunca disse que
assustar as galinhas. Quando o menino a levou para o freezer. Aquilo tinha que era mentira.
percebeu que Guilhermina tinha entra- dar certo, pois Faéco não podia passar a
do na casa, foi correndo bisbilhotar. vida inteira como espuma.
Por um descuido, Faéco caiu dentro Após algumas horas, o pote come-
da panela de sabão. O que ele não sabia çou a tremer e, ao abri-lo, Faéco saiu
é que a bruxa Gilda havia feito uma má- com o olhar assustado de lá de dentro.
gica, que transformava em sabão tudo A bruxa Gilda chegou, viu Faéco senta-
o que caia na panela. Faéco sentiu seu do na mesa e Guilhermina preparando
corpo ficar cada vez mais mole. o jantar, como se nada tivesse aconte-
A cozinheira não percebeu que Fa- cido.
éco virou espuma e o jogou no ralo que Ufa - pensou Faéco - escapei de
dava no rio da cidade. Ele foi arrasta- mais uma.
arte: Juliana Sakae
11. (continuando...)
Conto do Saci
11
ilustração: Alexandre Santos; arte: Juliana Sakae
C
erto dia, o Saci Pererê estava sentado e as roupas ficaram limpas e cheirosas.
na Mata do Japi, pensando em como Depois, a Fadita foi para a cozinha, ba-
poderia ir visitar seus parentes de teu sua varinha novamente, dessa vez
Botucatu, na serra do Tico Tico. Pererê na pia, e pratos e copos ficaram limpos.
foi logo atrás de seu primo, o Curupira. Na manhã seguinte, os primos acorda-
HISTÓRIA DO SACI
Curupira ficou animado e aceitou o ram e viram que tudo estava arrumado.
convite. Mas disse logo: Tinha café, bolacha e leite para o café- o Essa história meu pai contava para os
- Como vamos até lá? É muito longe da-manhã. meus primos. Eles acreditavam e
sempre que viam meu pai,
e não dá para ir pulando numa perna só. Alguns dias se passaram, até que
saiam correndo, querendo
O Saci respondeu, com um sorriso o Saci disse: saber o que o Saci tinha feito.
de moleque levado: - Vamos dar um passeio pela mata. o A Mata do Japi existe. Ela fica
em Jundiaí (SP), onde eu mora-
- A gente vai pela trilha atrás do Quero ver se consigo aprontar com algu-
va antes de me mudar para
Vale das Fadas que é mais perto. Assim ma criança. Florianópolis. Da janela do meu aparta-
dá para ir pulando. - A Fadita é muito boa, mas não po- mento dava para ver um pedaço da
Mata. Sempre que tinha neblina, meu
Então eles arrumaram tudo, se des- demos fazer travessuras, se não ela nun-
pai falava que era fumaça da chaminé da
pediram dos outros moradores da Mata ca mais vem aqui – alertou o Curupira. casa do Saci.
do Japi e foram viajar. Porém, o caminho O Pererê deu risada e disse: o Além do Saci e do Curupira, a Mata do
Japi abriga o Vale das Fadas e a Fábrica
era longo e eles se cansaram. Encon- - Isso é mentira, vamos logo.
de brinquedos do Papai Noel.
traram uma cabana e decidiram parar. Eles subiram nas árvores, mexeram o Quando eu era criança, meu pai
- Quem mora aqui? - Perguntou o nos ninhos dos passarinhos e trocaram dizia que a Fadita passava a noite
em casa e dizia para ele o que eu
Saci. todos os ovos: pegaram um ovo de caná-
queria ganhar de presente. Mi-
- Olhe em cima da porta! Essa ca- rio e foram colocar no ninho da pomba, nhas amigas queriam dormir
bana é da fadinha Fadita, eu a conheço, pegaram o ovo da arara e foram colocar em casa, só para ver a Fadita.
mora lá no Vale das Fadas. É muito boa- no ninho dos patinhos, deram nó na crina
zinha, mas não gosta de travessuras! dos cavalos, entre outras traquinagens.
