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08Projeto
"MEMÓRIA-Nona Ilha"
VIEIRA, ALBERTO
DE ROMARIAS E ARRAIAIS NO MUNDO INSULAR
Cadernos de divulgação do CEHA.
Projeto “Memória-Nona Ilha”/SRETC/DRC, N.º 08.
VIEIRA, Alberto – De romarias e arraiais no mundo insular.
Funchal. Outubro de 2018.
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
DE ROMARIAS E ARRAIAIS NO MUNDO INSULAR
ALBERTO VIEIRA*
CEHA-SRETC-MADEIRA
De romarias e arraiais no mundo insular
2
ALBERTO VIEIRA. N. 1956. S. Vicente Madeira. Títulos Académicos
e Situação Profissional: 2016- Coordenador do CEHA e de projetos de
investigação; 2013-2015:Diretor de Serviços do CEHA; 2008- Presidente
do CEHA, 1999 - Investigador Coordenador do CEHA; 1991-Doutor em
História (área de História dos Descobrimentos e Expansão Portuguesa), na
UniversidadedosAçores;1980.LicenciaturaemHistóriapelaUniversidade
de Lisboa. ATIVIDADE CIENTÍFICA. Pertence a várias academias
da especialidade e intervém com consultor científico em publicações
periódicas especializadas. É Investigador-convidado do CLEPUL-Lisboa.
Membro da Catedra Infante Dom Henrique. Desenvolveu trabalhos de
investigação nos domínios da História do Meio Ambiente e Ecológica,
História da Ciência e da Técnica, O Mundo das Ilhas e as Ilhas do Mundo,
História da Autonomia, História da Ciência e da Tecnologia, História
da Escravatura, História da Vinha e do Vinho, História das Instituições
Financeiras, História do Açúcar. Atualmente desenvolveu estudos e
coordena projetos sobre Historia Oral /Autobiográfica, com os projetos:
MEMÓRIA das Gentes que fazem a História; NONA ILHA- as Mobilidades
Madeirenses; AUTONOMIA. Memórias e testemunhos. PUBLICAÇÕES.
Tem publicado diversos estudos, em livros e artigos de revistas e atas de
colóquios, sobre a História da Madeira, dos espaços insulares atlânticos,
da Nissologia/Nesologia e sobre os temas de investigação referidos acima.
Informação curricular desenvolvida em: https://app. box.com/s/248a0h63
7wi5llm26o66o9bbw2kd182z.
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
Este ano eu vou ao Monte,
Pró ano, à Ponta Delgada,
Só pelo gosto que tenho
De subir a Encumeada.
Abaixa-te, Pico Alto,
Alteia-te, Encumeada,
Eu quero ver os romeiros,
Que vão prá Ponta Delgada.
		
Trabalhei um ano inteiro,
Um ano, sim, dia a dia,
Pra comprar o meu tambor
Prá gente ir à romaria.
PEREIRA, 1971, pp. 14, 15
Romeiros atravessando o Paul da Serra em direção ao arraial do Senhor Bom Jesus de Ponta Delgada.
De romarias e arraiais no mundo insular
3
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
O turismo religioso tem sua origem no exercício contemporâneo da peregrinação. O turista
religioso, nesses termos, não deixa de ser um peregrino. Apenas atualiza essa prática
adaptando sua viagem – ora parcial, ora plenamente – às características do processo
turístico, conforme o contexto socioeconômico do fenômeno religioso em questão.
(OLIVEIRA, Christian Dennys Monteiro de. Turismo Religioso.
São Paulo: Aleph, 2004, p. 13)
O que era Romaria? Um caminhar, muitas vezes penoso, doloroso até, em condições volun-
tariamente precárias,por isso demorado, mas cheio de encantos – imersão numa natureza
selvagem e encontros lúdicos no caminho – até a concretização da apresentação e presen-
ça do peregrino a um “Santo”: santuário próximo ou longínquo, Sagrado feito gente, com
quem se conversa, se troca bens, energia e saúde (promessas), perto de quem se vive uma
pequena porção de tempo, o tempo feito Festa: comida, bebida, encontros, dança; até a
volta para um quotidiano transfigurado, já na espera de outra romaria. Um ritmo de vida
– e na vida. Uma relação constituinte com oalém-vida fonte da vida, o Sagrado. Mas uma
relação tradicionalmente pouco regulada pela instituição (a Igreja) em princípio investida
da missão de apresentar, representar, concretizar e distribuir este Sagrado à sociedade
profana em que os homens instauram o quotidiano de suas vidas. Por isso, esta procura
ativa de “refontalização”, a partir de iniciativas repetidamente administradas por cada
um, no quadro de uma tradição que dificilmente aceitava para isso regulações autoritá-
rias, aparecia com freqüência às autoridades eclesiásticas (e políticas) como descamban-
do para manifestações de “paganismo”: promessas sangrentas em atitudes penitenciais
excessivas, que criavam um foco de devoção autônomo, popular e não-oficial, cantos e
espetáculos “profanos”,“arraiais noturnos”, bebedeiras, eventualmente sexo e violência.…
As “romarias” são caso típico de encontro e fricção (criativa) entre a religião do “povo”
e a do “clero”. As multidões peregrinas são em princípio “leigas”, dirá Dupront, o grande
especialista das peregrinações...
(Sanchis, P. (2006). Peregrinação e romaria: um lugar para o turismo religioso. Ciencias
Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, 8(8),p. 86 e 88)
De romarias e arraiais no mundo insular
4
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
RESUMO
Partindo da ideia de que existe uma prática cultual ligada à Religião, que estabelece um movimento
interno e externo no espaço insular conducente a uma gestão devocional relacionada com a “salvação da
alma”, em que se determinam condutas mobilizadoras geradoras de peregrinações e de uma forma especial
de devoção, parece-nos importante destacar esta realidade enquanto marca da memória e identidade insular.
Olhando os três arquipélagos (Açores, Canárias, Madeira), notámos diferenças notórias na forma como
são vivenciados os diversos rituais. Todos são, porém, um importante fator da mobilidade e da vida das popu-
lações. Se, em relação às Canárias, estamos perante uma diferente matriz europeia, no caso dos arquipélagos
portugueses, a matriz é idêntica, mas revelam formas de evolução distinta, daí a riqueza da situação.
A religiosidade e o calendário das festas e peregrinações determinam uma mobilidade específica, com
o fim de pagar promessas, assumir o custo das festividades do orago, na condição de festeiro ou fazer a
peregrinação a locais sagrados ou devocionais. Esta  mobilidade devocional gera uma realidade distinta em
termos do turismo, hoje conhecido como turismo religioso. Unidos ambos os caminhos, há um desejo, uma
esperança ligada à devoção religiosa, que tem por finalidade a salvação da alma. Daí que esta seja para nós
uma vertente da “economia do céu”, que já tivemos oportunidade de teorizar e documentar e que agora
ampliamos com mais esta realidade diferenciadora da memória e identidade insular.
A “economia do céu” surge-nos na função dos chamados festeiros ou mordomos da festa que assumem
os encargos da celebração religiosa e do arraial, esperando com isso ser recompensados no retorno, com a
salvação da alma associada ao reconhecimento social. Esta atitude, muitas vezes ostensiva, parte quase sem-
pre dos emigrantes, que retornam temporariamente à ilha em romagem de gratidão e de afirmação social.
PALAVRAS-CHAVE: Açores, Arraiais, Canárias, Festividades, Madeira, Mobilidades, Peregrinação, Roma-
rias, Rumerias, Turismo Religioso.
De romarias e arraiais no mundo insular
5
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
DE ROMARIAS E RUMERÍAS NAS ILHAS
A
forma de ocupação e organização dos três arquipélagos (Açores, Canárias, Madeira) deu-se, de
modo diferente, quer em termos de ritual e devoção. Todos são um importante fator da mobilidade
e da vida das populações insulares.
Se, em relação às Canárias, estamos perante uma diferente matriz europeia, no caso dos arquipélagos
portugueses esta será idêntica, não obstante as diversas origens geográficas dos povoadores. O devir his-
tórico, contudo, revela formas de evolução distinta. Desta forma, o quadro que hoje se nos depara é o de
diferentes formas da religiosidade popular, com expressões particulares na devoção e na vivência do profano
que as acompanha. Mas em todos é manifesta a mesma atitude de caminho espiritual interior, a penitência
e o sacrifício e a prática de pagamento das promessas. Talvez, nos Açores, a situação dos romeiros quares-
mais seja a que revela, de forma mais clara, esta situação, enquanto nas Canárias1
e na Madeira, na romaria/
rumería aquilo que mais se torna notório é o arraial que as acompanha, tornando mais evidentes os aspetos
profanos e o espetáculo que as acompanha.
1	 Cf. GALVÁN TUDELLA, Alberto, 1987, Las Fiestas Populares Canarias, S.C. Tenerife, Interinsular-Ediciones Canarias; ARRETO V., Carmen Marina,
1997, “Romerías” en Los símbolos de la identidad canaria, Santa Cruz de Tenerife: Centro de la Cultura Popular Canaria; GALVÁN T., Alberto, 1987: Las
fiestas populares canarias, Tenerife: Interinsular Canaria; id., 1984, Los corazones de Tejina, Santa Cruz de Tenerife: Cabildo Insular de Tenerife; id., 1987, as
Fiestas Populares Canarias, Santa Cruz de Tenerife: Interinsular Canaria; GALVÁN T., Alberto y otros. 1989: “La fiesta: Multiplicidad de interpretes,
pluralidad de significados” en Revista Eres 1, vol. 1, pp. 37- 72; GALVÁN, Alberto y BERMUDEZ, F.:, 2000, “Fiestas populares de Canarias” en Cultura
Tradicional canaria, vol. 1, Las Palmas de Gran Canaria: Gobierno de Canarias/Canarias 7. [ Edición en CD]; SANTANA J. , 2001, Gustavo: Fiesta y
modernidad. Análisis de las Transformaciones del Sistema Festivo en Gran Canaria a finales del Siglo XX, Gran Canaria: FEDAC.
Max Römer (1878-1960): Cartão de Boas Festas aguarelado.
De romarias e arraiais no mundo insular
6
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
Nos Açores, em especial na ilha de S. Miguel, os romeiros quaresmais2
continuam a marcar na época
da Páscoa uma mobilidade interna e externa que movimenta açorianos e não açorianos, não contendo a
componente profana do arraial. É neste quadro que os romeiros açorianos adquirem características distin-
tas, que não encontramos nos outros dois arquipélagos. A componente do arraial ganha expressão de uma
forma idêntica na festa do Senhor Santo Cristo, a romaria rainha do arquipélago e que mobiliza residentes e
emigrantes. Encontra situação similar na Madeira com a senhora do Monte ou, nas Canárias, com a Virgem
da Candelária3
, patrona do arquipélago.
Por outro lado, os Açores revelam uma diferença na vivência do arraial. Partem sempre da devoção
popular ao divino Espírito Santo, que tem como sede, uma construção diferenciada do templo religioso que
acolhe toda a vivência profana4
. As festas do Espírito Santo nos Açores são as festas, por excelência dos Aço-
res, onde o arraial assume uma função de destaque.5
Na Madeira, até princípios do século XX, esta devoção era semelhante, mas a intervenção da estru-
tura eclesiástica fê-la mudar de rumo, acabando com o “teatro” de raiz ou improvisado, como sede destas
manifestações, de forma que, hoje, quase só se resume às visitas pascais6
. As romarias populares, de Nossa
Senhora do Monte, do Senhor Bom Jesus da Ponta Delgada, de Nossa Senhora do Loreto de Nossa Senhora
do Rosário em S. Vicente ou do Senhor dos Milagres em Machico, roubaram-lhe protagonismo. As Festas
do Espírito Santo são diferentes, na atualidade. O que ficou na História e tradição madeirense foi o Espírito
Santo da Camacha, a que se associou uma romaria e arraial7
. No Porto Santo, também acontece uma situação
muito especial da romaria e arraial da capela do Espírito Santo, no Campo de Baixo, em agosto, mas com uma
vertente distinta de romaria e arraial8
, tratando-se de uma festa muito importante.
A expressão da religiosidade e devoção diferenciam-se pelo santo que motiva esta situação, mas em
todas as ilhas, a estrutura da expressão é semelhante. Há uma situação ou lenda na origem desta devoção e
que atua muitas vezes como fator de afirmação desta devoção popular. Depois, a romaria e o arraial vão-se
moldando às condições da época, ganhando cada vez mais animação e colorido: são as iluminações e enfei-
tes, o fogo-de-vista e de estalo, a música em forma de execução popular, pelas bandas filarmónicas, aparelhos
de reprodução e conjuntos musicais.
2	 Cf. Carvalho, A. M. P. G. (2012). Romeiros de São Miguel: a música na caminhada da Quaresma (Doctoral dissertation, Faculdade de Ciências Sociais e Hu-
manas, Universidade Nova de Lisboa); LEAL, J. (1989). As Romarias Quaresmais de São Miguel (Açores), Estudos Em Homenagem de Ernesto Veiga de
Oliveira, Lisboa, pp. 409-436; FERREIRA, Pe. Ernesto, 1959, As Romarias Quaresmais na Ilha de São Miguel. Sua Origem e Antiguidade. Insulana, Vol.
XIV: 135 a 14; id., 1962, Regulamento dos Romeiros da Ilha de São Miguel — Açores. Boletim do Governo Eclesiástico dos Açores, vol.: 37, n.° 816: pp. 38
a 46; RIBEIRO, Luís da Silva, 1983, (1942) Romeiros Terceirenses. Obras, vol. III, Angra do Heroísmo, I.H.I.T. / S.R.E.C.: 97 a 98. SARAIVA. Alvaro
e Dias, Teixeira, 1987, Romeiros, Peregrinos de Hoje. Ponta Delgada: edição dos autores; COUTINHO, Alexandre & Luís Felipe Mota Machado & Pedro
Mota Machado, 2006, A Irmandade dos Romeiros, Portugal: Lucerna (1ª ed.); MOURA, Mário & Rodrigues, José António. s.d. Rostos de Fé- Romeiros na Ilha
de São Miguel. Ponta Delgada: Publiçor; VIEIRA, Carlos Manuel Bolarinho, 2004, Diário de uma romaria: rancho de Romeiros da Matriz de São Miguel Arcanjo.
Vila Franca do Campo: Câmara Municipal; BETTENCOURT, José M., 1984, Para a sociologia da música tradicional açoriana. Lisboa: Instituto de Cultura e
Língua Portuguesa - Ministério da Educação, Biblioteca Breve.
3	 MARTÍNEZ, A. J., & ÁLVAREZ, G. S., 2017, La Candelaria: herencia cultural de Canarias en la ruta de la mar atlántica: España-Cuba-México/La
Candelaria: cultural heritage of the Canary Islands in Atlantic sea route: Spain-Cuba-Mexico, XXII Coloquio de Historia Canario-Americana, Las Palmas de
Gran Canaria, pp. 1-12.; GUZMAN ARIAS, C. (2011). Historia de la Virgen de la Candelaria. Puno, Perú: IDS-ILLARI.; ESPINOSA, A. de (1980) [1594].
Historia de Nuestra Señora de Candelaria. Introducción de Alejandro Cioranescu. S/C de Tenerife: Goya.
4	 Cf. LEAL, João, 1984, Etnografia dos Impérios de Santa Bárbara (Santa Maria, Açores), Lisboa, Instituto Português do Património Cultural; LEAL, J. (1994).
As festas do Divino ES nos Açores: um estudo de antropologia social. Lisboa: PDQ.
5	 Cf. COSTA, Antonieta; FÉLIX, Emanuel; FONSECA, Hélder; CABRAL, Mário, 2007, Pelo sinal do Espírito Santo. Angra do Heroísmo: Presidência do
Governo Regional dos Açores, Direcção Regional da Cultura; DUARTE, M., & RAACH, K. H. (2004). As Festas do Espírito Santo na Ilha Terceira–A
Dádiva e a Partilha/The Holy Ghost Celebrations in Terceira Island–A Way of Giving and Sharing. Angra do Heroísmo: Blu Edições; ENES, M. F. (2004).
As festas do Divino Espírito Santo nos Açores: solidariedade e fraternidade. Em nome do Espírito Santo. História de um Culto, 80-87; Leal, João, 1994, As Fes-
tas do Espírito Santo nos Açores, Um Estudo de Antropologia Social, Lisboa, Publicações Dom Quixote; Leal, J. (1991). Ritual e estrutura social numa freguesia
açoriana. As festas do espírito santo em Santo Antão (São Jorge). Lugares de aqui-actas do seminário “Terrenos Portugueses, 27-47; Simões, M. B. (1987). Roteiro
lexical do culto e festas do Espírito Santo nos Açores. Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Ministério da Educação.
6	 Cf. VIEIRA, Alberto, 2016, “As Festas do Divino nas Ilhas e Brasil”. in CONGRESSO INTERNACIONAL DO ESPÍRITO SANTO (CIES), “Gé-
nese, Evolução e Actualidade da Utopia da Fraternidade Universal”, organizado, em parceria, com o Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, o
Centro de História da Sociedade e da Cultura da Univ. de Coimbra, o CLEPUL da Universidade de Lisboa, a CIDH da Universidade Aberta e o Instituto
Europeu de Ciências da Cultura Padre Manuel Antunes de Coimbra. 15 e 17 de setembro, em Lisboa e Alenquer; VIEIRA, Alberto, 2016, As festas do
divino, das ilhas para o Brasil? Um caminho ainda por revelar. Cadernos de divulgação do CEHA. Projeto “Memória-Nona Ilha”/DRC/SRETC, N.º
05. Funchal. Setembro de 2016. Disponível em: https://app. box.com/s/5vq1cgqdk8ovhb5j9xt25odrqtk7nx0o .
7	 Cf. Dn, 12.06.1889, p. 1.
8	 DN.24.08.1934, p. 1; DN.18.08.1935, p. 2.
De romarias e arraiais no mundo insular
7
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
Filarmónica Recreio dos Lavradores, 1894. Photographia museu “Vicentes “, Funchal
A indumentária tinha, dantes, lugar especial, com os chamados trajes da romaria, ou nas Canárias a
chamada roupa do “mago”, isto é o traje típico. Mas sem dúvida o mais esperado era a gastronomia, que se
divide entre os doces da romaria e os pratos da romaria, servidos aos romeiros, para recuperar forças após
uma caminhada.
Grupo de Romarias Antigas do Rochão, 1945
A forma de expressão destas tradições festivas através da música e danças, do traje, da alimentação,
acabam por definir a identidade de cada região, lugar, ilha ou arquipélago. São factores identificadores da
imagem e identidade de uma população que perdura no tempo e os diferenciam dos demais. E são estes ele-
mentos identitários que se revivem anualmente, daí a força da sua presença e atualidade e que fazem parte
daquilo que a mobilidade gerada pela emigração leva ao mundo inteiro.
A partida da ilha sempre foi dolorosa, porque um salto no desconhecido e era o primeiro momento de
invocação dos santos da devoção popular que faziam os arraiais. Na Madeira, temos muitas manifestações
de expressão desta religiosidade. Para 1887, temos o jornal de viagem escrito por João Baptista de Oliveira
e Vicente de Ornelas, que relata a viagem da Madeira (a 8 de novembro de 1887) ao Hawaii (a 14 de abril de
1888.), no navio inglês Thomas Bell,9
onde são manifestos os testemunhos mais evidentes da religiosidade
popular, assentes nesta devoção geradora dos arraiais.
9	 OLIVEIRA, João Baptista de, ORNELAS, Vicente de, “Destination, Sandwich Islands”, trad. Lucille da Silva Canario, in Hawaiian Journal of History, vol.
4, Honolulu, 1970. Cf. “Da Madeira para as Ilhas Sandwich, via Cabo Horn, a bordo do navio Inglês “Thomas Bell”, ; CALDEIRA, Susana, 2010, Da
Madeira para o Hawaii: A Emigração e o Contributo Cultural Madeirense, Funchal CEHA, pp. 88-96.
De romarias e arraiais no mundo insular
8
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
As comunidades de emigrantes são sempre o espelho de uma realidade doutros tempos, que o progres-
so devorou, mas que podemos encontrar, parada no tempo, nos destinos onde estas comunidades assumem
alguma dimensão, como espelho das memórias que acompanharam os emigrantes no momento de partida10
.
É essa força identitária das vivências e religiosidade popular que os une no local de destino e os traz de retor-
no à sua terra natal11
. Daí a devoção à Nossa Senhora do Monte, do Loreto ou o Bom Jesus da Ponta Delgada
para os madeirenses12
, ou a Virgem da Candelária para os Canarianos13
ou as festas do Divino para os Açores14
.
A mobilidade humana, tão característica do mundo português, que Eduardo Lourenço15
resume na ideia
de nação-navio, implica esse movimento de pessoas, mas também de usos e tradições. A região ou município
de origem atuam como elo gerador e catalisador da comunidade de origem, sendo um fator de reforço des-
sas revivências, daquilo a que M.B. Rocha-Trindade16
define como micro pátrias. Há, assim, um processo de
desterritorialização17
e transnacionalização18
que define este movimento gerando a chamada L(U.S.A)landia
10	 Sobre isto queremos destacar os estudos da antropologa B. FELDMAN-BIANCO (1992-2009). Cf. CF. FELDMAN-BIANCO, B. (2009). Reinventan-
do a localidade: globalização heterogênea, escala da cidade e a incorporação desigual de migrantes transnacionais. Horizontes Antropológicos, 15 (31), 19-50;
Feldman-Bianco, B. (2009). «A taste of portugal»: transmigração, políticas culturais e a mercantilização da «saudade» em tempos neoliberais. Ler História,
(56), 105-199; FELDMAN-BIANCO, B. 2007, Empire, postcoloniality and diasporas (feature). Hispanic Research Journal, London: University of London,
v. 8, n. 3, p. 267-278; FELDMAN-BIANCO, B., 2001, Brazilians in Portugal, Portuguese in Brazil: constructions of sameness and difference. Identities:
Studies in Politics and Culture, v. 4, n. 4, p. 607-650; FELDMAN-BIANCO, B. (1997). Imigração, confrontos culturais e (re) construção de identidade
feminina: o caso das intermediárias culturais portuguesas. Horizontes Antropológicos, 65-83; Feldman-Bianco, B. (1996). Imigrantes portugueses, imigrantes
brasileiros. Globalização, antigos imaginários e (re) construções de identidade (uma comparação triangular). Projeto integrado: identidades: reconfigurações de
cultura e política. Estudos de migrações transnacionais de população, signos e capitais, 607-50; Feldman-Bianco, B. (1996). Imigrantes portugueses, imigrantes brasi-
leiros. Globalização, antigos imaginários e (re) construções de identidade (uma comparação triangular). Projeto integrado: identidades: reconfigurações de cultura
e política. Estudos de migrações transnacionais de população, signos e capitais, 607-50; Feldman-Bianco, B. (1995). The state, saudade and the dialectics of deter-
ritorialization and reterritorialization. Oficina do CES, 46, 1-36; Feldman-Bianco, B., & Huse, D., (1995). Entre a saudade da terra e a América: memória
cultural, trajetórias de vida e (re) construções de identidade feminina na intersecção de culturas. Ler História, (27/28), 45-73; Feldman-Bianco, B. (1995).
A criação de uma nação (portuguesa) desterritorializada e a transnacionalização de famílias. Cadernos (Universidade de São Paulo, Centro de Estudos Rurais e
Urbanos), 6, 89-104; Feldman-Bianco, B. (1993). Múltiplas camadas de tempo e espaço: (re) construções da classe, da etnicidade e do nacionalismo entre
imigrantes portugueses. Revista crítica de ciências sociais, 38, 193-223; FELDMAN-BIANCO, B. Multiple layers of time and space: the construction of class,
ethnicity and nationalism among Portuguese immigrants. In: GLICK SCHILLER, N., BASCH, L.; SZANTON, C.(Org.). Transnational perspective on
migration: race, class, ethnicity and nationalism reconsidered. Nova Iorque: New York Academy of Sciences, 1992. p. 145-174. (Annals of the New York
Academy of Sciences, v. 645).
11	 Note-se que nos Estados Unidos da América em Noton em 1934 a comissão das festas dizia que este era um momento para ”matar saudades dos tempos
que se passavam em festas idênticas na formosa ilha da Madeira” e convidava todos “a passar um dia como se estivessem na Madeira.”. Cf. MENDON-
ÇA, Duarte, 2007, DA MADEIRA A NEW BEDFORD. Um capítulo ignorado da emigração portuguesa nos Estados Unidos da América, Funchal, p 295.
12	 Nas décadas de vinte e trinta aparecem notícias do reavivar das principais romarias da ilha, nomeadamente do Monte, do Bom Jesus da P. Delgada,
do Santíssimo Sacramento, (Mendonça, 2007: 236, 267-268, 285, 292-296) a Romaria da Camacha (ibidem, 286); VASCONCELOS, Mota, Epopeia do
Emigrante Insular, Subsídios para a sua História, Movimento para a sua Consagração, Lisboa, s. ed., 1959.
