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A ORCA




                                                                                                ,
                                                                                       o MICTORIO

o porco



                                                                                       o RALO

                           *como você pode ver, a capa parece um tanto estranha...
                           agora respira fundo e... vamos lá! bem-vindo ao devaneio!




                                                                                       E A CODORNINHA


  alugriv_e_otno
          OUTUBRO 2007 EDIÇÃO 7
ponto_e_virgula
[ su m ário]
                                                                                                        OUTUBRO 2007 EDIÇÃO 7

                                                                                                               ESCRITORES
                                                                                                              Adriana Seguro
    ; ESPECIAL                                                                                                Fernanda Dutra
                                                                                                               Juliana Sakae

                                            25
    04
                                                                                                                 Luisa Frey
                                                     Maurício Tussi
            Pedro Santos                                                                                      Marina Almeida
                                                                                                             Marina Veshagem
    e seu script. Pronto pra filmar!        nem sabe direito o que fez
                                                                                                              Matheus Joffre
                                                                                                               Pedro Santos
    06      Marina Veshagem                                                                                     Thiago Bora
                                            TODA EDIÇÃO
    divaga fofuras infantis                                                                                      ESPECIAL
                                                                                                            Luisa Nogueira Loch
                                            18       Entrevista
    07      Juliana Sakae                                                                                         EDIÇÃO
                                            Francisco Bosco: ensaísta e letrista. E simpático (:              Adriana Seguro
    suas fotos e suas (novas) palavras
                                                                                                              Matheus Joffre

                                            27
                                                                                                              Marina Almeida

    10      Marina Almeida                           Causos&Coisas
                                                                                                              DIAGRAMAÇÃO
                                            Orperat utat!!! Duiscil et, quam zzrit, velent do etum            Carolina Moura
    conta do Faéco e do Saci
                                            volortio odit at niam quis at, conulputet autat!?!?               Fernanda Dutra
                                                                                                               Juliana Sakae
    12      Carolina Moura                                                                                     Maurício Tussi
                                                                   PROCON
                                                                     151
    não vai para o céu!                                                                                          CAPA
                                                               OUVIDORIA                                      Maurício Tussi
                                                     revista@revistapontoevirgula.com
    14      Adriana Seguro                                                                                     ARTE FINAL
            e Luisa Frey                                                                                      Juliana Sakae
                                                                                                              Maurício Tussi
    foram ao Neco e trouxeram o bom samba
                                                                                                                 REVISÃO
    17      Thiago Bora                                                                                     Fernanda Volkerling
                                                                                                             Lucas Sarmanho
    ... e resolveu encostar o violão                                                                            Luisa Frey
                                                                                                             Marina Veshagem

    21                                                                                                         Pedro Santos
            Fernanda Dutra                                                                                    Rodrigo Tonetti
    ensaia 1 2 3 4 5 6




                                                                                                                  ;
                                                                                                             Florianópolis - SC
    24      Matheus Joffre
    viaja no tempo, relembra o que passou




                                                                                                       www.revistapontoevirgula.com
[ca r ta ao lei tor ]




              A
                      lguém nos disse que um pouco de angústia faz bem, leva
                      à reflexão. Foi por angústia que decidimos criar a ponto-
                      e-vírgula, como uma forma de correr atrás das nossas
              paixões jornalísticas.
                    Mas nossas reflexões não tiveram fim no nascimento da
              primeira edição desta revista, talvez elas tenham começado a
              amadurecer ali.
                    Neste sétimo mês, fazemos algo como uma auto-
              desconstrução. Depois de termos criado nossas próprias regras,
              nosso manual de redação, um semi-estilo, decidimos abandoná-
              los provisoriamente.
                    A ausência de critérios definidos à produção remete ao Projeto
              Piloto, publicação online que consideramos o embrião da revista.
                    Se de alguma forma retornamos, não é por negação a nossos
              êxitos, mas por que julgamos importante a reflexão e a auto-
              crítica. É assim, acreditamos, que desenvolveremos nossa prática
              jornalística.
                    Em outubro, a ponto-e-vírgula divide suas angústias, ques-
              tionamentos e idealismos (por que não?) contigo, leitor.
4
[Pe dro S antos ]
                                       Abrimos em BLACK. CARACTERES: DROPS

                                       FADE IN:

                                       INT. CASA DE ANDRÉ/BANHEIRO – ANOITECER

                                       ELE NO ESPELHO, FAZENDO A BARBA.
                                       Câmera fixa, cortes rápidos. Ele liga o chuveiro, espera
                                       dois segundos, entra no boxe. Corte. Pegando o xampu.
                                       Corte. Cabeça ensaboada. Corte. Plano médio.Desliga.
                PS
              O
            DR             s
                          o
                       nt
                     Sa
                 o
           dr
         e
        P
                                       Sai enrolado em uma toalha. Corte. Ele de roupa enxugan-
                                       do os cabelos com a toalha. Corte.

                                                                                              por Pedro Santos
                                       INT. CASA DE ANDRÉ/SALA - ANOITECER

                                       Já vestido, pega a carteira, o celular e um drops de
                                       bala. Fecha a porta e sai.


                                  br
                                       EXT. FESTA – NOITE

                                tu
                              u        Ele com os amigos, conversando. Cerveja na mão (plano
                          O            médio). Câmera atrás deles. Em primeiro plano, a cor
                                       dourada da cerveja. Ao fundo, ELA sentada em uma mureta,
                                       com duas amigas, conversando e tomando cerveja.

                                       Jogo de olhares. Ele olha três vezes; ela, uma. Close
                                       nos olhos. Som alto. Ele sai para buscar mais cerveja.
5
              Enche o
                          c
             pre dan opo. Cumprime
                                              n
                        do uma
                                  olhadel ta três pesso
             diferen                                            a
                                            a em di
                                                     reção à s no caminho,
                       te.
                                                                                   se
                                                                garota.
                                                                          Ela, in m-
            Passa o                                                                -
                        t
            sentada empo: pessoas
                      .                       dançand
           ela. Pe Jogo de olhar                       o
                                            es: ele , bebendo. El
                      ssoas i
                                                                         a, semp
                                nd                     sempre
           ele cum
                     priment o embora. Fes                                       re
                                                                o
                                                    ta acab lha mais do q
                                a os do
          para a                                                                 u
                                                             ando. D
                                          is amig
                                                                      e repen e
                     gu
          andando ria, que não                     os, dá
                                                                               te,
                                                            uma últ
                                           co
                      sozinho
                                 , em di rresponde. El               ima olh
                                                                              ada
                                                              e sai.
                                           reção a
                                                                       Vai emb
                                                     sua cas
         EXT. RU                                                                ora,
                                                              a.
                    A DESER
                               TA, BEM
                                          ILUMINA
                                                   DA – NO
        Câmera                                              ITE
                   de fren
                              te. Ele
       Rua des
                                         andando
                  er
       no inte ta. Um carro                       ,
                                        vem cor solitário, na
                  rior. E
                                                 re
                             LA está                                   calçada
                                        entre e ndo e pára. T                  .
                                                                     rês gar
                                                 las.
                                                                              otas
      ELA
      Vem cá!
                  Entra a
                             qui!
     Sem hes
                it
     duas ga ar, ele ENTRA
                                      . Banco
                rotas.
                          ELA sim
                                    plesmen de trás, sent
    outra r
               epete o                                            a no me
                                              te o be
                           g
    jado e
               agarrad esto. André,                                        io das
                                                        ija. Em
                                                                  seguida
                                               entre a
                         o.                                               ,a
                                                         s duas,
                                                                   sendo b
   Corte.                                                                  ei-
              Ele and
                        ando, s
   carro d                         olitári
              e novo.                        o, na r
                                                      ua. Cor
                                                               te. A c
  Corte.                                                                ena no
             Ele ENT
                       RA em c
 do corp                          asa e d
            o
 direção para fora. A                       eita na
                                                      ca
                                   câmera
                                             se afas ma, um terço
             à porta
                         semi-ab                     ta
                                    erta. F
                                              ADE OUT lentamente em
FIM. ;
                                                       .
6


                      O louco e a criança olham para o teto
                                                                                              por Marina Veshagem

-   Branco, branco...                      - E quando tão longe?                      -   Tá vendo aquela sombra no canto?
-   Peraí, um ponto preto!                 - Aí o medo fica pequenino e dá uma        -   Tô.
-   E o que é?                             curiosidade danada, uma vontade de ir      -   É o olho do nada que piscou pra mim.
-   Ah, é uma mosca.                       lá!                                        -   Olha, tá se mexendo...
                                           - Mas neste caso é bom!                    -   O quê?
- Mosca, mosca... Tá aqui, achei!
- O que diz?                               - Não é, porque se está longe é quase      -   A sombra, o olho do nada.
- Pequeno inseto do filo dos artrópodes,   impossível chegar lá.                      -   O que parece agora?
que tem um par de antenas. Excretam        - Mas o buraco longe não é o mesmo         -   ... um homem!
por tubos de Malpighi...                   que o perto?                               -   O que ele tá fazendo?
                                           - É...                                     -   Tá andando.
- Tubos... Eu também gosto de tubos.
- Presta atenção! Olha, as aranhas são     - Então, por que você quer o que não       - Pra onde?
parentes das moscas!                       pode pegar, se há um igual do seu lado?    - Pro buraco. Vai vê ele tá curioso para
- Mas então, por que elas fazem teias      - Não sei...                               saber o que tem lá também.
para prender seus parentes?                - Olha, olha! Achei mais uma coisa!        - Mas qual buraco, o perto ou o longe?
                                                                                      - O longe, né!? O perto dá medo.
- Ah, sei lá! Meu pai disse que parentes   -   O quê, o quê???
são chatos e só sabem pedir as coisas.     -   Um nada.                               -   Tá saindo alguma coisa do buraco.
- Vai ver é por isso... Mas seu pai tam-   -   Um o quê?                              -   O quê?
bém constrói teias pra pegá-los?           -   Nada.                                  -   Uma aranha, a parente da mosca.
                                           -   Como assim?                            -   O que ela tá fazendo?
- Não, ele finge que gosta deles.                                                     -   Uma teia.
- Ah bom... Mas o que mais tem aí em       - Olhe para aquele canto mais ali. O que
cima?                                      você vê?                                   - O quê?




                                                                                                                                    ;
- Hum... Tem uns buracos.                  - ... nada...                              - É, uma teia.
- Não gosto de buracos...                  - Então, o nada tá ali.                    - E fez o que com ela?
                                           - Mas como você sabe que ele tá ali se
- Por quê?                                 não tem nada?                                                                               ;
- Quando eles tão perto são tão escu-                                                 - ... enroscou no homem e puxou pro
ros... E eu não os conheço, parece que o                                              buraco...
medo mora lá dentro.
                                                                                                               *pintura Van Gogh “Girassóis”
7




                                                  por Juliana Sakae
                                                                         *fotos Juliana Sakae




                           do Lat. mole
                           v.int.,
                           sentir a propriedade                   do Lat. querere
                           física de um objeto                               v.tr.,
                           erroneamente.                        querer não-querer.


                                 “nomear é fazer ver, é criar,
s.f.,
                                          levar à existência”
consciência de sentir-se
                                            Pierre Bourdieu
acordado durante o sono.
8

                                                                 *fotos Juliana Sakae




s.f.,
perceber uma parte do corpo                                          s.m.,
como algo estranho a ele      reação involuntária que transmite a sensa-
                                  ção interior de pensar uma dada reação.

