A esperança doutra era.
Humanidade, universalidade, defesa de valores, crítica terrível e...esperança. “É impossível que o tempo actual não seja o amanhecer doutra era”, assinalou Manuel Machado, ao citar Miguel Torga.
Volvidos 20 anos da morte de Adolfo Rocha, a 17 de Janeiro de 1995, vai-se percebendo a imortalidade e a universalidade de Miguel Torga. E também a humanidade do homem que nasceu nas terras agrestes de Trás-os-Montes, mas que contornou a “fatalidade” geográfica: “o destino destina/mas o resto é comigo”, diria um dia o poeta, numa frase ontem recordada pelo historiador e escritor Carlos Carranca, nas cerimónias evocativas dos “20 anos sobre o desaparecimento de Miguel Torga”.
Diário de Coimbra, 18.01.2015
1. Tiragem: 9311
País: Portugal
Period.: Diária
Âmbito: Regional
Pág: 3
Cores: Preto e Branco
Área: 26,20 x 31,92 cm²
Corte: 1 de 1ID: 57533703 18-01-2015
Coimbra
A esperança doutra era
Humanidade, universalidade, defesa de valores, crítica
terrível e...esperança. “É impossível que o tempo actual
não seja o amanhecer doutra era”, assinalou Manuel Ma-
chado, ao citar Miguel Torga.
António Manuel Rodrigues
Volvidos 20 anos da morte de
Adolfo Rocha, a 17 de Janeiro
de 1995, vai-se percebendo a
imortalidade e a universali-
dade de Miguel Torga. E tam-
bémahumanidadedohomem
quenasceunasterrasagrestes
de Trás-os-Montes, mas que
contornou a “fatalidade” geo-
gráfica:“odestinodestina/mas
orestoécomigo”,diriaumdia
opoeta,numafraseontemre-
cordada pelo historiador e es-
critorCarlosCarranca,nasce-
rimónias evocativas dos “20
anossobreodesaparecimento
deMiguelTorga”.
«Vou-vos levar meia hora»,
avisou Carlos Carranca, con-
vidado para falar de um dos
doishomensdasuavida(oou-
tro é o pai).Amigo e estudioso
de Torga, Carlos Carranca
prendeu a assistência numa
palestra rica em pormenores
de diferentes fases da vida do
escritor, nascido em 1907, em
S. Martinho de Anta, supor-
tando-os em escritos do autor
de“Bichos”.
Terminadaaquartaclasse,a
par da «escola natural do pai»
(amanho das terras) foi «con-
frontado» com o seminário.
Adolfo Rocha «nega-se a se-
guir uma carreira de celibatá-
rio,porestalhecontrariarasua
natureza de bicho». Preferiu-
se sujeitar-se a provações na
fazenda de um tio, no Brasil,
ondeterápercebidoochama-
mentodasartes.
Seguir-se-ia o liceu em
Coimbra, com estudos pagos
pelo tio, e a licenciatura em
Medicina na Universidade de
Coimbra, «formatura que re-
forçou o carácter humano de
Torga, que se completa na fi-
delidadeaHipócrateseaOrp-
heu». Escreve por essa altura
olivrodepoemas“Ansiedade”,
ainda sem o pseudónimo que
o celebrizou.
Aliás, Miguel Torga só che-
gariaem1934,comolivro“Pri-
meira Voz”. Miguel em home-
nagem a Cervantes e Una-
muno, e Torga inspirado no
nome do arbusto montanho-
sos daterranatal.
Numa conferência transfor-
mada no final em tertúlia -
«em casa de Torga só poderia
serumatertúlia»,notouCarlos
Carranca – foi-se revelando
um pouco do escritor que
nunca poderia viver fora da
pátria enquanto escritor, por-
que lhe faltaria “o dicionário
da terra, a gramática da pai-
sagem, o espírito santo do
povo”, como o próprio ilus-
trou.
Purista da língua portu-
guesa, defensor da liberdade,
detido em 1939. Na prisão de
Aljube recebe a visita de An-
dréeCrabbé,denacionalidade
belga, com quem casou, em
1940.Instala-seemCoimbrae
abreconsultórionaPortagem.
É pai em 1955, cinco anos an-
tes da primeira proposta para
Nobel da Literatura (que agi-
taria os escritores portugue-
ses).
Em Abril de 1974, «cumpre-
seTorga»,comarevolução,re-
cordou Carlos Carranca. “A
almanacionalexplodiudeale-
gria (…) parecia um sonho”. O
relatodeMiguelTorga-“final-
mente dava gosto em ser ci-
dadãoportuguês”-,evoluipara
umsonhoqueesmoreceu:“as
prisões encheram-se de novo,
asambiçõesrecalcadasvieram
à tona (…) a mediocridade ins-
talou-se”.
Europeusdeprimeira
portuguesesdeterceira
Maisumavez,sublinhaCar-
los Carranca, é no povo que
Miguel Torga confia. «O povo
sempre foi o herói da sua
obra»,reforçou,aorevelarque,
apesar do desencanto, sabia
que o povo iria encontrar so-
lução para os “momentos de-
sajustados que lhe tentassem
alterar o carácter”.