13	 JUÁREZ MARTÍNEZ, A. (2008). De hortelanos a piratas. Ensayos sobre la cultura canaria en Veracruz. México: Editora del Gobierno del Estado.
14	 Cf. Sobre as festividades nas comunidades açorianas, nomeadamente nos Estados Unidos da América: APALHÃO, João António; ROSA, Victor M.
Pereira da, 1983. Da emigração à aculturação: Portugal insular e continental no Quebeque. Lisboa: Casa da Moeda; CABRAL, S. L., 1989.Tradition and transforma-
tion: Portuguese feasting in New Bedford. New ork: AMS Press; COSTA, 2010, Antonieta. Festividades populares e mitos arcaicos na nova geografia atlântica. Ponta
Delgada: Direcção Regional da Cultura; Leal, João, 2002, “Identities and Imagined Homelands: Reinventing the Azores in Southern Brazil”, Diaspora.
Journal of Transnational Studies 11 (2), 233-254; Leal, João, 2004, “A Pomba e a Águia: as Festas do Espírito Santo nas Comunidades Açorianas dos EUA”,
Actas do III Colóquio “O Faial e a Periferia Atlântica nos Séculos XV a XX, Horta, Núcleo Cultural da Horta-Câmara Municipal da Horta-Casa da Cultura
da Horta, 153-174; Leal, João, 2005, “We Are Azorean. Discourses and Practices of Folk Culture in Santa Catarina (Southern Brazil)”, Klimt, A. e J.
Leal (eds.) “The Politics of Folk Culture: Reflections from the Lusophone World”, Etnográfica IX (1), 171-193; Leal, João, 1996, “Festa e Emigração
numa Freguesia Açoriana”, Baptista, F. O., J. P. Brito e B. Pereira (eds.), O Voo do Arado, Lisboa, Museu Nacional de Etnologia, 582-589; Leal, J. (2005).
Tradição e tradução: festa e etnicidade entre os imigrantes açorianos nos EUA. Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 16, 87-108.
15	 Cf. Lourenço, E. (1974). Identidade e Memória: o caso português. Conflitos e Mudanças em Portugal, 1984, 18. Sobre esta ideia cf. Nascimento, N. A. (2014).
A jangada e a nau: a nação portuguesa de José Saramago e de Eduardo Lourenço. Revista Letras, 90 (2); Angelini, P. R. K. (2012). De partidas, ausências e
não regressos: o discurso antiépico de Lobo Antunes. Letras (UFSM); Sabine, M. (2010). “ Pedaços de corpos envoltos no coral”: cânone literário, identidade e
expressão” queer” em” Salsugem” de Al Berto. Colóquio-Letras, 173, 47-63; Dutra, R. L. (2010). Literatura e Insurreição. Revista Magistro, 1 (1); Bela Feld-
man-Bianco, 1999, A Família na Diáspora e a Diáspora na Família In: Holanda, Heloísa Buarque de & Capelato, Maria Helena Rolim. Relações de Gênero
e Diversidades Culturais nas Américas. São Paulo, EDUSP, pp 253-273. 
16	 1987, “As Micro pátrias do interior Português”, Análise Social, Revista do lnstituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Terceira Serie, vol.
XXIII, 4: 721-732.
17	 Sobre desterritorialização Cf. Haesbaert, R. (2005). Da desterritorialização à multiterritorialidade. Boletim Gaúcho de Geografia, 29 (1); HAESBAERT, R.
(2005). Migração e desterritorialização. Cruzando fronteiras disciplinares: um panorama dos estudos migratórios. Rio de Janeiro: Revan, 35-46; Costa, R. H. (2004). O
mito da desterritorialização: do” fim dos territórios” à multiterritorialidade. Bertrand Brasil; Haesbaert, R. (2004). Definindo território para entender a desterrito-
rialização. O mito da desterritorialização. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
18	 Sobre o discurso da transnacionalismo: Brittos, V. C. (2005). Globo, transnacionalização e capitalismo. Rede Globo, 40, 131-145; Glick Schiller, Nina &
Basch, Linda & Szanton Blanc, Cristina. (1995). From Immigrant to Transmigrant: Theorizing Transnational Migration. Anthropological Quarterly. 68.
10.2307/3317464; GLICK-SCHILLER, N. etal-1992. “Transnationalism: a new analytic frameworlc: for understandingmigration”. In: Glick-Schiller,
N., Basch, L., & Blanc-Szanton, C. (Eds.). (1992). Towards a transnational perspective on migration: Race, class, ethnicity, and nationalism reconsidered. New York
De romarias e arraiais no mundo insular
9
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
19
ou, para os Açores, a “Décima Ilha” e, para a Madeira, a “Nona Ilha”.
Mas não podemos esquecer esta fronteira ténue que delimita a romaria da peregrinação e que tanto se
faz sentir nos Açores, Canárias ou Madeira. E, por força disso ambas se confundem, muitas vezes. De acordo
com Alberto Galván Tudella,20
“Los términos rumerías y Peregrinación son diferentes sin duda (…). Hacen re-
ferência a fenómenos de massa y de indivíduos, a fiesta y promessa, pero a menudo ambos se unifican. Los
romeros incluyen tanto a a unos como outros, pues muchos (…) aprovechan para cumplir una promessa la
ocasion de una fiesta, de una romería. Más aún, la promessa se convierte a menudo en el primer acto de un
ritual, al que prosigue la fiesta. No obstante es cierto, son muchos (…)que visitan santuários o eremitas para
cumplir uma promessa por un hijo recién nacido. Una peregrinación está ligada al sufrimiento, al silencio, a
los pies descalzos, a una visita al santuário caminhando de rodillas desde la entrada hasta al altar (…).
No obstante lo indicado hasta aqui, en Canarias ir de romeria, ser romero, tiene un sentido doble. En pri-
mer lugar tiene una significación genérica, que implica ir de fiesta a un santuário, tanto lejano como cercano,
pero en que lo essencial es sacar al santo(a) o a la virgen y passearla por un recorrido mais o menos largo. (…)
la romería a una virgen esla la excepcionaón. La fiesta romera está associada a Santos. (…)Además, son san-
tos vinculados a la agricultura en sentido amplio..Es decir acogen debajo su manto a campesinos, pastores,
vaqueros o gañanes.(…)”
Daqui resulta que, nas ilhas, tivemos e aindatemos a possibilidade de vivenciar diversas formas de ex-
pressão da religiosidade popular, através das suas manifestações mais importantes: a romaria/rumería e pe-
regrinação. As divindades que fazem o ciclo anual da devoção, as formas como esta se expressa são o espelho
de diferentes identidades, forjadas em espaço insular, sujeito a múltiplas influências, ao longo da sua História.
Romaria, de Henrique Franco. 1923
Academy of Sciences; SANTOS, M. (1990). Do espaço sem nação ao espaço transnacionalizado. Brasil, 143-161. O transnacionalismo é entendido por
GLICK-SCHILLER (1992, 1) como “um processo social recente no qual migrantes estabelecem campos sociais que transpõem fronteiras geográficas,
culturais e políticas”. Cf. FELDMAN-BIANCO, B. (1995). A criação de uma nação (portuguesa) desterritorializada e a transnacionalização de famílias.
Cadernos (Universidade de São Paulo, Centro de Estudos Rurais e Urbanos), 6, 89-104.
19	 Cf. Almeida, Onésimo, 1988, L(U.S.A)landia: A Decima ilha, Angra do Heroísmo. Esta é definida como “uma porção de Portugal rodeada pela América
por todos os lados, (... ) uma nação especial composta por comunidades que não são nem Portugal nem a América ... (que sio) uma mistura de duas
culturas, um mundo entre Portugal e a América” (ALMEIDA, 1988: 198 e 231).
20	 GALVÁN TUDELLA, Alberto, 1987, Las Fiestas Populares Canarias, S.C.Tenerife, p. 173-175.
De romarias e arraiais no mundo insular
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CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
Hoje, em pleno século XXI em que todos usufruímos de múltiplas comodidades nos transportes e co-
municações, vemos a peregrinação, dentro e fora da ilha da Madeira a afirmar-se de uma forma ímpar e a
trazer um novo movimento mobilidade interna de romeiros, que trilham os caminhos antigos e o sacrifício
das caminhadas a pé para uma redescoberta interior e afirmação da fé. Mas, na atualidade, a maioria dos
peregrinos que frequentam os santuários de devoção popular, atraídos pela religiosidade e/ou diversão tem
outras possibilidades que favorecem a sua mobilidade, pois os caminhos reais deram lugar às vias-rápidas
e tudo acontece de forma rápida. Mas para alguns a ilha perdeu o colorido que a animava no período es-
tival, com os romeiros que a atravessavam a pé, de lés a lés. A religiosidade popular assume novas formas
de expressão. Estaremos no prelúdio de uma nova era da religião e espiritualidade?				
Vozes diversas afirmam que as romarias e a peregrinação interna perderam sentido e as romarias já não são
o que eram. Daí algum revivalismo, com peregrinações a Ponta Delgada ou a Machico, que começam a ganhar
cada vez mais presença no nosso quotidiano21
. E as peregrinações a pé deram lugar aos caminheiros que re-
vivem hoje e valorizam os antigos caminhos reais22
.
	 Diário de Notícias. 25.8.1895, p. 1				 Achada do Felpa. S. Jorge
A memória destas romarias ficou marcada com o encontro espontâneo de romeiros na Achada da Felpa
em S. Jorge, nos dias do arraial, sendo conhecido como “o setembro”, ou no Chão dos Louros, na segunda-fei-
ra a seguir à romaria da Ponta Delgada. Ambos os lugares persistem na memória como o local de encontro
dos romeiros no momento de retorno da festa. Por outro lado, podemos entender o Folclore atual, como uma
das formas de manifestação imóvel dos arraiais madeirenses?23
21	 A primeira peregrinação a pé na actualidade foi recriada em outubro de 2016 com a romaria do Senhor dos Milagres (Cf. https://funchalNotícias.
net/2016/09/07/peregrinos-fazem-caminhada-a-pe-funchal-machico-em-nome-do-senhor-dos-milagres/. Visita a 02.09.2018), mantendo-se hoje.
Também temos informação do reavivar das romarias a Ponta Delgada, em 2018, com um grupo do Porto Moniz em 2018 (https://funchalNotícias.
net/2018/09/01/ainda-ha-quem-faca-uma-longa-caminhada-a-pe-para-ir-a-ponta-delgada/ .Visita a 02.09.2018).
22	 Cf. A página da associação Caminhos Reais da Madeira (na web: http://caminhoreal.pt/) foi criada a 17 de fevereiro de 2017, com o objectivo de pre-
servar a tradição e cultura que estava inerente a esta necessidade antiga de mobilidade interna através dos caminhos reais (n.º23, 24, 25, 26, 27, 28), que
também se firmaram historicamente como caminhos de fé e peregrinação dos madeirenses até princípios do século XX.
23	 Cf. Corte, 1992: 13-15; TORRES, 1992: 3-4; SERRÃO: 2010:54-68.
De romarias e arraiais no mundo insular
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CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
Há uma vivência profana e espiritual que acompanhou e ainda está presente em todas estas manifes-
tações de fé. Há realidades que se ofuscam perante o realismo das múltiplas manifestações da fé. Mas o
vivenciar desta relação com o divino não mudou, o que se alterou foi o entorno. Há uma economia que gere,
de diversas formas, estas manifestações de fé que, para nós, são entendidas como a expressão daquilo que já
definimos como economia do céu.
Trata-se de um modelo de análise de realidades e situações que escapam ao percurso normal da eco-
nomia insular, mas que assumem um peso importante na definição de múltiplos aspetos que escapam a uma
visão racionalista. Em anterior estudo,24
lançamos mãos da situação que enlaça o quotidiano material com
o religioso e espiritual da sociedade madeirense, definindo uma nova realidade, a “economia do céu”, que,
em muitas situações, gere a dádiva e devoção madeirense e distribui os excedentes dos recursos económicos
das famílias. Aqui, a distribuição da riqueza, por força dos rendimentos gerados no arquipélago ou fora dele,
obedece a mecanismos externos em que a religião, a sociabilidade assumem uma influência incomum, cuja
expressão está muito próxima da expressão da dádiva e do dom. Aqui há dinheiro, que sai da tradição do sis-
tema de mercado e é expresso numa dádiva de gratidão, que encerra um projeto de promessa e de afirmação
social.
Já vimos que a riqueza gerada pela produção açucareira deu lugar a uma “economia do céu”, que fez a
gestão dos excedentes dos recursos financeiros em torno de uma forma de retribuição que alia a afirmação
social e a salvação da alma. Agora queremos valorizar a mesma realidade adentro de uma diferente situação
gerada pela mobilidade humana na ilha, dando atenção às formas de expressão da religiosidade popular.
Queremos entender a gratidão e a dádiva entre aqueles que saíram da ilha e definiram uma mobilidade cons-
tante que teve um efeito reedificador na cultura e História.
A “economia do céu” foi, historicamente, uma forma dos madeirenses e porto-santenses que tiveram
que sair, manterem as suas ligações à terra e de darem testemunho, aos que ficaram, do sucesso da sua diás-
pora. É neste contexto que queremos ver a economia do céu, com um mecanismo de gestão de recursos, que
acontece no quadro das romarias e arraiais do arquipélago.
24	 Cf. VIEIRA, Alberto, 2017, Em torno da “economia do céu”. Retribuição, dádiva e dom na rota do ouro branco, Funchal, CEHA. Disponível na Internet em: http://
memoriadasgentes.ml/blog/caderno-rota-ouro-branco-01-torno-economia-ceu/. Consulta em 17.08.2018.
Chão dos Louros. S. Vicente
De romarias e arraiais no mundo insular
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CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
Cartaz: Ponta Delgada
1. Em torno de algumas questões teóricas: do turismo religioso e da
economia do céu
Hoje, cada vez mais, os estudos que se fazem partem de uma perspetiva interdisciplinar, permitindo
uma comunhão de esforços das várias áreas de estudo, no sentido da aclaração do conhecimento. Deixou
de predominar o discurso fechado para dar lugar a um debate aberto multidisciplinar e interdisciplinar que
tem permitido uma diferente colocação dos problemas, com resultados diferenciados e muito produtivos no
final. Para as ilhas, pequenos espaços do universo de estudo e debate científico a Nesologia25
clama por novas
posturas que conduzem sempre a uma conjugação dos vários ramos do saber. É isso que pretendemos fazer
com este breve ensaio sobre as mobilidades, o turismo e as questões do dom e da dádiva.
Na atualidade, a diferenciação dos modelos e áreas de trabalho das diversas ciências deixaram de ser
estanques; invadimos, constantemente, o campo de outras disciplinas, assumindo esta intromissão como
uma forma de avançarmos para além das fronteiras e estabelecermos diversas vias que desembocam sempre
numa contribuição diferenciada e inaudita, que contribui para uma maior compreensão das realidades que
nos são vizinhas nos domínios de estudo e trabalho. Daí que, de forma provocatória e numa intenção de mu-
25	 Cf. Henriques, E. B. (2007). A recém-criada comissão das ilhas da UGI e a sua conferência inaugural (Taipei, 2007). Finisterra, 42 (84); Vieira, A. (2010).
As Ilhas: da Nissologia à Nesologia. Anuário do Centro de Estudos de História do Atlântico, 2, 16-21; ESPÍNOLA, Paulo; CRAVIDÃO, Fernanda. 2014, A
ciência das ilhas e os estudos insulares: Breves reflexões sobre o contributo da geografia. Sociedade & Natureza, 26.3.
De romarias e arraiais no mundo insular
13
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
dança de modelos de análise e conceitos, propomos esta incursão na economia do Céu, fazendo apelo a con-
ceitos e realidades da Sociologia e Antropologia, para encontrarmos, no âmbito da Economia e da Religião,
um novo conceito que possa clarificar uma realidade comum da nossa cultura ocidental.
No caso específico das questões que envolvem as manifestações de fé e religiosidade popular do arqui-
pélago implicam uma abertura a múltiplos saberes de forma a poder-se entender a importância e força destas
manifestações no devir e quotidiano. Em torno do ritual de cumprimento de uma promessa que envolva ou
não a peregrinação, há uma envolvência diversa de conhecimentos e agentes. Daí que a gestão pessoal de
cumprimento de promessa tenha uma envolvência mais ampla, que não pode ser entendida apenas como
algo pessoal. Para além do mais faz parte da História de um arquipélago onde se manifestou de diversas
formas na definição da identidade cultural, religiosa, económica e social. Há muito mais para além da socia-
bilidade e do gesto devoção pessoal que ultrapassa os romeiros. Assim, no campo teórico, há necessidade de
entender estas manifestações à luz das mobilidades geradas pelo turismo religioso, como deverá entender-se
a forma como acontecem as dádivas e o pagamento de promessas que envolvem este ritual, que nos reme-
tem paras as questões em torno do dom e da dádiva
AS MOBILIDADES E O TURISMO RELIGIOSO
A viagem para o romeiro é a satisfação espiritual da busca do místico, sendo na maio-
ria das vezes um ato de sacrifício. [...] Para o turista, é uma procura de satisfação reli-
giosa mais do que prazer material [...]. O turista religioso conjuga na viagem o prazer
com a fé, mas a motivação maior é o prazer de viajar, conhecer coisas e lugares novos.
(ABREU, T. N. M. de; CORIOLANO, L. N. M. T., 2003, Os centros de romaria do Ceará e
o turismo religioso. In: CORIOLANO, L. N. M. T. (Org.). O turismo de inclusão e o desen-
volvimento local. Fortaleza: FUNECE. p. 79).
Foi apenas a partir da década de sessenta do século XX que apareceu o chamado turismo religioso26
a definir esta mobilidade humana provocada27
pela devoção e crença religiosa. A viagem/peregrinação faz
parte dos primórdios destas mobilidades humana mas só adquiriu um estatuto diferenciado no contexto da
História do turismo na segunda metade do século XX, sendo, na atualidade, uma das principais motivações
adentro do chamado turismo cultural28
. Mas, o chamado turismo religioso pode também ser entendido como
o gerador das mobilidades que se operam interiormente na ilha com os chamados arraiais e romarias, que
estão documentados desde o século XVI e que tiveram múltiplos momentos de afirmação, de acordo com a
importância e fervor religioso destas festividades em torno dos santos patronos, que adquirem uma dimen-
26	 Cf. SANTOS, Glauber Eduardo de Oliveira. 2000, Importância das Peregrinações para o Turismo Mundial. São Paulo: Turismo em Análise, nov. p. 38-44.
p. 39; Andrade, José Vicente de 2002 Turismo: fundamentos e dimensões. 8. ed. São Paulo: Ática, p. 79; Abumanssur. E. S. 2003. “Religião e turismo: notas
sobre as deambulações religiosas”. In Abumanssur, E. S. (org), Turismo religioso: ensaios Antropológicos sobre religião e turismo. Campinas, SP: Papirus, p. 53-68
54 e 56; RIBEIRO, Heloisa. 2003, Andar com fé e o sentido do chegar. Rio de Janeiro: Caderno Virtual de Turismo, v.3, n.1, p 1-7, p. 3; OLIVEIRA, C. D. M. Tu-
rismo Religioso. São Paulo: Aleph, 2004., p. 16; ANDRADE, J.V. Turismo: fundamentos e dimensões.São Paulo: Ática, 2008, 8ª edição. p. 77-78; DIAS, R. 2003,
O turismo religioso como segmento do mercado turístico. In: DIAS, R; SILVEIRA, E. J. S. da. (Orgs.). Turismo Religioso: ensaios e reflexões. Capinas: Alínea,
p. 17; ABREU, T. N. M. de; CORIOLANO, L. N. M. T. 2003. Os centros de romaria do Ceará e o turismo religioso. In: CORIOLANO, L. N. M. T.
(Org.). O turismo de inclusão e o desenvolvimento local. Fortaleza: FUNECE, p. 79; BITTENCOURT JR, 2007, A. Penitentes do Senhor dos Passos, identidade
e diversidade na religiosidade popular. In: Encontro Nacional de História das Religiões / ANPUH, Maringá, p. 4; Richards, G. (2009) Turismo cultural: Padres
e implicaes. In de Camargo, P. and da Cruz, G.(eds) 2009, Turismo Cultural: Estratgias, sustentabilidade e tendências. UESC: Bahia, 26; SERRALLONGA,
Silvia; HAKOBYAN, Karine. 2011, Turismo religioso y espacios sagrados: una propuesta para los santuarios de catalunya. Penedo: Revista Iberoamericana
de Turismo, v. 1, n. 1, p. 63-82, p. 65; VILAS BOAS, Nuno Fernando de Sá. 2012. A Pastoral do Turismo: Da peregrinação ao santuário. Braga: p. 39;
27	 Cf. OLIVEIRA, Christian Dennys Monteiro de. Turismo Religioso. São Paulo: Aleph, 2004, p. 13.
28	 Para uma definição do turismo cultural tenha-se em atenção o que dizem GUERRA, 1989; MONTEIRO, 2003; SANTOS; 2006; SILVEIRA; 2007;
PEREIRA/VILAÇA, 2008; SOUSA, 2014;
De romarias e arraiais no mundo insular
14
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
são que ultrapassa o recinto da freguesia e do concelho e assumem-se como vivências de todos os ilhéus. A
História anota esta mobilidade desde épocas remotas, dependendo a sua afirmação de uma multiplicidade
de fatores, como teremos oportunidade de verificar.
DO DOM E DÁDIVA À “ECONOMIA DO CÉU”
(...) direitos e deveres, que se mostram simétricos dão vazão à circulação de dádivas
entre os diversos grupos. Tudo circula, as dádivas circulam, mas na realidade, o que
está em jogo são as alianças espirituais. Trocam-se matérias espirituais por meio das
dádivas. Os homens estão ligados espiritualmente a seus bens que, quando passados
a outrem, estabelecem ligação espiritual com o doador. E, neste sentido, misturam se
doadores e beneficiários, homens, coisas e matéria espiritual. (MAUSS, Marcel. “O en-
saio sobre a dádiva”. Sociologia e Antropologia. v. 2. São Paulo, EPU e EDUSP, 1974. 53).
As relações de dádiva, em face da obrigação de retribuir, que se torna ao mesmo tempo
a coisa a ser explicada e a essência de toda relação de dádiva, sua verdadeira natu-
reza, aquela que se esconde por traz das afirmações de gratuidade dos atores. Donde
se conclui que a essência da dádiva não é ser uma dádiva. É o que expressa a ideia de
reciprocidade como fundamento da dádiva” (CAILLÉ, Alain. “Nem holismo nem indivi-
dualismo metodológicos – Marcel Mauss e o paradigma da dádiva.” Revista Brasileira
de Ciências Sociais. v. 13. n. 38. Outubro de 1998. p. 113)
A economia tradicional assenta nas trocas que se operam no mercado, baseadas no valor dos bens e
serviços, enquanto a economia da oferta, da dádiva, do dom, da doação, assenta no valor de uso de objetos e
ações. Mas queremos introduzir um outro conceito de economia, que designamos do Céu, em que a aplicação
assente em valores definidos pela religiosidade e espiritualidade. Aqui, a troca, embora aconteça no espaço
de interação humana, tem subjacente esta realidade e tem em conta finalidades distintas que comandam a
partilha, a doação e que se prendem com a religiosidade e espiritualidade. Daí que entendamos neste con-
texto, quer o consumo de excedentes e da riqueza da economia açucareira madeirense nos séculos XV a XVII,
materializada em dádivas de pintura, escultura, construção de templos religiosos, quer a atitude mobilizadora
dos emigrantes madeirenses com a entrada triunfal de retorno à terra em romagem de gratidão religiosa e
de afirmação social.
Há aqui um jogo subtil entre a dádiva e o dom que merece ser entendido, pela força mobilizadora que
tem na sociedade madeirense, de forma especial na segunda metade do século XX. Este retorno dos emi-
grantes pode também ser definido como uma peregrinação ou romagem de retorno às origens, onde se
expressam promessas e retribuições, que carecem quase sempre de um palco, no lugar e na ilha. E aqui tudo
continua a girar em torno da igreja e do adro, o palco onde se aliam o religioso e o profano. As dádivas em
objetos do culto litúrgico ou em dinheiro para despesas da igreja motivam esta publicidade gratuita que abre
os caminhos da fama, da gratidão e do dever cumprido.
A dádiva expressa uma intencionalidade social, que se confunde com a gestão da economia do sagrado
e que pretendemos valorizar nesta breve aportação, na medida em que se trata da realidade económica que
está subjacente à riqueza.