                               s.f.,
                               vontade involuntária de contrair os músculos
                               do corpo;

                               op;
                               espreguiçar.
9
*fotos Juliana Sakae




                                                            adj.,
               s.f.,                                        perspectiva de visão alterada ao
               reprodução inconsciente de uma imagem        imaginar-se no corpo de outrem.
               fixa na mente.              s.f.,
                                           nó no peito que
                                           indica agonia
                                           profunda;
                                           ansiedade;
                                           Bot.,



                                                                                               ;
                                           cada uma das
                                           peças do cálice                 do Fran. trés penser   ;
                                           das flores.             concentrar-se pontualmente;
                                                  visão atordoada pelo excesso de concentração.
10


                          Conto do Faeco
                                      ´                                    por Marina Almeida


F
      aéco era um menino muito sapeca.        do pela correnteza, viu diversos peixes,
      Ao longo de seus seis anos adquiriu     todos muito coloridos e conversando
      uma capacidade de criar confusão        alegremente entre si. Faéco tentou se
maior do que a de qualquer outra crian-       comunicar, para avisá-los que era uma         HISTÓRIA DO FAÉCO
ça. Por morar em uma cidade pequena,          criança e precisava voltar para casa an-
estava acostumado a brincar na rua, no        tes que a bruxa Gilda chegasse, mas        o Faéco é meu pai. Ouvi essa história
quintal, sem se preocupar com nada.           cada vez que falava saiam várias bolhas     por toda a minha infância. Ele jura
                                                                                                     que é verdade.
A única pessoa capaz de fazer com que         e nenhum som. O menino estava cada
                                                                                             o A Bruxa Gilda é, na verdade,
Faéco ficasse quieto era a bruxa Gilda.       vez mais assustado e tratou de se pren-
                                                                                          minha tia. Segundo meu pai ela era
Ela deixava o menino amarrado ao pé           der num galho para não ir mais longe do       realmente uma bruxa, mas virou
da mesa da sala, com uma corda que            que já tinha ido.                            fada quando se casou. Ela andava
chegava apenas ao banheiro.                         Guilhermina estava desesperada,          em uma vassoura que não fazia
                                                                                          curvas, obrigando-a a descer cada
      A bruxa Gilda não gostava de des-       quando alguns peixinhos saíram da tor-
                                                                                         vez que precisava mudar de direção.
perdícios e, por isso, exigia que se trans-   neira para dizer que a espuma que veio
                                                                                         Minha tia nunca confirmou a história,
formasse os restos de sabão em novas          da casa estava se comportando de modo          mas também nunca desmentiu.
pedras. É aí que a história começa.           estranho. Ela percebeu que Faéco virou           o Guilhermina era mesmo a
      Em um belo dia de sol, Guilhermi-       espuma por causa do feitiço da bruxa            cozinheira da casa do meu
                                                                                           pai, quando ele era criança.
na, a cozinheira da casa, estava mexen-       Gilda. Então, pegou um pote de marga-
                                                                                         Sempre a conheci como Lena,
do uma enorme panela com os restos de         rina e correu para o rio, guiada por um
                                                                                             mas meu pai insiste em
sabão enquanto Faéco brincava no quin-        peixinho muito jovem, todo listrado de       chamá-la de Guilhermina.
tal, subindo em árvores e pulando para        azul e a amarelo. Recolheu a espuma e      Ela também nunca disse que
assustar as galinhas. Quando o menino         a levou para o freezer. Aquilo tinha que             era mentira.
percebeu que Guilhermina tinha entra-         dar certo, pois Faéco não podia passar a
do na casa, foi correndo bisbilhotar.         vida inteira como espuma.
      Por um descuido, Faéco caiu dentro            Após algumas horas, o pote come-
da panela de sabão. O que ele não sabia       çou a tremer e, ao abri-lo, Faéco saiu
é que a bruxa Gilda havia feito uma má-       com o olhar assustado de lá de dentro.
gica, que transformava em sabão tudo          A bruxa Gilda chegou, viu Faéco senta-
o que caia na panela. Faéco sentiu seu        do na mesa e Guilhermina preparando
corpo ficar cada vez mais mole.               o jantar, como se nada tivesse aconte-
      A cozinheira não percebeu que Fa-       cido.
éco virou espuma e o jogou no ralo que              Ufa - pensou Faéco - escapei de
dava no rio da cidade. Ele foi arrasta-       mais uma.


                                                                                                                        arte: Juliana Sakae
(continuando...)

                          Conto do Saci
                                                                                                                                                          11
                                                                                                      ilustração: Alexandre Santos; arte: Juliana Sakae




    C
          erto dia, o Saci Pererê estava sentado   e as roupas ficaram limpas e cheirosas.
          na Mata do Japi, pensando em como        Depois, a Fadita foi para a cozinha, ba-
          poderia ir visitar seus parentes de      teu sua varinha novamente, dessa vez
    Botucatu, na serra do Tico Tico. Pererê        na pia, e pratos e copos ficaram limpos.
    foi logo atrás de seu primo, o Curupira.       Na manhã seguinte, os primos acorda-
                                                                                                     HISTÓRIA DO SACI
          Curupira ficou animado e aceitou o       ram e viram que tudo estava arrumado.
    convite. Mas disse logo:                       Tinha café, bolacha e leite para o café-          o Essa história meu pai contava para os
          - Como vamos até lá? É muito longe       da-manhã.                                         meus primos. Eles acreditavam e
                                                                                                     sempre que viam meu pai,
    e não dá para ir pulando numa perna só.              Alguns dias se passaram, até que
                                                                                                     saiam correndo, querendo
          O Saci respondeu, com um sorriso         o Saci disse:                                     saber o que o Saci tinha feito.
    de moleque levado:                                   - Vamos dar um passeio pela mata.           o A Mata do Japi existe. Ela fica
                                                                                                     em Jundiaí (SP), onde eu mora-
          - A gente vai pela trilha atrás do       Quero ver se consigo aprontar com algu-
                                                                                                     va antes de me mudar para
    Vale das Fadas que é mais perto. Assim         ma criança.                                       Florianópolis. Da janela do meu aparta-
    dá para ir pulando.                                  - A Fadita é muito boa, mas não po-         mento dava para ver um pedaço da
                                                                                                     Mata. Sempre que tinha neblina, meu
          Então eles arrumaram tudo, se des-       demos fazer travessuras, se não ela nun-
                                                                                                     pai falava que era fumaça da chaminé da
    pediram dos outros moradores da Mata           ca mais vem aqui – alertou o Curupira.            casa do Saci.
    do Japi e foram viajar. Porém, o caminho             O Pererê deu risada e disse:                o Além do Saci e do Curupira, a Mata do
                                                                                                     Japi abriga o Vale das Fadas e a Fábrica
    era longo e eles se cansaram. Encon-                 - Isso é mentira, vamos logo.
                                                                                                     de brinquedos do Papai Noel.
    traram uma cabana e decidiram parar.                 Eles subiram nas árvores, mexeram           o Quando eu era criança, meu pai
          - Quem mora aqui? - Perguntou o          nos ninhos dos passarinhos e trocaram             dizia que a Fadita passava a noite
                                                                                                     em casa e dizia para ele o que eu
    Saci.                                          todos os ovos: pegaram um ovo de caná-
                                                                                                     queria ganhar de presente. Mi-
          - Olhe em cima da porta! Essa ca-        rio e foram colocar no ninho da pomba,            nhas amigas queriam dormir
    bana é da fadinha Fadita, eu a conheço,        pegaram o ovo da arara e foram colocar             em casa, só para ver a Fadita.
    mora lá no Vale das Fadas. É muito boa-        no ninho dos patinhos, deram nó na crina
    zinha, mas não gosta de travessuras!           dos cavalos, entre outras traquinagens.
          A cabana era toda arrumada: quar-        Quando os animais descobriram, ficaram
    to, cozinha, banheiro. O Saci tirou sua        furiosos e contaram tudo para a Fadita.
                                                                                                  A cabana ficou desarrumada e eles re-
    roupa e colocou no cesto encantado, to-              No dia seguinte, o Saci Pererê acor-
                                                                                                  solveram voltar para a Mata do Japi.
    mou um banho e depois foi para a cozi-         dou, viu que sua roupa e toda a louça da
                                                                                                  Avisaram seus primos de Botucatu
    nha comer os doces que o Curupira ain-         casa estava suja:
                                                                                                  que não iriam mais visitá-los e vol-
    da não tinha comido enquanto estava                  - Curupira, acorde logo e venha ver. A
                                                                                                  taram. O Curupira prometeu nun-
    sozinho. Depois de comerem, deixaram           nossa roupa não foi lavada, a cozinha está
                                                                                                  ca mais desobedecer a uma fada, mas
    todos os pratos e copos sujos na pia e fo-     toda suja e não tem comida para a gente.
                                                                                                  o Saci não ligou para o que aconte-
    ram dormir. De noite, a fada Fadita apa-             Curupira disse que havia avisado
                                                                                                  ceu e já voltou a aprontar das suas.....
                                                                                                                                        ;
    receu e com sua varinha bateu no cesto         que a Fadita não gosta de travessuras
    de roupa suja. De lá saíram estrelinhas        e que agora teriam que arrumar a casa.
12




                                   ~
Revelacoes Divinas
      s
Mesmo antes de o Bento pôr um fim nisso, como luterana,
nunca me preocupei com essa história de purgar. Até que,
numa bucólica manhã, descobri um futuro bem pior

                  por Carolina Moura


L
       embrei do cheiro de Bíblia. Um         cheiro, todas as semanas. Por que nunca
       cheiro que provavelmente não           mais voltei? Sinto-me bem. Aguardo que
       sinto desde que, aos 13 anos, em       as palavras do pastor, o mesmo que me
meu vestido branco, dirigi-me ao altar        confirmara, confortem-me ainda mais.
em “confirmação à minha fé”. Vontade                “Largo é o caminho que leva para
de lê-la de novo – o cheiro era bom. En-      destruição, e muitos há que entram
trei na igreja e reparei a pintura nova.      nele: Porque estreito é o portão, e aper-
Está bonita. Sempre foi gostosa, peque-       tado é o caminho que leva até a vida, e
na e aconchegante. É, senti saudades.         poucos há que são achados nele” (Ma-
      As notas agudas sempre molharam         teus 7:13-14). Mas o momento etéreo
meus olhos; ouvindo o coral, encho-os de      desfez-se. No altar, montou-se uma tela.
lágrimas. Lembro-me do tempo de dou-          As palavras da pregação completam-
                                              se com slides projetados por um da-
trina, que ia ao culto e cantava tais hinos
                                              tashow, onde não é “ñ” e sempre é “s/”.
todo o mês. Abria a Bíblia e sentia seu
13




As próprias palavras do pastor me ofen-       caminhos – para salientar a importância
dem. Primeiro, ao culpar a “mídia” por        de continuar indo ao culto. No carro, em
tudo de mal que existe sobre a Terra –        direção à festinha, meu pai corrigiu-o e
serei a mídia, querido pastor. Segundo,       disse que Deus não mora na igreja. Posso
por se utilizar do detestável recurso des-    falar com Ele onde quer que esteja.
ta que cita e condena: o sensacionalis-             Desde então, e até antes disso,
mo. Meninos de gravata e meninas de           acreditei que Deus pode me ouvir em
branco ouvem-no falar de barbáries e          qualquer lugar. Não que eu tenha lhe
estupros no dia em que abraçam a reli-        dito muito. Hoje, na verdade, nem sei
gião sobre a qual ele discursa.               se acredito que Ele exista – e para mim
      E, se não bastasse, depois disso        ele tem letra minúscula. E neste dia, na
descobri que vou para o inferno. Porque       igreja, quando meu irmão, morrendo de
só existem dois caminhos, e se você está      calor naquela camisa, “se confirma nes-
no caminho largo, sister, you’re going to     ta fé”, descubro que não pertenço à ela.
hell. Não adianta se esgueirar para a es-           Quando o pastor finalmente se
                                              cala, o data show exibe a letra da músi-
trada apertadinha: santificar o domingo
é mandamento (pré-requisito para a área       ca cantada pelo coral. Ainda é bonito, as
VIP) – e isso significa ir ao culto, toda a   notas altas ainda me tocam. Mas nun-
semana. Viro para o lado e sussurro a         ca tanto quanto aquele agudo da solis-
notícia ao ouvido de minha mãe. Nosso         ta: provoca-me um arrepio, profundo,
destino, após a morte, é certo.               que nota alguma jamais me causara. Se
      Meu pensamento remete novamen-          Deus realmente mora lá e isso foi sua
te àquele dia, com os cabelos enrolados.      mão repreendendo-me, só vou saber
                                              quando morrer. E se for verdade, I’m so
O mesmo pastor contara uma anedota –
                                              going to hell, sister.
sobre morcegos, bem mais leve e adequa-                                               ;
da que a história trágica (para mim) dos
14

.......................................