A cabana era toda arrumada: quar- Quando os animais descobriram, ficaram
to, cozinha, banheiro. O Saci tirou sua furiosos e contaram tudo para a Fadita.
A cabana ficou desarrumada e eles re-
roupa e colocou no cesto encantado, to- No dia seguinte, o Saci Pererê acor-
solveram voltar para a Mata do Japi.
mou um banho e depois foi para a cozi- dou, viu que sua roupa e toda a louça da
Avisaram seus primos de Botucatu
nha comer os doces que o Curupira ain- casa estava suja:
que não iriam mais visitá-los e vol-
da não tinha comido enquanto estava - Curupira, acorde logo e venha ver. A
taram. O Curupira prometeu nun-
sozinho. Depois de comerem, deixaram nossa roupa não foi lavada, a cozinha está
ca mais desobedecer a uma fada, mas
todos os pratos e copos sujos na pia e fo- toda suja e não tem comida para a gente.
o Saci não ligou para o que aconte-
ram dormir. De noite, a fada Fadita apa- Curupira disse que havia avisado
ceu e já voltou a aprontar das suas.....
;
receu e com sua varinha bateu no cesto que a Fadita não gosta de travessuras
de roupa suja. De lá saíram estrelinhas e que agora teriam que arrumar a casa.
12. 12
~
Revelacoes Divinas
s
Mesmo antes de o Bento pôr um fim nisso, como luterana,
nunca me preocupei com essa história de purgar. Até que,
numa bucólica manhã, descobri um futuro bem pior
por Carolina Moura
L
embrei do cheiro de Bíblia. Um cheiro, todas as semanas. Por que nunca
cheiro que provavelmente não mais voltei? Sinto-me bem. Aguardo que
sinto desde que, aos 13 anos, em as palavras do pastor, o mesmo que me
meu vestido branco, dirigi-me ao altar confirmara, confortem-me ainda mais.
em “confirmação à minha fé”. Vontade “Largo é o caminho que leva para
de lê-la de novo – o cheiro era bom. En- destruição, e muitos há que entram
trei na igreja e reparei a pintura nova. nele: Porque estreito é o portão, e aper-
Está bonita. Sempre foi gostosa, peque- tado é o caminho que leva até a vida, e
na e aconchegante. É, senti saudades. poucos há que são achados nele” (Ma-
As notas agudas sempre molharam teus 7:13-14). Mas o momento etéreo
meus olhos; ouvindo o coral, encho-os de desfez-se. No altar, montou-se uma tela.
lágrimas. Lembro-me do tempo de dou- As palavras da pregação completam-
se com slides projetados por um da-
trina, que ia ao culto e cantava tais hinos
tashow, onde não é “ñ” e sempre é “s/”.
todo o mês. Abria a Bíblia e sentia seu
13. 13
As próprias palavras do pastor me ofen- caminhos – para salientar a importância
dem. Primeiro, ao culpar a “mídia” por de continuar indo ao culto. No carro, em
tudo de mal que existe sobre a Terra – direção à festinha, meu pai corrigiu-o e
serei a mídia, querido pastor. Segundo, disse que Deus não mora na igreja. Posso
por se utilizar do detestável recurso des- falar com Ele onde quer que esteja.
ta que cita e condena: o sensacionalis- Desde então, e até antes disso,
mo. Meninos de gravata e meninas de acreditei que Deus pode me ouvir em
branco ouvem-no falar de barbáries e qualquer lugar. Não que eu tenha lhe
estupros no dia em que abraçam a reli- dito muito. Hoje, na verdade, nem sei
gião sobre a qual ele discursa. se acredito que Ele exista – e para mim
E, se não bastasse, depois disso ele tem letra minúscula. E neste dia, na
descobri que vou para o inferno. Porque igreja, quando meu irmão, morrendo de
só existem dois caminhos, e se você está calor naquela camisa, “se confirma nes-
no caminho largo, sister, you’re going to ta fé”, descubro que não pertenço à ela.