A Economia do Céu ou da salvação, em nosso entender, é o sistema de troca que se estabelece em torno
do processo de salvação da Alma, através da utilização de bens materiais, através missas, ofertas e legados
De romarias e arraiais no mundo insular
15
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
perpétuos29
, mas também das promessas sucedidas de peregrinações que ultimam o seu cumprimento ou
da situação de festeiros nas romarias religiosas. Há uma troca que assume um valor simbólico e ritual signifi-
cativo para os intervenientes. Esta não é medida por igual valor monetário intrínseco à transação, o que nos
leva a aproximar nesta reflexão à questão da dádiva e do dom, tão realçados pelo discurso da Sociologia e
Antropologia30
.
A primeira metade do século XX foi o momento de afirmação e valorização de uma forma forma de troca
pré-capitalista, que dominava os sistemas de algumas sociedades em África e no Pacífico. As trocas que aí se
estabelecem não se regem pelo valor atribuído àquele elemento, mas resultam de situações não lineares à
dinâmica capitalista31
. Daí as expressões Kula ou Potlach a definirem uma diferente dimensão das trocas, que
acabam na definição de uma economia do dom ou da dádiva. Esta forma de troca alheia à dinâmica capitalista
procura, na sociedade atual, diversas formas de expressão, sendo apresentada, muitas vezes, como economia
social, ou “economia solidária”32
.
Vivemos numa sociedade capitalista onde dominam, em tudo, as leis do mercado, pelo que se torna
difícil entender uma sociedade sem o dinheiro como medida de valor. Todavia, outras sociedades houve em
que o dinheiro não existia e o sistema de trocas não obedecia a uma medida de valor regulada. Os estudos
de alguns antropólogos e sociólogos, relativamente a finais do século XIX e o primeiro quartel da centúria se-
guinte, trouxeram ao nosso conhecimento algumas sociedades ditas primitivas, em que o sistema das trocas
comunitárias não se subordinava a uma lógica do valor atribuído pelo mercado capitalista, determinado pela
moeda. Era uma realidade distinta que desvelou grande entusiamo de alguns estudiosos e funcionou, muitas
vezes, como via de oposição ao capitalismo moderno33
.
A partir daqui define-se uma dinâmica de mercado que se alheia do valor atribuído pelo capital aos pro-
dutos envolvidos e que valoriza a importância pessoal ou grupal que assume. As trocas que são estabelecidas,
assim como os mesmos produtos, que atuam no sistema monetarizado, perdem esse valor e ganham outro,
de caráter subjetivo, que não pode ser quantificado, mostrando-nos uma realidade fora da racionalidade
económica34
. A moeda não existe, nem é substituída por outra forma de atribuição do valor, pois as trocas
baseiam-se em rituais e mecanismos que podem assumir um caráter espiritual. A dádiva e o dom são, assim,
os atos que determinam esta mobilidade dos produtos e estabelecem a harmonia espiritual assim como o
convívio social.
Se transpusermos isto para o sistema de aplicação dos excedentes da economia da emigração madei-
rense dos séculos XIX e XX, é isso que vamos encontrar, noutra dimensão, na sua aplicação em dádivas reli-
giosas e nos investimentos em prol da chamada economia do céu, com as doações em dinheiro para obras
e compras de imaginária, com a celebração plena da festa e arraial, em que os emigrantes assumem o papel
de festeiro ou mordomo. A partir da década de cinquenta do século XX, a entrada do emigrante na função de
29	 Esta realidade é definida muitas vezes como de economia de Salvação (RAIUMNDO, 2007, FERRAZ, 2014) ou de assistência à Alma (PEREIRA, 2005,
CARVALHO, 2001-2002).
30	 Nomeadamente por Emile Durkheim (1858-1917), Marcel Mauss (1872-1950), Branislaw Kasper Malinowski (1884-1942), Fanz Uri Boas (1858-1942),
Karl Polanyi (1886-1964), Maurice Godelier (n. 1934), J. T. Godbout (n. 1933), Robert Kurz (1943-2012), Claude Levi-Strauss (1908-2009), Pierre Bour-
dieu (1930-2002), Alain Caillé (n.1944), Marshall David Sahlins (n.1930), Camile Tarot (n. 1943). Mas também devemos ter ainda em conta A George
Dalton, James R. Stanfield e muitos outros referenciados na bibliografia sobre o “dom”/dádiva no final.
31	“…a dádiva seria uma experiência em que a distância entre fins e meios é abolida, em que não há mais fins e meios, mas um ato que preenche o espaço de significação do sujeito
e faz com que sejamos ultrapassados pelo que passa por nós. Uma experiência em que a sociedade é vivida como comunidade. “(GODBOUT, Jacques T.. “Introdução à
dádiva”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 13. n. 38. Outubro de 1998. p. 49).
32	 A expressão “economia solidária”, hoje muito em voga pretende definir Cf. CATTANI, Antônio David (org.). A Outra Economia. Porto Alegre: Veraz,
2003;  LAVILLE, Jean-Louis; GAIGER, Luiz Inácio (2009). Economia Solidária. In. CATTANI, A.D. et al. (coord.) Dicionário Internacional da Outra Econo-
mia. Coimbra: Almedina. p.  162-168; SINGER, Paul (2002). Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Perseu Abram; FRANÇA FILHO, Genauto C.,
LAVILLE, Jean-Lois. Economia Solidária: uma abordagem internacional. Porto Alegre: UFRGS, 2004; ARROYO, João Carlos Tupinambá; SCHUCH,
Flávio Camargo (2006). Economia popular e solidária. São Paulo: Perseu Abramo; Economia Solidária vol, I. Disponível na Înternet em: http://www.uff.br/
incubadoraecosol/docs/ecosolv1.pdf. Consulta em 09.03.2017.
33	 São, principalmente, os estudos de Marcel Mauss (1872-1950), Branislaw Kasper Malinowski (1884-1942), Fanz Uri Boas (1858-1942), Karl Polanyi
(1886-1964) e Maurice Godelier (1934) que o confirmam.
34	 Cf. Mariza PEIRANO, 2003, Rituais. Ontem e hoje, Rio de Janeiro, p. 12.
De romarias e arraiais no mundo insular
16
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
festeiro gerou uma inflação nesta economia do céu. Mas foi a economia a funcionar, na preparação e consoli-
dação do caminho do Céu. Aqui caminhamos entre a retribuição, a dádiva35
e o dom36
. Estamos perante uma
realidade alheia à dinâmica do sistema tradicional de trocas capitalista. A dádiva é um gesto ritual, religioso37
e acontece em todos os tempos38
, assumindo, nas religiões, um papel fundamental39
.
Para os cristãos, a caridade assume uma dimensão fundamental da prática religiosa e está também
presente nesta gestão da economia do Céu, uma vez que os cristãos são chamados, por força da doutrina, a
praticar a caridade que passa pela ajuda ao próximo, na pobreza e doença40
. Com a caridade, partilha, dádiva
e dom, o praticante ganha o Reino dos Céus. O mesmo sucede com o Budismo Mahayana, em que um dos
ensinamentos para o caminho da perfeição41
passa obrigatoriamente pela “Dana paramita”, que é o mesmo
que doação, generosidade, oferta. É simbolizada pela tigela de recolher oferendas (patta/patra) que a ima-
gem do Buda apresenta na mão direita.
35	 A dádiva assumem uma situação particular pois As relações de dádiva, em face da obrigação de retribuir, que se torna ao mesmo tempo a coisa a ser explicada e a essência
de toda relação de dádiva, sua verdadeira natureza, aquela que se esconde por traz das afirmações de gratuidade dos atores. Donde se conclui que a essência da dádiva não é ser
uma dádiva. É o que expressa a ideia de reciprocidade como fundamento da dádiva. (CAILLÉ, Alain. “Nem holismo nem individualismo metodológicos – Marcel
Mauss e o paradigma da dádiva”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 13. n. 38. Outubro de 1998. p. 113). Ainda a dádiva seria uma experiência em que
a distância entre fins e meios é abolida, em que não há mais fins e meios, mas um ato que preenche o espaço de significação do sujeito e faz com que sejamos ultrapassados pelo
que passa por nós. “Uma experiência em que a sociedade é vivida como comunidade. (GODBOUT, Jacques T., Introdução à dádiva”. Revista Brasileira de Ciências
Sociais. v. 13. n. 38. Outubro de 1998. p. 49). E a verdadeira dádiva é um gesto socialmente espontâneo, um movimento impossível de captar uma obrigação que o doador
dá a si mesmo, mas uma obrigação interna, imanente. (Godbout, GODBOUT, Jacques T., “Introdução à dádiva”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 13. n.
38. Outubro de 1998. p. 47). Segundo Mauss: (...) direitos e deveres, que se mostram simétricos dão vazão à circulação de dádivas entre os diversos grupos. Tudo circula, as
dádivas circulam, mas na realidade, o que está em jogo são as alianças espirituais. Trocam-se matérias espirituais por meio das dádivas. Os homens estão ligados espiritualmente
a seus bens que, quando passados a outrem, estabelecem ligação espiritual com o doador. E, neste sentido, misturam se doadores e beneficiários, homens, coisas e matéria espiritual.
(Mauss, MAUSS, Marcel. “O ensaio sobre a dádiva”. Sociologia e Antropologia. v. 2. São Paulo, EPU e EDUSP, 1974. 53).
36	 Cf. “…sacrificar é oferecer destruindo o que se oferece e, é nisso que o sacrifício é uma espécie de potlatch e que os dons aos deuses, aos espíritos da natureza não apenas pertencem
ao “mesmo complexo” mas, “elevam ao grau supremo” a economia e o espírito do dom (GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2001.p. 50).Sobre o dom cf. COLLIER, J & ROSALDO, M. 1981. “Politics and gender in simple societies”. In Sexual meanings: the cultural construction
of gender and sexuality (ed.) S. Ortner & H. Whitehead, 275-329. Cambridge: University Press. GRAEBER, D. & M. LANNA. 2005 “Comunismo ou
comunalismo: apolítica e o Ensaio sobre o dom“. Revista de Antropologia, vol.48(2), p. 501-23., USP. GREGORY, C. 1982. Gifts and commodities. Academic
Press. HUGH-JONES, S. “Nota sobre Marcel Mausse o Ensaio sobre a dádiva”. Revista de Sociologia e política, 14. P. 173-94. UFPr; VIVEIROS DE
CASTRO, E. 2002. “O conceito de sociedade em antropologia” In A inconstância da alma selvagem. Cosac e Naify;VIVEIROS DE CASTRO, E. 2009.
“The gift and the given; three nano essays on kinship and magic”. In: Kinship and beyond: the genealogical model reconsidered, Sandra C. Bamford
& James Leach (eds)., Berghahn Books; Marcos Lanna, O dom e a teoria ameríndia, Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.4, n.1,
jan.-jun., 2012,p. 10-20.
37	Pois, (...) direitos e deveres, que se mostram simétricos dão vazão à circulação de dádivas entre os diversos grupos. Tudo circula, as dádivas circulam, mas na realidade, o que está
em jogo são as alianças espirituais. Trocam-se matérias espirituais por meio das dádivas. Os homens estão ligados espiritualmente a seus bens que, quando passados a outrem,
estabelecem ligação espiritual com o doador. E, neste sentido, misturam-se doadores e beneficiários, homens, coisas e matéria espiritual (Mauss, MAUSS, Marcel. “O ensaio
sobre a dádiva”. Sociologia e Antropologia. v. 2. São Paulo, EPU e EDUSP, 1974. 53). Mais, Na economia da oferenda, a troca se transfigura em oblação de si a uma
espécie de entidade transcendente. Na maior parte das sociedades, não se oferecem materiais brutos à divindade, como ouro, por exemplo, e sim trabalhado. O esforço de transformar
a coisa bruta em objeto belo, em estátua, faz parte do trabalho de eufemização da relação económica. (BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas:
Papirus, 1997. p. 158-185). É a consumação de um sacrifício, pois sacrificar é oferecer destruindo o que se oferece e, é nisso que o sacrifício é uma espécie de potlatch e
que os dons aos deuses, aos espíritos da natureza não apenas pertencem ao “mesmo complexo” mas, “elevam ao grau supremo” a economia e o espírito do dom. (GODELIER,
Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.p. 50).
38	 Assim temos que A troca de presentes de natal, o jogo, o “dar uma recepção”, o ritual da refeição nos restaurantes baratos no sul da França são alguns dos exemplos que
evidenciam a sobrevivência dos dons recíprocos nas nossas sociedades. Um momento em que “os bens não são somente comodidades econômicas, mas veículos e instrumentos de rea-
lidades de outra ordem, potência, poder, simpatia, posição, emoção. O jogo sábio das trocas (onde frequentemente não há transferência real, assim como os jogadores de xadrez não
dão um ao outro as peças que avançam alternativamente no tabuleiro, mas procuram somente provocar uma resposta) consiste em um conjunto complexo de manobras, conscientes
ou inconscientes, para adquirir garantias e prevenir-se contra riscos no duplo terreno das alianças e das rivalidades (LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do
parentesco. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976, p. 94).
39	 Cf. BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1997; CAILLÉ, Alain. “Nem holismo nem individualismo metodoló-
gicos – Marcel Mauss e o paradigma da dádiva”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 13. n. 38. Outubro de 1998; CAILLÉ, Alain. Antropologia do dom:
o terceiro paradigma. Petrópolis: Vozes, 2002; DELUMEAU, Jean & MELCHIOR-BONNET, Sabine. De Religiões e de homens. São Paulo: Loyola, 2000;
GAARDER, Jostein et alii. O Livro das Religiões. Trad. Isa M. Lando. São Paulo: Cia das Letras, 2001; GODBOUT, Jacques T.. “Introdução à dádiva”.
Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 13. n. 38. Outubro de 1998; GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001; LÉ-
VI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976; MAUSS, Marcel. “O ensaio sobre a dádiva”. Sociologia
e Antropologia. v. 2. São Paulo, EPU e EDUSP, 1974; MAUSS, Marcel. “O ensaio sobre a dádiva”. Sociologia e Antropologia. v. 2. São Paulo, EPU e EDUSP,
1974; Pinheiro, Ana, A dádiva no ritual da Procissão do Fogaréu na Cidade de Goiás. Dissertação (Mestrado em Ciências Humanas) - Pontifícia Universidade
Católica de Goiás, Goiânia, 2004, pp. 46-75.
40	 Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: ‘Venham, benditos de meu Pai! Recebam como herança o Reino que foi preparado para vocês desde a criação do mundo. Pois eu
tive fome, e deram-me de comer; tive sede, e vocês deram-me de beber; fui estrangeiro, e acolheram-me; estava nu, e vestiram-me; estive enfermo, e cuidaram de mim; estive preso, e
visitaram-me”. Mateus 25:34-36.
41	 São seis: Dana paramita - Doação, generosidade, oferta; Shila paramita - Os preceitos ou treinamentos da atenção plena; Kshanti paramita - Tolerância, a
capacidade de acolher, suportar e transformar a dor infligida a você por seus inimigos e também pelas pessoas que o amam; Virya pammita - O esforço,
energia, perseverança; Dhyana paramita - A meditação; Prajna paramita - A sabedoria, compreensão, insight.
De romarias e arraiais no mundo insular
17
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
Há, porém, um outro aspeto que nos cumpre, aqui, acrescentar. É que a dádiva pode ter um cariz social,
de afirmação e prestígio de quem dá, de perpetuação do seu nome e da publicidade da dádiva. A construção
de uma capela, duma placa tumular, a encomenda de uma pintura ou escultura, publicitam e afirmam social-
mente o nome do seu doador. Quer o nome, quer o gesto do doador perpetuam-se e serão sempre lembra-
dos. É assim que se estabelecem compromissos perpétuos, que comprometem a presente e a futura geração,
estabelecendo uma cadeia geracional de compromissos entre ascendentes e descendentes. Esta cadeia ge-
racional parece não ser tão valorizada no Ocidente, como no Oriente. É no Budismo, Taoismo e Hinduismo
que temos a maior afirmação e as evidências da eternidade desta cadeia geracional42
. Esta tripla dimensão
da espiritualidade congrega-se, ainda, por força de uma dimensão afirmada de que o processo evolutivo da
espiritualidade acontece, por interinfluência mútua, nas linhas ascendente e descendente. Desta forma, o es-
pírito é herdeiro, beneficiário, usufrutuário da herança carmica e darmica43
, atuando de forma dinâmica, em
sentido inverso, pela sua ação no presente em favor ou desfavor dos antepassados. Daí o respeito geracional
que a cultura e tradição infundem de forma ritualística e religiosa. É neste contexto que devemos enquadrar
a samsara44
, a roda da vida que determina o seu permanente fluir e que só para com a “moksha”45
.
A retribuição, a dádiva e o dom fazem parte, de forma evidente das regras que emanam da doutrina das
principais religiões e geram outra forma de interação social, mesmo na esfera económica que se alheia da
dinâmica capitalista. Daí a ideia da economia solidária46
e que levou o papa Francisco a acusar, na exortação
apostólica Evangelii Gaudium47
, e na encíclica Laudato Sí48
, a “economia de exclusão” do mundo atual, assen-
te na “nova idolatria do dinheiro”. Desta forma “[...] os poderes económicos continuam a justificar o sistema
42	 Cf. BOWKER, John. Para Entender as religiões: as grandes religiões mundiais explicadas por meio de uma combinação perfeita de texto e imagens. São Paulo: Editora
Ática, 1997; KUNG, Hans. Religiões do mundo: em busca dos pontos comuns. Campinas: Verus Editora, 2004; PIERIS, Aloysius. Viver e Arriscar: Estudos inter-
religiosos comparativos a partir de uma perspectiva asiática. São Paulo: Nhanduti Editora, 2008; USARSKI, Frank. Budismo e as Outras: encontros e desencontros entre
as grandes religiões mundiais. 1 ed. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2009.
43	 De acordo com a samsara a vida terrena é cíclica, de forma que todos morremos e renascemos. O nível de evolução de cada reencarnação resulta do
karma, isto é as condutas e ações de vidas passadas, que se alcança através de dharms, ou seja os comportamentos de cada estádio da vida. O ciclo de
reencarnação só termina com a moksha, a liberação das amarras terrenas. Para Radhakrishnan simboliza todos aqueles ideais e objetivos, influências e instituições
que dão forma ao caráter do ser humano, tanto como um indivíduo quanto enquanto um membro da sociedade; é a lei do viver corretamente, o ritual que assegura o objetivo duplo
de felicidade na terra e salvação, já que ele é ética e religião combinados. Esse autor ainda explica que a vida de um hindu é regulada, em um nível muito detalhado, pelas leis do
dharma: seus jejuns e festas, seus laços sociais e familiares, seus hábitos e gostos pessoais são, todos, vistos através dele. (Garcia, R. R. 2014. Ensaio para uma Fenomeno-
logia do Pensamento Védico. Revista de Estudos da Religião (REVER), 14(1), 52-75.). Saliente-se que o karma, originalmente significava sacrifício; depois, passou
a qualificar o comportamento humano na medida em que é ou não a ordem justa das coisas ou dharma (DELUMEAU, Jean & MELCHIOR-BONNET, Sabine. De
Religiões e de homens. São Paulo: Loyola, 2000. p. 308), Cf. RADHAKRISHNAN, S. The Hindu Dharma. International journal of ethics, v. 33, nº.1, p. 1-22,
1922. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/2377174. Acesso a 6 fev. 2017; DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica
da ideologia moderna. Rio de Janeiro. Rocco, 1985; DUMONT, Louis.Homo hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1992; WEBER, Max. The religion of India. The sociology of Hinduism and Buddhism. Glencoe, Illinois: Free Press, 1958;
WERNER, Karel. A popular dictionary of Hinduism translation. Richmond, Surrey: Curzon Press, 1994; ZIMMER, Heinrich. Filosofías de la India. Buenos
Aires, 1979. EUDEBA (Editorial Universitaria de Buenos Aires).
44	 Andrade, J., & Apolloni, R. W. (2010). Dos ciclos da natureza à roda de Samsara: a geografia na raiz do budismo. INTERAÇÕES, 5 (8), 63-78; SAM-
TEN, Padma. A Roda da vida: como caminho para a lucidez. São Paulo: Editora Peirópolis, 2010. Cf. a nota anterior.
45	 Ou Mukti é libertação do ciclo do renascimento e morte com a iluminação espiritual.
46	 Sobre a ideia de economia solidária cf. Jacob Carlos Lima e André Ricardo de Souza, TRABALHO, SOLIDARIEDADE SOCIAL E ECONOMIA
SOLIDÁRIA, in Lua Nova, São Paulo, 93 (2014): 139-168; CATTANI, A. D.; LAVILLE J.L; GAIGER, L. I.; HESPANHA, P. (orgs.). 2009. Dicionário
internacional da outra economia. Coimbra: Almedina; GORZ, A. 2005. O imaterial. Conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume; LAVILLE, J. L. (org.)
1994. L’économie solidaire: une perspective internationale. Paris: Desclée de Brouwer; LEITE, M. P. 2009. “A economia solidária e o trabalho associativo: teorias
e realidades”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 24, n, 69, pp. 31-51; LIMA, J. C. 2014. “Economia solidária: de movimento social a política pública”. In:
LEITE, M. L.; ARAÚJO, A. M. C.; LIMA, J. C. O trabalho na economia solidária: entre precariedade e emancipação. São Paulo: Annablume; PAUGAM, S. 2011a
[2007]. “Introduction: les fondements de la solidarité”. In: PAUGAM, S. (org.). Repenser la solidarité. Paris: Presses Universitaires de France; PELLETIER,
D. 1996. Économie et humanisme: de l’utopie communautaire au combat pour le tiers-monde (1941-1966). Paris: Cerf; SANTOS, B. S. (org.). 2002. Produzir para viver:
os caminhos da produção não capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; SINGER, P. 2002. Introdução à economia solidária. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo; SOUZA, A. R. 2013. Os laços entre igreja, governo e economia solidária. São Carlos: EdUFSCar/Fapesp.
47	 Publicado em: https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20131124_evangelii-
-gaudium.html.
48	 A encíclica Laudato Si, a chamada encíclica verde, foi publicada em junho de 2015 (FRANCISCO. Encíclica “Laudato si’” sobre o cuidado da casa
comum [LS]. São Paulo: Paulinas, 2015). Cf. Reis, É. V. B., & Bizawu, K. (2015). A Encíclica Laudato Si à Luz do Direito Internacional do Meio Am-
biente. Veredas do Direito: Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável, 12(23), 37; Alves, J. E. D. (2015). A encíclica Laudato Si’: ecologia integral, gênero
e ecologia profunda/The Encyclical Laudato Si’: integral ecology, gender and deep ecology. Horizonte, 13 (39), 1315; Maçaneiro, M. (2016). Vozes do sul
na encíclica Laudato si’: Fontes e temas. Revista Pistis Praxis, 8 (3); FERRARO, B. Laudato si’ e a opção pelos pobres. In: MURAD, A.; TAVARES, S.S.
(orgs.). Cuidar da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2016, p. 65-72; MAÇANEIRO, M. A ecologia e o ensino social da Igreja: inscrição e alcances de um
paradigma. In: ZACHARIAS, R.; MANZINI, R. (orgs.). Magistério e doutrina social da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2016, p. 230-283.
De romarias e arraiais no mundo insular
18
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
mundial atual, onde predomina uma especulação e uma busca de receitas financeiras que tendem a ignorar
todo o contexto e os efeitos sobre a dignidade humana e sobre o meio ambiente. Assim se manifesta como
estão intimamente ligadas a degradação ambiental e a degradação humana e ética”49
, porque o ser humano
é um “bem de consumo”.
Fonte de N. Sª do Monte, desenho aguarelado de Andrew Picken, 1840
2. O arquipélago. Uma religiosidade de matriz europeia
Tudo começa com a chegada, às ilhas, dos primeiros europeus. Navegadores, agentes da coroa, aventu-
reiros e colonos são herdeiros de uma tradição e cultura religiosa europeia, que será um elo importante no
gerar da nova sociedade insular.
Há uma matriz europeia, predominantemente do norte de Portugal que molda todo este processo de
afirmação da religiosidade e tradições populares50
. A dois de julho de 1420 desembarcou João Gonçalves
Zarco no vale de Machico e, de imediato, procedeu à posse da terra em nome do rei e à sua sagração com a
49	 FRANCISCO. Encíclica “Laudato si’” sobre o cuidado da casa comum [LS]. São Paulo: Paulinas, 2015, p. 56.
50	 Já em 1922 Padre Eduardo Pereira afirmava que As festas populares da Madeira refletem a alegria e a vivacidade das festas das nossas provincias do norte; teem a tristeza
e o saudosismo das canções portuguesas do sul; mas no seu aspecto exterior resentem-se das influencias extranhas dos povos que desde o descobrimento viveram em eontacto comnosco,
e que da sua raça com a nossa raça, sangue, indole e costumes misturaram. (p. 31)
De romarias e arraiais no mundo insular
19
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
primeira missa, rezada pelos franciscanos que acompanharam a viagem. O texto de Francisco Alcoforado é
muito claro: (...) detremynou sajr em terra e levar consygo dous padres que trazia, sajmdo em terra deu graça
a Deos mandou bemzer aguoa e aspargella pello ar (...) mandou dizer mysa (...) Foy a prymeyra mysa que se
dise (...) 51
. Em maio do ano imediato, João Gonçalves Zarco regressou à ilha com três navios e a disposição de
proceder ao seu povoamento. De novo o desembarque em Machico e a primeira cousa que fez foy traçar uma
igreja de Invocação de Xpo...52
. Depois, foi o novo reconhecimento da costa, com o assentamento de colonos.
