SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 1
Baixar para ler offline
Tiragem: 9311
País: Portugal
Period.: Diária
Âmbito: Regional
Pág: 3
Cores: Preto e Branco
Área: 26,20 x 31,92 cm²
Corte: 1 de 1ID: 57533703 18-01-2015
Coimbra
A esperança doutra era
Humanidade, universalidade, defesa de valores, crítica
terrível e...esperança. “É impossível que o tempo actual
não seja o amanhecer doutra era”, assinalou Manuel Ma-
chado, ao citar Miguel Torga.
António Manuel Rodrigues
Volvidos 20 anos da morte de
Adolfo Rocha, a 17 de Janeiro
de 1995, vai-se percebendo a
imortalidade e a universali-
dade de Miguel Torga. E tam-
bémahumanidadedohomem
quenasceunasterrasagrestes
de Trás-os-Montes, mas que
contornou a “fatalidade” geo-
gráfica:“odestinodestina/mas
orestoécomigo”,diriaumdia
opoeta,numafraseontemre-
cordada pelo historiador e es-
critorCarlosCarranca,nasce-
rimónias evocativas dos “20
anossobreodesaparecimento
deMiguelTorga”.
«Vou-vos levar meia hora»,
avisou Carlos Carranca, con-
vidado para falar de um dos
doishomensdasuavida(oou-
tro é o pai).Amigo e estudioso
de Torga, Carlos Carranca
prendeu a assistência numa
palestra rica em pormenores
de diferentes fases da vida do
escritor, nascido em 1907, em
S. Martinho de Anta, supor-
tando-os em escritos do autor
de“Bichos”.
Terminadaaquartaclasse,a
par da «escola natural do pai»
(amanho das terras) foi «con-
frontado» com o seminário.
Adolfo Rocha «nega-se a se-
guir uma carreira de celibatá-
rio,porestalhecontrariarasua
natureza de bicho». Preferiu-
se sujeitar-se a provações na
fazenda de um tio, no Brasil,
ondeterápercebidoochama-
mentodasartes.
Seguir-se-ia o liceu em
Coimbra, com estudos pagos
pelo tio, e a licenciatura em
Medicina na Universidade de
Coimbra, «formatura que re-
forçou o carácter humano de
Torga, que se completa na fi-
delidadeaHipócrateseaOrp-
heu». Escreve por essa altura
olivrodepoemas“Ansiedade”,
ainda sem o pseudónimo que
o celebrizou.
Aliás, Miguel Torga só che-
gariaem1934,comolivro“Pri-
meira Voz”. Miguel em home-
nagem a Cervantes e Una-
muno, e Torga inspirado no
nome do arbusto montanho-
sos daterranatal.
Numa conferência transfor-
mada no final em tertúlia -
«em casa de Torga só poderia
serumatertúlia»,notouCarlos
Carranca – foi-se revelando
um pouco do escritor que
nunca poderia viver fora da
pátria enquanto escritor, por-
que lhe faltaria “o dicionário
da terra, a gramática da pai-
sagem, o espírito santo do
povo”, como o próprio ilus-
trou.
Purista da língua portu-
guesa, defensor da liberdade,
detido em 1939. Na prisão de
Aljube recebe a visita de An-
dréeCrabbé,denacionalidade
belga, com quem casou, em
1940.Instala-seemCoimbrae
abreconsultórionaPortagem.
É pai em 1955, cinco anos an-
tes da primeira proposta para
Nobel da Literatura (que agi-
taria os escritores portugue-
ses).
Em Abril de 1974, «cumpre-
seTorga»,comarevolução,re-
cordou Carlos Carranca. “A
almanacionalexplodiudeale-
gria (…) parecia um sonho”. O
relatodeMiguelTorga-“final-
mente dava gosto em ser ci-
dadãoportuguês”-,evoluipara
umsonhoqueesmoreceu:“as
prisões encheram-se de novo,
asambiçõesrecalcadasvieram
à tona (…) a mediocridade ins-
talou-se”.
Europeusdeprimeira
portuguesesdeterceira
Maisumavez,sublinhaCar-
los Carranca, é no povo que
Miguel Torga confia. «O povo
sempre foi o herói da sua
obra»,reforçou,aorevelarque,
apesar do desencanto, sabia
que o povo iria encontrar so-
lução para os “momentos de-
sajustados que lhe tentassem
alterar o carácter”.
Com inúmeras distinções,
TorgaseriaoprimeiroPrémio
Camões, em 1989. Muitas ho-
menagens que «não lhe ado-
cicaram o carácter». Acabaria
porreconhecerqueassuasre-
lações com os governantes,
em quem percebia o poder
comoobjectivodevida,“jánão
têm remédio (…) mesmo
quandoumarealsimpatianos
aproxima (…)”.