                                                           .................................
                  Rancho do Neco
                            O samba e a amizade se cruzam em Sambaqui




                                              por Adriana Seguro e Luisa Frey


 D
         omingo, seis da tarde. Neste fim     de uma profissão mais estável, tornou-se
         de dia de inverno, o sol já se pôs   servidor público no ramo da informática.
         faz tempo. Mas o friozinho não é           Neco comprou, com seis amigos,
 suficiente para esfriar ninguém. Na beira    um rancho de pesca no Sambaqui, em
 da praia, um pequeno rancho de pesca.        1993. O propósito do barraco era o lazer.
 Paredes de madeira, chão de pedra, uma       Depois, o local passou a ser uma socie-
 pia para lavar as ostras e um bar - cujo     dade entre ele e o maricultor Lourenço
 balcão é um casco de barco – dividem         da Rocha Silveira. De início, tentaram o



                                                                                .....................
 o pequeno espaço com os equipamentos         cultivo de camarão. “O camarão é difícil
                                                                                                         fachada do Rancho
 de som, instrumentos e banquinhos em         por ser sazonal. Eu e o Lourenço fizemos
 roda. É impossível não sentir calor em       cursos e começamos a produzir ostras”,
 meio ao samba, à cerveja e ao clima de       explica Neco. Hoje, a produção é peque-
 amizade e descontração do Rancho do          na, apenas para manter o rancho cujo
 Neco.                                        foco passou a ser outro: o samba. Como
       Jeans, camiseta com uma despoja-       técnico em informática e maricultor,
 da camisa verde musgo por cima, sorriso      Neco nunca deixou morrer o gosto pela
 simpático e receptivo. Orlando Carlos da     música. Gosto esse que dispensa re-
 Silveira Mello, o Neco, é gaúcho de São      quinte ou sofisticação. Há quatro anos,
 Leopoldo e vive em Florianópolis há 37       todo domingo é dia de roda de samba no
 anos. Músico profissional, dedicou-se a      rancho. O programa – que já é tradição –
 essa arte por dez anos, até o casamen-       começou como uma reunião de amigos,                       foto: canasvieiras.com.br
 to e o nascimento dos filhos. Em busca       o que ainda não deixou de ser.


                                                                                                             arte: Maurício Tussi
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arte: Maurício Tussi




                       Neco (esq.) e Reizinho (dir.).
                       Para Reizinho, o samba e a
                       Bossa Nova voltam a ocupar



                            ...................................................
                       espaço na música brasileira
                                                                     O samba no oeste da ilha catari-     e esse barraco aqui é tudo de bom!”. Ou-
                                                               nense atrai um público diversificado. “O   tro que é músico profissional e costuma




                                                                                                                       .............................................
                                                               ambiente é muito gostoso”, é o que diz a   dar o ar da graça aos domingos é o Rei-
                                                               professora de yoga Maria Lúcia Moraes,     zinho. Aos 58 anos, o cantor e composi-
                                                               moradora do Sambaqui. Ela freqüenta o      tor toca desde os 20 e conta ter vencido
                                                               rancho também para trazer a estudante      diversos festivais. Para Reizinho, a ilha
                                                               alemã Johanna Diekmann, hospedada          gosta de samba e quem gosta de sam-
                                                               em sua casa. Johanna morou um ano          ba vai ao rancho. Além disso, os jovens
                                                               no Brasil e fala um português que im-      estão retornando aos ritmos brasileiros:
                                                               pressiona pela quase ausência de so-       “O samba, a Bossa Nova; a música bra-
                                                               taque. Surpresa ainda maior do que o       sileira está voltando, graças a Deus”.
                                                               samba no pé é a moça pegar o microfone           No barraco, não existe jeito certo
                                                               e mergulhar no ritmo com tamanha inti-     de sambar. No início da noite, apenas
                                                               midade. É linda a cena do dueto entre a    alguns mostram o samba no pé. O clima
                                                               loira germânica e uma negra carioca.       esquenta e, aos poucos, mesmo os que
                                                                     No rancho é assim, quem quiser       apenas sacudiam o corpo timidamen-
                                                               cantar ou se arriscar no violão, na per-   te, experimentam passos mais ousados.
                                                               cussão e no tamborim, está convidado a     Pode ser em par, como a gafieira, ou so-
                                                               entrar na roda. “Todos que querem tocar    zinho, com o tradicional remexer de cal-
                                                               têm oportunidade. A gente vai abrindo      canhares.
                                                               espaço, brincando. Lógico que a gente            Quando inaugurada, a roda reu-
                                                               procura ensinar. Tivemos pessoas que       nia cerca de 20 amigos. O boca-a-boca
                                                               começaram aqui e hoje estão se apre-       trouxe novas caras, o que exigiu de Neco
                                                               sentando bem”, conta Neco.                 maior organização. Ele ressalta que o
                                                                     A cantora Nice costuma vir a cada    rancho não tem alvará para funcionar
                                                               duas semanas. Depois de cantar ener-       como estabelecimento comercial. “Não
                                                               gicamente, com um sorriso expresso na      é um bar. É um rancho de pesca onde,
                                                               voz, ela diz que acha o ambiente mara-     aos domingos, a gente tira as coisas de
                                                               vilhoso. “Quase todos os freqüentadores    dentro pra fazer essa brincadeira. O lu-
                                                               se conhecem. O Neco é muito meu amigo      cro é muito pequeno, e essa não é a in-


                                                                                                                                                           .............
                                                        fotos: Adriana Seguro e
                                                        Lusia Frey
fotos: Adriana Seguro e Luisa Frey
                                                                                                                                            16
                                                                              Rancho do Neco
                                                                              R. Gilson da Costa Xavier, 2800
                                                                              Ponta do Sambaqui – Florianópolis
                                                                              Domingo, a partir das 18h
                                                                              R$ 5,00



                                     ........................................ .          sambaqui

       tenção.” Na porta é cobrada uma taxa de           Ao longo da noite, que a cada do-



                                                                                                            .
       R$ 5,00, mas conhecidos têm a entrada       mingo fica mais longa, o próprio Neco
       liberada.                                   assume o microfone, não só para can-
             Como em toda festa, não poderia       tar. Os recados e comentários do anfi-
                                                                                                                  cenTRo
       faltar comida e bebida. Para quem qui-      trião são em tom de conversa, como se
       ser algo tradicional - afinal trata-se de   fosse uma reunião de amigos em sua
       um rancho de pesca na beira da praia -      casa. Canta uma de suas músicas, es-
       a irmã de Lourenço prepara um delicio-      crita em homenagem ao amigo e sócio
       so risoto de frutos do mar. Servida em      Lourenço. A composição é de palavras
       uma cumbuca de barro, a farta porção é      simples e ritmo contagiante: “Olha o
       vendida a R$3,00.                           jogo da canoa/ Olha o balanço do mar/
             A irmã de Neco – Alda Isabel –        Cuida com o rabo de arraia / Que a vida
       também ajuda na organização da fes-         te pode machucar...”. A saideira é repe-
       ta, quando a casa enche. Na porta, ela      tidamente anunciada. A animação dos
       ajuda a recepcionar e identificar rostos    presentes não deixa o samba terminar.
       conhecidos. A esposa, quando não vêm,       À meia-noite, Neco encerra cantando o
       está presente através de um quadro que      hino de Florianópolis, acompanhado pe-
       deu ao marido. Na parede, logo atrás dos    los convidados.
       músicos, está pendurada uma caricatu-             A casa se esvazia aos poucos. Aca-
       ra perfeita do gaúcho quase manezinho.      bado o movimento, Neco senta para to-



                                                                                                                      ..............
       Para fazer o desenho, o artista plástico    mar uma cervejinha, ouvindo os causos
       Sérgio Honorato foi várias vezes ao ran-    contados pelo amigo Reizinho. Satisfeito                     ilha De Santa Catarina
       cho, sem Neco saber. A encomenda da         com a noite agradável, põe sua caricatu-
                                                                                          ;
       esposa fez sucesso: “Fiquei muito emo-      ra debaixo do braço e vai pra casa.
       cionado com a surpresa”, conta.                                                                                     arte: Maurício Tussi
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Aula de violão               fotos: Thiago Bora arte: Fernanda Dutra




Começa com sol
(sol é G)
Começa com sol,
vai


mordeu os dedos
e nunca mais tentou   ;



           por Thiago Bora
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[e ntrevist a ]   por Fernanda Dutra

                                                       ponto-e-vírgula - O que você quis dizer com o
                                      Franscisco                                                           como os
                                                       título Banalogias?
                                         Bosco é                                                           moralis-
                                                        Enquanto eu escrevia o livro, assistia aos epi-
                                        ensaísta,       sódios do Seinfeld em DVD. Percebi que o Sein-
                                                                                                           tas,
                                                        feld que se relacionava mais imediatamente com
                                        letrista e                                                         não me


    ncisco
                                                       meu livro era o da abertura do programa, quan-
                                      simpático.                                                           preocupo


Fra
                                                       do ele, no palco, fazendo stand up comedy, cha-
                                                       mava a atenção para uma determinada situação
                                                                                                           em
                                   Concedeu esta       do cotidiano, que viria a ser o tema do episódio.
                                                                                                           provar
                                     entrevista à      A operação dele é a de estranhar o banal, des-
                                                                                                           nada
                                   ponto-e-vírgula     naturalizá-lo: quando se repara no banal, ele se
                                                       torna estranho, meio absurdo. Já o que eu fiz foi




Bosco
                                           via email   levar adiante esse estranhamento e dar o próxi-
                                       para falar do   mo passo: explorar o banal, investigar as suas
                                                       lógicas constitutivas. Ora, a lógica do banal não
                                          seu último   pode ser outra coisa que uma “banalogia”. Essa
                                        lançamento,    é a arqueologia conceitual do título. Além disso,
                                          Banalogias   agradou-me muito o eco, no título, de um ou-
                                                       tro livro com que o meu guarda alguma proxi-
                                            (Editora   midade, que é Mitologias, de Roland Barthes.
                                       Objetiva, 206
                                                       ;- Por que usar a estrutura dos aforismos para
                                         páginas, R$   alguns dos textos?
                                              32,90)   Tenho um amigo, filósofo, que sempre me diz
                                                       que eu sou um “moralista latino”. Atenção: ele
                                                       não está me chamando de Jece Valadão! É que
                                                                                                           sentia
                                                       há uma tradição filosófica – a de Cícero, Sêneca
                                                                                                           que a
                                                       etc. – cujos escritos primam pela enunciação de
                                                                                                           escrita
                                                       máximas morais, de pequenas “verdades” sobre
                                                       a vida, a sociedade, a cultura, sem se preocupar
                                                                                                           poética,
                                                       com demonstrações, explicações, notas de rodapé
                                                                                                           como
                                                       etc. Eu concordo com meu amigo filósofo: como
                                                                                                           tal, se
                                                       os moralistas, não me preocupo em provar nada,
                                                       penso que a verdade é mais uma fulgurância do
                                                                                                           esgotara
                                                       que uma adequação, meu compromisso é maior
                                                                                                           em mim
                                                       com o sentido do que com a precisão factual.
19
                                                                        12