hell. Não adianta se esgueirar para a es- Quando o pastor finalmente se
cala, o data show exibe a letra da músi-
trada apertadinha: santificar o domingo
é mandamento (pré-requisito para a área ca cantada pelo coral. Ainda é bonito, as
VIP) – e isso significa ir ao culto, toda a notas altas ainda me tocam. Mas nun-
semana. Viro para o lado e sussurro a ca tanto quanto aquele agudo da solis-
notícia ao ouvido de minha mãe. Nosso ta: provoca-me um arrepio, profundo,
destino, após a morte, é certo. que nota alguma jamais me causara. Se
Meu pensamento remete novamen- Deus realmente mora lá e isso foi sua
te àquele dia, com os cabelos enrolados. mão repreendendo-me, só vou saber
quando morrer. E se for verdade, I’m so
O mesmo pastor contara uma anedota –
going to hell, sister.
sobre morcegos, bem mais leve e adequa- ;
da que a história trágica (para mim) dos
14. 14
.......................................
.................................
Rancho do Neco
O samba e a amizade se cruzam em Sambaqui
por Adriana Seguro e Luisa Frey
D
omingo, seis da tarde. Neste fim de uma profissão mais estável, tornou-se
de dia de inverno, o sol já se pôs servidor público no ramo da informática.
faz tempo. Mas o friozinho não é Neco comprou, com seis amigos,
suficiente para esfriar ninguém. Na beira um rancho de pesca no Sambaqui, em
da praia, um pequeno rancho de pesca. 1993. O propósito do barraco era o lazer.
Paredes de madeira, chão de pedra, uma Depois, o local passou a ser uma socie-
pia para lavar as ostras e um bar - cujo dade entre ele e o maricultor Lourenço
balcão é um casco de barco – dividem da Rocha Silveira. De início, tentaram o
.....................
o pequeno espaço com os equipamentos cultivo de camarão. “O camarão é difícil
fachada do Rancho
de som, instrumentos e banquinhos em por ser sazonal. Eu e o Lourenço fizemos
roda. É impossível não sentir calor em cursos e começamos a produzir ostras”,
meio ao samba, à cerveja e ao clima de explica Neco. Hoje, a produção é peque-
amizade e descontração do Rancho do na, apenas para manter o rancho cujo
Neco. foco passou a ser outro: o samba. Como
Jeans, camiseta com uma despoja- técnico em informática e maricultor,
da camisa verde musgo por cima, sorriso Neco nunca deixou morrer o gosto pela
simpático e receptivo. Orlando Carlos da música. Gosto esse que dispensa re-
Silveira Mello, o Neco, é gaúcho de São quinte ou sofisticação. Há quatro anos,
Leopoldo e vive em Florianópolis há 37 todo domingo é dia de roda de samba no
anos. Músico profissional, dedicou-se a rancho. O programa – que já é tradição –
essa arte por dez anos, até o casamen- começou como uma reunião de amigos, foto: canasvieiras.com.br
to e o nascimento dos filhos. Em busca o que ainda não deixou de ser.
arte: Maurício Tussi
15. 15
arte: Maurício Tussi
Neco (esq.) e Reizinho (dir.).
Para Reizinho, o samba e a
Bossa Nova voltam a ocupar
...................................................
espaço na música brasileira
O samba no oeste da ilha catari- e esse barraco aqui é tudo de bom!”. Ou-
nense atrai um público diversificado. “O tro que é músico profissional e costuma
.............................................
ambiente é muito gostoso”, é o que diz a dar o ar da graça aos domingos é o Rei-
professora de yoga Maria Lúcia Moraes, zinho. Aos 58 anos, o cantor e composi-
moradora do Sambaqui. Ela freqüenta o tor toca desde os 20 e conta ter vencido
rancho também para trazer a estudante diversos festivais. Para Reizinho, a ilha
alemã Johanna Diekmann, hospedada gosta de samba e quem gosta de sam-
em sua casa. Johanna morou um ano ba vai ao rancho. Além disso, os jovens
no Brasil e fala um português que im- estão retornando aos ritmos brasileiros:
pressiona pela quase ausência de so- “O samba, a Bossa Nova; a música bra-
taque. Surpresa ainda maior do que o sileira está voltando, graças a Deus”.