A adesão de Portugal à co-
munidadeeuropeiaseriaoutra
desilusão para Miguel Torga,
que anteviu, em muitos mo-
mentos, o que hoje se passa,
mormente numa carta en-
viada ao Presidente da Repú-
blica Mário Soares: “não há,
nem haverá num futuro pre-
visível, outra Europa senão
estamalfadadadocapitalismo
insaciável e tentacular”.
Quando são abolidas as fron-
teiras (1993), deixa perceber a
mágoa: “ocupados sem resis-
tênciaesemdor.Anestesiados
previamente pelos invasores
eseuscúmplices,somosagora
oficialmente europeus de pri-
meira, espanhóis de segunda
e portugueses de terceira”.
A 17 de Janeiro, recordou
CarlosCarranca,«oamigoAn-
tónio Arnaut fechava-lhe os
olhos (…), terminavam todos
os tempos de aprendizagem
de um poeta que nos revelou
haver em Portugal duas cul-
turas: uma que parece e outra
que é (…), uma que nos arre-
meda e outra que nos identi-
fica».
A meia hora de Carlos Car-
rancadeixouavontadedeum
meio-dia, pelo que disse e de-
monstrou saber. Fica a men-
sagem com que terminou o
momento:«saibamosnóshoje
merecer a obra de Torga e o
seuexemplo cívico». |
“O povo foi sempre o herói”
na obra de Miguel Torga
Homenagem Cumpriram-se ontem 20 anos da morte do poeta, momento que avivou
a sua obra e permitiu perceber um pouco melhor a razão da sua imortalidade
À volta da obra de Miguel Torga recolheram-se “alentos de alma”
“Tempos deAprendizagem
na Vida e Obra de Miguel
Torga”, livro de Carlos Car-
ranca, inspirou a sua inter-
venção na Casa Museu. De-
pois, seria a sua relação e
conhecimentos sobre o es-
critor que revelariam, em
momentos de boa disposi-
ção, um pouco mais de
Torga, o poeta que «não
dava autógrafos».Até um
certo dia…
Contou Carlos Carranca que
a actriz Simone de Oliveira,
então em temporada em
Coimbra, visitou Torga e pe-
diu-lhe um autógrafo.Are-
sistência seria vencida pela
compaixão por uma mulher
que já tinha sido tão bonita…
Concedida a assinatura, o
episódio teria continuidade,
quando Mário Soares com-
prou “Ansiedade”e pediu ao
transmontano que o perso-
nalizasse. Miguel Torga não
assinou, o que levou Soares
a recordar-lhe que já tinha
dado um autógrafo a Si-
mone de Oliveira. Mas você,
retorquiu Torga, «não tem
as pernas da Simone». |
O autógrafo a Simone e a nega a Mário Soares
Câmara quer
reanimar
Casa-Museu
Miguel Torga
Além da palestra de Carlos
Carranca, o programa que a
CâmaradeCoimbrapreparou
para assinalar os 20 anos da
morte do poeta incluiu visitas
guiadasàCasa-MuseuMiguel
Torga, inauguração da expo-
siçãofotográficaedocumental
“Miguel Torga – Percurso de
umaVida”,apresentação,pelo
directordaBibliotecaGeralda
UC, José Augusto Bernardes,
do livro “Dois Homens num
sóRosto–TemasTorguianos”,
de Maria Hercília Agarez, e a
exibição do filme “Natais de
Torga” (produzido pela Coo-
perativa Bonifrates).
«Miguel Torga perdura, aju-
dando-nos a recriar energias
(…) por uma terra melhor e
umahumanidademelhor»,di-
ria Manuel Machado, recor-
dandoapessoa«amável»,mas
também «agreste», que «não
era dissimulada». Se tivesse
sido «ouvido atentamente»,
observou o presidente da Câ-
mara Municipal de Coimbra,
apropósitodasconsiderações
e vaticínios de Torga sobre a
União Europeia», (…) «não te-
ríamos a desvalorização da
vida humana», com conflitos
que«desgraçamoufazemcor-
rer o risco de desgraça». Do
«rigor da escrita e da palavra»
de Torga retirou Manuel Ma-
chado «muitos e importantes
gritos de alma», em que a li-
berdadefoiessência.Aosubli-
nhar a importância de se dis-
seminarem as mensagens do
poeta,cujaleituraaconselharia
a quem precisar de «alentos
de alma», Manuel Machado -
que ilustrou o discurso com
leituras de trechos da obra de
Miguel Torga - revelou que
estáemcursoumprocessode
reanimação da Casa-Museu,
que se quer um «espaço vivo
de cultura e de conviviali-
dade». |