Todos os actos eram precedidos pela construção de uma igreja ou ermida. No Funchal foram as capelas de
Santa Catarina e a de Nossa Senhora do Calhau, sendo a última considerada pelo autor a prymeyra casa de
jgreja que se fez na ilha.
Mais além, em Câmara de Lobos a do Espírito Santo, na Quinta Grande a de Vera Cruz, nos Canhas a de
Santiago, na Estrela (Calheta) a de Nossa Senhora da Estrela. E conclui o cronista: ...começou a por em obra
a edificação das jgrejas e llavrança da terra. O templo religioso é o ponto de divergência do processo de po-
voamento e foi em torno dele que surgiram as primeiras habitações de madeira para dar abrigo aos colonos.
Estamos perante mais uma situação reveladora da importância da igreja em todo o processo.
De acordo com a doação régia de 26 de setembro 143353
o infante, como mestre da Ordem de Cristo,
recebeu também a capacidade de intervenção no novo espaço. O Vigário de Tomar, local sede da ordem, era
quem, em nome do infante, estabelecia a estrutura religiosa, provendo os ministros. Apenas a arrecadação
dos dízimos eclesiásticos permanecia a cargo do almoxarife do infante54
. Para cada capitania foi nomeado um
vigário, que dependia diretamente do de Tomar, tendo como função administrar a espiritualidade da jurisdição.
No período de 1433 a 1494, as administrações civis e religio­sa estavam a cargo do mestre da Ordem
de Cristo que, no caso da alçada religiosa, determinara a sua superintendên­cia pelo vigário da vila de To-
mar. De acordo com a bula de 1456, as novas áreas atlânt­icas eram consideradas “nullius diocesis”, estando
dependen­te da­quele vigário. Era ele quem determinava a construção das primei­ras igrejas e nomeava os
prelados para o serviço religioso.
O rei concedeu o direito de padroado à Ordem de Cristo. Primeiro em 1433, o arquipélago da Madeira
alargado, depois, em 1454, a todos os territórios descobertos, situação confirmada por bula papal de 17 de
Março de 1456. O governo espiritual ficou entregue ao vigário de Tomar, sede da Ordem de Cristo e na condi-
ção de nullius dioce­sis, enquanto ao administrador da ordem competia a construção dos templos, a nomear
os ministros e pagar o vencimento. Isto não agradou à diocese de Tânger que queria alargar os domínios
às ilhas55
. À parte isso, em todas as ilhas, estabeleceu-se ouvido­rias com o obje­tivo de organizar e exercer
o governo eclesiástico. A situação mudou em 1514, com a criação do bispado do Funchal e, depois a 30 de
dezem­bro de 1551, com o regresso à coroa do padroado.
Extinto o senhorio, a Ordem de Cristo através do vigário de Tomar, continuou a superintender o governo
eclesiástico das ilhas até que a 12 de junho de 1514, pela bula “Pro excellenti”, foi criado o bispado do Funchal
com jurisdição sobre toda a área ocu­pada pelos portugueses no Atlântico e Indico. Até então, todo o serviço
episcopal era feito por bispos titulares envia­dos pelo referido vigário, como sucedeu em 1507 e 1508. Mas o
pro­gresso económico e social levou à criação, em 1534, de novas dioce­­­ses em Goa, Angra, Santia­go e S. Tomé,
cujas áreas foram desane­xadas à do Funchal
A 31 de janeiro de 1533, a diocese do Funchal foi elevada à categoria de metropolitana e primaz, englo­
bando “a Ma­deira e Porto Santo, as ilhas Desertas e Selva­gens, aquela parte continental de África, que entes-
ta com a diocese de Safi[m] e bem assim as terras do Brasil, tanto as já descober­tas, como as que se vierem
a descobrir”. Mas esta foi uma situação passageira. Além disso, a bula papal não foi expedida do Vaticano,
51	 A Relação de Francisco Alcoforado, publ. por José Manuel de CASTRO, Descobrimento de Ilha da Madeira ano 1420..., Lisboa, SD, p. 90.
52	 Ibidem, p. 93.
53	 J. M. Silva MARQUES, ob. cit., I, p. 273, 400.
54	 Fernando Jasmins PEREIRA, “Bens Eclesiásticos - Diocese do Funchal” in Estudos sobre História da Madeira, Funchal, 1991, pp. 325-327.
55	 Cf. António BRÁSIO, “O Padroado da Ordem de Cristo na Madeira”, in Arquivo Histórico da Madeira, XII, 1960-61, pp. 193-228.
De romarias e arraiais no mundo insular
20
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
por a coroa a não ter pago, o que coloca a dúvida da existência real do arcebispado do Funchal. Em 1551, o
papa Júlio III revogou a situação, passando o Funchal para simples bispado sufra­gâ­neo de Lisboa, que passou
a assumir a função de primaz das terras atlânticas, enquanto a de Goa preencherá idênticas funções para as
terras orien­tais. A justificação apresentada pelo papa é expressiva da mudança operada na geografia econó-
mica do espaço atlântico:
Nós, porém, considerando que a navegação da província arquiepiscopal para a cidade do Funchal é
muito difícil e incerta e que se torna não menos perigosa que dispendiosa aos bispos provinciais ao clero e ao
povo, e que muitas vezes acontece que para tal navegação faltam os navios necessários e bem apetrechados,
e mesmo que os haja, nem todos ousam lançar-se ao mar numa viagem tão longínqua e perigosa, pelo que
os mesmos provinciais, que apelam para o arcebispo do Funchal, não podem apresentar-se ao seu tribunal
e à dita cidade, para fazerem valer as suas apelações e conseguirem a justiça desejada e além disso, sofrem
outros incómodos e danos...56
.
Arraial, figuras de presépio,séc. XX. Casa-Museu Frederico de Freitas, Funchal
De acordo com Henrique Henriques de Noronha, as imagens “afervoram a devoção” dos moradores,
sendo por isso um das evidências particulares da religiosidade madeirense. Devemos assinalar em primeiro
lugar as dos santos milagreiros e populares que acolhem à sua volta inúmeros devotos e são sempre motivo
de súplica em momentos de aflição. É ainda nas romagens que o povo exterioriza a sua religiosidade. Assim, o
Visconde do Porto da Cruz (1945: 18) afirma que As festas principais chamam peregrinos e romeiros, sempre
atrás de uma Virgem, de um santo, de um milagre ou do pagamento de promessas: As principais festas da
Madeira, que chamam os romeiros dos mais distantes lugarejos e que servem, como balizas para orientar as
minúcias da vida regional, são, pela ordem da sua importância, a «Senhora d’Agosto», no Monte, o «Senhor
Jesus» na Ponta Delgada, o «Senhor dos Milagres» em Machico. Em torno destas romagens, mistura-se sem-
pre o mito, a lenda e a religiosidade instituída.
As romagens completam a exteriorização da religiosidade popular, ganhando protagonismo diverso ao
longo dos séculos. A mais antiga referência é a de Nossa Senhora do Faial ou da Natividade, a 8 de setembro,
que se perdeu no tempo, já referida por Gaspar Frutuoso57
. Ainda, de vetusta tradição são as romagens do
56	 Pe. Manuel Juvenal Pita FERREIRA, A Sé do Funchal, Funchal, 1963, 84.rep
57	 Aí refere que Dizem que ali apareceu Nossa Senhora onde tem a igreja. Dia de Nossa Senhora, que era a 8 de Setembro, se ajuntavam, no Faial, de romagem de
toda a Ilha passante de outo mil almas. Vinham de dez e doze léguas por terra mui fragosa; e entre ca musica de muitos instrumentos: que traziam, «violas, guitarras,
De romarias e arraiais no mundo insular
21
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
Bom Jesus da Ponta Delgada e de Nossa Senhora do Monte, a que se deverá associar o culto a Nossa Senhora
do Rosário, do Loreto e o Senhor dos Milagres.
Banda de música, figuras de presépio, barro policromado e madeira, séc. XX
Casa-museu Frederico de Freitas, Funchal
No século XIX, Isabella de França traça-nos de forma peculiar a romaria de Santo António da Serra, atra-
vés de vivência dos romeiros, cujas manifestações, incompreendidas, pelos estrangeiros são vistas como uma
“palhaçada”, tendo em conta esta mescla entre o sacro e o profano. Aqui é testemunhado o ambiente de
folguedo que anima a romaria. Aqui à devoção junta-se a alegria dos tocares, danças e cantares, e a feira de
venda dos produtos. Ambos os relatos são a melhor imagem que retemos da romaria e arraial madeirenses.
O avanço da rede de estradas a partir da década de quarenta trouxe os excursionistas e acabou por destronar
a animação que se fazia a bordo dos vapores costeiros. A tradição ainda testemunha a vivência dos romeiros.
O folclore preservou muitos dos despiques e cantorias dos Romeiros.
frautas e rabis:.. soavam as célticas “gaitas de fole” do Minho e da Galiza. (Saudades da Terra, ed. de 1873. pag. 99)
De romarias e arraiais no mundo insular
22
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
The Church of Ponta Delgada. Views in the Madeiras, by the Revd. James Bulwer, London 1827
O sacro e o profano aliavam-se na definição de um calendário ritual da ilha. O Senhor Bom Jesus e Nossa
Senhora do Rosário firmaram-se, desde muito cedo, na devoção das gentes do norte e, mais tarde, de toda a
ilha. O Senhor Bom Jesus é a devoção mais antiga e terá surgido em 1466 com Manuel Afonso Sanha, um co-
lono oriundo de Braga que fez transplantar para a sua sesmaria, na Ponta Delgada, o patrono da sua devoção,
fazendo erguer em sua honra uma ermida. Mas este culto privado rapidamente passou a todas as gentes do
local, da encosta norte, e, depois, de toda a ilha. Esta devoção foi promovida, desde finais do século XVI pela
confraria do Senhor Bom Jesus. A fama do Senhor Bom Jesus como milagreiro alastrou a toda a ilha e fez com
que o norte, mais propriamente Ponta Delgada, se transformasse num dos principais centros de peregrina-
ção. O testemunho das assíduas romagens está no facto de, em 1646, Afonso Gomes ter deixado à fábrica da
igreja de Ponta Delgada uma casa para os romeiros58
.
Nestas situações, como na devoção e ritual aos santos populares, há uma variada forma de expressão
da religiosidade, partilhada entre a regra instituída pela crença oficial da igreja e do povo, mas ambas se
misturam no momento e no espaço do arraial. Aqui como noutras circunstâncias a fé do povo balbucia entre
a normativa oficial da doutrina católica e as crenças ancestrais que apelam a outras forças e poderes ocultos
que, não obstante serem renegados e perseguidos pela igreja, continuam a manter-se no quotidiano deste
povo. Todos se dizem cristãos e católicos praticantes, mas fica ainda um lugar para a crença em poderes ocul-
tos e a forças da natureza.
Há recordações e lembranças que correm as principais veredas e caminhos do interior da ilha e dos
lugares que nos trazem a imagem desses tempos perdidos na herança do tempo. Sítios como o Curral dos
Romeiros e as casas adossadas ao templo religioso que encontramos em Ponta Delgada, Santo António da
Serra, Santa Cruz, Santo Amaro e Monte, são memórias disso59
.
58	 No último quartel do século XVI, a festa do Senhor Bom Jesus fazia atrair muitos romeiros à encosta norte. A devoção ao Senhor Bom Jesus e a
afluência dos romeiros redobrou nos séculos seguintes. Em 1657 e 1706 surgem queixas a propósito de o gado, no caso de caprino, pastar nas serras,
sobranceiras às veredas, o que fazia perigar os transeuntes que se dirigiam à missa ou em romagem. E, no último ano, refere-se a morte de muitas pessoas
das contínuas romarias. E este culto foi-se afirmando nos séculos seguintes, persistindo com o mesmo vigor até a atualidade. Cf. VERÍSSIMO, 1998:91-93.
59	 Eduardo Pereira (1922: 32-33) diz-nos que Às romarias concorrem peregrinos de quasi todas as localidades aos grupos de dezenas, com cestas de vime ou farneis cheios
de merendas para a viagem e providos de bebidas em bexigas de porco, chifres ou cabaças, dançando homens e mulheres em todo o percurso ao som de gaitas, sanfonas, machetes,
braguinhas. castanholas, pandeiros ou ferrinhos. (…) Caraterizam-se os arraiais das principais romagens da Madeira pelo ajuntamento duma massa compacta e foliona de gente
de todas as partes da ilha que afluem áqueles logares em manifestações de fé e piedade a cumprir votos, fazer promessas, tratar de negócios e procurar diversões. E’ de costume e
necessidade abaterem-se dezenas de rezes para a indispensável espetada ao ar livre no brazeiro improvisam-se barracas de louro para petiscos, cosinhados e bebidas, o vinho espuma
De romarias e arraiais no mundo insular
23
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
As romagens completam a exteriorização da religiosidade popular, ganhando protagonismo diverso ao
longo dos séculos. O sacro e o profano aliavam-se na definição de um calendário ritual em toda a ilha.
É neste quadro, profundamente marcado por uma matriz europeia, que se moldou, em quase seiscentos
anos, a religiosidade madeirense de hoje. Há ligações ancestrais que se cruzam com outras que foram sendo
definidas no decurso do tempo, que criaram as condições para a diversidade de formas de expressão da “eco-
nomia do céu”, onde se entrecruzam o dom, a dádiva e o perdão e remissão do mal ou do pecado.
Vilão tocando viola e viloa tocando machete, bilhete-postal, ed. Bazar do Povo, Funchal
AS ROMARIAS E OS ARRAIAIS
As romarias e os arraiais que as acompanham, assim como as peregrinações são responsáveis por uma
mobilidade em múltiplas direções. De fora para dentro, temos os emigrantes que retornam à terra natal para
vivenciar estas festividades e partilhá-las com familiares e amigos. De dentro para o exterior, acontecem as
chamadas peregrinações aos lugares santos ou a lugares emblemáticos desta caminhada rumo ao sagrado,
como é o caso de Fátima. Mas é sem dúvida internamente que mais se potencializou a mobilidade, por força
dos arraiais em lugares de culto, que tiveram e ainda mantêm um relevo na sociedade das ilhas.
cantante de barris encanteirados sobre muros; ha taboleiros de rebuçados, cavacas doces, bonecas de milho enfeitadas a penas coloridas de aves; os bazares tilintam campainhas e
ronfenham gramofones, insidiam-nos eirios de promessas á volta do templo;despicam-se ao desafio trovadores borrachos; na egreja destilha a bicha do osculo da imagem, da compra
dos registos bento e do toque no santo com raminhos de mangerico. No adro há musica, arcos e bandeiras; o alecrim e a murta reacendem de pisados nos caminhos, estralejam os
dedos das moças como castanholas, aos ranchos, batendo rodas do principio ao fim do arraial.
De romarias e arraiais no mundo insular
24
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
Diário de Notícias, 29.08.1895, p. 4
Com o tempo, foram progredindo os meios de acesso a estes lugares sagrados: a pé60
, em romagem,
sulcando os caminhos que enlaçavam os santuários da ilha, de barco, ao longo da costa, à procura dos portos
costeiras que abriam as portas para os arraiais, ou, de automóvel com maior conforto, desde a chegada do
automóvel, em princípios do século XX, e a abertura das primeiras estradas, ao atual sistema viário, servido
por vias rápidas. Há uma concentração destas festividades na época estival, o que permitia a mais fácil mobi-
lidade por terra e mar, como por coincidir com alguns períodos após as colheitas.
A religiosidade popular, assente nestes sustentáculos das romarias e arraiais, mobilizou as gentes, tor-
nando-se num dos mais poderosos agentes da mobilidade interna, com repercussões evidentes na sociabili-
dade e economia.
O dia da festa e arraial é um momento único para as freguesias-sede do orago. Era evidente um desu-
sado movimento nas proximidades da igreja. E a isso associava-se a animação e reboliço que se espalhava a
todos os sítios por onde passavam os romeiros. Eram três ou quatro dias de arraial, anunciado pelos romei-
ros e que contagiava todos sem exceção. Disso nos dá conta, de forma exemplar, Horário Bento de Gouveia,
quanto ao arraial e romagens do Bom Jesus da Ponta Delgada:
60	 Com sucedia com a Festa do Senhor Bom Jesus da Ponta Delgada no primeiro domingo de setembro em que as romagens aconteciam a pé pelo interior
da ilha (Cf. Diário de Notícias, 25.08.1895, p. 1; id., 05.09.1933, p. 4), a que, depois, se associaram os vapores costeiros (Cf. Diário de Notícias, 29.08.1895,
p. 4; id., 31.06.1895, p. 4; id., 29.08.1933, p. 1/2) e os automóveis (Cf. Diário de Notícias, 2.9.1933, p. 2; id., 03.09.1933, p. 6; id.05.09.1933, p. 1).
De romarias e arraiais no mundo insular
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CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
DN.0909.1897, p. 3
Na quinta-feira; véspera da grande romagem ao Senhor Jesus, a freguesia metamorfoseia-se,
ganha expressão própria; uma vida transitória mas trepidante corre em suas artérias. Vive-se a
agitação de cidade mercantil.
Os cerieiros armaram as tendas em torno dos plátanos do Largo do Açougue. Há tabuleiros com
círios da altura de um homem e com outros metidos dentro de canas rachadas, e ainda se vêem
molhos de círios com fitas encarnadas a embelezá-los, um por um, circuntornando-os em espiral.
Vitrinas abarrotadas de quinquilharias assentam em cima de caixotes encostados ao resguardo
que limita o Largo. São os primeiros vendedores nómadas que vêm trazer a sua cor pitoresca ao
arraial.
Na orla das ruas principais, os barraqueiros desmoronam muros, espetam estacas no chão, põem
prateleiras, colocam toldos, amarram com espadanas e vimes ramos de loiro e de barbuzano que
formam as paredes das típicas casas de comidas e bebidas. Chaprões de til preto são postos em
esquadria em cima de barricas e outros são firmados sobre cunhais de pedra, nos talhos que
surgem a esmo, ao longo das ruas, e onde as reses vão ser mortas.
Descem os carreiros das ravinas, que vêm morrer à vizinhança dos casais, homens ajoujados com
cargas de espetos de loureiro para a carne assada, com lenha de urze para os braseiros, com
De romarias e arraiais no mundo insular
26
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
galhos de barbuzano e de loiro prenhes de folhas e com alegra-campo para o alindamento do
interior da igreja. O negócio é sempre de tentar na época da festa. Por isso, não há loja que não
fique apalavrada de ano para ano, não há terreno à margem do caminho onde cresça erva nos
três dias que precedem o primeiro domingo de Setembro.
O silêncio da aldeia perdeu a poesia, o mistério que se desentranha da natureza fecunda: o sus-
surro da água que escorre das aguagens, o rumor da viração que afaga as franças das árvores
fazendo estremecer as folhas que se vergam, o bramir do mar e o coro das aves cantadeiras.
Agora havia o que quer que fosse de desabitual, de novo, de estranho. Um alvoroço percorria a
aldeia de cabo a cabo como o sangue circula no corpo. Desde que o Sol se erguera lá para trás
das rochas altas, rompendo a corda de nuvens negras acasteladas no horizonte marinho, come-
çara a azáfama que sempre se repete ao acercar-se a tradicional romagem: negociantes das
povoações mais chegadas vinham tomar conta da sua quitanda ou da nesga de terreno onde
esperavam atrair os romeiros, com servir bem a carne e ovinho. E traziam serrotes, martelos e
podoas, e pregos nas algibeiras dos casacos, em companhia de rapazelhos que vêm munidos de
vimes verdes para amarrar os galhos de loiro que hão-de formar as barracas. Ouve-se o toque de
um «machete», a primeira mensagem do arraial em sua toada de reminiscência árabe. E a cami-
nho da igreja vão camponeses e caseiros com molhos de alegra-campo cantando um conjunto de
sílabas sonoras, que já tinham ouvido aos pais, quando desciam os atalhos da serra, carregados
de lenha para vender aos senhores da freguesia (...)
Na sexta feira, convergem à povoação através dos primitivos caminhos abertos no basalto, su-
bindo planaltos, descendo fajãs, galgando colinas, vadiando ribeiras, os romeiros das freguesias
mais longínquas da ilha. De saias às riscas de cores vistosas, em que sobressaem o encarnado e
o azul, as raparigas bailaricam ao som da viola de arame, do harmónio e dos ferrinhos, com seus
requebros dengosos de cintura, braços no ar batendo palmas, enquanto os tocadores com um
grande chifre cheio de vinho ou de aguardente de cana, a tiracolo, cantam quadras de improviso.
Aos grupos, famílias inteiras vêm cumprir promessas ao Senhor Jesus. Há sempre, um instrumen-
to de música, uma rabeca, um rajão, uma viola, um braguinha, um tambor ou um pandeiro que
acompanha os peregrinos na jornada. Voz clara de rapariga canta: - De Ponta Delgada ao Arco/
Do Arco ao Senhor Jesus/ Tudo são cravos e rosas. Qu ‘eu co ‘a minha mão dispus. (...)
Cartão de Boas Festas aguarelado, 1932. Max Römer
De romarias e arraiais no mundo insular
27
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
Sábado. O Caminho Novo, de lés a lés, é uma vaga humana ressoante de interjeições, frases
enfáticas, trovas e notas desafinadas de instrumentos. Dá-se o fluxo e o refluxo, de gente que
sobe e de gente que desce. São doze horas. O vapor «Gavião», embandeirado em arco, apitou
e ancorou no porto, onde vai golfar centenas de romeiros. As lanchas mal topam no calhau e o
primeiro «parai» se ajeita ao escorregar da quilha, vá de a campanha puxar pela corda que está
presa à popa, antes que uma onda mais forte revire o barco e encharque a malta dos passageiros
que, precipitadamente, saltam em terra aos tropos-galhopos, mergulhando os pés nas poças,
molhando os sapatos e atirando cestas para longe do quebra-mar.
Na igreja a custo se pode respirar. As plantas e as flores mais formosas, jarros, não-me-deixes,
rosas, gereberas, brincos-de-princesa e açucenas enfeitam os altares e as peanhas dos santos,
profusamente. Sufoca-se. Há um mar onduloso de cabeças. Círios sem conto e de alturas várias
ardem nas mãos dos velhos e moças impúberes. Cumprem-se promessas de joelhos.
Distingue-se um murmúrio de rezas, abafado quase pelo clamor do oceano, alma penada em
delírio eterno. Fora do adro, romeiros de faces afogueadas e fatos com engelhas, amarrotados
do calvário da viagem, poisam no chão de cimento as cestas a estoirarem de lauto farnel a que
não faltam as rosquilhas doces cheirando a amassadura fresca.
Aos atropelos, movem-se doceiros ambulantes que vendem bonecas de massa cor de gema de
ovo, bonecas que têm coladas às pernas, aos braços, e à cabeça, lindas fitas coloridas de papel
de seda, nas quais predomina o vermelho. (...)
Anoitecera. Magotes de foliões, uma faradonlagem endoidecida, pisando calos com botifarras
de cordovão e solas de peso, corre Seca e Meca, explodindo vivório, urraria bárbara, ao passo
que outros cantam desafinadamente: - Primavera das flores/ Cuma esta não há mais/ Primavera
vai e volta sempre/ A mocidade nã volta mais. Na Terra Chã, (...) tocava-se, bailava-se, e gargan-
teavam-se trovas portadoras de ironia: Cantas bem nã cantas mal, Gargantinha de marfim. Eu
dava um vintém às almas se o meu cantar fosse assim. (...)
Na mercearia do Pestana, jaziam, a dormir, estendidos a esmo, no chão de calçada áspera, os
que tinham passado em claro a noite de sexta-feira. Em promiscuidade repelente, para ali esta-
vam raparigas de tez queimada ao sol, em contacto com vilões adolescentes; as narinas delas
aspiravam o bafio que se exalava das pernas e dos pés delas, com os dedos sujos e gretados da
jornada fatigante através dos caminhos de cabras que ligam as povoações da ilha. (...)