samba no pé é a moça pegar o microfone No barraco, não existe jeito certo
e mergulhar no ritmo com tamanha inti- de sambar. No início da noite, apenas
midade. É linda a cena do dueto entre a alguns mostram o samba no pé. O clima
loira germânica e uma negra carioca. esquenta e, aos poucos, mesmo os que
No rancho é assim, quem quiser apenas sacudiam o corpo timidamen-
cantar ou se arriscar no violão, na per- te, experimentam passos mais ousados.
cussão e no tamborim, está convidado a Pode ser em par, como a gafieira, ou so-
entrar na roda. “Todos que querem tocar zinho, com o tradicional remexer de cal-
têm oportunidade. A gente vai abrindo canhares.
espaço, brincando. Lógico que a gente Quando inaugurada, a roda reu-
procura ensinar. Tivemos pessoas que nia cerca de 20 amigos. O boca-a-boca
começaram aqui e hoje estão se apre- trouxe novas caras, o que exigiu de Neco
sentando bem”, conta Neco. maior organização. Ele ressalta que o
A cantora Nice costuma vir a cada rancho não tem alvará para funcionar
duas semanas. Depois de cantar ener- como estabelecimento comercial. “Não
gicamente, com um sorriso expresso na é um bar. É um rancho de pesca onde,
voz, ela diz que acha o ambiente mara- aos domingos, a gente tira as coisas de
vilhoso. “Quase todos os freqüentadores dentro pra fazer essa brincadeira. O lu-
se conhecem. O Neco é muito meu amigo cro é muito pequeno, e essa não é a in-
.............
fotos: Adriana Seguro e
Lusia Frey
16. fotos: Adriana Seguro e Luisa Frey
16
Rancho do Neco
R. Gilson da Costa Xavier, 2800
Ponta do Sambaqui – Florianópolis
Domingo, a partir das 18h
R$ 5,00
........................................ . sambaqui
tenção.” Na porta é cobrada uma taxa de Ao longo da noite, que a cada do-
.
R$ 5,00, mas conhecidos têm a entrada mingo fica mais longa, o próprio Neco
liberada. assume o microfone, não só para can-
Como em toda festa, não poderia tar. Os recados e comentários do anfi-
cenTRo
faltar comida e bebida. Para quem qui- trião são em tom de conversa, como se
ser algo tradicional - afinal trata-se de fosse uma reunião de amigos em sua
um rancho de pesca na beira da praia - casa. Canta uma de suas músicas, es-
a irmã de Lourenço prepara um delicio- crita em homenagem ao amigo e sócio
so risoto de frutos do mar. Servida em Lourenço. A composição é de palavras
uma cumbuca de barro, a farta porção é simples e ritmo contagiante: “Olha o
vendida a R$3,00. jogo da canoa/ Olha o balanço do mar/
A irmã de Neco – Alda Isabel – Cuida com o rabo de arraia / Que a vida
também ajuda na organização da fes- te pode machucar...”. A saideira é repe-
ta, quando a casa enche. Na porta, ela tidamente anunciada. A animação dos
ajuda a recepcionar e identificar rostos presentes não deixa o samba terminar.
conhecidos. A esposa, quando não vêm, À meia-noite, Neco encerra cantando o
está presente através de um quadro que hino de Florianópolis, acompanhado pe-
deu ao marido. Na parede, logo atrás dos los convidados.
músicos, está pendurada uma caricatu- A casa se esvazia aos poucos. Aca-
ra perfeita do gaúcho quase manezinho. bado o movimento, Neco senta para to-
..............
Para fazer o desenho, o artista plástico mar uma cervejinha, ouvindo os causos
Sérgio Honorato foi várias vezes ao ran- contados pelo amigo Reizinho. Satisfeito ilha De Santa Catarina
cho, sem Neco saber. A encomenda da com a noite agradável, põe sua caricatu-
;
esposa fez sucesso: “Fiquei muito emo- ra debaixo do braço e vai pra casa.
cionado com a surpresa”, conta. arte: Maurício Tussi
17. 17
Aula de violão fotos: Thiago Bora arte: Fernanda Dutra
Começa com sol
(sol é G)
Começa com sol,
vai
mordeu os dedos
e nunca mais tentou ;
por Thiago Bora
18. 18
[e ntrevist a ] por Fernanda Dutra
ponto-e-vírgula - O que você quis dizer com o
Franscisco como os
título Banalogias?