Com inúmeras distinções,
TorgaseriaoprimeiroPrémio
Camões, em 1989. Muitas ho-
menagens que «não lhe ado-
cicaram o carácter». Acabaria
porreconhecerqueassuasre-
lações com os governantes,
em quem percebia o poder
comoobjectivodevida,“jánão
têm remédio (…) mesmo
quandoumarealsimpatianos
aproxima (…)”.
A adesão de Portugal à co-
munidadeeuropeiaseriaoutra
desilusão para Miguel Torga,
que anteviu, em muitos mo-
mentos, o que hoje se passa,
mormente numa carta en-
viada ao Presidente da Repú-
blica Mário Soares: “não há,
nem haverá num futuro pre-
visível, outra Europa senão
estamalfadadadocapitalismo
insaciável e tentacular”.
Quando são abolidas as fron-
teiras (1993), deixa perceber a
mágoa: “ocupados sem resis-
tênciaesemdor.Anestesiados
previamente pelos invasores
eseuscúmplices,somosagora
oficialmente europeus de pri-
meira, espanhóis de segunda
e portugueses de terceira”.
A 17 de Janeiro, recordou
CarlosCarranca,«oamigoAn-
tónio Arnaut fechava-lhe os
olhos (…), terminavam todos
os tempos de aprendizagem
de um poeta que nos revelou
haver em Portugal duas cul-
turas: uma que parece e outra
que é (…), uma que nos arre-
meda e outra que nos identi-
fica».
A meia hora de Carlos Car-
rancadeixouavontadedeum
meio-dia, pelo que disse e de-
monstrou saber. Fica a men-
sagem com que terminou o
momento:«saibamosnóshoje
merecer a obra de Torga e o
seuexemplo cívico». |
“O povo foi sempre o herói”
na obra de Miguel Torga
Homenagem Cumpriram-se ontem 20 anos da morte do poeta, momento que avivou
a sua obra e permitiu perceber um pouco melhor a razão da sua imortalidade
À volta da obra de Miguel Torga recolheram-se “alentos de alma”
“Tempos deAprendizagem
na Vida e Obra de Miguel
Torga”, livro de Carlos Car-
ranca, inspirou a sua inter-
venção na Casa Museu. De-
pois, seria a sua relação e
conhecimentos sobre o es-
critor que revelariam, em
momentos de boa disposi-
ção, um pouco mais de
Torga, o poeta que «não
dava autógrafos».Até um
certo dia…
Contou Carlos Carranca que
a actriz Simone de Oliveira,
então em temporada em
Coimbra, visitou Torga e pe-
diu-lhe um autógrafo.Are-
sistência seria vencida pela
compaixão por uma mulher
que já tinha sido tão bonita…
Concedida a assinatura, o
episódio teria continuidade,
quando Mário Soares com-
prou “Ansiedade”e pediu ao
transmontano que o perso-
nalizasse. Miguel Torga não
assinou, o que levou Soares
a recordar-lhe que já tinha
dado um autógrafo a Si-
mone de Oliveira. Mas você,
retorquiu Torga, «não tem
as pernas da Simone». |
O autógrafo a Simone e a nega a Mário Soares
Câmara quer
reanimar
Casa-Museu
Miguel Torga
Além da palestra de Carlos
Carranca, o programa que a
CâmaradeCoimbrapreparou
para assinalar os 20 anos da
morte do poeta incluiu visitas
guiadasàCasa-MuseuMiguel
Torga, inauguração da expo-
siçãofotográficaedocumental
“Miguel Torga – Percurso de
umaVida”,apresentação,pelo
directordaBibliotecaGeralda
UC, José Augusto Bernardes,
do livro “Dois Homens num
sóRosto–TemasTorguianos”,
de Maria Hercília Agarez, e a
exibição do filme “Natais de
Torga” (produzido pela Coo-
perativa Bonifrates).
«Miguel Torga perdura, aju-
dando-nos a recriar energias
(…) por uma terra melhor e
umahumanidademelhor»,di-
ria Manuel Machado, recor-
dandoapessoa«amável»,mas
também «agreste», que «não
era dissimulada». Se tivesse
sido «ouvido atentamente»,
observou o presidente da Câ-
mara Municipal de Coimbra,
apropósitodasconsiderações
e vaticínios de Torga sobre a
União Europeia», (…) «não te-
ríamos a desvalorização da
vida humana», com conflitos
que«desgraçamoufazemcor-
rer o risco de desgraça». Do
«rigor da escrita e da palavra»
de Torga retirou Manuel Ma-
chado «muitos e importantes
gritos de alma», em que a li-
berdadefoiessência.Aosubli-
nhar a importância de se dis-
seminarem as mensagens do
poeta,cujaleituraaconselharia
a quem precisar de «alentos
de alma», Manuel Machado -
que ilustrou o discurso com
leituras de trechos da obra de
Miguel Torga - revelou que
estáemcursoumprocessode
reanimação da Casa-Museu,
que se quer um «espaço vivo
de cultura e de conviviali-
dade». |