Numa latada de vinha e pimpinelas, fazendo de dossel, tornava-se mais espesso o escuro da
noite. (...) Uns jogadores de roleta, achando o lugar propício para o negócio proibido pela auto-
ridade do Concelho, ali abancaram. Um caixote de petróleo era a mesa; os dados começaram a
girar à luz bruxuleante de uma vela que, ao derreter-se, alastrava o sebo no tampo do móvel.61
Este arraial cativou diversas gerações de madeirenses e ficou registado na memória das gentes, tendo
chegado até nós através de memórias escritas como a de J. Lourenço de Freitas (2000: 87-88), que nos apre-
senta outra versão do arraial a partir da origem dos romeiros, no caso especifico de Gaula:
A romaria ao «Senhor Jesus da Ponta Delgada» era a maior e a mais participada pelos gauleses
desde tempos muito antigos. Partia das Levadas, da Assomada. Os romeiros organizavam-se
como se fossem para uma grande caminhada. Havia os guias, aqueles que já tinham participado
nas romarias anteriores, depois os chefes de cada família que, por vezes, agrupava duas dezenas
de familiares dum mesmo sítio. A romaria quando entrava nos caminhos da serra tinha dezenas
de pessoas, entre crianças e velhos.
61	 NEPOMUCENO, 2014: 378-381.
De romarias e arraiais no mundo insular
28
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
Para dormir durante a viagem levavam à cabeça fardos de cobertores, casacos e cobertas. Para
a sua passadia levavam sacos de farinha, balsas de carne de porco salgada e sacas com carne
de cabra seca, com inhames, feijão e outros legumes. Tanto os rapazes com as raparigas, as mu-
lheres e os homens saudáveis carregavam gígas e cestos de produtos para venderem na festa,
geralmente frutos secos ou passados, figos, pêras e pimentas em ceiras, ou em rosários, e lapas
secas salgadas. Uns levavam ainda para vender, objectos feitos de madeira e outros ainda tape-
tes e cobertas, tecidos com restos de lã com estopa.
Conheciam as pousadas certas ao longo do caminho onde havia água e abrigos. Ai ceavam e
repousavam. Havia determinadas pousadas que eram aproveitadas para amassar e cozer bolo
no caco e onde, além de uma ceia feita ao lume, podiam cuidar dos filhos, dos velhos e dos moles-
tados pela caminhada. Depois da ceia, antes de se acomodarem, havia «o brinco», «os baílhos»,
os despiques.
Chegavam ao «Senhor Bom Jesus», ao fim de três dias, pela tardinha da antevéspera da festa.
Cada família escolhia o melhor lugar para se instalar, geralmente perto do calhau e junto de um
latada de vinha, bom lugar para pernoitar e onde ir «arriba dos pés ». Uma vez instalados, já
começavam a vender na véspera da festa. No domingo, dia do «Senhor Jesus» toda a gente as-
sistia à Missa da Festa. Quem tinha de cumprir promessas comprava os «círos» e ia na procissão.
Uma vez vendidos os produtos que tinham levado para vender, tendo assistido à festa e parti-
cipado na procissão, passavam o resto de domingo no arraial, beberricando u mas «caquetas»
e uns «meígrogues» e, por fim, se «vertendo» entrando nos brincos e nos bailes. Regressavam
à freguesia na segunda-feira seguinte, pelo que chegavam às Levadas geralmente oito ou nove
dias depois, tantos eram os dias gastos na romaria.
DN.05.09.1933, p. 1 DN.02.09.1933, p. 2 DN.29.08.1933, p. 2
De romarias e arraiais no mundo insular
29
CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA
Camponeses do sul da ilha nas vizinhanças do Funchal vindos da romaria. 1821
NOS CAMINHOS DOS ROMEIROS
Passam em ranchos, romeiros de toda a freguesia, com os seus trajos apurados e o farnel que
puderam arranjar. Entre eles, os grupos que dançam ao som do rajão, ferrinhos e pandeire-
ta - uma dança com ressaibos gentílicos que cada um vai executando, isoladamente, à frente
dos tocadores, voltando-se para eles e a entoar uma cantilena, recuando, avançando, um pé no
chão, outro no ar, o busto descaído para um lado, uma das mãos na cintura, outra levantada, a
dar estalinhos, e a cabeça inclinada, em trejeitos que sublinham o sentido das cantigas. E assim
percorrem léguas, apenas com pequenos descansos para comer e beber; constituindo esses mo-
vimentos e as peripécias da viagem a única e verdadeira animação da romaria. (LAMAS, 1956,
cit. por NEPOMUCENO, 2014, 299-300)
A ocupação e valorização da ilha molda-se também de acordo com os circuitos que internamente mar-
cam a mobilidade interna terrestre. A ilha da Madeira, pela sua configuração geográfica sempre apresentou
dificuldades a esta circulação, tornando-a difícil e perigosa. As encostas, por vezes abruptas, são marcadas
pelos sulcos das ribeiras que obrigam a subidas e descidas, por caminhos íngremes para as ultrapassar.
A História regista um movimento de peregrinação interna que começa a ganhar importância e que se
alastra a toda a ilha, com o desenvolvimento das vias de comunicação terrestre e marítima. Há indicações de
algumas romagens internas a partir do século XVII, como o Monte, Ponta Delgada. Mas foi a segunda metade
do século XIX, com o desenvolvimento dos meios de comunicação que permitiu essa abertura interna e à
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C 9ilha 08-romarias

  • 1. 08Projeto "MEMÓRIA-Nona Ilha" VIEIRA, ALBERTO DE ROMARIAS E ARRAIAIS NO MUNDO INSULAR Cadernos de divulgação do CEHA. Projeto “Memória-Nona Ilha”/SRETC/DRC, N.º 08. VIEIRA, Alberto – De romarias e arraiais no mundo insular. Funchal. Outubro de 2018.
  • 2. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA DE ROMARIAS E ARRAIAIS NO MUNDO INSULAR ALBERTO VIEIRA* CEHA-SRETC-MADEIRA De romarias e arraiais no mundo insular 2 ALBERTO VIEIRA. N. 1956. S. Vicente Madeira. Títulos Académicos e Situação Profissional: 2016- Coordenador do CEHA e de projetos de investigação; 2013-2015:Diretor de Serviços do CEHA; 2008- Presidente do CEHA, 1999 - Investigador Coordenador do CEHA; 1991-Doutor em História (área de História dos Descobrimentos e Expansão Portuguesa), na UniversidadedosAçores;1980.LicenciaturaemHistóriapelaUniversidade de Lisboa. ATIVIDADE CIENTÍFICA. Pertence a várias academias da especialidade e intervém com consultor científico em publicações periódicas especializadas. É Investigador-convidado do CLEPUL-Lisboa. Membro da Catedra Infante Dom Henrique. Desenvolveu trabalhos de investigação nos domínios da História do Meio Ambiente e Ecológica, História da Ciência e da Técnica, O Mundo das Ilhas e as Ilhas do Mundo, História da Autonomia, História da Ciência e da Tecnologia, História da Escravatura, História da Vinha e do Vinho, História das Instituições Financeiras, História do Açúcar. Atualmente desenvolveu estudos e coordena projetos sobre Historia Oral /Autobiográfica, com os projetos: MEMÓRIA das Gentes que fazem a História; NONA ILHA- as Mobilidades Madeirenses; AUTONOMIA. Memórias e testemunhos. PUBLICAÇÕES. Tem publicado diversos estudos, em livros e artigos de revistas e atas de colóquios, sobre a História da Madeira, dos espaços insulares atlânticos, da Nissologia/Nesologia e sobre os temas de investigação referidos acima. Informação curricular desenvolvida em: https://app. box.com/s/248a0h63 7wi5llm26o66o9bbw2kd182z.
  • 3. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA Este ano eu vou ao Monte, Pró ano, à Ponta Delgada, Só pelo gosto que tenho De subir a Encumeada. Abaixa-te, Pico Alto, Alteia-te, Encumeada, Eu quero ver os romeiros, Que vão prá Ponta Delgada. Trabalhei um ano inteiro, Um ano, sim, dia a dia, Pra comprar o meu tambor Prá gente ir à romaria. PEREIRA, 1971, pp. 14, 15 Romeiros atravessando o Paul da Serra em direção ao arraial do Senhor Bom Jesus de Ponta Delgada. De romarias e arraiais no mundo insular 3
  • 4. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA O turismo religioso tem sua origem no exercício contemporâneo da peregrinação. O turista religioso, nesses termos, não deixa de ser um peregrino. Apenas atualiza essa prática adaptando sua viagem – ora parcial, ora plenamente – às características do processo turístico, conforme o contexto socioeconômico do fenômeno religioso em questão. (OLIVEIRA, Christian Dennys Monteiro de. Turismo Religioso. São Paulo: Aleph, 2004, p. 13) O que era Romaria? Um caminhar, muitas vezes penoso, doloroso até, em condições volun- tariamente precárias,por isso demorado, mas cheio de encantos – imersão numa natureza selvagem e encontros lúdicos no caminho – até a concretização da apresentação e presen- ça do peregrino a um “Santo”: santuário próximo ou longínquo, Sagrado feito gente, com quem se conversa, se troca bens, energia e saúde (promessas), perto de quem se vive uma pequena porção de tempo, o tempo feito Festa: comida, bebida, encontros, dança; até a volta para um quotidiano transfigurado, já na espera de outra romaria. Um ritmo de vida – e na vida. Uma relação constituinte com oalém-vida fonte da vida, o Sagrado. Mas uma relação tradicionalmente pouco regulada pela instituição (a Igreja) em princípio investida da missão de apresentar, representar, concretizar e distribuir este Sagrado à sociedade profana em que os homens instauram o quotidiano de suas vidas. Por isso, esta procura ativa de “refontalização”, a partir de iniciativas repetidamente administradas por cada um, no quadro de uma tradição que dificilmente aceitava para isso regulações autoritá- rias, aparecia com freqüência às autoridades eclesiásticas (e políticas) como descamban- do para manifestações de “paganismo”: promessas sangrentas em atitudes penitenciais excessivas, que criavam um foco de devoção autônomo, popular e não-oficial, cantos e espetáculos “profanos”,“arraiais noturnos”, bebedeiras, eventualmente sexo e violência.… As “romarias” são caso típico de encontro e fricção (criativa) entre a religião do “povo” e a do “clero”. As multidões peregrinas são em princípio “leigas”, dirá Dupront, o grande especialista das peregrinações... (Sanchis, P. (2006). Peregrinação e romaria: um lugar para o turismo religioso. Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, 8(8),p. 86 e 88) De romarias e arraiais no mundo insular 4
  • 5. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA RESUMO Partindo da ideia de que existe uma prática cultual ligada à Religião, que estabelece um movimento interno e externo no espaço insular conducente a uma gestão devocional relacionada com a “salvação da alma”, em que se determinam condutas mobilizadoras geradoras de peregrinações e de uma forma especial de devoção, parece-nos importante destacar esta realidade enquanto marca da memória e identidade insular. Olhando os três arquipélagos (Açores, Canárias, Madeira), notámos diferenças notórias na forma como são vivenciados os diversos rituais. Todos são, porém, um importante fator da mobilidade e da vida das popu- lações. Se, em relação às Canárias, estamos perante uma diferente matriz europeia, no caso dos arquipélagos portugueses, a matriz é idêntica, mas revelam formas de evolução distinta, daí a riqueza da situação. A religiosidade e o calendário das festas e peregrinações determinam uma mobilidade específica, com o fim de pagar promessas, assumir o custo das festividades do orago, na condição de festeiro ou fazer a peregrinação a locais sagrados ou devocionais. Esta  mobilidade devocional gera uma realidade distinta em termos do turismo, hoje conhecido como turismo religioso. Unidos ambos os caminhos, há um desejo, uma esperança ligada à devoção religiosa, que tem por finalidade a salvação da alma. Daí que esta seja para nós uma vertente da “economia do céu”, que já tivemos oportunidade de teorizar e documentar e que agora ampliamos com mais esta realidade diferenciadora da memória e identidade insular. A “economia do céu” surge-nos na função dos chamados festeiros ou mordomos da festa que assumem os encargos da celebração religiosa e do arraial, esperando com isso ser recompensados no retorno, com a salvação da alma associada ao reconhecimento social. Esta atitude, muitas vezes ostensiva, parte quase sem- pre dos emigrantes, que retornam temporariamente à ilha em romagem de gratidão e de afirmação social. PALAVRAS-CHAVE: Açores, Arraiais, Canárias, Festividades, Madeira, Mobilidades, Peregrinação, Roma- rias, Rumerias, Turismo Religioso. De romarias e arraiais no mundo insular 5
  • 6. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA DE ROMARIAS E RUMERÍAS NAS ILHAS A forma de ocupação e organização dos três arquipélagos (Açores, Canárias, Madeira) deu-se, de modo diferente, quer em termos de ritual e devoção. Todos são um importante fator da mobilidade e da vida das populações insulares. Se, em relação às Canárias, estamos perante uma diferente matriz europeia, no caso dos arquipélagos portugueses esta será idêntica, não obstante as diversas origens geográficas dos povoadores. O devir his- tórico, contudo, revela formas de evolução distinta. Desta forma, o quadro que hoje se nos depara é o de diferentes formas da religiosidade popular, com expressões particulares na devoção e na vivência do profano que as acompanha. Mas em todos é manifesta a mesma atitude de caminho espiritual interior, a penitência e o sacrifício e a prática de pagamento das promessas. Talvez, nos Açores, a situação dos romeiros quares- mais seja a que revela, de forma mais clara, esta situação, enquanto nas Canárias1 e na Madeira, na romaria/ rumería aquilo que mais se torna notório é o arraial que as acompanha, tornando mais evidentes os aspetos profanos e o espetáculo que as acompanha. 1 Cf. GALVÁN TUDELLA, Alberto, 1987, Las Fiestas Populares Canarias, S.C. Tenerife, Interinsular-Ediciones Canarias; ARRETO V., Carmen Marina, 1997, “Romerías” en Los símbolos de la identidad canaria, Santa Cruz de Tenerife: Centro de la Cultura Popular Canaria; GALVÁN T., Alberto, 1987: Las fiestas populares canarias, Tenerife: Interinsular Canaria; id., 1984, Los corazones de Tejina, Santa Cruz de Tenerife: Cabildo Insular de Tenerife; id., 1987, as Fiestas Populares Canarias, Santa Cruz de Tenerife: Interinsular Canaria; GALVÁN T., Alberto y otros. 1989: “La fiesta: Multiplicidad de interpretes, pluralidad de significados” en Revista Eres 1, vol. 1, pp. 37- 72; GALVÁN, Alberto y BERMUDEZ, F.:, 2000, “Fiestas populares de Canarias” en Cultura Tradicional canaria, vol. 1, Las Palmas de Gran Canaria: Gobierno de Canarias/Canarias 7. [ Edición en CD]; SANTANA J. , 2001, Gustavo: Fiesta y modernidad. Análisis de las Transformaciones del Sistema Festivo en Gran Canaria a finales del Siglo XX, Gran Canaria: FEDAC. Max Römer (1878-1960): Cartão de Boas Festas aguarelado. De romarias e arraiais no mundo insular 6
  • 7. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA Nos Açores, em especial na ilha de S. Miguel, os romeiros quaresmais2 continuam a marcar na época da Páscoa uma mobilidade interna e externa que movimenta açorianos e não açorianos, não contendo a componente profana do arraial. É neste quadro que os romeiros açorianos adquirem características distin- tas, que não encontramos nos outros dois arquipélagos. A componente do arraial ganha expressão de uma forma idêntica na festa do Senhor Santo Cristo, a romaria rainha do arquipélago e que mobiliza residentes e emigrantes. Encontra situação similar na Madeira com a senhora do Monte ou, nas Canárias, com a Virgem da Candelária3 , patrona do arquipélago. Por outro lado, os Açores revelam uma diferença na vivência do arraial. Partem sempre da devoção popular ao divino Espírito Santo, que tem como sede, uma construção diferenciada do templo religioso que acolhe toda a vivência profana4 . As festas do Espírito Santo nos Açores são as festas, por excelência dos Aço- res, onde o arraial assume uma função de destaque.5 Na Madeira, até princípios do século XX, esta devoção era semelhante, mas a intervenção da estru- tura eclesiástica fê-la mudar de rumo, acabando com o “teatro” de raiz ou improvisado, como sede destas manifestações, de forma que, hoje, quase só se resume às visitas pascais6 . As romarias populares, de Nossa Senhora do Monte, do Senhor Bom Jesus da Ponta Delgada, de Nossa Senhora do Loreto de Nossa Senhora do Rosário em S. Vicente ou do Senhor dos Milagres em Machico, roubaram-lhe protagonismo. As Festas do Espírito Santo são diferentes, na atualidade. O que ficou na História e tradição madeirense foi o Espírito Santo da Camacha, a que se associou uma romaria e arraial7 . No Porto Santo, também acontece uma situação muito especial da romaria e arraial da capela do Espírito Santo, no Campo de Baixo, em agosto, mas com uma vertente distinta de romaria e arraial8 , tratando-se de uma festa muito importante. A expressão da religiosidade e devoção diferenciam-se pelo santo que motiva esta situação, mas em todas as ilhas, a estrutura da expressão é semelhante. Há uma situação ou lenda na origem desta devoção e que atua muitas vezes como fator de afirmação desta devoção popular. Depois, a romaria e o arraial vão-se moldando às condições da época, ganhando cada vez mais animação e colorido: são as iluminações e enfei- tes, o fogo-de-vista e de estalo, a música em forma de execução popular, pelas bandas filarmónicas, aparelhos de reprodução e conjuntos musicais. 2 Cf. Carvalho, A. M. P. G. (2012). Romeiros de São Miguel: a música na caminhada da Quaresma (Doctoral dissertation, Faculdade de Ciências Sociais e Hu- manas, Universidade Nova de Lisboa); LEAL, J. (1989). As Romarias Quaresmais de São Miguel (Açores), Estudos Em Homenagem de Ernesto Veiga de Oliveira, Lisboa, pp. 409-436; FERREIRA, Pe. Ernesto, 1959, As Romarias Quaresmais na Ilha de São Miguel. Sua Origem e Antiguidade. Insulana, Vol. XIV: 135 a 14; id., 1962, Regulamento dos Romeiros da Ilha de São Miguel — Açores. Boletim do Governo Eclesiástico dos Açores, vol.: 37, n.° 816: pp. 38 a 46; RIBEIRO, Luís da Silva, 1983, (1942) Romeiros Terceirenses. Obras, vol. III, Angra do Heroísmo, I.H.I.T. / S.R.E.C.: 97 a 98. SARAIVA. Alvaro e Dias, Teixeira, 1987, Romeiros, Peregrinos de Hoje. Ponta Delgada: edição dos autores; COUTINHO, Alexandre & Luís Felipe Mota Machado & Pedro Mota Machado, 2006, A Irmandade dos Romeiros, Portugal: Lucerna (1ª ed.); MOURA, Mário & Rodrigues, José António. s.d. Rostos de Fé- Romeiros na Ilha de São Miguel. Ponta Delgada: Publiçor; VIEIRA, Carlos Manuel Bolarinho, 2004, Diário de uma romaria: rancho de Romeiros da Matriz de São Miguel Arcanjo. Vila Franca do Campo: Câmara Municipal; BETTENCOURT, José M., 1984, Para a sociologia da música tradicional açoriana. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa - Ministério da Educação, Biblioteca Breve. 3 MARTÍNEZ, A. J., & ÁLVAREZ, G. S., 2017, La Candelaria: herencia cultural de Canarias en la ruta de la mar atlántica: España-Cuba-México/La Candelaria: cultural heritage of the Canary Islands in Atlantic sea route: Spain-Cuba-Mexico, XXII Coloquio de Historia Canario-Americana, Las Palmas de Gran Canaria, pp. 1-12.; GUZMAN ARIAS, C. (2011). Historia de la Virgen de la Candelaria. Puno, Perú: IDS-ILLARI.; ESPINOSA, A. de (1980) [1594]. Historia de Nuestra Señora de Candelaria. Introducción de Alejandro Cioranescu. S/C de Tenerife: Goya. 4 Cf. LEAL, João, 1984, Etnografia dos Impérios de Santa Bárbara (Santa Maria, Açores), Lisboa, Instituto Português do Património Cultural; LEAL, J. (1994). As festas do Divino ES nos Açores: um estudo de antropologia social. Lisboa: PDQ. 5 Cf. COSTA, Antonieta; FÉLIX, Emanuel; FONSECA, Hélder; CABRAL, Mário, 2007, Pelo sinal do Espírito Santo. Angra do Heroísmo: Presidência do Governo Regional dos Açores, Direcção Regional da Cultura; DUARTE, M., & RAACH, K. H. (2004). As Festas do Espírito Santo na Ilha Terceira–A Dádiva e a Partilha/The Holy Ghost Celebrations in Terceira Island–A Way of Giving and Sharing. Angra do Heroísmo: Blu Edições; ENES, M. F. (2004). As festas do Divino Espírito Santo nos Açores: solidariedade e fraternidade. Em nome do Espírito Santo. História de um Culto, 80-87; Leal, João, 1994, As Fes- tas do Espírito Santo nos Açores, Um Estudo de Antropologia Social, Lisboa, Publicações Dom Quixote; Leal, J. (1991). Ritual e estrutura social numa freguesia açoriana. As festas do espírito santo em Santo Antão (São Jorge). Lugares de aqui-actas do seminário “Terrenos Portugueses, 27-47; Simões, M. B. (1987). Roteiro lexical do culto e festas do Espírito Santo nos Açores. Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Ministério da Educação. 6 Cf. VIEIRA, Alberto, 2016, “As Festas do Divino nas Ilhas e Brasil”. in CONGRESSO INTERNACIONAL DO ESPÍRITO SANTO (CIES), “Gé- nese, Evolução e Actualidade da Utopia da Fraternidade Universal”, organizado, em parceria, com o Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, o Centro de História da Sociedade e da Cultura da Univ. de Coimbra, o CLEPUL da Universidade de Lisboa, a CIDH da Universidade Aberta e o Instituto Europeu de Ciências da Cultura Padre Manuel Antunes de Coimbra. 15 e 17 de setembro, em Lisboa e Alenquer; VIEIRA, Alberto, 2016, As festas do divino, das ilhas para o Brasil? Um caminho ainda por revelar. Cadernos de divulgação do CEHA. Projeto “Memória-Nona Ilha”/DRC/SRETC, N.º 05. Funchal. Setembro de 2016. Disponível em: https://app. box.com/s/5vq1cgqdk8ovhb5j9xt25odrqtk7nx0o . 7 Cf. Dn, 12.06.1889, p. 1. 8 DN.24.08.1934, p. 1; DN.18.08.1935, p. 2. De romarias e arraiais no mundo insular 7
  • 8. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA Filarmónica Recreio dos Lavradores, 1894. Photographia museu “Vicentes “, Funchal A indumentária tinha, dantes, lugar especial, com os chamados trajes da romaria, ou nas Canárias a chamada roupa do “mago”, isto é o traje típico. Mas sem dúvida o mais esperado era a gastronomia, que se divide entre os doces da romaria e os pratos da romaria, servidos aos romeiros, para recuperar forças após uma caminhada. Grupo de Romarias Antigas do Rochão, 1945 A forma de expressão destas tradições festivas através da música e danças, do traje, da alimentação, acabam por definir a identidade de cada região, lugar, ilha ou arquipélago. São factores identificadores da imagem e identidade de uma população que perdura no tempo e os diferenciam dos demais. E são estes ele- mentos identitários que se revivem anualmente, daí a força da sua presença e atualidade e que fazem parte daquilo que a mobilidade gerada pela emigração leva ao mundo inteiro. A partida da ilha sempre foi dolorosa, porque um salto no desconhecido e era o primeiro momento de invocação dos santos da devoção popular que faziam os arraiais. Na Madeira, temos muitas manifestações de expressão desta religiosidade. Para 1887, temos o jornal de viagem escrito por João Baptista de Oliveira e Vicente de Ornelas, que relata a viagem da Madeira (a 8 de novembro de 1887) ao Hawaii (a 14 de abril de 1888.), no navio inglês Thomas Bell,9 onde são manifestos os testemunhos mais evidentes da religiosidade popular, assentes nesta devoção geradora dos arraiais. 9 OLIVEIRA, João Baptista de, ORNELAS, Vicente de, “Destination, Sandwich Islands”, trad. Lucille da Silva Canario, in Hawaiian Journal of History, vol. 4, Honolulu, 1970. Cf. “Da Madeira para as Ilhas Sandwich, via Cabo Horn, a bordo do navio Inglês “Thomas Bell”, ; CALDEIRA, Susana, 2010, Da Madeira para o Hawaii: A Emigração e o Contributo Cultural Madeirense, Funchal CEHA, pp. 88-96. De romarias e arraiais no mundo insular 8