Bosco é moralis-
Enquanto eu escrevia o livro, assistia aos epi-
ensaísta, sódios do Seinfeld em DVD. Percebi que o Sein-
tas,
feld que se relacionava mais imediatamente com
letrista e não me
ncisco
meu livro era o da abertura do programa, quan-
simpático. preocupo
Fra
do ele, no palco, fazendo stand up comedy, cha-
mava a atenção para uma determinada situação
em
Concedeu esta do cotidiano, que viria a ser o tema do episódio.
provar
entrevista à A operação dele é a de estranhar o banal, des-
nada
ponto-e-vírgula naturalizá-lo: quando se repara no banal, ele se
torna estranho, meio absurdo. Já o que eu fiz foi
Bosco
via email levar adiante esse estranhamento e dar o próxi-
para falar do mo passo: explorar o banal, investigar as suas
lógicas constitutivas. Ora, a lógica do banal não
seu último pode ser outra coisa que uma “banalogia”. Essa
lançamento, é a arqueologia conceitual do título. Além disso,
Banalogias agradou-me muito o eco, no título, de um ou-
tro livro com que o meu guarda alguma proxi-
(Editora midade, que é Mitologias, de Roland Barthes.
Objetiva, 206
;- Por que usar a estrutura dos aforismos para
páginas, R$ alguns dos textos?
32,90) Tenho um amigo, filósofo, que sempre me diz
que eu sou um “moralista latino”. Atenção: ele
não está me chamando de Jece Valadão! É que
sentia
há uma tradição filosófica – a de Cícero, Sêneca
que a
etc. – cujos escritos primam pela enunciação de
escrita
máximas morais, de pequenas “verdades” sobre
a vida, a sociedade, a cultura, sem se preocupar
poética,
com demonstrações, explicações, notas de rodapé
como
etc. Eu concordo com meu amigo filósofo: como
tal, se
os moralistas, não me preocupo em provar nada,
penso que a verdade é mais uma fulgurância do
esgotara
que uma adequação, meu compromisso é maior
em mim
com o sentido do que com a precisão factual.
19. 19
12
A ques- ;- Você escreveu letras de música, poesia, prosa, tra-
balhos acadêmicos...Que tipo de texto te deixa mais
tão que confortável e qual te exige mais?
se colo- Atualmente, escrevo quase que só ensaios – curtos ou
mais longos –, não tenho tido tempo mental de escrever
cou era a letras de música e desde meu antepenúltimo livro, Da
seguinte: Amizade, de 2003, não escrevo mais poesia. Justamen-
te, Banalogias é o resultado de uma equação envolvendo
como essas e algumas outras variáveis. Ele começou a ser fei-
inventar to em 2004, em meio a uma insatisfação minha com a
produção teórica acadêmica que eu vinha desenvolvendo
um en- naquele momento. Eu publicara esse livro, Da Amizade,
saísmo no ano anterior, mesmo ano em que defendera minha
dissertação de mestrado. Este livro era um híbrido de
com ca- poesia e fragmentos teóricos: havia poemas metalingü-
racterís- ísticos, pequenos filosofemas e poemas narrativos; poe-
sia e prosa encontravam-se aí indiscerníveis. Eu queria
ticas po- que o prosseguimento do meu projeto de escrita fora da
éticas? universidade, fosse de algum modo uma continuação
do que conseguira ali.
Ao mesmo tempo, sentia que a escrita poética, como tal,
se esgotara em mim. A partir daí a questão que se co-
locou era a seguinte: como inventar um ensaísmo com
características poéticas?