  A ques-    ;- Você escreveu letras de música, poesia, prosa, tra-
             balhos acadêmicos...Que tipo de texto te deixa mais
  tão que    confortável e qual te exige mais?
  se colo-      Atualmente, escrevo quase que só ensaios – curtos ou
             mais longos –, não tenho tido tempo mental de escrever
cou era a    letras de música e desde meu antepenúltimo livro, Da
seguinte:    Amizade, de 2003, não escrevo mais poesia. Justamen-
             te, Banalogias é o resultado de uma equação envolvendo
     como    essas e algumas outras variáveis. Ele começou a ser fei-
 inventar    to em 2004, em meio a uma insatisfação minha com a
             produção teórica acadêmica que eu vinha desenvolvendo
   um en-    naquele momento. Eu publicara esse livro, Da Amizade,
   saísmo    no ano anterior, mesmo ano em que defendera minha
             dissertação de mestrado. Este livro era um híbrido de
  com ca-    poesia e fragmentos teóricos: havia poemas metalingü-
 racterís-   ísticos, pequenos filosofemas e poemas narrativos; poe-
             sia e prosa encontravam-se aí indiscerníveis. Eu queria
 ticas po-   que o prosseguimento do meu projeto de escrita fora da
   éticas?   universidade, fosse de algum modo uma continuação
             do que conseguira ali.
             Ao mesmo tempo, sentia que a escrita poética, como tal,
             se esgotara em mim. A partir daí a questão que se co-
             locou era a seguinte: como inventar um ensaísmo com
             características poéticas?
             Assim, desde o primeiro ensaio pensado para equacio-
             nar esse problema (“O Indireto Afetivo na Linguagem
             do Carioca”), Banalogias era e sempre foi um projeto
             de livro. Com o tempo, fui experimentando diversas es-
             critas, até encontrar aquilo que me pareceu o tom de-
             sejado. Esse tom é o de um ensaísmo que se aproxima
             de uma prosa teórica, uma espécie paradoxal de teoria
             concreta, isto é, próxima da vida, como costuma ser a
             poesia. Isso é o fundamental. A isso se acrescem outros
             ingredientes, como o compromisso com o prazer da lei-
             tura e certa dose de humor.
20
                                                                                                                  12

              ; -Você foi desenvolvendo a sua escrita,         ca que caímos num vale-tudo crítico: apenas
   o escri-   consciente do que queria atingir? Há ca-         que todo juízo deve ser feito a posteriori. Isso
 tor pode     sos de escritores muito jovens, como Rim-        posto, retomando o início de sua pergunta,
              baud, que escreveram obras de qualidade          creio que sim, o escritor precisa ter maturi-
   até não    ainda na adolescência. O escritor precisa        dade em relação à sua escrita, ou ao menos a
ser cons-     ter maturidade em relação à escrita?             escrita tem que ter maturidade em relação ao
              Na minha opinião, essa precocidade absur-        escritor. Em outras palavras: o escritor pode
    ciente    da é um fenômeno improvável no nosso mo-         até não ser consciente do que faz, não ser
    do que    mento histórico pós-vanguardas. Hoje existe      um teórico, mas a sua escrita deve ter cons-
              um infinito arquivo de formas da literatura      ciência de si. Uma coisa é a intuição, outra
  faz mas     universal, em inúmeras línguas, facilmente       a ignorância. De minha parte, me interessa
     a sua    disponível a todos que queiram conhecê-lo.       muito a aventura da construção conceitual
              A literatura tornou-se mais consciente como      do livro, do labirinto de questões que temos
   escrita    um todo, e não admite ingenuidades nem pa-       que percorrer durante a sua elaboração. Esse
 deve ter     rece permitir essas obras súbitas e revolu-      livro particular, livro dentro do livro, me in-
              cionárias. Hoje, empregando uma expressão        teressa tanto quanto ou talvez mais até do
   consci-    de Haroldo de Campos (e subvertendo-lhe          que o livro propriamente dito: pois trata-se
 ência de     o sentido original), a arte se dá no horizon-    da aventura de viver o livro, do que significa
              te do provável. Não há mais a experiência do     a escrita do livro em nossas vidas. É por isso
         si   choque estético: não há mais, por exemplo,       que eu não tenho interesse, por exemplo, em
              a vaia, que é seu correlato psicossocial. As     escrever um Banalogias II: não haveria o labi-
              vanguardas cumpriram sua função, que foi         rinto. Posso até acabar por escrevê-lo, já que
              a de revelar que não se pode julgar, a priori,   continuo fazendo textos curtos para revistas
              o que é ou não é uma obra de arte. A partir      e jornais, mas não terá sido um livro sonha-
                                                                                                ;
              das vanguardas, todo material, todo suporte,     do, apenas um livro publicado...
              toda forma pode ser arte. O que não signifi-
21



Da pedra no caminho
à pedra no lago
Não só de poemas concretistas inteligentes,




                                                      2
ou filosofia clássica, reflete-se sobre a vida.
A diversão de jogar pedrinhas no lago, ou as
pequenas coisas da vida, pode levar a reflexões
tão interessantes quanto às de Drummond


                                                      B
                                 por Fernanda Dutra       arthes pensou na sociedade fran-
                                                          cesa de sua época através de pro-




      1
                                                      pagandas de sabão em pó e detergen-
                                                      te, marcianos, brinquedos, bife com
                                                      batatas, astrologia, o cérebro de Eins-
                                                      tein; ensaios que fazem parte do livro
                                                      Mitologias, de 1957. Nesse livro, Bar-
                                                      thes desenvolve o conceito de mito: um
                                                      discurso, isto é, uma fala. Nem tudo é
                                                      mito, mas alguns objetos, idéias, perso-

M      orte, vida, ciência, amor, Estado,             nagens, adquirem um significado além
       sociedade: estamos atolados de                 do funcional. A interpretação dos mitos
grandiosas questões filosóficas. Os gre-              era um dos objetivos da Semiologia, a
gos já pensaram em tudo, mas, surpre-                 ciência dos signos. Devido a suas ca-
endentemente, não paramos de pensar.                  racterísticas, principalmente o signifi-
Certamente, questões com densidade                    cado implícito, os mitos poderiam ser
dramática levam à necessidade humana                  explorados pela mídia, mas Barthes foi
dos questionamentos. Mas a liberdade                  além do pensamento de manipulação
do pensamento guiou alguns homens a                   de consciência.
assuntos pequenos, de aparente super-
ficialidade. Banais.


                                                           ilustrações: Luisa Nogueira Loch
4
                                                                                                             22



                                                  O    ensaísta e letrista Francisco Bosco     entrevista pág. 18

                                                       não se contenta com fazer notar o
                                                  bizarro do cotidiano, mas não analisa
                                                  somente os mitos. Tudo pode servir de
                                                  ponto de início para uma reflexão, e aí




3
                                                  entram tanto as grandes questões huma-
                                                  nas quanto as sinopses e a acne. A filo-
                                                  sofia de Bosco encontra Barthes e Sein-
                                                  feld, sem medo do pódio intelectual em
                                                  que se encontra o primeiro ou da massi-

S
                                                  va popularidade do segundo. O mestrado
     einfeld precisava de bem menos.
                                                  e doutorado na área de Letras reforça o
     Para o humorista americano, entrar
                                                  viés lingüístico das análises. No ensaio O
no supermercado era o suficiente. Em
                                                  Indireto Afetivo na Linguagem do Carioca,
um de seus atos da stand-up comedy,
                                                  Bosco parte do recorrente diálogo entre
ele nos faz notar um comportamento
                                                  cariocas que não se vêem há muito tem-
quase universal no supermercado. En-
                                                  po e prometem se ligar para desvendar
tramos, decididos, tudo o que vamos
                                                  traços da personalidade do carioca.
comprar está escrito no papel ou é repe-
tido várias vezes mentalmente. Na pri-
meira gôndola, o perfil decidido se esvai.
“Quero mais um miojo? Preciso de mais
leite?” Aliás, o leite é um dilema. Nunca
se sabe quantas caixas de leite se tem
em casa e comprar a mais pode ser um
desastre, afinal, o período de validade é
muito curto. Seinfeld tinha o costume
de iniciar seus quadros com a expres-
são “Have you noticed that...” (Você já
reparou que... ?) e, a partir daí, cha-
mar a atenção para algo do cotidiano.
“A operação dele é a de estranhar o ba-
nal, desnaturalizá-lo: quando se repara
no banal, ele se torna estranho, meio
absurdo”, explica o ensaísta Francisco
Bosco.                                       ilustrações: Luisa Nogueira Loch
5
                                                                                                       23




                                                    A    mélie Poulain aprecia toda a forma de pe-
                                                         quenos prazeres. A personagem principal
                                                    do filme francês O Fabuloso Destino de Amélie
                                                    Poulain, de 2001, foi diagnosticada com proble-
                                                    mas de coração quando pequena, o que a levou
                                                    a viver em reclusão com os pais. Amélie, então,
                                                    cria um novo mundo, onde pequenas coisas
                                                    ganham importância sentimental. Enquanto
                                                    Barthes, Seinfeld e Bosco racionalizam o banal,
                                                    Amélie o sente. O filme chamou a atenção para
                                                    o lado encantador das pequenas coisas e logo se
                                                    tornou cult. A singularidade dos pequenos e ori-
                                                    ginais prazeres colabora ao ego que deseja ser
                                                    único e especial. Além disso, buscar uma outra
                                                    visão no mundo caótico é uma salvação. O filme




                                   6
                                                    foi lançado no ano do 11/09.




                                   N   ão só Barthes, Seinfeld, Bosco ou Amélie
                                       Poulain notaram as pequenas coisas do
                                   cotidiano. No entanto, essa filosofia que se
                                   inspira nisso não está catalogada ou rotula-
                                   da. Até mesmo por que isso seria uma forma
                                   de diminuir o pensamento desses filósofos,
                                   uma vez que o banal é o ponto de partida,
                                                                              ;
                                   mas não o de chegada.

ilustrações: Luisa Nogueira Loch
24
                                                                                                          Multimídia

A
                                                                             Ah, como eu queria voltar aos tempos das li-
        h, como eu queria voltar aos
                                                                       ções da professora Helena e das travessuras cover
        tempos em que meus maiores
                                                                       do garoto propaganda do cigarrinho de chocolate.
        problemas eram o oito e meio
                                                                             Ah, como que queria voltar aos tempos em que
em Matemática e quando a perninha
                                                                        conseguia compreender o latido de cães super as-
do “éle” ultrapassava a margem supe-
                                                                            tros da TV.
rior nos cadernos de caligrafia.
                                                                                    Ah, como eu queria voltar aos tempos
      Ah, como eu queria voltar aos
                                                                                 das minisséries japonesas e dos robôs gi-
tempos em que batia o mini-bugue nos
                                                                                   gantes que combatiam monstros devas-
pneus ao redor a pista, e meu avô sor-
                                                                                     todores de cidades inteiras.
ria e dizia: “Mais 10 voltas!”.
                                                                                            Ah, como que eu queria voltar
      Ah, como eu queria voltar aos tem-
                                                                                        aos tempos do castelo do menino de
pos em que cerrava os olhos ao sentar




                                        Via
                                                                                         300 anos e do cavalete mágico do
no carrinho do trem fantasma e saía de lá
                                                                                          professor Tibúrcio .
concordando com tudo que os outros fala-


                                                     em
                                                                                                Ah, como que queria voltar
vam.
                                                                                           aos tempos dos conjuntos mu-
      Ah, como eu queria voltar aos tempos em


                                            g
                                                                por Matheus Joffre         sicais de cinco integrantes e do
que gritava “gol” com todo meu fôlego, depois de


                                                                ao te
                                                                                           teclado eletrônico.
meu pai me deixar marcar um no futebol de botão.