  • 9. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA As comunidades de emigrantes são sempre o espelho de uma realidade doutros tempos, que o progres- so devorou, mas que podemos encontrar, parada no tempo, nos destinos onde estas comunidades assumem alguma dimensão, como espelho das memórias que acompanharam os emigrantes no momento de partida10 . É essa força identitária das vivências e religiosidade popular que os une no local de destino e os traz de retor- no à sua terra natal11 . Daí a devoção à Nossa Senhora do Monte, do Loreto ou o Bom Jesus da Ponta Delgada para os madeirenses12 , ou a Virgem da Candelária para os Canarianos13 ou as festas do Divino para os Açores14 . A mobilidade humana, tão característica do mundo português, que Eduardo Lourenço15 resume na ideia de nação-navio, implica esse movimento de pessoas, mas também de usos e tradições. A região ou município de origem atuam como elo gerador e catalisador da comunidade de origem, sendo um fator de reforço des- sas revivências, daquilo a que M.B. Rocha-Trindade16 define como micro pátrias. Há, assim, um processo de desterritorialização17 e transnacionalização18 que define este movimento gerando a chamada L(U.S.A)landia 10 Sobre isto queremos destacar os estudos da antropologa B. FELDMAN-BIANCO (1992-2009). Cf. CF. FELDMAN-BIANCO, B. (2009). Reinventan- do a localidade: globalização heterogênea, escala da cidade e a incorporação desigual de migrantes transnacionais. Horizontes Antropológicos, 15 (31), 19-50; Feldman-Bianco, B. (2009). «A taste of portugal»: transmigração, políticas culturais e a mercantilização da «saudade» em tempos neoliberais. Ler História, (56), 105-199; FELDMAN-BIANCO, B. 2007, Empire, postcoloniality and diasporas (feature). Hispanic Research Journal, London: University of London, v. 8, n. 3, p. 267-278; FELDMAN-BIANCO, B., 2001, Brazilians in Portugal, Portuguese in Brazil: constructions of sameness and difference. Identities: Studies in Politics and Culture, v. 4, n. 4, p. 607-650; FELDMAN-BIANCO, B. (1997). Imigração, confrontos culturais e (re) construção de identidade feminina: o caso das intermediárias culturais portuguesas. Horizontes Antropológicos, 65-83; Feldman-Bianco, B. (1996). Imigrantes portugueses, imigrantes brasileiros. Globalização, antigos imaginários e (re) construções de identidade (uma comparação triangular). Projeto integrado: identidades: reconfigurações de cultura e política. Estudos de migrações transnacionais de população, signos e capitais, 607-50; Feldman-Bianco, B. (1996). Imigrantes portugueses, imigrantes brasi- leiros. Globalização, antigos imaginários e (re) construções de identidade (uma comparação triangular). Projeto integrado: identidades: reconfigurações de cultura e política. Estudos de migrações transnacionais de população, signos e capitais, 607-50; Feldman-Bianco, B. (1995). The state, saudade and the dialectics of deter- ritorialization and reterritorialization. Oficina do CES, 46, 1-36; Feldman-Bianco, B., & Huse, D., (1995). Entre a saudade da terra e a América: memória cultural, trajetórias de vida e (re) construções de identidade feminina na intersecção de culturas. Ler História, (27/28), 45-73; Feldman-Bianco, B. (1995). A criação de uma nação (portuguesa) desterritorializada e a transnacionalização de famílias. Cadernos (Universidade de São Paulo, Centro de Estudos Rurais e Urbanos), 6, 89-104; Feldman-Bianco, B. (1993). Múltiplas camadas de tempo e espaço: (re) construções da classe, da etnicidade e do nacionalismo entre imigrantes portugueses. Revista crítica de ciências sociais, 38, 193-223; FELDMAN-BIANCO, B. Multiple layers of time and space: the construction of class, ethnicity and nationalism among Portuguese immigrants. In: GLICK SCHILLER, N., BASCH, L.; SZANTON, C.(Org.). Transnational perspective on migration: race, class, ethnicity and nationalism reconsidered. Nova Iorque: New York Academy of Sciences, 1992. p. 145-174. (Annals of the New York Academy of Sciences, v. 645). 11 Note-se que nos Estados Unidos da América em Noton em 1934 a comissão das festas dizia que este era um momento para ”matar saudades dos tempos que se passavam em festas idênticas na formosa ilha da Madeira” e convidava todos “a passar um dia como se estivessem na Madeira.”. Cf. MENDON- ÇA, Duarte, 2007, DA MADEIRA A NEW BEDFORD. Um capítulo ignorado da emigração portuguesa nos Estados Unidos da América, Funchal, p 295. 12 Nas décadas de vinte e trinta aparecem notícias do reavivar das principais romarias da ilha, nomeadamente do Monte, do Bom Jesus da P. Delgada, do Santíssimo Sacramento, (Mendonça, 2007: 236, 267-268, 285, 292-296) a Romaria da Camacha (ibidem, 286); VASCONCELOS, Mota, Epopeia do Emigrante Insular, Subsídios para a sua História, Movimento para a sua Consagração, Lisboa, s. ed., 1959. 13 JUÁREZ MARTÍNEZ, A. (2008). De hortelanos a piratas. Ensayos sobre la cultura canaria en Veracruz. México: Editora del Gobierno del Estado. 14 Cf. Sobre as festividades nas comunidades açorianas, nomeadamente nos Estados Unidos da América: APALHÃO, João António; ROSA, Victor M. Pereira da, 1983. Da emigração à aculturação: Portugal insular e continental no Quebeque. Lisboa: Casa da Moeda; CABRAL, S. L., 1989.Tradition and transforma- tion: Portuguese feasting in New Bedford. New ork: AMS Press; COSTA, 2010, Antonieta. Festividades populares e mitos arcaicos na nova geografia atlântica. Ponta Delgada: Direcção Regional da Cultura; Leal, João, 2002, “Identities and Imagined Homelands: Reinventing the Azores in Southern Brazil”, Diaspora. Journal of Transnational Studies 11 (2), 233-254; Leal, João, 2004, “A Pomba e a Águia: as Festas do Espírito Santo nas Comunidades Açorianas dos EUA”, Actas do III Colóquio “O Faial e a Periferia Atlântica nos Séculos XV a XX, Horta, Núcleo Cultural da Horta-Câmara Municipal da Horta-Casa da Cultura da Horta, 153-174; Leal, João, 2005, “We Are Azorean. Discourses and Practices of Folk Culture in Santa Catarina (Southern Brazil)”, Klimt, A. e J. Leal (eds.) “The Politics of Folk Culture: Reflections from the Lusophone World”, Etnográfica IX (1), 171-193; Leal, João, 1996, “Festa e Emigração numa Freguesia Açoriana”, Baptista, F. O., J. P. Brito e B. Pereira (eds.), O Voo do Arado, Lisboa, Museu Nacional de Etnologia, 582-589; Leal, J. (2005). Tradição e tradução: festa e etnicidade entre os imigrantes açorianos nos EUA. Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 16, 87-108. 15 Cf. Lourenço, E. (1974). Identidade e Memória: o caso português. Conflitos e Mudanças em Portugal, 1984, 18. Sobre esta ideia cf. Nascimento, N. A. (2014). A jangada e a nau: a nação portuguesa de José Saramago e de Eduardo Lourenço. Revista Letras, 90 (2); Angelini, P. R. K. (2012). De partidas, ausências e não regressos: o discurso antiépico de Lobo Antunes. Letras (UFSM); Sabine, M. (2010). “ Pedaços de corpos envoltos no coral”: cânone literário, identidade e expressão” queer” em” Salsugem” de Al Berto. Colóquio-Letras, 173, 47-63; Dutra, R. L. (2010). Literatura e Insurreição. Revista Magistro, 1 (1); Bela Feld- man-Bianco, 1999, A Família na Diáspora e a Diáspora na Família In: Holanda, Heloísa Buarque de & Capelato, Maria Helena Rolim. Relações de Gênero e Diversidades Culturais nas Américas. São Paulo, EDUSP, pp 253-273.  16 1987, “As Micro pátrias do interior Português”, Análise Social, Revista do lnstituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Terceira Serie, vol. XXIII, 4: 721-732. 17 Sobre desterritorialização Cf. Haesbaert, R. (2005). Da desterritorialização à multiterritorialidade. Boletim Gaúcho de Geografia, 29 (1); HAESBAERT, R. (2005). Migração e desterritorialização. Cruzando fronteiras disciplinares: um panorama dos estudos migratórios. Rio de Janeiro: Revan, 35-46; Costa, R. H. (2004). O mito da desterritorialização: do” fim dos territórios” à multiterritorialidade. Bertrand Brasil; Haesbaert, R. (2004). Definindo território para entender a desterrito- rialização. O mito da desterritorialização. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 18 Sobre o discurso da transnacionalismo: Brittos, V. C. (2005). Globo, transnacionalização e capitalismo. Rede Globo, 40, 131-145; Glick Schiller, Nina & Basch, Linda & Szanton Blanc, Cristina. (1995). From Immigrant to Transmigrant: Theorizing Transnational Migration. Anthropological Quarterly. 68. 10.2307/3317464; GLICK-SCHILLER, N. etal-1992. “Transnationalism: a new analytic frameworlc: for understandingmigration”. In: Glick-Schiller, N., Basch, L., & Blanc-Szanton, C. (Eds.). (1992). Towards a transnational perspective on migration: Race, class, ethnicity, and nationalism reconsidered. New York De romarias e arraiais no mundo insular 9
  • 10. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 19 ou, para os Açores, a “Décima Ilha” e, para a Madeira, a “Nona Ilha”. Mas não podemos esquecer esta fronteira ténue que delimita a romaria da peregrinação e que tanto se faz sentir nos Açores, Canárias ou Madeira. E, por força disso ambas se confundem, muitas vezes. De acordo com Alberto Galván Tudella,20 “Los términos rumerías y Peregrinación son diferentes sin duda (…). Hacen re- ferência a fenómenos de massa y de indivíduos, a fiesta y promessa, pero a menudo ambos se unifican. Los romeros incluyen tanto a a unos como outros, pues muchos (…) aprovechan para cumplir una promessa la ocasion de una fiesta, de una romería. Más aún, la promessa se convierte a menudo en el primer acto de un ritual, al que prosigue la fiesta. No obstante es cierto, son muchos (…)que visitan santuários o eremitas para cumplir uma promessa por un hijo recién nacido. Una peregrinación está ligada al sufrimiento, al silencio, a los pies descalzos, a una visita al santuário caminhando de rodillas desde la entrada hasta al altar (…). No obstante lo indicado hasta aqui, en Canarias ir de romeria, ser romero, tiene un sentido doble. En pri- mer lugar tiene una significación genérica, que implica ir de fiesta a un santuário, tanto lejano como cercano, pero en que lo essencial es sacar al santo(a) o a la virgen y passearla por un recorrido mais o menos largo. (…) la romería a una virgen esla la excepcionaón. La fiesta romera está associada a Santos. (…)Además, son san- tos vinculados a la agricultura en sentido amplio..Es decir acogen debajo su manto a campesinos, pastores, vaqueros o gañanes.(…)” Daqui resulta que, nas ilhas, tivemos e aindatemos a possibilidade de vivenciar diversas formas de ex- pressão da religiosidade popular, através das suas manifestações mais importantes: a romaria/rumería e pe- regrinação. As divindades que fazem o ciclo anual da devoção, as formas como esta se expressa são o espelho de diferentes identidades, forjadas em espaço insular, sujeito a múltiplas influências, ao longo da sua História. Romaria, de Henrique Franco. 1923 Academy of Sciences; SANTOS, M. (1990). Do espaço sem nação ao espaço transnacionalizado. Brasil, 143-161. O transnacionalismo é entendido por GLICK-SCHILLER (1992, 1) como “um processo social recente no qual migrantes estabelecem campos sociais que transpõem fronteiras geográficas, culturais e políticas”. Cf. FELDMAN-BIANCO, B. (1995). A criação de uma nação (portuguesa) desterritorializada e a transnacionalização de famílias. Cadernos (Universidade de São Paulo, Centro de Estudos Rurais e Urbanos), 6, 89-104. 19 Cf. Almeida, Onésimo, 1988, L(U.S.A)landia: A Decima ilha, Angra do Heroísmo. Esta é definida como “uma porção de Portugal rodeada pela América por todos os lados, (... ) uma nação especial composta por comunidades que não são nem Portugal nem a América ... (que sio) uma mistura de duas culturas, um mundo entre Portugal e a América” (ALMEIDA, 1988: 198 e 231). 20 GALVÁN TUDELLA, Alberto, 1987, Las Fiestas Populares Canarias, S.C.Tenerife, p. 173-175. De romarias e arraiais no mundo insular 10
  • 11. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA Hoje, em pleno século XXI em que todos usufruímos de múltiplas comodidades nos transportes e co- municações, vemos a peregrinação, dentro e fora da ilha da Madeira a afirmar-se de uma forma ímpar e a trazer um novo movimento mobilidade interna de romeiros, que trilham os caminhos antigos e o sacrifício das caminhadas a pé para uma redescoberta interior e afirmação da fé. Mas, na atualidade, a maioria dos peregrinos que frequentam os santuários de devoção popular, atraídos pela religiosidade e/ou diversão tem outras possibilidades que favorecem a sua mobilidade, pois os caminhos reais deram lugar às vias-rápidas e tudo acontece de forma rápida. Mas para alguns a ilha perdeu o colorido que a animava no período es- tival, com os romeiros que a atravessavam a pé, de lés a lés. A religiosidade popular assume novas formas de expressão. Estaremos no prelúdio de uma nova era da religião e espiritualidade? Vozes diversas afirmam que as romarias e a peregrinação interna perderam sentido e as romarias já não são o que eram. Daí algum revivalismo, com peregrinações a Ponta Delgada ou a Machico, que começam a ganhar cada vez mais presença no nosso quotidiano21 . E as peregrinações a pé deram lugar aos caminheiros que re- vivem hoje e valorizam os antigos caminhos reais22 . Diário de Notícias. 25.8.1895, p. 1 Achada do Felpa. S. Jorge A memória destas romarias ficou marcada com o encontro espontâneo de romeiros na Achada da Felpa em S. Jorge, nos dias do arraial, sendo conhecido como “o setembro”, ou no Chão dos Louros, na segunda-fei- ra a seguir à romaria da Ponta Delgada. Ambos os lugares persistem na memória como o local de encontro dos romeiros no momento de retorno da festa. Por outro lado, podemos entender o Folclore atual, como uma das formas de manifestação imóvel dos arraiais madeirenses?23 21 A primeira peregrinação a pé na actualidade foi recriada em outubro de 2016 com a romaria do Senhor dos Milagres (Cf. https://funchalNotícias. net/2016/09/07/peregrinos-fazem-caminhada-a-pe-funchal-machico-em-nome-do-senhor-dos-milagres/. Visita a 02.09.2018), mantendo-se hoje. Também temos informação do reavivar das romarias a Ponta Delgada, em 2018, com um grupo do Porto Moniz em 2018 (https://funchalNotícias. net/2018/09/01/ainda-ha-quem-faca-uma-longa-caminhada-a-pe-para-ir-a-ponta-delgada/ .Visita a 02.09.2018). 22 Cf. A página da associação Caminhos Reais da Madeira (na web: http://caminhoreal.pt/) foi criada a 17 de fevereiro de 2017, com o objectivo de pre- servar a tradição e cultura que estava inerente a esta necessidade antiga de mobilidade interna através dos caminhos reais (n.º23, 24, 25, 26, 27, 28), que também se firmaram historicamente como caminhos de fé e peregrinação dos madeirenses até princípios do século XX. 23 Cf. Corte, 1992: 13-15; TORRES, 1992: 3-4; SERRÃO: 2010:54-68. De romarias e arraiais no mundo insular 11
  • 12. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA Há uma vivência profana e espiritual que acompanhou e ainda está presente em todas estas manifes- tações de fé. Há realidades que se ofuscam perante o realismo das múltiplas manifestações da fé. Mas o vivenciar desta relação com o divino não mudou, o que se alterou foi o entorno. Há uma economia que gere, de diversas formas, estas manifestações de fé que, para nós, são entendidas como a expressão daquilo que já definimos como economia do céu. Trata-se de um modelo de análise de realidades e situações que escapam ao percurso normal da eco- nomia insular, mas que assumem um peso importante na definição de múltiplos aspetos que escapam a uma visão racionalista. Em anterior estudo,24 lançamos mãos da situação que enlaça o quotidiano material com o religioso e espiritual da sociedade madeirense, definindo uma nova realidade, a “economia do céu”, que, em muitas situações, gere a dádiva e devoção madeirense e distribui os excedentes dos recursos económicos das famílias. Aqui, a distribuição da riqueza, por força dos rendimentos gerados no arquipélago ou fora dele, obedece a mecanismos externos em que a religião, a sociabilidade assumem uma influência incomum, cuja expressão está muito próxima da expressão da dádiva e do dom. Aqui há dinheiro, que sai da tradição do sis- tema de mercado e é expresso numa dádiva de gratidão, que encerra um projeto de promessa e de afirmação social. Já vimos que a riqueza gerada pela produção açucareira deu lugar a uma “economia do céu”, que fez a gestão dos excedentes dos recursos financeiros em torno de uma forma de retribuição que alia a afirmação social e a salvação da alma. Agora queremos valorizar a mesma realidade adentro de uma diferente situação gerada pela mobilidade humana na ilha, dando atenção às formas de expressão da religiosidade popular. Queremos entender a gratidão e a dádiva entre aqueles que saíram da ilha e definiram uma mobilidade cons- tante que teve um efeito reedificador na cultura e História. A “economia do céu” foi, historicamente, uma forma dos madeirenses e porto-santenses que tiveram que sair, manterem as suas ligações à terra e de darem testemunho, aos que ficaram, do sucesso da sua diás- pora. É neste contexto que queremos ver a economia do céu, com um mecanismo de gestão de recursos, que acontece no quadro das romarias e arraiais do arquipélago. 24 Cf. VIEIRA, Alberto, 2017, Em torno da “economia do céu”. Retribuição, dádiva e dom na rota do ouro branco, Funchal, CEHA. Disponível na Internet em: http:// memoriadasgentes.ml/blog/caderno-rota-ouro-branco-01-torno-economia-ceu/. Consulta em 17.08.2018. Chão dos Louros. S. Vicente De romarias e arraiais no mundo insular 12
  • 13. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA Cartaz: Ponta Delgada 1. Em torno de algumas questões teóricas: do turismo religioso e da economia do céu Hoje, cada vez mais, os estudos que se fazem partem de uma perspetiva interdisciplinar, permitindo uma comunhão de esforços das várias áreas de estudo, no sentido da aclaração do conhecimento. Deixou de predominar o discurso fechado para dar lugar a um debate aberto multidisciplinar e interdisciplinar que tem permitido uma diferente colocação dos problemas, com resultados diferenciados e muito produtivos no final. Para as ilhas, pequenos espaços do universo de estudo e debate científico a Nesologia25 clama por novas posturas que conduzem sempre a uma conjugação dos vários ramos do saber. É isso que pretendemos fazer com este breve ensaio sobre as mobilidades, o turismo e as questões do dom e da dádiva. Na atualidade, a diferenciação dos modelos e áreas de trabalho das diversas ciências deixaram de ser estanques; invadimos, constantemente, o campo de outras disciplinas, assumindo esta intromissão como uma forma de avançarmos para além das fronteiras e estabelecermos diversas vias que desembocam sempre numa contribuição diferenciada e inaudita, que contribui para uma maior compreensão das realidades que nos são vizinhas nos domínios de estudo e trabalho. Daí que, de forma provocatória e numa intenção de mu- 25 Cf. Henriques, E. B. (2007). A recém-criada comissão das ilhas da UGI e a sua conferência inaugural (Taipei, 2007). Finisterra, 42 (84); Vieira, A. (2010). As Ilhas: da Nissologia à Nesologia. Anuário do Centro de Estudos de História do Atlântico, 2, 16-21; ESPÍNOLA, Paulo; CRAVIDÃO, Fernanda. 2014, A ciência das ilhas e os estudos insulares: Breves reflexões sobre o contributo da geografia. Sociedade & Natureza, 26.3. De romarias e arraiais no mundo insular 13
  • 14. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA dança de modelos de análise e conceitos, propomos esta incursão na economia do Céu, fazendo apelo a con- ceitos e realidades da Sociologia e Antropologia, para encontrarmos, no âmbito da Economia e da Religião, um novo conceito que possa clarificar uma realidade comum da nossa cultura ocidental. No caso específico das questões que envolvem as manifestações de fé e religiosidade popular do arqui- pélago implicam uma abertura a múltiplos saberes de forma a poder-se entender a importância e força destas manifestações no devir e quotidiano. Em torno do ritual de cumprimento de uma promessa que envolva ou não a peregrinação, há uma envolvência diversa de conhecimentos e agentes. Daí que a gestão pessoal de cumprimento de promessa tenha uma envolvência mais ampla, que não pode ser entendida apenas como algo pessoal. Para além do mais faz parte da História de um arquipélago onde se manifestou de diversas formas na definição da identidade cultural, religiosa, económica e social. Há muito mais para além da socia- bilidade e do gesto devoção pessoal que ultrapassa os romeiros. Assim, no campo teórico, há necessidade de entender estas manifestações à luz das mobilidades geradas pelo turismo religioso, como deverá entender-se a forma como acontecem as dádivas e o pagamento de promessas que envolvem este ritual, que nos reme- tem paras as questões em torno do dom e da dádiva AS MOBILIDADES E O TURISMO RELIGIOSO A viagem para o romeiro é a satisfação espiritual da busca do místico, sendo na maio- ria das vezes um ato de sacrifício. [...] Para o turista, é uma procura de satisfação reli- giosa mais do que prazer material [...]. O turista religioso conjuga na viagem o prazer com a fé, mas a motivação maior é o prazer de viajar, conhecer coisas e lugares novos. (ABREU, T. N. M. de; CORIOLANO, L. N. M. T., 2003, Os centros de romaria do Ceará e o turismo religioso. In: CORIOLANO, L. N. M. T. (Org.). O turismo de inclusão e o desen- volvimento local. Fortaleza: FUNECE. p. 79). Foi apenas a partir da década de sessenta do século XX que apareceu o chamado turismo religioso26 a definir esta mobilidade humana provocada27 pela devoção e crença religiosa. A viagem/peregrinação faz parte dos primórdios destas mobilidades humana mas só adquiriu um estatuto diferenciado no contexto da História do turismo na segunda metade do século XX, sendo, na atualidade, uma das principais motivações adentro do chamado turismo cultural28 . Mas, o chamado turismo religioso pode também ser entendido como o gerador das mobilidades que se operam interiormente na ilha com os chamados arraiais e romarias, que estão documentados desde o século XVI e que tiveram múltiplos momentos de afirmação, de acordo com a importância e fervor religioso destas festividades em torno dos santos patronos, que adquirem uma dimen- 26 Cf. SANTOS, Glauber Eduardo de Oliveira. 2000, Importância das Peregrinações para o Turismo Mundial. São Paulo: Turismo em Análise, nov. p. 38-44. p. 39; Andrade, José Vicente de 2002 Turismo: fundamentos e dimensões. 8. ed. São Paulo: Ática, p. 79; Abumanssur. E. S. 2003. “Religião e turismo: notas sobre as deambulações religiosas”. In Abumanssur, E. S. (org), Turismo religioso: ensaios Antropológicos sobre religião e turismo. Campinas, SP: Papirus, p. 53-68 54 e 56; RIBEIRO, Heloisa. 2003, Andar com fé e o sentido do chegar. Rio de Janeiro: Caderno Virtual de Turismo, v.3, n.1, p 1-7, p. 3; OLIVEIRA, C. D. M. Tu- rismo Religioso. São Paulo: Aleph, 2004., p. 16; ANDRADE, J.V. Turismo: fundamentos e dimensões.São Paulo: Ática, 2008, 8ª edição. p. 77-78; DIAS, R. 2003, O turismo religioso como segmento do mercado turístico. In: DIAS, R; SILVEIRA, E. J. S. da. (Orgs.). Turismo Religioso: ensaios e reflexões. Capinas: Alínea, p. 17; ABREU, T. N. M. de; CORIOLANO, L. N. M. T. 2003. Os centros de romaria do Ceará e o turismo religioso. In: CORIOLANO, L. N. M. T. (Org.). O turismo de inclusão e o desenvolvimento local. Fortaleza: FUNECE, p. 79; BITTENCOURT JR, 2007, A. Penitentes do Senhor dos Passos, identidade e diversidade na religiosidade popular. In: Encontro Nacional de História das Religiões / ANPUH, Maringá, p. 4; Richards, G. (2009) Turismo cultural: Padres e implicaes. In de Camargo, P. and da Cruz, G.(eds) 2009, Turismo Cultural: Estratgias, sustentabilidade e tendências. UESC: Bahia, 26; SERRALLONGA, Silvia; HAKOBYAN, Karine. 2011, Turismo religioso y espacios sagrados: una propuesta para los santuarios de catalunya. Penedo: Revista Iberoamericana de Turismo, v. 1, n. 1, p. 63-82, p. 65; VILAS BOAS, Nuno Fernando de Sá. 2012. A Pastoral do Turismo: Da peregrinação ao santuário. Braga: p. 39; 27 Cf. OLIVEIRA, Christian Dennys Monteiro de. Turismo Religioso. São Paulo: Aleph, 2004, p. 13. 28 Para uma definição do turismo cultural tenha-se em atenção o que dizem GUERRA, 1989; MONTEIRO, 2003; SANTOS; 2006; SILVEIRA; 2007; PEREIRA/VILAÇA, 2008; SOUSA, 2014; De romarias e arraiais no mundo insular 14