Assim, desde o primeiro ensaio pensado para equacio-
nar esse problema (“O Indireto Afetivo na Linguagem
do Carioca”), Banalogias era e sempre foi um projeto
de livro. Com o tempo, fui experimentando diversas es-
critas, até encontrar aquilo que me pareceu o tom de-
sejado. Esse tom é o de um ensaísmo que se aproxima
de uma prosa teórica, uma espécie paradoxal de teoria
concreta, isto é, próxima da vida, como costuma ser a
poesia. Isso é o fundamental. A isso se acrescem outros
ingredientes, como o compromisso com o prazer da lei-
tura e certa dose de humor.
20. 20
12
; -Você foi desenvolvendo a sua escrita, ca que caímos num vale-tudo crítico: apenas
o escri- consciente do que queria atingir? Há ca- que todo juízo deve ser feito a posteriori. Isso
tor pode sos de escritores muito jovens, como Rim- posto, retomando o início de sua pergunta,
baud, que escreveram obras de qualidade creio que sim, o escritor precisa ter maturi-
até não ainda na adolescência. O escritor precisa dade em relação à sua escrita, ou ao menos a
ser cons- ter maturidade em relação à escrita? escrita tem que ter maturidade em relação ao
Na minha opinião, essa precocidade absur- escritor. Em outras palavras: o escritor pode
ciente da é um fenômeno improvável no nosso mo- até não ser consciente do que faz, não ser
do que mento histórico pós-vanguardas. Hoje existe um teórico, mas a sua escrita deve ter cons-
um infinito arquivo de formas da literatura ciência de si. Uma coisa é a intuição, outra
faz mas universal, em inúmeras línguas, facilmente a ignorância. De minha parte, me interessa
a sua disponível a todos que queiram conhecê-lo. muito a aventura da construção conceitual
A literatura tornou-se mais consciente como do livro, do labirinto de questões que temos
escrita um todo, e não admite ingenuidades nem pa- que percorrer durante a sua elaboração. Esse
deve ter rece permitir essas obras súbitas e revolu- livro particular, livro dentro do livro, me in-
cionárias. Hoje, empregando uma expressão teressa tanto quanto ou talvez mais até do
consci- de Haroldo de Campos (e subvertendo-lhe que o livro propriamente dito: pois trata-se
ência de o sentido original), a arte se dá no horizon- da aventura de viver o livro, do que significa
te do provável. Não há mais a experiência do a escrita do livro em nossas vidas. É por isso
si choque estético: não há mais, por exemplo, que eu não tenho interesse, por exemplo, em
a vaia, que é seu correlato psicossocial. As escrever um Banalogias II: não haveria o labi-
vanguardas cumpriram sua função, que foi rinto. Posso até acabar por escrevê-lo, já que
a de revelar que não se pode julgar, a priori, continuo fazendo textos curtos para revistas
o que é ou não é uma obra de arte. A partir e jornais, mas não terá sido um livro sonha-
;
das vanguardas, todo material, todo suporte, do, apenas um livro publicado...
toda forma pode ser arte. O que não signifi-
21. 21
Da pedra no caminho
à pedra no lago
Não só de poemas concretistas inteligentes,
2
ou filosofia clássica, reflete-se sobre a vida.
A diversão de jogar pedrinhas no lago, ou as
pequenas coisas da vida, pode levar a reflexões
tão interessantes quanto às de Drummond
B
por Fernanda Dutra arthes pensou na sociedade fran-
cesa de sua época através de pro-
1
pagandas de sabão em pó e detergen-
te, marcianos, brinquedos, bife com
batatas, astrologia, o cérebro de Eins-
tein; ensaios que fazem parte do livro
Mitologias, de 1957. Nesse livro, Bar-
thes desenvolve o conceito de mito: um
discurso, isto é, uma fala. Nem tudo é
mito, mas alguns objetos, idéias, perso-
M orte, vida, ciência, amor, Estado, nagens, adquirem um significado além
sociedade: estamos atolados de do funcional. A interpretação dos mitos
grandiosas questões filosóficas. Os gre- era um dos objetivos da Semiologia, a
gos já pensaram em tudo, mas, surpre- ciência dos signos. Devido a suas ca-
endentemente, não paramos de pensar. racterísticas, principalmente o signifi-
Certamente, questões com densidade cado implícito, os mitos poderiam ser
dramática levam à necessidade humana explorados pela mídia, mas Barthes foi
dos questionamentos. Mas a liberdade além do pensamento de manipulação
do pensamento guiou alguns homens a de consciência.