                                                                             po
                                                                                                Ah, como eu queria voltar
      Ah, como eu queria voltar aos tempos do almoço


                                                                      m
                                                                                         aos tempos das mil vidas do Su-
de domingo na casa da vovó com a família toda reunida.
                                                                                        per Mário e do peculiar “glub” do
      Ah, como eu queria voltar aos tempos do Natal com Pa-
                                                                                      Sonic na fase dentro d’água.
pai Noel e dos presépios feitos com um mês de antecedên-
                                                                                      Ah, como eu queria voltar aos tem-
cia.
                                                                       pos em que ia escondido para o fliperama dirigir
      Ah, como eu queria voltar aos tempos das brincadeiras
                                                                       um Porsche conversível a mil ou baixar porrada no
de rua: pega-pega, esconde-esconde, mamãe-da-rua e outras
                                                                       Street Fighter.
tantas.
                                                                             Ah, como eu queria voltar aos tempos dos Co-
      Ah, como eu queria voltar aos tempos em que apostava
                                                                       mandos em Ação e dos bonecos com articulações
com meus primos para ver quem ficava acordado até mais
                                                                       super resistentes.
tarde, e todos capotávamos de sono sem haver um vence-
                                                                             Ah, como eu queria voltar aos tempos em que
dor.
                                                                       Literatura era se deleitar com os gibizinhos da Tur-
      Ah, como eu queria voltar aos tempos em que a segun-
                                                                       ma da Mônica durante o verão.
da-feira era colorida, bem como cada dia da semana; forman-
                                                                             Ah, como eu queria voltar aos tempos em que
do um lindo arco-íris.
                                                                       havia amizade entre quatro trapalhões e não uma
      Ah, como eu queria ser capaz de fazer essa singela re-
                                                                       guerra de egos entre dois atrapalhados. ;
gressão e sentir – ao menos por algumas 40 linhas – a felici-
dade perene de uma criança.
tão especial                                                                                                             25
                                                                                                    foto e arte: Maurício Tussi




                                                                                                              ,
conta-me. conta-me o que há, que olhas ligeiramente perplexa. que vês? não me deixes morrer na
                                                                                                 por Mauricio Tussi
angústia. preciso que me digas. mesmo que confuso, mesmo que fugaz. preciso desse instante
tão perto                                                  26
                                      foto e arte: Maurício Tussi




não sei o que dizer sobre uma flor.
27
[cau s os & coisa s]




   uM BOM DIA PARA CARAmELOS

   Q       uando Julieta olhou para as estrelas, na terça-
           feira, decidiu que era hora de comprar caramelos.
           Gostava de mordê-los com força, como se lutasse,
   e sentir os dentes brancos latejando.
         Sim, era hora de caramelos. Com a cartola na
   cabeça, passeava por uma rua do centro da cidade, em
   busca de uma confeitaria.
         Eu já sabia: aquela busca era inútil. Mas Julieta
   ignorava isso, ao que andou 40 minutos.
         Os brincos lhe pesavam a orelha, os sapatos
   sufocavam os pés, mas os dentes continuavam intactos,
   Julieta se irritava.
         Diante da urgente necessidade, Julieta mordeu as
   mãos finas, conseguiu que coubessem os cinco dedos na
   boca e admirou o sangue que aqueceu-lhe o queixo. ;