  • 15. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA são que ultrapassa o recinto da freguesia e do concelho e assumem-se como vivências de todos os ilhéus. A História anota esta mobilidade desde épocas remotas, dependendo a sua afirmação de uma multiplicidade de fatores, como teremos oportunidade de verificar. DO DOM E DÁDIVA À “ECONOMIA DO CÉU” (...) direitos e deveres, que se mostram simétricos dão vazão à circulação de dádivas entre os diversos grupos. Tudo circula, as dádivas circulam, mas na realidade, o que está em jogo são as alianças espirituais. Trocam-se matérias espirituais por meio das dádivas. Os homens estão ligados espiritualmente a seus bens que, quando passados a outrem, estabelecem ligação espiritual com o doador. E, neste sentido, misturam se doadores e beneficiários, homens, coisas e matéria espiritual. (MAUSS, Marcel. “O en- saio sobre a dádiva”. Sociologia e Antropologia. v. 2. São Paulo, EPU e EDUSP, 1974. 53). As relações de dádiva, em face da obrigação de retribuir, que se torna ao mesmo tempo a coisa a ser explicada e a essência de toda relação de dádiva, sua verdadeira natu- reza, aquela que se esconde por traz das afirmações de gratuidade dos atores. Donde se conclui que a essência da dádiva não é ser uma dádiva. É o que expressa a ideia de reciprocidade como fundamento da dádiva” (CAILLÉ, Alain. “Nem holismo nem indivi- dualismo metodológicos – Marcel Mauss e o paradigma da dádiva.” Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 13. n. 38. Outubro de 1998. p. 113) A economia tradicional assenta nas trocas que se operam no mercado, baseadas no valor dos bens e serviços, enquanto a economia da oferta, da dádiva, do dom, da doação, assenta no valor de uso de objetos e ações. Mas queremos introduzir um outro conceito de economia, que designamos do Céu, em que a aplicação assente em valores definidos pela religiosidade e espiritualidade. Aqui, a troca, embora aconteça no espaço de interação humana, tem subjacente esta realidade e tem em conta finalidades distintas que comandam a partilha, a doação e que se prendem com a religiosidade e espiritualidade. Daí que entendamos neste con- texto, quer o consumo de excedentes e da riqueza da economia açucareira madeirense nos séculos XV a XVII, materializada em dádivas de pintura, escultura, construção de templos religiosos, quer a atitude mobilizadora dos emigrantes madeirenses com a entrada triunfal de retorno à terra em romagem de gratidão religiosa e de afirmação social. Há aqui um jogo subtil entre a dádiva e o dom que merece ser entendido, pela força mobilizadora que tem na sociedade madeirense, de forma especial na segunda metade do século XX. Este retorno dos emi- grantes pode também ser definido como uma peregrinação ou romagem de retorno às origens, onde se expressam promessas e retribuições, que carecem quase sempre de um palco, no lugar e na ilha. E aqui tudo continua a girar em torno da igreja e do adro, o palco onde se aliam o religioso e o profano. As dádivas em objetos do culto litúrgico ou em dinheiro para despesas da igreja motivam esta publicidade gratuita que abre os caminhos da fama, da gratidão e do dever cumprido. A dádiva expressa uma intencionalidade social, que se confunde com a gestão da economia do sagrado e que pretendemos valorizar nesta breve aportação, na medida em que se trata da realidade económica que está subjacente à riqueza. A Economia do Céu ou da salvação, em nosso entender, é o sistema de troca que se estabelece em torno do processo de salvação da Alma, através da utilização de bens materiais, através missas, ofertas e legados De romarias e arraiais no mundo insular 15
  • 16. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA perpétuos29 , mas também das promessas sucedidas de peregrinações que ultimam o seu cumprimento ou da situação de festeiros nas romarias religiosas. Há uma troca que assume um valor simbólico e ritual signifi- cativo para os intervenientes. Esta não é medida por igual valor monetário intrínseco à transação, o que nos leva a aproximar nesta reflexão à questão da dádiva e do dom, tão realçados pelo discurso da Sociologia e Antropologia30 . A primeira metade do século XX foi o momento de afirmação e valorização de uma forma forma de troca pré-capitalista, que dominava os sistemas de algumas sociedades em África e no Pacífico. As trocas que aí se estabelecem não se regem pelo valor atribuído àquele elemento, mas resultam de situações não lineares à dinâmica capitalista31 . Daí as expressões Kula ou Potlach a definirem uma diferente dimensão das trocas, que acabam na definição de uma economia do dom ou da dádiva. Esta forma de troca alheia à dinâmica capitalista procura, na sociedade atual, diversas formas de expressão, sendo apresentada, muitas vezes, como economia social, ou “economia solidária”32 . Vivemos numa sociedade capitalista onde dominam, em tudo, as leis do mercado, pelo que se torna difícil entender uma sociedade sem o dinheiro como medida de valor. Todavia, outras sociedades houve em que o dinheiro não existia e o sistema de trocas não obedecia a uma medida de valor regulada. Os estudos de alguns antropólogos e sociólogos, relativamente a finais do século XIX e o primeiro quartel da centúria se- guinte, trouxeram ao nosso conhecimento algumas sociedades ditas primitivas, em que o sistema das trocas comunitárias não se subordinava a uma lógica do valor atribuído pelo mercado capitalista, determinado pela moeda. Era uma realidade distinta que desvelou grande entusiamo de alguns estudiosos e funcionou, muitas vezes, como via de oposição ao capitalismo moderno33 . A partir daqui define-se uma dinâmica de mercado que se alheia do valor atribuído pelo capital aos pro- dutos envolvidos e que valoriza a importância pessoal ou grupal que assume. As trocas que são estabelecidas, assim como os mesmos produtos, que atuam no sistema monetarizado, perdem esse valor e ganham outro, de caráter subjetivo, que não pode ser quantificado, mostrando-nos uma realidade fora da racionalidade económica34 . A moeda não existe, nem é substituída por outra forma de atribuição do valor, pois as trocas baseiam-se em rituais e mecanismos que podem assumir um caráter espiritual. A dádiva e o dom são, assim, os atos que determinam esta mobilidade dos produtos e estabelecem a harmonia espiritual assim como o convívio social. Se transpusermos isto para o sistema de aplicação dos excedentes da economia da emigração madei- rense dos séculos XIX e XX, é isso que vamos encontrar, noutra dimensão, na sua aplicação em dádivas reli- giosas e nos investimentos em prol da chamada economia do céu, com as doações em dinheiro para obras e compras de imaginária, com a celebração plena da festa e arraial, em que os emigrantes assumem o papel de festeiro ou mordomo. A partir da década de cinquenta do século XX, a entrada do emigrante na função de 29 Esta realidade é definida muitas vezes como de economia de Salvação (RAIUMNDO, 2007, FERRAZ, 2014) ou de assistência à Alma (PEREIRA, 2005, CARVALHO, 2001-2002). 30 Nomeadamente por Emile Durkheim (1858-1917), Marcel Mauss (1872-1950), Branislaw Kasper Malinowski (1884-1942), Fanz Uri Boas (1858-1942), Karl Polanyi (1886-1964), Maurice Godelier (n. 1934), J. T. Godbout (n. 1933), Robert Kurz (1943-2012), Claude Levi-Strauss (1908-2009), Pierre Bour- dieu (1930-2002), Alain Caillé (n.1944), Marshall David Sahlins (n.1930), Camile Tarot (n. 1943). Mas também devemos ter ainda em conta A George Dalton, James R. Stanfield e muitos outros referenciados na bibliografia sobre o “dom”/dádiva no final. 31 “…a dádiva seria uma experiência em que a distância entre fins e meios é abolida, em que não há mais fins e meios, mas um ato que preenche o espaço de significação do sujeito e faz com que sejamos ultrapassados pelo que passa por nós. Uma experiência em que a sociedade é vivida como comunidade. “(GODBOUT, Jacques T.. “Introdução à dádiva”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 13. n. 38. Outubro de 1998. p. 49). 32 A expressão “economia solidária”, hoje muito em voga pretende definir Cf. CATTANI, Antônio David (org.). A Outra Economia. Porto Alegre: Veraz, 2003;  LAVILLE, Jean-Louis; GAIGER, Luiz Inácio (2009). Economia Solidária. In. CATTANI, A.D. et al. (coord.) Dicionário Internacional da Outra Econo- mia. Coimbra: Almedina. p.  162-168; SINGER, Paul (2002). Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Perseu Abram; FRANÇA FILHO, Genauto C., LAVILLE, Jean-Lois. Economia Solidária: uma abordagem internacional. Porto Alegre: UFRGS, 2004; ARROYO, João Carlos Tupinambá; SCHUCH, Flávio Camargo (2006). Economia popular e solidária. São Paulo: Perseu Abramo; Economia Solidária vol, I. Disponível na Înternet em: http://www.uff.br/ incubadoraecosol/docs/ecosolv1.pdf. Consulta em 09.03.2017. 33 São, principalmente, os estudos de Marcel Mauss (1872-1950), Branislaw Kasper Malinowski (1884-1942), Fanz Uri Boas (1858-1942), Karl Polanyi (1886-1964) e Maurice Godelier (1934) que o confirmam. 34 Cf. Mariza PEIRANO, 2003, Rituais. Ontem e hoje, Rio de Janeiro, p. 12. De romarias e arraiais no mundo insular 16
  • 17. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA festeiro gerou uma inflação nesta economia do céu. Mas foi a economia a funcionar, na preparação e consoli- dação do caminho do Céu. Aqui caminhamos entre a retribuição, a dádiva35 e o dom36 . Estamos perante uma realidade alheia à dinâmica do sistema tradicional de trocas capitalista. A dádiva é um gesto ritual, religioso37 e acontece em todos os tempos38 , assumindo, nas religiões, um papel fundamental39 . Para os cristãos, a caridade assume uma dimensão fundamental da prática religiosa e está também presente nesta gestão da economia do Céu, uma vez que os cristãos são chamados, por força da doutrina, a praticar a caridade que passa pela ajuda ao próximo, na pobreza e doença40 . Com a caridade, partilha, dádiva e dom, o praticante ganha o Reino dos Céus. O mesmo sucede com o Budismo Mahayana, em que um dos ensinamentos para o caminho da perfeição41 passa obrigatoriamente pela “Dana paramita”, que é o mesmo que doação, generosidade, oferta. É simbolizada pela tigela de recolher oferendas (patta/patra) que a ima- gem do Buda apresenta na mão direita. 35 A dádiva assumem uma situação particular pois As relações de dádiva, em face da obrigação de retribuir, que se torna ao mesmo tempo a coisa a ser explicada e a essência de toda relação de dádiva, sua verdadeira natureza, aquela que se esconde por traz das afirmações de gratuidade dos atores. Donde se conclui que a essência da dádiva não é ser uma dádiva. É o que expressa a ideia de reciprocidade como fundamento da dádiva. (CAILLÉ, Alain. “Nem holismo nem individualismo metodológicos – Marcel Mauss e o paradigma da dádiva”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 13. n. 38. Outubro de 1998. p. 113). Ainda a dádiva seria uma experiência em que a distância entre fins e meios é abolida, em que não há mais fins e meios, mas um ato que preenche o espaço de significação do sujeito e faz com que sejamos ultrapassados pelo que passa por nós. “Uma experiência em que a sociedade é vivida como comunidade. (GODBOUT, Jacques T., Introdução à dádiva”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 13. n. 38. Outubro de 1998. p. 49). E a verdadeira dádiva é um gesto socialmente espontâneo, um movimento impossível de captar uma obrigação que o doador dá a si mesmo, mas uma obrigação interna, imanente. (Godbout, GODBOUT, Jacques T., “Introdução à dádiva”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 13. n. 38. Outubro de 1998. p. 47). Segundo Mauss: (...) direitos e deveres, que se mostram simétricos dão vazão à circulação de dádivas entre os diversos grupos. Tudo circula, as dádivas circulam, mas na realidade, o que está em jogo são as alianças espirituais. Trocam-se matérias espirituais por meio das dádivas. Os homens estão ligados espiritualmente a seus bens que, quando passados a outrem, estabelecem ligação espiritual com o doador. E, neste sentido, misturam se doadores e beneficiários, homens, coisas e matéria espiritual. (Mauss, MAUSS, Marcel. “O ensaio sobre a dádiva”. Sociologia e Antropologia. v. 2. São Paulo, EPU e EDUSP, 1974. 53). 36 Cf. “…sacrificar é oferecer destruindo o que se oferece e, é nisso que o sacrifício é uma espécie de potlatch e que os dons aos deuses, aos espíritos da natureza não apenas pertencem ao “mesmo complexo” mas, “elevam ao grau supremo” a economia e o espírito do dom (GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.p. 50).Sobre o dom cf. COLLIER, J & ROSALDO, M. 1981. “Politics and gender in simple societies”. In Sexual meanings: the cultural construction of gender and sexuality (ed.) S. Ortner & H. Whitehead, 275-329. Cambridge: University Press. GRAEBER, D. & M. LANNA. 2005 “Comunismo ou comunalismo: apolítica e o Ensaio sobre o dom“. Revista de Antropologia, vol.48(2), p. 501-23., USP. GREGORY, C. 1982. Gifts and commodities. Academic Press. HUGH-JONES, S. “Nota sobre Marcel Mausse o Ensaio sobre a dádiva”. Revista de Sociologia e política, 14. P. 173-94. UFPr; VIVEIROS DE CASTRO, E. 2002. “O conceito de sociedade em antropologia” In A inconstância da alma selvagem. Cosac e Naify;VIVEIROS DE CASTRO, E. 2009. “The gift and the given; three nano essays on kinship and magic”. In: Kinship and beyond: the genealogical model reconsidered, Sandra C. Bamford & James Leach (eds)., Berghahn Books; Marcos Lanna, O dom e a teoria ameríndia, Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.4, n.1, jan.-jun., 2012,p. 10-20. 37 Pois, (...) direitos e deveres, que se mostram simétricos dão vazão à circulação de dádivas entre os diversos grupos. Tudo circula, as dádivas circulam, mas na realidade, o que está em jogo são as alianças espirituais. Trocam-se matérias espirituais por meio das dádivas. Os homens estão ligados espiritualmente a seus bens que, quando passados a outrem, estabelecem ligação espiritual com o doador. E, neste sentido, misturam-se doadores e beneficiários, homens, coisas e matéria espiritual (Mauss, MAUSS, Marcel. “O ensaio sobre a dádiva”. Sociologia e Antropologia. v. 2. São Paulo, EPU e EDUSP, 1974. 53). Mais, Na economia da oferenda, a troca se transfigura em oblação de si a uma espécie de entidade transcendente. Na maior parte das sociedades, não se oferecem materiais brutos à divindade, como ouro, por exemplo, e sim trabalhado. O esforço de transformar a coisa bruta em objeto belo, em estátua, faz parte do trabalho de eufemização da relação económica. (BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1997. p. 158-185). É a consumação de um sacrifício, pois sacrificar é oferecer destruindo o que se oferece e, é nisso que o sacrifício é uma espécie de potlatch e que os dons aos deuses, aos espíritos da natureza não apenas pertencem ao “mesmo complexo” mas, “elevam ao grau supremo” a economia e o espírito do dom. (GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.p. 50). 38 Assim temos que A troca de presentes de natal, o jogo, o “dar uma recepção”, o ritual da refeição nos restaurantes baratos no sul da França são alguns dos exemplos que evidenciam a sobrevivência dos dons recíprocos nas nossas sociedades. Um momento em que “os bens não são somente comodidades econômicas, mas veículos e instrumentos de rea- lidades de outra ordem, potência, poder, simpatia, posição, emoção. O jogo sábio das trocas (onde frequentemente não há transferência real, assim como os jogadores de xadrez não dão um ao outro as peças que avançam alternativamente no tabuleiro, mas procuram somente provocar uma resposta) consiste em um conjunto complexo de manobras, conscientes ou inconscientes, para adquirir garantias e prevenir-se contra riscos no duplo terreno das alianças e das rivalidades (LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976, p. 94). 39 Cf. BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1997; CAILLÉ, Alain. “Nem holismo nem individualismo metodoló- gicos – Marcel Mauss e o paradigma da dádiva”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 13. n. 38. Outubro de 1998; CAILLÉ, Alain. Antropologia do dom: o terceiro paradigma. Petrópolis: Vozes, 2002; DELUMEAU, Jean & MELCHIOR-BONNET, Sabine. De Religiões e de homens. São Paulo: Loyola, 2000; GAARDER, Jostein et alii. O Livro das Religiões. Trad. Isa M. Lando. São Paulo: Cia das Letras, 2001; GODBOUT, Jacques T.. “Introdução à dádiva”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 13. n. 38. Outubro de 1998; GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001; LÉ- VI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976; MAUSS, Marcel. “O ensaio sobre a dádiva”. Sociologia e Antropologia. v. 2. São Paulo, EPU e EDUSP, 1974; MAUSS, Marcel. “O ensaio sobre a dádiva”. Sociologia e Antropologia. v. 2. São Paulo, EPU e EDUSP, 1974; Pinheiro, Ana, A dádiva no ritual da Procissão do Fogaréu na Cidade de Goiás. Dissertação (Mestrado em Ciências Humanas) - Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2004, pp. 46-75. 40 Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: ‘Venham, benditos de meu Pai! Recebam como herança o Reino que foi preparado para vocês desde a criação do mundo. Pois eu tive fome, e deram-me de comer; tive sede, e vocês deram-me de beber; fui estrangeiro, e acolheram-me; estava nu, e vestiram-me; estive enfermo, e cuidaram de mim; estive preso, e visitaram-me”. Mateus 25:34-36. 41 São seis: Dana paramita - Doação, generosidade, oferta; Shila paramita - Os preceitos ou treinamentos da atenção plena; Kshanti paramita - Tolerância, a capacidade de acolher, suportar e transformar a dor infligida a você por seus inimigos e também pelas pessoas que o amam; Virya pammita - O esforço, energia, perseverança; Dhyana paramita - A meditação; Prajna paramita - A sabedoria, compreensão, insight. De romarias e arraiais no mundo insular 17
  • 18. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA Há, porém, um outro aspeto que nos cumpre, aqui, acrescentar. É que a dádiva pode ter um cariz social, de afirmação e prestígio de quem dá, de perpetuação do seu nome e da publicidade da dádiva. A construção de uma capela, duma placa tumular, a encomenda de uma pintura ou escultura, publicitam e afirmam social- mente o nome do seu doador. Quer o nome, quer o gesto do doador perpetuam-se e serão sempre lembra- dos. É assim que se estabelecem compromissos perpétuos, que comprometem a presente e a futura geração, estabelecendo uma cadeia geracional de compromissos entre ascendentes e descendentes. Esta cadeia ge- racional parece não ser tão valorizada no Ocidente, como no Oriente. É no Budismo, Taoismo e Hinduismo que temos a maior afirmação e as evidências da eternidade desta cadeia geracional42 . Esta tripla dimensão da espiritualidade congrega-se, ainda, por força de uma dimensão afirmada de que o processo evolutivo da espiritualidade acontece, por interinfluência mútua, nas linhas ascendente e descendente. Desta forma, o es- pírito é herdeiro, beneficiário, usufrutuário da herança carmica e darmica43 , atuando de forma dinâmica, em sentido inverso, pela sua ação no presente em favor ou desfavor dos antepassados. Daí o respeito geracional que a cultura e tradição infundem de forma ritualística e religiosa. É neste contexto que devemos enquadrar a samsara44 , a roda da vida que determina o seu permanente fluir e que só para com a “moksha”45 . A retribuição, a dádiva e o dom fazem parte, de forma evidente das regras que emanam da doutrina das principais religiões e geram outra forma de interação social, mesmo na esfera económica que se alheia da dinâmica capitalista. Daí a ideia da economia solidária46 e que levou o papa Francisco a acusar, na exortação apostólica Evangelii Gaudium47 , e na encíclica Laudato Sí48 , a “economia de exclusão” do mundo atual, assen- te na “nova idolatria do dinheiro”. Desta forma “[...] os poderes económicos continuam a justificar o sistema 42 Cf. BOWKER, John. Para Entender as religiões: as grandes religiões mundiais explicadas por meio de uma combinação perfeita de texto e imagens. São Paulo: Editora Ática, 1997; KUNG, Hans. Religiões do mundo: em busca dos pontos comuns. Campinas: Verus Editora, 2004; PIERIS, Aloysius. Viver e Arriscar: Estudos inter- religiosos comparativos a partir de uma perspectiva asiática. São Paulo: Nhanduti Editora, 2008; USARSKI, Frank. Budismo e as Outras: encontros e desencontros entre as grandes religiões mundiais. 1 ed. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2009. 43 De acordo com a samsara a vida terrena é cíclica, de forma que todos morremos e renascemos. O nível de evolução de cada reencarnação resulta do karma, isto é as condutas e ações de vidas passadas, que se alcança através de dharms, ou seja os comportamentos de cada estádio da vida. O ciclo de reencarnação só termina com a moksha, a liberação das amarras terrenas. Para Radhakrishnan simboliza todos aqueles ideais e objetivos, influências e instituições que dão forma ao caráter do ser humano, tanto como um indivíduo quanto enquanto um membro da sociedade; é a lei do viver corretamente, o ritual que assegura o objetivo duplo de felicidade na terra e salvação, já que ele é ética e religião combinados. Esse autor ainda explica que a vida de um hindu é regulada, em um nível muito detalhado, pelas leis do dharma: seus jejuns e festas, seus laços sociais e familiares, seus hábitos e gostos pessoais são, todos, vistos através dele. (Garcia, R. R. 2014. Ensaio para uma Fenomeno- logia do Pensamento Védico. Revista de Estudos da Religião (REVER), 14(1), 52-75.). Saliente-se que o karma, originalmente significava sacrifício; depois, passou a qualificar o comportamento humano na medida em que é ou não a ordem justa das coisas ou dharma (DELUMEAU, Jean & MELCHIOR-BONNET, Sabine. De Religiões e de homens. São Paulo: Loyola, 2000. p. 308), Cf. RADHAKRISHNAN, S. The Hindu Dharma. International journal of ethics, v. 33, nº.1, p. 1-22, 1922. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/2377174. Acesso a 6 fev. 2017; DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro. Rocco, 1985; DUMONT, Louis.Homo hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992; WEBER, Max. The religion of India. The sociology of Hinduism and Buddhism. Glencoe, Illinois: Free Press, 1958; WERNER, Karel. A popular dictionary of Hinduism translation. Richmond, Surrey: Curzon Press, 1994; ZIMMER, Heinrich. Filosofías de la India. Buenos Aires, 1979. EUDEBA (Editorial Universitaria de Buenos Aires). 44 Andrade, J., & Apolloni, R. W. (2010). Dos ciclos da natureza à roda de Samsara: a geografia na raiz do budismo. INTERAÇÕES, 5 (8), 63-78; SAM- TEN, Padma. A Roda da vida: como caminho para a lucidez. São Paulo: Editora Peirópolis, 2010. Cf. a nota anterior. 45 Ou Mukti é libertação do ciclo do renascimento e morte com a iluminação espiritual. 46 Sobre a ideia de economia solidária cf. Jacob Carlos Lima e André Ricardo de Souza, TRABALHO, SOLIDARIEDADE SOCIAL E ECONOMIA SOLIDÁRIA, in Lua Nova, São Paulo, 93 (2014): 139-168; CATTANI, A. D.; LAVILLE J.L; GAIGER, L. I.; HESPANHA, P. (orgs.). 2009. Dicionário internacional da outra economia. Coimbra: Almedina; GORZ, A. 2005. O imaterial. Conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume; LAVILLE, J. L. (org.) 1994. L’économie solidaire: une perspective internationale. Paris: Desclée de Brouwer; LEITE, M. P. 2009. “A economia solidária e o trabalho associativo: teorias e realidades”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 24, n, 69, pp. 31-51; LIMA, J. C. 2014. “Economia solidária: de movimento social a política pública”. In: LEITE, M. L.; ARAÚJO, A. M. C.; LIMA, J. C. O trabalho na economia solidária: entre precariedade e emancipação. São Paulo: Annablume; PAUGAM, S. 2011a [2007]. “Introduction: les fondements de la solidarité”. In: PAUGAM, S. (org.). Repenser la solidarité. Paris: Presses Universitaires de France; PELLETIER, D. 1996. Économie et humanisme: de l’utopie communautaire au combat pour le tiers-monde (1941-1966). Paris: Cerf; SANTOS, B. S. (org.). 2002. Produzir para viver: os caminhos da produção não capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; SINGER, P. 2002. Introdução à economia solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; SOUZA, A. R. 2013. Os laços entre igreja, governo e economia solidária. São Carlos: EdUFSCar/Fapesp. 47 Publicado em: https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20131124_evangelii- -gaudium.html. 48 A encíclica Laudato Si, a chamada encíclica verde, foi publicada em junho de 2015 (FRANCISCO. Encíclica “Laudato si’” sobre o cuidado da casa comum [LS]. São Paulo: Paulinas, 2015). Cf. Reis, É. V. B., & Bizawu, K. (2015). A Encíclica Laudato Si à Luz do Direito Internacional do Meio Am- biente. Veredas do Direito: Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável, 12(23), 37; Alves, J. E. D. (2015). A encíclica Laudato Si’: ecologia integral, gênero e ecologia profunda/The Encyclical Laudato Si’: integral ecology, gender and deep ecology. Horizonte, 13 (39), 1315; Maçaneiro, M. (2016). Vozes do sul na encíclica Laudato si’: Fontes e temas. Revista Pistis Praxis, 8 (3); FERRARO, B. Laudato si’ e a opção pelos pobres. In: MURAD, A.; TAVARES, S.S. (orgs.). Cuidar da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2016, p. 65-72; MAÇANEIRO, M. A ecologia e o ensino social da Igreja: inscrição e alcances de um paradigma. In: ZACHARIAS, R.; MANZINI, R. (orgs.). Magistério e doutrina social da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2016, p. 230-283. De romarias e arraiais no mundo insular 18