assuntos pequenos, de aparente super-
ficialidade. Banais.
ilustrações: Luisa Nogueira Loch
22. 4
22
O ensaísta e letrista Francisco Bosco entrevista pág. 18
não se contenta com fazer notar o
bizarro do cotidiano, mas não analisa
somente os mitos. Tudo pode servir de
ponto de início para uma reflexão, e aí
3
entram tanto as grandes questões huma-
nas quanto as sinopses e a acne. A filo-
sofia de Bosco encontra Barthes e Sein-
feld, sem medo do pódio intelectual em
que se encontra o primeiro ou da massi-
S
va popularidade do segundo. O mestrado
einfeld precisava de bem menos.
e doutorado na área de Letras reforça o
Para o humorista americano, entrar
viés lingüístico das análises. No ensaio O
no supermercado era o suficiente. Em
Indireto Afetivo na Linguagem do Carioca,
um de seus atos da stand-up comedy,
Bosco parte do recorrente diálogo entre
ele nos faz notar um comportamento
cariocas que não se vêem há muito tem-
quase universal no supermercado. En-
po e prometem se ligar para desvendar
tramos, decididos, tudo o que vamos
traços da personalidade do carioca.
comprar está escrito no papel ou é repe-
tido várias vezes mentalmente. Na pri-
meira gôndola, o perfil decidido se esvai.
“Quero mais um miojo? Preciso de mais
leite?” Aliás, o leite é um dilema. Nunca
se sabe quantas caixas de leite se tem
em casa e comprar a mais pode ser um
desastre, afinal, o período de validade é
muito curto. Seinfeld tinha o costume
de iniciar seus quadros com a expres-
são “Have you noticed that...” (Você já
reparou que... ?) e, a partir daí, cha-
mar a atenção para algo do cotidiano.
“A operação dele é a de estranhar o ba-
nal, desnaturalizá-lo: quando se repara
no banal, ele se torna estranho, meio
absurdo”, explica o ensaísta Francisco
Bosco. ilustrações: Luisa Nogueira Loch
23. 5
23
A mélie Poulain aprecia toda a forma de pe-
quenos prazeres. A personagem principal
do filme francês O Fabuloso Destino de Amélie
Poulain, de 2001, foi diagnosticada com proble-
mas de coração quando pequena, o que a levou
a viver em reclusão com os pais. Amélie, então,
cria um novo mundo, onde pequenas coisas
ganham importância sentimental. Enquanto
Barthes, Seinfeld e Bosco racionalizam o banal,
Amélie o sente. O filme chamou a atenção para
o lado encantador das pequenas coisas e logo se
tornou cult. A singularidade dos pequenos e ori-
ginais prazeres colabora ao ego que deseja ser
único e especial. Além disso, buscar uma outra
visão no mundo caótico é uma salvação. O filme
6
foi lançado no ano do 11/09.
N ão só Barthes, Seinfeld, Bosco ou Amélie
Poulain notaram as pequenas coisas do
cotidiano. No entanto, essa filosofia que se
inspira nisso não está catalogada ou rotula-
da. Até mesmo por que isso seria uma forma
de diminuir o pensamento desses filósofos,
uma vez que o banal é o ponto de partida,
;
mas não o de chegada.
ilustrações: Luisa Nogueira Loch
24. 24
Multimídia
A
Ah, como eu queria voltar aos tempos das li-
h, como eu queria voltar aos
ções da professora Helena e das travessuras cover
tempos em que meus maiores
do garoto propaganda do cigarrinho de chocolate.
problemas eram o oito e meio
Ah, como que queria voltar aos tempos em que
em Matemática e quando a perninha
conseguia compreender o latido de cães super as-
do “éle” ultrapassava a margem supe-
tros da TV.
rior nos cadernos de caligrafia.