                                                               ilustração: Marc Bogo
;
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  • 1. A ORCA , o MICTORIO o porco o RALO *como você pode ver, a capa parece um tanto estranha... agora respira fundo e... vamos lá! bem-vindo ao devaneio! E A CODORNINHA alugriv_e_otno OUTUBRO 2007 EDIÇÃO 7
  • 2. ponto_e_virgula [ su m ário] OUTUBRO 2007 EDIÇÃO 7 ESCRITORES Adriana Seguro ; ESPECIAL Fernanda Dutra Juliana Sakae 25 04 Luisa Frey Maurício Tussi Pedro Santos Marina Almeida Marina Veshagem e seu script. Pronto pra filmar! nem sabe direito o que fez Matheus Joffre Pedro Santos 06 Marina Veshagem Thiago Bora TODA EDIÇÃO divaga fofuras infantis ESPECIAL Luisa Nogueira Loch 18 Entrevista 07 Juliana Sakae EDIÇÃO Francisco Bosco: ensaísta e letrista. E simpático (: Adriana Seguro suas fotos e suas (novas) palavras Matheus Joffre 27 Marina Almeida 10 Marina Almeida Causos&Coisas DIAGRAMAÇÃO Orperat utat!!! Duiscil et, quam zzrit, velent do etum Carolina Moura conta do Faéco e do Saci volortio odit at niam quis at, conulputet autat!?!? Fernanda Dutra Juliana Sakae 12 Carolina Moura Maurício Tussi PROCON 151 não vai para o céu! CAPA OUVIDORIA Maurício Tussi revista@revistapontoevirgula.com 14 Adriana Seguro ARTE FINAL e Luisa Frey Juliana Sakae Maurício Tussi foram ao Neco e trouxeram o bom samba REVISÃO 17 Thiago Bora Fernanda Volkerling Lucas Sarmanho ... e resolveu encostar o violão Luisa Frey Marina Veshagem 21 Pedro Santos Fernanda Dutra Rodrigo Tonetti ensaia 1 2 3 4 5 6 ; Florianópolis - SC 24 Matheus Joffre viaja no tempo, relembra o que passou www.revistapontoevirgula.com
  • 3. [ca r ta ao lei tor ] A lguém nos disse que um pouco de angústia faz bem, leva à reflexão. Foi por angústia que decidimos criar a ponto- e-vírgula, como uma forma de correr atrás das nossas paixões jornalísticas. Mas nossas reflexões não tiveram fim no nascimento da primeira edição desta revista, talvez elas tenham começado a amadurecer ali. Neste sétimo mês, fazemos algo como uma auto- desconstrução. Depois de termos criado nossas próprias regras, nosso manual de redação, um semi-estilo, decidimos abandoná- los provisoriamente. A ausência de critérios definidos à produção remete ao Projeto Piloto, publicação online que consideramos o embrião da revista. Se de alguma forma retornamos, não é por negação a nossos êxitos, mas por que julgamos importante a reflexão e a auto- crítica. É assim, acreditamos, que desenvolveremos nossa prática jornalística. Em outubro, a ponto-e-vírgula divide suas angústias, ques- tionamentos e idealismos (por que não?) contigo, leitor.
  • 4. 4 [Pe dro S antos ] Abrimos em BLACK. CARACTERES: DROPS FADE IN: INT. CASA DE ANDRÉ/BANHEIRO – ANOITECER ELE NO ESPELHO, FAZENDO A BARBA. Câmera fixa, cortes rápidos. Ele liga o chuveiro, espera dois segundos, entra no boxe. Corte. Pegando o xampu. Corte. Cabeça ensaboada. Corte. Plano médio.Desliga. PS O DR s o nt Sa o dr e P Sai enrolado em uma toalha. Corte. Ele de roupa enxugan- do os cabelos com a toalha. Corte. por Pedro Santos INT. CASA DE ANDRÉ/SALA - ANOITECER Já vestido, pega a carteira, o celular e um drops de bala. Fecha a porta e sai. br EXT. FESTA – NOITE tu u Ele com os amigos, conversando. Cerveja na mão (plano O médio). Câmera atrás deles. Em primeiro plano, a cor dourada da cerveja. Ao fundo, ELA sentada em uma mureta, com duas amigas, conversando e tomando cerveja. Jogo de olhares. Ele olha três vezes; ela, uma. Close nos olhos. Som alto. Ele sai para buscar mais cerveja.
  • 5. 5 Enche o c pre dan opo. Cumprime n do uma olhadel ta três pesso diferen a a em di reção à s no caminho, te. se garota. Ela, in m- Passa o - t sentada empo: pessoas . dançand ela. Pe Jogo de olhar o es: ele , bebendo. El ssoas i a, semp nd sempre ele cum priment o embora. Fes re o ta acab lha mais do q a os do para a u ando. D is amig e repen e gu andando ria, que não os, dá te, uma últ co sozinho , em di rresponde. El ima olh ada e sai. reção a Vai emb sua cas EXT. RU ora, a. A DESER TA, BEM ILUMINA DA – NO Câmera ITE de fren te. Ele Rua des andando er no inte ta. Um carro , vem cor solitário, na rior. E re LA está calçada entre e ndo e pára. T . rês gar las. otas ELA Vem cá! Entra a qui! Sem hes it duas ga ar, ele ENTRA . Banco rotas. ELA sim plesmen de trás, sent outra r epete o a no me te o be g jado e agarrad esto. André, io das ija. Em seguida entre a o. ,a s duas, sendo b Corte. ei- Ele and ando, s carro d olitári e novo. o, na r ua. Cor te. A c Corte. ena no Ele ENT RA em c do corp asa e d o direção para fora. A eita na ca câmera se afas ma, um terço à porta semi-ab ta erta. F ADE OUT lentamente em FIM. ; .
  • 6. 6 O louco e a criança olham para o teto por Marina Veshagem - Branco, branco... - E quando tão longe? - Tá vendo aquela sombra no canto? - Peraí, um ponto preto! - Aí o medo fica pequenino e dá uma - Tô. - E o que é? curiosidade danada, uma vontade de ir - É o olho do nada que piscou pra mim. - Ah, é uma mosca. lá! - Olha, tá se mexendo... - Mas neste caso é bom! - O quê? - Mosca, mosca... Tá aqui, achei! - O que diz? - Não é, porque se está longe é quase - A sombra, o olho do nada. - Pequeno inseto do filo dos artrópodes, impossível chegar lá. - O que parece agora? que tem um par de antenas. Excretam - Mas o buraco longe não é o mesmo - ... um homem! por tubos de Malpighi... que o perto? - O que ele tá fazendo? - É... - Tá andando. - Tubos... Eu também gosto de tubos. - Presta atenção! Olha, as aranhas são - Então, por que você quer o que não - Pra onde? parentes das moscas! pode pegar, se há um igual do seu lado? - Pro buraco. Vai vê ele tá curioso para - Mas então, por que elas fazem teias - Não sei... saber o que tem lá também. para prender seus parentes? - Olha, olha! Achei mais uma coisa! - Mas qual buraco, o perto ou o longe? - O longe, né!? O perto dá medo. - Ah, sei lá! Meu pai disse que parentes - O quê, o quê??? são chatos e só sabem pedir as coisas. - Um nada. - Tá saindo alguma coisa do buraco. - Vai ver é por isso... Mas seu pai tam- - Um o quê? - O quê? bém constrói teias pra pegá-los? - Nada. - Uma aranha, a parente da mosca. - Como assim? - O que ela tá fazendo? - Não, ele finge que gosta deles. - Uma teia. - Ah bom... Mas o que mais tem aí em - Olhe para aquele canto mais ali. O que cima? você vê? - O quê? ; - Hum... Tem uns buracos. - ... nada... - É, uma teia. - Não gosto de buracos... - Então, o nada tá ali. - E fez o que com ela? - Mas como você sabe que ele tá ali se - Por quê? não tem nada? ; - Quando eles tão perto são tão escu- - ... enroscou no homem e puxou pro ros... E eu não os conheço, parece que o buraco... medo mora lá dentro. *pintura Van Gogh “Girassóis”
  • 7. 7 por Juliana Sakae *fotos Juliana Sakae do Lat. mole v.int., sentir a propriedade do Lat. querere física de um objeto v.tr., erroneamente. querer não-querer. “nomear é fazer ver, é criar, s.f., levar à existência” consciência de sentir-se Pierre Bourdieu acordado durante o sono.
  • 8. 8 *fotos Juliana Sakae s.f., perceber uma parte do corpo s.m., como algo estranho a ele reação involuntária que transmite a sensa- ção interior de pensar uma dada reação. s.f., vontade involuntária de contrair os músculos do corpo; op; espreguiçar.
  • 9. 9 *fotos Juliana Sakae adj., s.f., perspectiva de visão alterada ao reprodução inconsciente de uma imagem imaginar-se no corpo de outrem. fixa na mente. s.f., nó no peito que indica agonia profunda; ansiedade; Bot., ; cada uma das peças do cálice do Fran. trés penser ; das flores. concentrar-se pontualmente; visão atordoada pelo excesso de concentração.
  • 10. 10 Conto do Faeco ´ por Marina Almeida F aéco era um menino muito sapeca. do pela correnteza, viu diversos peixes, Ao longo de seus seis anos adquiriu todos muito coloridos e conversando uma capacidade de criar confusão alegremente entre si. Faéco tentou se maior do que a de qualquer outra crian- comunicar, para avisá-los que era uma HISTÓRIA DO FAÉCO ça. Por morar em uma cidade pequena, criança e precisava voltar para casa an- estava acostumado a brincar na rua, no tes que a bruxa Gilda chegasse, mas o Faéco é meu pai. Ouvi essa história quintal, sem se preocupar com nada. cada vez que falava saiam várias bolhas por toda a minha infância. Ele jura que é verdade. A única pessoa capaz de fazer com que e nenhum som. O menino estava cada o A Bruxa Gilda é, na verdade, Faéco ficasse quieto era a bruxa Gilda. vez mais assustado e tratou de se pren- minha tia. Segundo meu pai ela era Ela deixava o menino amarrado ao pé der num galho para não ir mais longe do realmente uma bruxa, mas virou da mesa da sala, com uma corda que que já tinha ido. fada quando se casou. Ela andava chegava apenas ao banheiro. Guilhermina estava desesperada, em uma vassoura que não fazia curvas, obrigando-a a descer cada A bruxa Gilda não gostava de des- quando alguns peixinhos saíram da tor- vez que precisava mudar de direção. perdícios e, por isso, exigia que se trans- neira para dizer que a espuma que veio Minha tia nunca confirmou a história, formasse os restos de sabão em novas da casa estava se comportando de modo mas também nunca desmentiu. pedras. É aí que a história começa. estranho. Ela percebeu que Faéco virou o Guilhermina era mesmo a Em um belo dia de sol, Guilhermi- espuma por causa do feitiço da bruxa cozinheira da casa do meu pai, quando ele era criança. na, a cozinheira da casa, estava mexen- Gilda. Então, pegou um pote de marga- Sempre a conheci como Lena, do uma enorme panela com os restos de rina e correu para o rio, guiada por um mas meu pai insiste em sabão enquanto Faéco brincava no quin- peixinho muito jovem, todo listrado de chamá-la de Guilhermina. tal, subindo em árvores e pulando para azul e a amarelo. Recolheu a espuma e Ela também nunca disse que assustar as galinhas. Quando o menino a levou para o freezer. Aquilo tinha que era mentira. percebeu que Guilhermina tinha entra- dar certo, pois Faéco não podia passar a do na casa, foi correndo bisbilhotar. vida inteira como espuma. Por um descuido, Faéco caiu dentro Após algumas horas, o pote come- da panela de sabão. O que ele não sabia çou a tremer e, ao abri-lo, Faéco saiu é que a bruxa Gilda havia feito uma má- com o olhar assustado de lá de dentro. gica, que transformava em sabão tudo A bruxa Gilda chegou, viu Faéco senta- o que caia na panela. Faéco sentiu seu do na mesa e Guilhermina preparando corpo ficar cada vez mais mole. o jantar, como se nada tivesse aconte- A cozinheira não percebeu que Fa- cido. éco virou espuma e o jogou no ralo que Ufa - pensou Faéco - escapei de dava no rio da cidade. Ele foi arrasta- mais uma. arte: Juliana Sakae
  • 11. (continuando...) Conto do Saci 11 ilustração: Alexandre Santos; arte: Juliana Sakae C erto dia, o Saci Pererê estava sentado e as roupas ficaram limpas e cheirosas. na Mata do Japi, pensando em como Depois, a Fadita foi para a cozinha, ba- poderia ir visitar seus parentes de teu sua varinha novamente, dessa vez Botucatu, na serra do Tico Tico. Pererê na pia, e pratos e copos ficaram limpos. foi logo atrás de seu primo, o Curupira. Na manhã seguinte, os primos acorda- HISTÓRIA DO SACI Curupira ficou animado e aceitou o ram e viram que tudo estava arrumado. convite. Mas disse logo: Tinha café, bolacha e leite para o café- o Essa história meu pai contava para os - Como vamos até lá? É muito longe da-manhã. meus primos. Eles acreditavam e sempre que viam meu pai, e não dá para ir pulando numa perna só. Alguns dias se passaram, até que saiam correndo, querendo O Saci respondeu, com um sorriso o Saci disse: saber o que o Saci tinha feito. de moleque levado: - Vamos dar um passeio pela mata. o A Mata do Japi existe. Ela fica em Jundiaí (SP), onde eu mora- - A gente vai pela trilha atrás do Quero ver se consigo aprontar com algu- va antes de me mudar para Vale das Fadas que é mais perto. Assim ma criança. Florianópolis. Da janela do meu aparta- dá para ir pulando. - A Fadita é muito boa, mas não po- mento dava para ver um pedaço da Mata. Sempre que tinha neblina, meu Então eles arrumaram tudo, se des- demos fazer travessuras, se não ela nun- pai falava que era fumaça da chaminé da pediram dos outros moradores da Mata ca mais vem aqui – alertou o Curupira. casa do Saci. do Japi e foram viajar. Porém, o caminho O Pererê deu risada e disse: o Além do Saci e do Curupira, a Mata do Japi abriga o Vale das Fadas e a Fábrica era longo e eles se cansaram. Encon- - Isso é mentira, vamos logo. de brinquedos do Papai Noel. traram uma cabana e decidiram parar. Eles subiram nas árvores, mexeram o Quando eu era criança, meu pai - Quem mora aqui? - Perguntou o nos ninhos dos passarinhos e trocaram dizia que a Fadita passava a noite em casa e dizia para ele o que eu Saci. todos os ovos: pegaram um ovo de caná- queria ganhar de presente. Mi- - Olhe em cima da porta! Essa ca- rio e foram colocar no ninho da pomba, nhas amigas queriam dormir bana é da fadinha Fadita, eu a conheço, pegaram o ovo da arara e foram colocar em casa, só para ver a Fadita. mora lá no Vale das Fadas. É muito boa- no ninho dos patinhos, deram nó na crina zinha, mas não gosta de travessuras! dos cavalos, entre outras traquinagens. A cabana era toda arrumada: quar- Quando os animais descobriram, ficaram to, cozinha, banheiro. O Saci tirou sua furiosos e contaram tudo para a Fadita. A cabana ficou desarrumada e eles re- roupa e colocou no cesto encantado, to- No dia seguinte, o Saci Pererê acor- solveram voltar para a Mata do Japi. mou um banho e depois foi para a cozi- dou, viu que sua roupa e toda a louça da Avisaram seus primos de Botucatu nha comer os doces que o Curupira ain- casa estava suja: que não iriam mais visitá-los e vol- da não tinha comido enquanto estava - Curupira, acorde logo e venha ver. A taram. O Curupira prometeu nun- sozinho. Depois de comerem, deixaram nossa roupa não foi lavada, a cozinha está ca mais desobedecer a uma fada, mas todos os pratos e copos sujos na pia e fo- toda suja e não tem comida para a gente. o Saci não ligou para o que aconte- ram dormir. De noite, a fada Fadita apa- Curupira disse que havia avisado ceu e já voltou a aprontar das suas..... ; receu e com sua varinha bateu no cesto que a Fadita não gosta de travessuras de roupa suja. De lá saíram estrelinhas e que agora teriam que arrumar a casa.