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

Mais procurados (20)

11176 42038-1-pb
11176 42038-1-pb11176 42038-1-pb
11176 42038-1-pb
 
Trabalho portugues miguel torga
Trabalho portugues miguel torgaTrabalho portugues miguel torga
Trabalho portugues miguel torga
 
Novos contos da Montanha
Novos contos da MontanhaNovos contos da Montanha
Novos contos da Montanha
 
O Homem Duplicado 3ª A - 2011
O Homem Duplicado   3ª A - 2011O Homem Duplicado   3ª A - 2011
O Homem Duplicado 3ª A - 2011
 
Marcel Proust
Marcel Proust Marcel Proust
Marcel Proust
 
António pedro vasconcelos
António pedro vasconcelosAntónio pedro vasconcelos
António pedro vasconcelos
 
As vanguardas-europeias
As vanguardas-europeiasAs vanguardas-europeias
As vanguardas-europeias
 
7756
77567756
7756
 
Miguel Torga
Miguel TorgaMiguel Torga
Miguel Torga
 
Fernando pessoa
Fernando pessoaFernando pessoa
Fernando pessoa
 
Modernismo
ModernismoModernismo
Modernismo
 
1365
13651365
1365
 
O Centro - n.º 70 – 26.06.2009
O Centro - n.º 70 – 26.06.2009O Centro - n.º 70 – 26.06.2009
O Centro - n.º 70 – 26.06.2009
 
Claro enigma (1951), carlos drummond
Claro enigma (1951), carlos drummondClaro enigma (1951), carlos drummond
Claro enigma (1951), carlos drummond
 
Nobel da literatura
Nobel da literaturaNobel da literatura
Nobel da literatura
 
Escritores
EscritoresEscritores
Escritores
 
Do folhetim à crônica artigo científico
Do folhetim à crônica   artigo científicoDo folhetim à crônica   artigo científico
Do folhetim à crônica artigo científico
 
Autores portugueses
Autores portuguesesAutores portugueses
Autores portugueses
 
Autores de língua portuguesa
Autores de língua portuguesaAutores de língua portuguesa
Autores de língua portuguesa
 
A Morte do Palhaço
A Morte do PalhaçoA Morte do Palhaço
A Morte do Palhaço
 

Destaque

La videoconferencia cursos infor
La videoconferencia cursos inforLa videoconferencia cursos infor
La videoconferencia cursos infordannachacon
 
Trabajo escrito comtabilidad
Trabajo escrito comtabilidadTrabajo escrito comtabilidad
Trabajo escrito comtabilidad970726
 
Ii guerra mundial
Ii guerra mundialIi guerra mundial
Ii guerra mundialdahabiimad
 
Estructura tecnico en sistemas nueva
Estructura tecnico en sistemas nuevaEstructura tecnico en sistemas nueva
Estructura tecnico en sistemas nuevaKarenYulieth1517
 
La carroza del diablo
La carroza del diabloLa carroza del diablo
La carroza del diablopzco_1998
 
Presentación para compartir 1° tecnico ed
Presentación para compartir 1° tecnico edPresentación para compartir 1° tecnico ed
Presentación para compartir 1° tecnico edkatmonterroza16
 
Presentacion ivonne perez
Presentacion ivonne perezPresentacion ivonne perez
Presentacion ivonne perezIvonne Perez
 
O caso default e necessário na estrutura de seleção switch
O caso default e necessário na estrutura de seleção switchO caso default e necessário na estrutura de seleção switch
O caso default e necessário na estrutura de seleção switchnellsoney
 

Destaque (20)