Ah, como eu queria voltar aos tempos
Ah, como eu queria voltar aos
das minisséries japonesas e dos robôs gi-
tempos em que batia o mini-bugue nos
gantes que combatiam monstros devas-
pneus ao redor a pista, e meu avô sor-
todores de cidades inteiras.
ria e dizia: “Mais 10 voltas!”.
Ah, como que eu queria voltar
Ah, como eu queria voltar aos tem-
aos tempos do castelo do menino de
pos em que cerrava os olhos ao sentar
Via
300 anos e do cavalete mágico do
no carrinho do trem fantasma e saía de lá
professor Tibúrcio .
concordando com tudo que os outros fala-
em
Ah, como que queria voltar
vam.
aos tempos dos conjuntos mu-
Ah, como eu queria voltar aos tempos em
g
por Matheus Joffre sicais de cinco integrantes e do
que gritava “gol” com todo meu fôlego, depois de
ao te
teclado eletrônico.
meu pai me deixar marcar um no futebol de botão.
po
Ah, como eu queria voltar
Ah, como eu queria voltar aos tempos do almoço
m
aos tempos das mil vidas do Su-
de domingo na casa da vovó com a família toda reunida.
per Mário e do peculiar “glub” do
Ah, como eu queria voltar aos tempos do Natal com Pa-
Sonic na fase dentro d’água.
pai Noel e dos presépios feitos com um mês de antecedên-
Ah, como eu queria voltar aos tem-
cia.
pos em que ia escondido para o fliperama dirigir
Ah, como eu queria voltar aos tempos das brincadeiras
um Porsche conversível a mil ou baixar porrada no
de rua: pega-pega, esconde-esconde, mamãe-da-rua e outras
Street Fighter.
tantas.
Ah, como eu queria voltar aos tempos dos Co-
Ah, como eu queria voltar aos tempos em que apostava
mandos em Ação e dos bonecos com articulações
com meus primos para ver quem ficava acordado até mais
super resistentes.
tarde, e todos capotávamos de sono sem haver um vence-
Ah, como eu queria voltar aos tempos em que
dor.
Literatura era se deleitar com os gibizinhos da Tur-
Ah, como eu queria voltar aos tempos em que a segun-
ma da Mônica durante o verão.
da-feira era colorida, bem como cada dia da semana; forman-
Ah, como eu queria voltar aos tempos em que
do um lindo arco-íris.
havia amizade entre quatro trapalhões e não uma
Ah, como eu queria ser capaz de fazer essa singela re-
guerra de egos entre dois atrapalhados. ;
gressão e sentir – ao menos por algumas 40 linhas – a felici-
dade perene de uma criança.
25. tão especial 25
foto e arte: Maurício Tussi
,
conta-me. conta-me o que há, que olhas ligeiramente perplexa. que vês? não me deixes morrer na
por Mauricio Tussi
angústia. preciso que me digas. mesmo que confuso, mesmo que fugaz. preciso desse instante
26. tão perto 26
foto e arte: Maurício Tussi
não sei o que dizer sobre uma flor.
27. 27
[cau s os & coisa s]
uM BOM DIA PARA CARAmELOS
Q uando Julieta olhou para as estrelas, na terça-
feira, decidiu que era hora de comprar caramelos.
Gostava de mordê-los com força, como se lutasse,
e sentir os dentes brancos latejando.
Sim, era hora de caramelos. Com a cartola na
cabeça, passeava por uma rua do centro da cidade, em
busca de uma confeitaria.
Eu já sabia: aquela busca era inútil. Mas Julieta
ignorava isso, ao que andou 40 minutos.
Os brincos lhe pesavam a orelha, os sapatos
sufocavam os pés, mas os dentes continuavam intactos,
Julieta se irritava.
Diante da urgente necessidade, Julieta mordeu as
mãos finas, conseguiu que coubessem os cinco dedos na
boca e admirou o sangue que aqueceu-lhe o queixo. ;
ilustração: Marc Bogo