  • 12. 12 ~ Revelacoes Divinas s Mesmo antes de o Bento pôr um fim nisso, como luterana, nunca me preocupei com essa história de purgar. Até que, numa bucólica manhã, descobri um futuro bem pior por Carolina Moura L embrei do cheiro de Bíblia. Um cheiro, todas as semanas. Por que nunca cheiro que provavelmente não mais voltei? Sinto-me bem. Aguardo que sinto desde que, aos 13 anos, em as palavras do pastor, o mesmo que me meu vestido branco, dirigi-me ao altar confirmara, confortem-me ainda mais. em “confirmação à minha fé”. Vontade “Largo é o caminho que leva para de lê-la de novo – o cheiro era bom. En- destruição, e muitos há que entram trei na igreja e reparei a pintura nova. nele: Porque estreito é o portão, e aper- Está bonita. Sempre foi gostosa, peque- tado é o caminho que leva até a vida, e na e aconchegante. É, senti saudades. poucos há que são achados nele” (Ma- As notas agudas sempre molharam teus 7:13-14). Mas o momento etéreo meus olhos; ouvindo o coral, encho-os de desfez-se. No altar, montou-se uma tela. lágrimas. Lembro-me do tempo de dou- As palavras da pregação completam- se com slides projetados por um da- trina, que ia ao culto e cantava tais hinos tashow, onde não é “ñ” e sempre é “s/”. todo o mês. Abria a Bíblia e sentia seu
  • 13. 13 As próprias palavras do pastor me ofen- caminhos – para salientar a importância dem. Primeiro, ao culpar a “mídia” por de continuar indo ao culto. No carro, em tudo de mal que existe sobre a Terra – direção à festinha, meu pai corrigiu-o e serei a mídia, querido pastor. Segundo, disse que Deus não mora na igreja. Posso por se utilizar do detestável recurso des- falar com Ele onde quer que esteja. ta que cita e condena: o sensacionalis- Desde então, e até antes disso, mo. Meninos de gravata e meninas de acreditei que Deus pode me ouvir em branco ouvem-no falar de barbáries e qualquer lugar. Não que eu tenha lhe estupros no dia em que abraçam a reli- dito muito. Hoje, na verdade, nem sei gião sobre a qual ele discursa. se acredito que Ele exista – e para mim E, se não bastasse, depois disso ele tem letra minúscula. E neste dia, na descobri que vou para o inferno. Porque igreja, quando meu irmão, morrendo de só existem dois caminhos, e se você está calor naquela camisa, “se confirma nes- no caminho largo, sister, you’re going to ta fé”, descubro que não pertenço à ela. hell. Não adianta se esgueirar para a es- Quando o pastor finalmente se cala, o data show exibe a letra da músi- trada apertadinha: santificar o domingo é mandamento (pré-requisito para a área ca cantada pelo coral. Ainda é bonito, as VIP) – e isso significa ir ao culto, toda a notas altas ainda me tocam. Mas nun- semana. Viro para o lado e sussurro a ca tanto quanto aquele agudo da solis- notícia ao ouvido de minha mãe. Nosso ta: provoca-me um arrepio, profundo, destino, após a morte, é certo. que nota alguma jamais me causara. Se Meu pensamento remete novamen- Deus realmente mora lá e isso foi sua te àquele dia, com os cabelos enrolados. mão repreendendo-me, só vou saber quando morrer. E se for verdade, I’m so O mesmo pastor contara uma anedota – going to hell, sister. sobre morcegos, bem mais leve e adequa- ; da que a história trágica (para mim) dos
  • 14. 14 ....................................... ................................. Rancho do Neco O samba e a amizade se cruzam em Sambaqui por Adriana Seguro e Luisa Frey D omingo, seis da tarde. Neste fim de uma profissão mais estável, tornou-se de dia de inverno, o sol já se pôs servidor público no ramo da informática. faz tempo. Mas o friozinho não é Neco comprou, com seis amigos, suficiente para esfriar ninguém. Na beira um rancho de pesca no Sambaqui, em da praia, um pequeno rancho de pesca. 1993. O propósito do barraco era o lazer. Paredes de madeira, chão de pedra, uma Depois, o local passou a ser uma socie- pia para lavar as ostras e um bar - cujo dade entre ele e o maricultor Lourenço balcão é um casco de barco – dividem da Rocha Silveira. De início, tentaram o ..................... o pequeno espaço com os equipamentos cultivo de camarão. “O camarão é difícil fachada do Rancho de som, instrumentos e banquinhos em por ser sazonal. Eu e o Lourenço fizemos roda. É impossível não sentir calor em cursos e começamos a produzir ostras”, meio ao samba, à cerveja e ao clima de explica Neco. Hoje, a produção é peque- amizade e descontração do Rancho do na, apenas para manter o rancho cujo Neco. foco passou a ser outro: o samba. Como Jeans, camiseta com uma despoja- técnico em informática e maricultor, da camisa verde musgo por cima, sorriso Neco nunca deixou morrer o gosto pela simpático e receptivo. Orlando Carlos da música. Gosto esse que dispensa re- Silveira Mello, o Neco, é gaúcho de São quinte ou sofisticação. Há quatro anos, Leopoldo e vive em Florianópolis há 37 todo domingo é dia de roda de samba no anos. Músico profissional, dedicou-se a rancho. O programa – que já é tradição – essa arte por dez anos, até o casamen- começou como uma reunião de amigos, foto: canasvieiras.com.br to e o nascimento dos filhos. Em busca o que ainda não deixou de ser. arte: Maurício Tussi
  • 15. 15 arte: Maurício Tussi Neco (esq.) e Reizinho (dir.). Para Reizinho, o samba e a Bossa Nova voltam a ocupar ................................................... espaço na música brasileira O samba no oeste da ilha catari- e esse barraco aqui é tudo de bom!”. Ou- nense atrai um público diversificado. “O tro que é músico profissional e costuma ............................................. ambiente é muito gostoso”, é o que diz a dar o ar da graça aos domingos é o Rei- professora de yoga Maria Lúcia Moraes, zinho. Aos 58 anos, o cantor e composi- moradora do Sambaqui. Ela freqüenta o tor toca desde os 20 e conta ter vencido rancho também para trazer a estudante diversos festivais. Para Reizinho, a ilha alemã Johanna Diekmann, hospedada gosta de samba e quem gosta de sam- em sua casa. Johanna morou um ano ba vai ao rancho. Além disso, os jovens no Brasil e fala um português que im- estão retornando aos ritmos brasileiros: pressiona pela quase ausência de so- “O samba, a Bossa Nova; a música bra- taque. Surpresa ainda maior do que o sileira está voltando, graças a Deus”. samba no pé é a moça pegar o microfone No barraco, não existe jeito certo e mergulhar no ritmo com tamanha inti- de sambar. No início da noite, apenas midade. É linda a cena do dueto entre a alguns mostram o samba no pé. O clima loira germânica e uma negra carioca. esquenta e, aos poucos, mesmo os que No rancho é assim, quem quiser apenas sacudiam o corpo timidamen- cantar ou se arriscar no violão, na per- te, experimentam passos mais ousados. cussão e no tamborim, está convidado a Pode ser em par, como a gafieira, ou so- entrar na roda. “Todos que querem tocar zinho, com o tradicional remexer de cal- têm oportunidade. A gente vai abrindo canhares. espaço, brincando. Lógico que a gente Quando inaugurada, a roda reu- procura ensinar. Tivemos pessoas que nia cerca de 20 amigos. O boca-a-boca começaram aqui e hoje estão se apre- trouxe novas caras, o que exigiu de Neco sentando bem”, conta Neco. maior organização. Ele ressalta que o A cantora Nice costuma vir a cada rancho não tem alvará para funcionar duas semanas. Depois de cantar ener- como estabelecimento comercial. “Não gicamente, com um sorriso expresso na é um bar. É um rancho de pesca onde, voz, ela diz que acha o ambiente mara- aos domingos, a gente tira as coisas de vilhoso. “Quase todos os freqüentadores dentro pra fazer essa brincadeira. O lu- se conhecem. O Neco é muito meu amigo cro é muito pequeno, e essa não é a in- ............. fotos: Adriana Seguro e Lusia Frey
  • 16. fotos: Adriana Seguro e Luisa Frey 16 Rancho do Neco R. Gilson da Costa Xavier, 2800 Ponta do Sambaqui – Florianópolis Domingo, a partir das 18h R$ 5,00 ........................................ . sambaqui tenção.” Na porta é cobrada uma taxa de Ao longo da noite, que a cada do- . R$ 5,00, mas conhecidos têm a entrada mingo fica mais longa, o próprio Neco liberada. assume o microfone, não só para can- Como em toda festa, não poderia tar. Os recados e comentários do anfi- cenTRo faltar comida e bebida. Para quem qui- trião são em tom de conversa, como se ser algo tradicional - afinal trata-se de fosse uma reunião de amigos em sua um rancho de pesca na beira da praia - casa. Canta uma de suas músicas, es- a irmã de Lourenço prepara um delicio- crita em homenagem ao amigo e sócio so risoto de frutos do mar. Servida em Lourenço. A composição é de palavras uma cumbuca de barro, a farta porção é simples e ritmo contagiante: “Olha o vendida a R$3,00. jogo da canoa/ Olha o balanço do mar/ A irmã de Neco – Alda Isabel – Cuida com o rabo de arraia / Que a vida também ajuda na organização da fes- te pode machucar...”. A saideira é repe- ta, quando a casa enche. Na porta, ela tidamente anunciada. A animação dos ajuda a recepcionar e identificar rostos presentes não deixa o samba terminar. conhecidos. A esposa, quando não vêm, À meia-noite, Neco encerra cantando o está presente através de um quadro que hino de Florianópolis, acompanhado pe- deu ao marido. Na parede, logo atrás dos los convidados. músicos, está pendurada uma caricatu- A casa se esvazia aos poucos. Aca- ra perfeita do gaúcho quase manezinho. bado o movimento, Neco senta para to- .............. Para fazer o desenho, o artista plástico mar uma cervejinha, ouvindo os causos Sérgio Honorato foi várias vezes ao ran- contados pelo amigo Reizinho. Satisfeito ilha De Santa Catarina cho, sem Neco saber. A encomenda da com a noite agradável, põe sua caricatu- ; esposa fez sucesso: “Fiquei muito emo- ra debaixo do braço e vai pra casa. cionado com a surpresa”, conta. arte: Maurício Tussi
  • 17. 17 Aula de violão fotos: Thiago Bora arte: Fernanda Dutra Começa com sol (sol é G) Começa com sol, vai mordeu os dedos e nunca mais tentou ; por Thiago Bora
  • 18. 18 [e ntrevist a ] por Fernanda Dutra ponto-e-vírgula - O que você quis dizer com o Franscisco como os título Banalogias? Bosco é moralis- Enquanto eu escrevia o livro, assistia aos epi- ensaísta, sódios do Seinfeld em DVD. Percebi que o Sein- tas, feld que se relacionava mais imediatamente com letrista e não me ncisco meu livro era o da abertura do programa, quan- simpático. preocupo Fra do ele, no palco, fazendo stand up comedy, cha- mava a atenção para uma determinada situação em Concedeu esta do cotidiano, que viria a ser o tema do episódio. provar entrevista à A operação dele é a de estranhar o banal, des- nada ponto-e-vírgula naturalizá-lo: quando se repara no banal, ele se torna estranho, meio absurdo. Já o que eu fiz foi Bosco via email levar adiante esse estranhamento e dar o próxi- para falar do mo passo: explorar o banal, investigar as suas lógicas constitutivas. Ora, a lógica do banal não seu último pode ser outra coisa que uma “banalogia”. Essa lançamento, é a arqueologia conceitual do título. Além disso, Banalogias agradou-me muito o eco, no título, de um ou- tro livro com que o meu guarda alguma proxi- (Editora midade, que é Mitologias, de Roland Barthes. Objetiva, 206 ;- Por que usar a estrutura dos aforismos para páginas, R$ alguns dos textos? 32,90) Tenho um amigo, filósofo, que sempre me diz que eu sou um “moralista latino”. Atenção: ele não está me chamando de Jece Valadão! É que sentia há uma tradição filosófica – a de Cícero, Sêneca que a etc. – cujos escritos primam pela enunciação de escrita máximas morais, de pequenas “verdades” sobre a vida, a sociedade, a cultura, sem se preocupar poética, com demonstrações, explicações, notas de rodapé como etc. Eu concordo com meu amigo filósofo: como tal, se os moralistas, não me preocupo em provar nada, penso que a verdade é mais uma fulgurância do esgotara que uma adequação, meu compromisso é maior em mim com o sentido do que com a precisão factual.