Cintas de goteo
Cintas de goteoCintas de goteo
Cintas de goteo
 
Numeros enteros
Numeros enterosNumeros enteros
Numeros enteros
 
Facebook
FacebookFacebook
Facebook
 
Informática
InformáticaInformática
Informática
 
Reserva nacional de tambopata
Reserva nacional de tambopataReserva nacional de tambopata
Reserva nacional de tambopata
 
La videoconferencia cursos infor
La videoconferencia cursos inforLa videoconferencia cursos infor
La videoconferencia cursos infor
 
La India
La IndiaLa India
La India
 
Trabajo escrito comtabilidad
Trabajo escrito comtabilidadTrabajo escrito comtabilidad
Trabajo escrito comtabilidad
 
Ii guerra mundial
Ii guerra mundialIi guerra mundial
Ii guerra mundial
 
Estructura tecnico en sistemas nueva
Estructura tecnico en sistemas nuevaEstructura tecnico en sistemas nueva
Estructura tecnico en sistemas nueva
 
Hoja de vida leidy
Hoja de vida leidyHoja de vida leidy
Hoja de vida leidy
 
La carroza del diablo
La carroza del diabloLa carroza del diablo
La carroza del diablo
 
Presentación para compartir 1° tecnico ed
Presentación para compartir 1° tecnico edPresentación para compartir 1° tecnico ed
Presentación para compartir 1° tecnico ed
 
Jhair
JhairJhair
Jhair
 
Presentacion ivonne perez
Presentacion ivonne perezPresentacion ivonne perez
Presentacion ivonne perez
 
Navegadores
NavegadoresNavegadores
Navegadores
 
Se8
Se8Se8
Se8
 
INSTITUTO SUSPERIOR TECNOLOGICO VIGIL - TACNA
INSTITUTO SUSPERIOR TECNOLOGICO VIGIL - TACNAINSTITUTO SUSPERIOR TECNOLOGICO VIGIL - TACNA
INSTITUTO SUSPERIOR TECNOLOGICO VIGIL - TACNA
 
O caso default e necessário na estrutura de seleção switch
O caso default e necessário na estrutura de seleção switchO caso default e necessário na estrutura de seleção switch
O caso default e necessário na estrutura de seleção switch
 
Guia de aprendizaje word
Guia de aprendizaje wordGuia de aprendizaje word
Guia de aprendizaje word
 

Semelhante a O povo foi sempre o herói na obra de Miguel Torga

Semelhante a O povo foi sempre o herói na obra de Miguel Torga (20)

Miguel Torga
Miguel TorgaMiguel Torga
Miguel Torga
 
Miguel torga
Miguel torgaMiguel torga
Miguel torga
 
Miguel torga gf
Miguel torga gfMiguel torga gf
Miguel torga gf
 
Miguel Torga
Miguel TorgaMiguel Torga
Miguel Torga
 
Miguel Torga
Miguel TorgaMiguel Torga
Miguel Torga
 
Miguel Torga
Miguel TorgaMiguel Torga
Miguel Torga
 
Miguel Torga
Miguel TorgaMiguel Torga
Miguel Torga
 
Miguel torga
Miguel torgaMiguel torga
Miguel torga
 
Miguel Torga
Miguel TorgaMiguel Torga
Miguel Torga
 
Miguel Torga
Miguel TorgaMiguel Torga
Miguel Torga
 
Miguel torga gf
Miguel torga gfMiguel torga gf
Miguel torga gf
 
Miguel Torga
Miguel TorgaMiguel Torga
Miguel Torga
 
Miguel Torga
Miguel TorgaMiguel Torga
Miguel Torga
 
Miguel Torga Gf
Miguel Torga GfMiguel Torga Gf
Miguel Torga Gf
 
Miguel Torga
Miguel TorgaMiguel Torga
Miguel Torga
 
Vida e obra de miguel torga
Vida e obra de miguel torga Vida e obra de miguel torga
Vida e obra de miguel torga
 
Vida e obra de miguel torga
Vida e obra de miguel torga Vida e obra de miguel torga
Vida e obra de miguel torga
 
Miguel Torga
  Miguel Torga  Miguel Torga
Miguel Torga
 
Um roteiro à descoberta da "cidade" de Miguel Torga
Um roteiro à descoberta da "cidade" de Miguel TorgaUm roteiro à descoberta da "cidade" de Miguel Torga
Um roteiro à descoberta da "cidade" de Miguel Torga
 