  • 19. 19 12 A ques- ;- Você escreveu letras de música, poesia, prosa, tra- balhos acadêmicos...Que tipo de texto te deixa mais tão que confortável e qual te exige mais? se colo- Atualmente, escrevo quase que só ensaios – curtos ou mais longos –, não tenho tido tempo mental de escrever cou era a letras de música e desde meu antepenúltimo livro, Da seguinte: Amizade, de 2003, não escrevo mais poesia. Justamen- te, Banalogias é o resultado de uma equação envolvendo como essas e algumas outras variáveis. Ele começou a ser fei- inventar to em 2004, em meio a uma insatisfação minha com a produção teórica acadêmica que eu vinha desenvolvendo um en- naquele momento. Eu publicara esse livro, Da Amizade, saísmo no ano anterior, mesmo ano em que defendera minha dissertação de mestrado. Este livro era um híbrido de com ca- poesia e fragmentos teóricos: havia poemas metalingü- racterís- ísticos, pequenos filosofemas e poemas narrativos; poe- sia e prosa encontravam-se aí indiscerníveis. Eu queria ticas po- que o prosseguimento do meu projeto de escrita fora da éticas? universidade, fosse de algum modo uma continuação do que conseguira ali. Ao mesmo tempo, sentia que a escrita poética, como tal, se esgotara em mim. A partir daí a questão que se co- locou era a seguinte: como inventar um ensaísmo com características poéticas? Assim, desde o primeiro ensaio pensado para equacio- nar esse problema (“O Indireto Afetivo na Linguagem do Carioca”), Banalogias era e sempre foi um projeto de livro. Com o tempo, fui experimentando diversas es- critas, até encontrar aquilo que me pareceu o tom de- sejado. Esse tom é o de um ensaísmo que se aproxima de uma prosa teórica, uma espécie paradoxal de teoria concreta, isto é, próxima da vida, como costuma ser a poesia. Isso é o fundamental. A isso se acrescem outros ingredientes, como o compromisso com o prazer da lei- tura e certa dose de humor.
  • 20. 20 12 ; -Você foi desenvolvendo a sua escrita, ca que caímos num vale-tudo crítico: apenas o escri- consciente do que queria atingir? Há ca- que todo juízo deve ser feito a posteriori. Isso tor pode sos de escritores muito jovens, como Rim- posto, retomando o início de sua pergunta, baud, que escreveram obras de qualidade creio que sim, o escritor precisa ter maturi- até não ainda na adolescência. O escritor precisa dade em relação à sua escrita, ou ao menos a ser cons- ter maturidade em relação à escrita? escrita tem que ter maturidade em relação ao Na minha opinião, essa precocidade absur- escritor. Em outras palavras: o escritor pode ciente da é um fenômeno improvável no nosso mo- até não ser consciente do que faz, não ser do que mento histórico pós-vanguardas. Hoje existe um teórico, mas a sua escrita deve ter cons- um infinito arquivo de formas da literatura ciência de si. Uma coisa é a intuição, outra faz mas universal, em inúmeras línguas, facilmente a ignorância. De minha parte, me interessa a sua disponível a todos que queiram conhecê-lo. muito a aventura da construção conceitual A literatura tornou-se mais consciente como do livro, do labirinto de questões que temos escrita um todo, e não admite ingenuidades nem pa- que percorrer durante a sua elaboração. Esse deve ter rece permitir essas obras súbitas e revolu- livro particular, livro dentro do livro, me in- cionárias. Hoje, empregando uma expressão teressa tanto quanto ou talvez mais até do consci- de Haroldo de Campos (e subvertendo-lhe que o livro propriamente dito: pois trata-se ência de o sentido original), a arte se dá no horizon- da aventura de viver o livro, do que significa te do provável. Não há mais a experiência do a escrita do livro em nossas vidas. É por isso si choque estético: não há mais, por exemplo, que eu não tenho interesse, por exemplo, em a vaia, que é seu correlato psicossocial. As escrever um Banalogias II: não haveria o labi- vanguardas cumpriram sua função, que foi rinto. Posso até acabar por escrevê-lo, já que a de revelar que não se pode julgar, a priori, continuo fazendo textos curtos para revistas o que é ou não é uma obra de arte. A partir e jornais, mas não terá sido um livro sonha- ; das vanguardas, todo material, todo suporte, do, apenas um livro publicado... toda forma pode ser arte. O que não signifi-
  • 21. 21 Da pedra no caminho à pedra no lago Não só de poemas concretistas inteligentes, 2 ou filosofia clássica, reflete-se sobre a vida. A diversão de jogar pedrinhas no lago, ou as pequenas coisas da vida, pode levar a reflexões tão interessantes quanto às de Drummond B por Fernanda Dutra arthes pensou na sociedade fran- cesa de sua época através de pro- 1 pagandas de sabão em pó e detergen- te, marcianos, brinquedos, bife com batatas, astrologia, o cérebro de Eins- tein; ensaios que fazem parte do livro Mitologias, de 1957. Nesse livro, Bar- thes desenvolve o conceito de mito: um discurso, isto é, uma fala. Nem tudo é mito, mas alguns objetos, idéias, perso- M orte, vida, ciência, amor, Estado, nagens, adquirem um significado além sociedade: estamos atolados de do funcional. A interpretação dos mitos grandiosas questões filosóficas. Os gre- era um dos objetivos da Semiologia, a gos já pensaram em tudo, mas, surpre- ciência dos signos. Devido a suas ca- endentemente, não paramos de pensar. racterísticas, principalmente o signifi- Certamente, questões com densidade cado implícito, os mitos poderiam ser dramática levam à necessidade humana explorados pela mídia, mas Barthes foi dos questionamentos. Mas a liberdade além do pensamento de manipulação do pensamento guiou alguns homens a de consciência. assuntos pequenos, de aparente super- ficialidade. Banais. ilustrações: Luisa Nogueira Loch
  • 22. 4 22 O ensaísta e letrista Francisco Bosco entrevista pág. 18 não se contenta com fazer notar o bizarro do cotidiano, mas não analisa somente os mitos. Tudo pode servir de ponto de início para uma reflexão, e aí 3 entram tanto as grandes questões huma- nas quanto as sinopses e a acne. A filo- sofia de Bosco encontra Barthes e Sein- feld, sem medo do pódio intelectual em que se encontra o primeiro ou da massi- S va popularidade do segundo. O mestrado einfeld precisava de bem menos. e doutorado na área de Letras reforça o Para o humorista americano, entrar viés lingüístico das análises. No ensaio O no supermercado era o suficiente. Em Indireto Afetivo na Linguagem do Carioca, um de seus atos da stand-up comedy, Bosco parte do recorrente diálogo entre ele nos faz notar um comportamento cariocas que não se vêem há muito tem- quase universal no supermercado. En- po e prometem se ligar para desvendar tramos, decididos, tudo o que vamos traços da personalidade do carioca. comprar está escrito no papel ou é repe- tido várias vezes mentalmente. Na pri- meira gôndola, o perfil decidido se esvai. “Quero mais um miojo? Preciso de mais leite?” Aliás, o leite é um dilema. Nunca se sabe quantas caixas de leite se tem em casa e comprar a mais pode ser um desastre, afinal, o período de validade é muito curto. Seinfeld tinha o costume de iniciar seus quadros com a expres- são “Have you noticed that...” (Você já reparou que... ?) e, a partir daí, cha- mar a atenção para algo do cotidiano. “A operação dele é a de estranhar o ba- nal, desnaturalizá-lo: quando se repara no banal, ele se torna estranho, meio absurdo”, explica o ensaísta Francisco Bosco. ilustrações: Luisa Nogueira Loch
  • 23. 5 23 A mélie Poulain aprecia toda a forma de pe- quenos prazeres. A personagem principal do filme francês O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, de 2001, foi diagnosticada com proble- mas de coração quando pequena, o que a levou a viver em reclusão com os pais. Amélie, então, cria um novo mundo, onde pequenas coisas ganham importância sentimental. Enquanto Barthes, Seinfeld e Bosco racionalizam o banal, Amélie o sente. O filme chamou a atenção para o lado encantador das pequenas coisas e logo se tornou cult. A singularidade dos pequenos e ori- ginais prazeres colabora ao ego que deseja ser único e especial. Além disso, buscar uma outra visão no mundo caótico é uma salvação. O filme 6 foi lançado no ano do 11/09. N ão só Barthes, Seinfeld, Bosco ou Amélie Poulain notaram as pequenas coisas do cotidiano. No entanto, essa filosofia que se inspira nisso não está catalogada ou rotula- da. Até mesmo por que isso seria uma forma de diminuir o pensamento desses filósofos, uma vez que o banal é o ponto de partida, ; mas não o de chegada. ilustrações: Luisa Nogueira Loch
  • 24. 24 Multimídia A Ah, como eu queria voltar aos tempos das li- h, como eu queria voltar aos ções da professora Helena e das travessuras cover tempos em que meus maiores do garoto propaganda do cigarrinho de chocolate. problemas eram o oito e meio Ah, como que queria voltar aos tempos em que em Matemática e quando a perninha conseguia compreender o latido de cães super as- do “éle” ultrapassava a margem supe- tros da TV. rior nos cadernos de caligrafia. Ah, como eu queria voltar aos tempos Ah, como eu queria voltar aos das minisséries japonesas e dos robôs gi- tempos em que batia o mini-bugue nos gantes que combatiam monstros devas- pneus ao redor a pista, e meu avô sor- todores de cidades inteiras. ria e dizia: “Mais 10 voltas!”. Ah, como que eu queria voltar Ah, como eu queria voltar aos tem- aos tempos do castelo do menino de pos em que cerrava os olhos ao sentar Via 300 anos e do cavalete mágico do no carrinho do trem fantasma e saía de lá professor Tibúrcio . concordando com tudo que os outros fala- em Ah, como que queria voltar vam. aos tempos dos conjuntos mu- Ah, como eu queria voltar aos tempos em g por Matheus Joffre sicais de cinco integrantes e do que gritava “gol” com todo meu fôlego, depois de ao te teclado eletrônico. meu pai me deixar marcar um no futebol de botão. po Ah, como eu queria voltar Ah, como eu queria voltar aos tempos do almoço m aos tempos das mil vidas do Su- de domingo na casa da vovó com a família toda reunida. per Mário e do peculiar “glub” do Ah, como eu queria voltar aos tempos do Natal com Pa- Sonic na fase dentro d’água. pai Noel e dos presépios feitos com um mês de antecedên- Ah, como eu queria voltar aos tem- cia. pos em que ia escondido para o fliperama dirigir Ah, como eu queria voltar aos tempos das brincadeiras um Porsche conversível a mil ou baixar porrada no de rua: pega-pega, esconde-esconde, mamãe-da-rua e outras Street Fighter. tantas. Ah, como eu queria voltar aos tempos dos Co- Ah, como eu queria voltar aos tempos em que apostava mandos em Ação e dos bonecos com articulações com meus primos para ver quem ficava acordado até mais super resistentes. tarde, e todos capotávamos de sono sem haver um vence- Ah, como eu queria voltar aos tempos em que dor. Literatura era se deleitar com os gibizinhos da Tur- Ah, como eu queria voltar aos tempos em que a segun- ma da Mônica durante o verão. da-feira era colorida, bem como cada dia da semana; forman- Ah, como eu queria voltar aos tempos em que do um lindo arco-íris. havia amizade entre quatro trapalhões e não uma Ah, como eu queria ser capaz de fazer essa singela re- guerra de egos entre dois atrapalhados. ; gressão e sentir – ao menos por algumas 40 linhas – a felici- dade perene de uma criança.
  • 25. tão especial 25 foto e arte: Maurício Tussi , conta-me. conta-me o que há, que olhas ligeiramente perplexa. que vês? não me deixes morrer na por Mauricio Tussi angústia. preciso que me digas. mesmo que confuso, mesmo que fugaz. preciso desse instante
  • 26. tão perto 26 foto e arte: Maurício Tussi não sei o que dizer sobre uma flor.
  • 27. 27 [cau s os & coisa s] uM BOM DIA PARA CARAmELOS Q uando Julieta olhou para as estrelas, na terça- feira, decidiu que era hora de comprar caramelos. Gostava de mordê-los com força, como se lutasse, e sentir os dentes brancos latejando. Sim, era hora de caramelos. Com a cartola na cabeça, passeava por uma rua do centro da cidade, em busca de uma confeitaria. Eu já sabia: aquela busca era inútil. Mas Julieta ignorava isso, ao que andou 40 minutos. Os brincos lhe pesavam a orelha, os sapatos sufocavam os pés, mas os dentes continuavam intactos, Julieta se irritava. Diante da urgente necessidade, Julieta mordeu as mãos finas, conseguiu que coubessem os cinco dedos na boca e admirou o sangue que aqueceu-lhe o queixo. ; ilustração: Marc Bogo