Poetas portugueses
Poetas portuguesesPoetas portugueses
Poetas portugueses
 

O povo foi sempre o herói na obra de Miguel Torga

  • 1. Tiragem: 9311 País: Portugal Period.: Diária Âmbito: Regional Pág: 3 Cores: Preto e Branco Área: 26,20 x 31,92 cm² Corte: 1 de 1ID: 57533703 18-01-2015 Coimbra A esperança doutra era Humanidade, universalidade, defesa de valores, crítica terrível e...esperança. “É impossível que o tempo actual não seja o amanhecer doutra era”, assinalou Manuel Ma- chado, ao citar Miguel Torga. António Manuel Rodrigues Volvidos 20 anos da morte de Adolfo Rocha, a 17 de Janeiro de 1995, vai-se percebendo a imortalidade e a universali- dade de Miguel Torga. E tam- bémahumanidadedohomem quenasceunasterrasagrestes de Trás-os-Montes, mas que contornou a “fatalidade” geo- gráfica:“odestinodestina/mas orestoécomigo”,diriaumdia opoeta,numafraseontemre- cordada pelo historiador e es- critorCarlosCarranca,nasce- rimónias evocativas dos “20 anossobreodesaparecimento deMiguelTorga”. «Vou-vos levar meia hora», avisou Carlos Carranca, con- vidado para falar de um dos doishomensdasuavida(oou- tro é o pai).Amigo e estudioso de Torga, Carlos Carranca prendeu a assistência numa palestra rica em pormenores de diferentes fases da vida do escritor, nascido em 1907, em S. Martinho de Anta, supor- tando-os em escritos do autor de“Bichos”. Terminadaaquartaclasse,a par da «escola natural do pai» (amanho das terras) foi «con- frontado» com o seminário. Adolfo Rocha «nega-se a se- guir uma carreira de celibatá- rio,porestalhecontrariarasua natureza de bicho». Preferiu- se sujeitar-se a provações na fazenda de um tio, no Brasil, ondeterápercebidoochama- mentodasartes. Seguir-se-ia o liceu em Coimbra, com estudos pagos pelo tio, e a licenciatura em Medicina na Universidade de Coimbra, «formatura que re- forçou o carácter humano de Torga, que se completa na fi- delidadeaHipócrateseaOrp- heu». Escreve por essa altura olivrodepoemas“Ansiedade”, ainda sem o pseudónimo que o celebrizou. Aliás, Miguel Torga só che- gariaem1934,comolivro“Pri- meira Voz”. Miguel em home- nagem a Cervantes e Una- muno, e Torga inspirado no nome do arbusto montanho- sos daterranatal. Numa conferência transfor- mada no final em tertúlia - «em casa de Torga só poderia serumatertúlia»,notouCarlos Carranca – foi-se revelando um pouco do escritor que nunca poderia viver fora da pátria enquanto escritor, por- que lhe faltaria “o dicionário da terra, a gramática da pai- sagem, o espírito santo do povo”, como o próprio ilus- trou. Purista da língua portu- guesa, defensor da liberdade, detido em 1939. Na prisão de Aljube recebe a visita de An- dréeCrabbé,denacionalidade belga, com quem casou, em 1940.Instala-seemCoimbrae abreconsultórionaPortagem. É pai em 1955, cinco anos an- tes da primeira proposta para Nobel da Literatura (que agi- taria os escritores portugue- ses). Em Abril de 1974, «cumpre- seTorga»,comarevolução,re- cordou Carlos Carranca. “A almanacionalexplodiudeale- gria (…) parecia um sonho”. O relatodeMiguelTorga-“final- mente dava gosto em ser ci- dadãoportuguês”-,evoluipara umsonhoqueesmoreceu:“as prisões encheram-se de novo, asambiçõesrecalcadasvieram à tona (…) a mediocridade ins- talou-se”. Europeusdeprimeira portuguesesdeterceira Maisumavez,sublinhaCar- los Carranca, é no povo que Miguel Torga confia. «O povo sempre foi o herói da sua obra»,reforçou,aorevelarque, apesar do desencanto, sabia que o povo iria encontrar so- lução para os “momentos de- sajustados que lhe tentassem alterar o carácter”. Com inúmeras distinções, TorgaseriaoprimeiroPrémio Camões, em 1989. Muitas ho- menagens que «não lhe ado- cicaram o carácter». Acabaria porreconhecerqueassuasre- lações com os governantes, em quem percebia o poder comoobjectivodevida,“jánão têm remédio (…) mesmo quandoumarealsimpatianos aproxima (…)”. A adesão de Portugal à co- munidadeeuropeiaseriaoutra desilusão para Miguel Torga, que anteviu, em muitos mo- mentos, o que hoje se passa, mormente numa carta en- viada ao Presidente da Repú- blica Mário Soares: “não há, nem haverá num futuro pre- visível, outra Europa senão estamalfadadadocapitalismo insaciável e tentacular”. Quando são abolidas as fron- teiras (1993), deixa perceber a mágoa: “ocupados sem resis- tênciaesemdor.Anestesiados previamente pelos invasores eseuscúmplices,somosagora oficialmente europeus de pri- meira, espanhóis de segunda e portugueses de terceira”. A 17 de Janeiro, recordou CarlosCarranca,«oamigoAn- tónio Arnaut fechava-lhe os olhos (…), terminavam todos os tempos de aprendizagem de um poeta que nos revelou haver em Portugal duas cul- turas: uma que parece e outra que é (…), uma que nos arre- meda e outra que nos identi- fica». A meia hora de Carlos Car- rancadeixouavontadedeum meio-dia, pelo que disse e de- monstrou saber. Fica a men- sagem com que terminou o momento:«saibamosnóshoje merecer a obra de Torga e o seuexemplo cívico». | “O povo foi sempre o herói” na obra de Miguel Torga Homenagem Cumpriram-se ontem 20 anos da morte do poeta, momento que avivou a sua obra e permitiu perceber um pouco melhor a razão da sua imortalidade À volta da obra de Miguel Torga recolheram-se “alentos de alma” “Tempos deAprendizagem na Vida e Obra de Miguel Torga”, livro de Carlos Car- ranca, inspirou a sua inter- venção na Casa Museu. De- pois, seria a sua relação e conhecimentos sobre o es- critor que revelariam, em momentos de boa disposi- ção, um pouco mais de Torga, o poeta que «não dava autógrafos».Até um certo dia… Contou Carlos Carranca que a actriz Simone de Oliveira, então em temporada em Coimbra, visitou Torga e pe- diu-lhe um autógrafo.Are- sistência seria vencida pela compaixão por uma mulher que já tinha sido tão bonita… Concedida a assinatura, o episódio teria continuidade, quando Mário Soares com- prou “Ansiedade”e pediu ao transmontano que o perso- nalizasse. Miguel Torga não assinou, o que levou Soares a recordar-lhe que já tinha dado um autógrafo a Si- mone de Oliveira. Mas você, retorquiu Torga, «não tem as pernas da Simone». | O autógrafo a Simone e a nega a Mário Soares Câmara quer reanimar Casa-Museu Miguel Torga Além da palestra de Carlos Carranca, o programa que a CâmaradeCoimbrapreparou para assinalar os 20 anos da morte do poeta incluiu visitas guiadasàCasa-MuseuMiguel Torga, inauguração da expo- siçãofotográficaedocumental “Miguel Torga – Percurso de umaVida”,apresentação,pelo directordaBibliotecaGeralda UC, José Augusto Bernardes, do livro “Dois Homens num sóRosto–TemasTorguianos”, de Maria Hercília Agarez, e a exibição do filme “Natais de Torga” (produzido pela Coo- perativa Bonifrates). «Miguel Torga perdura, aju- dando-nos a recriar energias (…) por uma terra melhor e umahumanidademelhor»,di- ria Manuel Machado, recor- dandoapessoa«amável»,mas também «agreste», que «não era dissimulada». Se tivesse sido «ouvido atentamente», observou o presidente da Câ- mara Municipal de Coimbra, apropósitodasconsiderações e vaticínios de Torga sobre a União Europeia», (…) «não te- ríamos a desvalorização da vida humana», com conflitos que«desgraçamoufazemcor- rer o risco de desgraça». Do «rigor da escrita e da palavra» de Torga retirou Manuel Ma- chado «muitos e importantes gritos de alma», em que a li- berdadefoiessência.Aosubli- nhar a importância de se dis- seminarem as mensagens do poeta,cujaleituraaconselharia a quem precisar de «alentos de alma», Manuel Machado - que ilustrou o discurso com leituras de trechos da obra de Miguel Torga - revelou que estáemcursoumprocessode reanimação da Casa-Museu, que se quer um «espaço vivo de cultura e de conviviali- dade». |