  • 19. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA mundial atual, onde predomina uma especulação e uma busca de receitas financeiras que tendem a ignorar todo o contexto e os efeitos sobre a dignidade humana e sobre o meio ambiente. Assim se manifesta como estão intimamente ligadas a degradação ambiental e a degradação humana e ética”49 , porque o ser humano é um “bem de consumo”. Fonte de N. Sª do Monte, desenho aguarelado de Andrew Picken, 1840 2. O arquipélago. Uma religiosidade de matriz europeia Tudo começa com a chegada, às ilhas, dos primeiros europeus. Navegadores, agentes da coroa, aventu- reiros e colonos são herdeiros de uma tradição e cultura religiosa europeia, que será um elo importante no gerar da nova sociedade insular. Há uma matriz europeia, predominantemente do norte de Portugal que molda todo este processo de afirmação da religiosidade e tradições populares50 . A dois de julho de 1420 desembarcou João Gonçalves Zarco no vale de Machico e, de imediato, procedeu à posse da terra em nome do rei e à sua sagração com a 49 FRANCISCO. Encíclica “Laudato si’” sobre o cuidado da casa comum [LS]. São Paulo: Paulinas, 2015, p. 56. 50 Já em 1922 Padre Eduardo Pereira afirmava que As festas populares da Madeira refletem a alegria e a vivacidade das festas das nossas provincias do norte; teem a tristeza e o saudosismo das canções portuguesas do sul; mas no seu aspecto exterior resentem-se das influencias extranhas dos povos que desde o descobrimento viveram em eontacto comnosco, e que da sua raça com a nossa raça, sangue, indole e costumes misturaram. (p. 31) De romarias e arraiais no mundo insular 19
  • 20. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA primeira missa, rezada pelos franciscanos que acompanharam a viagem. O texto de Francisco Alcoforado é muito claro: (...) detremynou sajr em terra e levar consygo dous padres que trazia, sajmdo em terra deu graça a Deos mandou bemzer aguoa e aspargella pello ar (...) mandou dizer mysa (...) Foy a prymeyra mysa que se dise (...) 51 . Em maio do ano imediato, João Gonçalves Zarco regressou à ilha com três navios e a disposição de proceder ao seu povoamento. De novo o desembarque em Machico e a primeira cousa que fez foy traçar uma igreja de Invocação de Xpo...52 . Depois, foi o novo reconhecimento da costa, com o assentamento de colonos. Todos os actos eram precedidos pela construção de uma igreja ou ermida. No Funchal foram as capelas de Santa Catarina e a de Nossa Senhora do Calhau, sendo a última considerada pelo autor a prymeyra casa de jgreja que se fez na ilha. Mais além, em Câmara de Lobos a do Espírito Santo, na Quinta Grande a de Vera Cruz, nos Canhas a de Santiago, na Estrela (Calheta) a de Nossa Senhora da Estrela. E conclui o cronista: ...começou a por em obra a edificação das jgrejas e llavrança da terra. O templo religioso é o ponto de divergência do processo de po- voamento e foi em torno dele que surgiram as primeiras habitações de madeira para dar abrigo aos colonos. Estamos perante mais uma situação reveladora da importância da igreja em todo o processo. De acordo com a doação régia de 26 de setembro 143353 o infante, como mestre da Ordem de Cristo, recebeu também a capacidade de intervenção no novo espaço. O Vigário de Tomar, local sede da ordem, era quem, em nome do infante, estabelecia a estrutura religiosa, provendo os ministros. Apenas a arrecadação dos dízimos eclesiásticos permanecia a cargo do almoxarife do infante54 . Para cada capitania foi nomeado um vigário, que dependia diretamente do de Tomar, tendo como função administrar a espiritualidade da jurisdição. No período de 1433 a 1494, as administrações civis e religio­sa estavam a cargo do mestre da Ordem de Cristo que, no caso da alçada religiosa, determinara a sua superintendên­cia pelo vigário da vila de To- mar. De acordo com a bula de 1456, as novas áreas atlânt­icas eram consideradas “nullius diocesis”, estando dependen­te da­quele vigário. Era ele quem determinava a construção das primei­ras igrejas e nomeava os prelados para o serviço religioso. O rei concedeu o direito de padroado à Ordem de Cristo. Primeiro em 1433, o arquipélago da Madeira alargado, depois, em 1454, a todos os territórios descobertos, situação confirmada por bula papal de 17 de Março de 1456. O governo espiritual ficou entregue ao vigário de Tomar, sede da Ordem de Cristo e na condi- ção de nullius dioce­sis, enquanto ao administrador da ordem competia a construção dos templos, a nomear os ministros e pagar o vencimento. Isto não agradou à diocese de Tânger que queria alargar os domínios às ilhas55 . À parte isso, em todas as ilhas, estabeleceu-se ouvido­rias com o obje­tivo de organizar e exercer o governo eclesiástico. A situação mudou em 1514, com a criação do bispado do Funchal e, depois a 30 de dezem­bro de 1551, com o regresso à coroa do padroado. Extinto o senhorio, a Ordem de Cristo através do vigário de Tomar, continuou a superintender o governo eclesiástico das ilhas até que a 12 de junho de 1514, pela bula “Pro excellenti”, foi criado o bispado do Funchal com jurisdição sobre toda a área ocu­pada pelos portugueses no Atlântico e Indico. Até então, todo o serviço episcopal era feito por bispos titulares envia­dos pelo referido vigário, como sucedeu em 1507 e 1508. Mas o pro­gresso económico e social levou à criação, em 1534, de novas dioce­­­ses em Goa, Angra, Santia­go e S. Tomé, cujas áreas foram desane­xadas à do Funchal A 31 de janeiro de 1533, a diocese do Funchal foi elevada à categoria de metropolitana e primaz, englo­ bando “a Ma­deira e Porto Santo, as ilhas Desertas e Selva­gens, aquela parte continental de África, que entes- ta com a diocese de Safi[m] e bem assim as terras do Brasil, tanto as já descober­tas, como as que se vierem a descobrir”. Mas esta foi uma situação passageira. Além disso, a bula papal não foi expedida do Vaticano, 51 A Relação de Francisco Alcoforado, publ. por José Manuel de CASTRO, Descobrimento de Ilha da Madeira ano 1420..., Lisboa, SD, p. 90. 52 Ibidem, p. 93. 53 J. M. Silva MARQUES, ob. cit., I, p. 273, 400. 54 Fernando Jasmins PEREIRA, “Bens Eclesiásticos - Diocese do Funchal” in Estudos sobre História da Madeira, Funchal, 1991, pp. 325-327. 55 Cf. António BRÁSIO, “O Padroado da Ordem de Cristo na Madeira”, in Arquivo Histórico da Madeira, XII, 1960-61, pp. 193-228. De romarias e arraiais no mundo insular 20
  • 21. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA por a coroa a não ter pago, o que coloca a dúvida da existência real do arcebispado do Funchal. Em 1551, o papa Júlio III revogou a situação, passando o Funchal para simples bispado sufra­gâ­neo de Lisboa, que passou a assumir a função de primaz das terras atlânticas, enquanto a de Goa preencherá idênticas funções para as terras orien­tais. A justificação apresentada pelo papa é expressiva da mudança operada na geografia econó- mica do espaço atlântico: Nós, porém, considerando que a navegação da província arquiepiscopal para a cidade do Funchal é muito difícil e incerta e que se torna não menos perigosa que dispendiosa aos bispos provinciais ao clero e ao povo, e que muitas vezes acontece que para tal navegação faltam os navios necessários e bem apetrechados, e mesmo que os haja, nem todos ousam lançar-se ao mar numa viagem tão longínqua e perigosa, pelo que os mesmos provinciais, que apelam para o arcebispo do Funchal, não podem apresentar-se ao seu tribunal e à dita cidade, para fazerem valer as suas apelações e conseguirem a justiça desejada e além disso, sofrem outros incómodos e danos...56 . Arraial, figuras de presépio,séc. XX. Casa-Museu Frederico de Freitas, Funchal De acordo com Henrique Henriques de Noronha, as imagens “afervoram a devoção” dos moradores, sendo por isso um das evidências particulares da religiosidade madeirense. Devemos assinalar em primeiro lugar as dos santos milagreiros e populares que acolhem à sua volta inúmeros devotos e são sempre motivo de súplica em momentos de aflição. É ainda nas romagens que o povo exterioriza a sua religiosidade. Assim, o Visconde do Porto da Cruz (1945: 18) afirma que As festas principais chamam peregrinos e romeiros, sempre atrás de uma Virgem, de um santo, de um milagre ou do pagamento de promessas: As principais festas da Madeira, que chamam os romeiros dos mais distantes lugarejos e que servem, como balizas para orientar as minúcias da vida regional, são, pela ordem da sua importância, a «Senhora d’Agosto», no Monte, o «Senhor Jesus» na Ponta Delgada, o «Senhor dos Milagres» em Machico. Em torno destas romagens, mistura-se sem- pre o mito, a lenda e a religiosidade instituída. As romagens completam a exteriorização da religiosidade popular, ganhando protagonismo diverso ao longo dos séculos. A mais antiga referência é a de Nossa Senhora do Faial ou da Natividade, a 8 de setembro, que se perdeu no tempo, já referida por Gaspar Frutuoso57 . Ainda, de vetusta tradição são as romagens do 56 Pe. Manuel Juvenal Pita FERREIRA, A Sé do Funchal, Funchal, 1963, 84.rep 57 Aí refere que Dizem que ali apareceu Nossa Senhora onde tem a igreja. Dia de Nossa Senhora, que era a 8 de Setembro, se ajuntavam, no Faial, de romagem de toda a Ilha passante de outo mil almas. Vinham de dez e doze léguas por terra mui fragosa; e entre ca musica de muitos instrumentos: que traziam, «violas, guitarras, De romarias e arraiais no mundo insular 21
  • 22. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA Bom Jesus da Ponta Delgada e de Nossa Senhora do Monte, a que se deverá associar o culto a Nossa Senhora do Rosário, do Loreto e o Senhor dos Milagres. Banda de música, figuras de presépio, barro policromado e madeira, séc. XX Casa-museu Frederico de Freitas, Funchal No século XIX, Isabella de França traça-nos de forma peculiar a romaria de Santo António da Serra, atra- vés de vivência dos romeiros, cujas manifestações, incompreendidas, pelos estrangeiros são vistas como uma “palhaçada”, tendo em conta esta mescla entre o sacro e o profano. Aqui é testemunhado o ambiente de folguedo que anima a romaria. Aqui à devoção junta-se a alegria dos tocares, danças e cantares, e a feira de venda dos produtos. Ambos os relatos são a melhor imagem que retemos da romaria e arraial madeirenses. O avanço da rede de estradas a partir da década de quarenta trouxe os excursionistas e acabou por destronar a animação que se fazia a bordo dos vapores costeiros. A tradição ainda testemunha a vivência dos romeiros. O folclore preservou muitos dos despiques e cantorias dos Romeiros. frautas e rabis:.. soavam as célticas “gaitas de fole” do Minho e da Galiza. (Saudades da Terra, ed. de 1873. pag. 99) De romarias e arraiais no mundo insular 22
  • 23. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA The Church of Ponta Delgada. Views in the Madeiras, by the Revd. James Bulwer, London 1827 O sacro e o profano aliavam-se na definição de um calendário ritual da ilha. O Senhor Bom Jesus e Nossa Senhora do Rosário firmaram-se, desde muito cedo, na devoção das gentes do norte e, mais tarde, de toda a ilha. O Senhor Bom Jesus é a devoção mais antiga e terá surgido em 1466 com Manuel Afonso Sanha, um co- lono oriundo de Braga que fez transplantar para a sua sesmaria, na Ponta Delgada, o patrono da sua devoção, fazendo erguer em sua honra uma ermida. Mas este culto privado rapidamente passou a todas as gentes do local, da encosta norte, e, depois, de toda a ilha. Esta devoção foi promovida, desde finais do século XVI pela confraria do Senhor Bom Jesus. A fama do Senhor Bom Jesus como milagreiro alastrou a toda a ilha e fez com que o norte, mais propriamente Ponta Delgada, se transformasse num dos principais centros de peregrina- ção. O testemunho das assíduas romagens está no facto de, em 1646, Afonso Gomes ter deixado à fábrica da igreja de Ponta Delgada uma casa para os romeiros58 . Nestas situações, como na devoção e ritual aos santos populares, há uma variada forma de expressão da religiosidade, partilhada entre a regra instituída pela crença oficial da igreja e do povo, mas ambas se misturam no momento e no espaço do arraial. Aqui como noutras circunstâncias a fé do povo balbucia entre a normativa oficial da doutrina católica e as crenças ancestrais que apelam a outras forças e poderes ocultos que, não obstante serem renegados e perseguidos pela igreja, continuam a manter-se no quotidiano deste povo. Todos se dizem cristãos e católicos praticantes, mas fica ainda um lugar para a crença em poderes ocul- tos e a forças da natureza. Há recordações e lembranças que correm as principais veredas e caminhos do interior da ilha e dos lugares que nos trazem a imagem desses tempos perdidos na herança do tempo. Sítios como o Curral dos Romeiros e as casas adossadas ao templo religioso que encontramos em Ponta Delgada, Santo António da Serra, Santa Cruz, Santo Amaro e Monte, são memórias disso59 . 58 No último quartel do século XVI, a festa do Senhor Bom Jesus fazia atrair muitos romeiros à encosta norte. A devoção ao Senhor Bom Jesus e a afluência dos romeiros redobrou nos séculos seguintes. Em 1657 e 1706 surgem queixas a propósito de o gado, no caso de caprino, pastar nas serras, sobranceiras às veredas, o que fazia perigar os transeuntes que se dirigiam à missa ou em romagem. E, no último ano, refere-se a morte de muitas pessoas das contínuas romarias. E este culto foi-se afirmando nos séculos seguintes, persistindo com o mesmo vigor até a atualidade. Cf. VERÍSSIMO, 1998:91-93. 59 Eduardo Pereira (1922: 32-33) diz-nos que Às romarias concorrem peregrinos de quasi todas as localidades aos grupos de dezenas, com cestas de vime ou farneis cheios de merendas para a viagem e providos de bebidas em bexigas de porco, chifres ou cabaças, dançando homens e mulheres em todo o percurso ao som de gaitas, sanfonas, machetes, braguinhas. castanholas, pandeiros ou ferrinhos. (…) Caraterizam-se os arraiais das principais romagens da Madeira pelo ajuntamento duma massa compacta e foliona de gente de todas as partes da ilha que afluem áqueles logares em manifestações de fé e piedade a cumprir votos, fazer promessas, tratar de negócios e procurar diversões. E’ de costume e necessidade abaterem-se dezenas de rezes para a indispensável espetada ao ar livre no brazeiro improvisam-se barracas de louro para petiscos, cosinhados e bebidas, o vinho espuma De romarias e arraiais no mundo insular 23
  • 24. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA As romagens completam a exteriorização da religiosidade popular, ganhando protagonismo diverso ao longo dos séculos. O sacro e o profano aliavam-se na definição de um calendário ritual em toda a ilha. É neste quadro, profundamente marcado por uma matriz europeia, que se moldou, em quase seiscentos anos, a religiosidade madeirense de hoje. Há ligações ancestrais que se cruzam com outras que foram sendo definidas no decurso do tempo, que criaram as condições para a diversidade de formas de expressão da “eco- nomia do céu”, onde se entrecruzam o dom, a dádiva e o perdão e remissão do mal ou do pecado. Vilão tocando viola e viloa tocando machete, bilhete-postal, ed. Bazar do Povo, Funchal AS ROMARIAS E OS ARRAIAIS As romarias e os arraiais que as acompanham, assim como as peregrinações são responsáveis por uma mobilidade em múltiplas direções. De fora para dentro, temos os emigrantes que retornam à terra natal para vivenciar estas festividades e partilhá-las com familiares e amigos. De dentro para o exterior, acontecem as chamadas peregrinações aos lugares santos ou a lugares emblemáticos desta caminhada rumo ao sagrado, como é o caso de Fátima. Mas é sem dúvida internamente que mais se potencializou a mobilidade, por força dos arraiais em lugares de culto, que tiveram e ainda mantêm um relevo na sociedade das ilhas. cantante de barris encanteirados sobre muros; ha taboleiros de rebuçados, cavacas doces, bonecas de milho enfeitadas a penas coloridas de aves; os bazares tilintam campainhas e ronfenham gramofones, insidiam-nos eirios de promessas á volta do templo;despicam-se ao desafio trovadores borrachos; na egreja destilha a bicha do osculo da imagem, da compra dos registos bento e do toque no santo com raminhos de mangerico. No adro há musica, arcos e bandeiras; o alecrim e a murta reacendem de pisados nos caminhos, estralejam os dedos das moças como castanholas, aos ranchos, batendo rodas do principio ao fim do arraial. De romarias e arraiais no mundo insular 24
  • 25. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA Diário de Notícias, 29.08.1895, p. 4 Com o tempo, foram progredindo os meios de acesso a estes lugares sagrados: a pé60 , em romagem, sulcando os caminhos que enlaçavam os santuários da ilha, de barco, ao longo da costa, à procura dos portos costeiras que abriam as portas para os arraiais, ou, de automóvel com maior conforto, desde a chegada do automóvel, em princípios do século XX, e a abertura das primeiras estradas, ao atual sistema viário, servido por vias rápidas. Há uma concentração destas festividades na época estival, o que permitia a mais fácil mobi- lidade por terra e mar, como por coincidir com alguns períodos após as colheitas. A religiosidade popular, assente nestes sustentáculos das romarias e arraiais, mobilizou as gentes, tor- nando-se num dos mais poderosos agentes da mobilidade interna, com repercussões evidentes na sociabili- dade e economia. O dia da festa e arraial é um momento único para as freguesias-sede do orago. Era evidente um desu- sado movimento nas proximidades da igreja. E a isso associava-se a animação e reboliço que se espalhava a todos os sítios por onde passavam os romeiros. Eram três ou quatro dias de arraial, anunciado pelos romei- ros e que contagiava todos sem exceção. Disso nos dá conta, de forma exemplar, Horário Bento de Gouveia, quanto ao arraial e romagens do Bom Jesus da Ponta Delgada: 60 Com sucedia com a Festa do Senhor Bom Jesus da Ponta Delgada no primeiro domingo de setembro em que as romagens aconteciam a pé pelo interior da ilha (Cf. Diário de Notícias, 25.08.1895, p. 1; id., 05.09.1933, p. 4), a que, depois, se associaram os vapores costeiros (Cf. Diário de Notícias, 29.08.1895, p. 4; id., 31.06.1895, p. 4; id., 29.08.1933, p. 1/2) e os automóveis (Cf. Diário de Notícias, 2.9.1933, p. 2; id., 03.09.1933, p. 6; id.05.09.1933, p. 1). De romarias e arraiais no mundo insular 25
  • 26. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA DN.0909.1897, p. 3 Na quinta-feira; véspera da grande romagem ao Senhor Jesus, a freguesia metamorfoseia-se, ganha expressão própria; uma vida transitória mas trepidante corre em suas artérias. Vive-se a agitação de cidade mercantil. Os cerieiros armaram as tendas em torno dos plátanos do Largo do Açougue. Há tabuleiros com círios da altura de um homem e com outros metidos dentro de canas rachadas, e ainda se vêem molhos de círios com fitas encarnadas a embelezá-los, um por um, circuntornando-os em espiral. Vitrinas abarrotadas de quinquilharias assentam em cima de caixotes encostados ao resguardo que limita o Largo. São os primeiros vendedores nómadas que vêm trazer a sua cor pitoresca ao arraial. Na orla das ruas principais, os barraqueiros desmoronam muros, espetam estacas no chão, põem prateleiras, colocam toldos, amarram com espadanas e vimes ramos de loiro e de barbuzano que formam as paredes das típicas casas de comidas e bebidas. Chaprões de til preto são postos em esquadria em cima de barricas e outros são firmados sobre cunhais de pedra, nos talhos que surgem a esmo, ao longo das ruas, e onde as reses vão ser mortas. Descem os carreiros das ravinas, que vêm morrer à vizinhança dos casais, homens ajoujados com cargas de espetos de loureiro para a carne assada, com lenha de urze para os braseiros, com De romarias e arraiais no mundo insular 26
  • 27. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA galhos de barbuzano e de loiro prenhes de folhas e com alegra-campo para o alindamento do interior da igreja. O negócio é sempre de tentar na época da festa. Por isso, não há loja que não fique apalavrada de ano para ano, não há terreno à margem do caminho onde cresça erva nos três dias que precedem o primeiro domingo de Setembro. O silêncio da aldeia perdeu a poesia, o mistério que se desentranha da natureza fecunda: o sus- surro da água que escorre das aguagens, o rumor da viração que afaga as franças das árvores fazendo estremecer as folhas que se vergam, o bramir do mar e o coro das aves cantadeiras. Agora havia o que quer que fosse de desabitual, de novo, de estranho. Um alvoroço percorria a aldeia de cabo a cabo como o sangue circula no corpo. Desde que o Sol se erguera lá para trás das rochas altas, rompendo a corda de nuvens negras acasteladas no horizonte marinho, come- çara a azáfama que sempre se repete ao acercar-se a tradicional romagem: negociantes das povoações mais chegadas vinham tomar conta da sua quitanda ou da nesga de terreno onde esperavam atrair os romeiros, com servir bem a carne e ovinho. E traziam serrotes, martelos e podoas, e pregos nas algibeiras dos casacos, em companhia de rapazelhos que vêm munidos de vimes verdes para amarrar os galhos de loiro que hão-de formar as barracas. Ouve-se o toque de um «machete», a primeira mensagem do arraial em sua toada de reminiscência árabe. E a cami- nho da igreja vão camponeses e caseiros com molhos de alegra-campo cantando um conjunto de sílabas sonoras, que já tinham ouvido aos pais, quando desciam os atalhos da serra, carregados de lenha para vender aos senhores da freguesia (...) Na sexta feira, convergem à povoação através dos primitivos caminhos abertos no basalto, su- bindo planaltos, descendo fajãs, galgando colinas, vadiando ribeiras, os romeiros das freguesias mais longínquas da ilha. De saias às riscas de cores vistosas, em que sobressaem o encarnado e o azul, as raparigas bailaricam ao som da viola de arame, do harmónio e dos ferrinhos, com seus requebros dengosos de cintura, braços no ar batendo palmas, enquanto os tocadores com um grande chifre cheio de vinho ou de aguardente de cana, a tiracolo, cantam quadras de improviso. Aos grupos, famílias inteiras vêm cumprir promessas ao Senhor Jesus. Há sempre, um instrumen- to de música, uma rabeca, um rajão, uma viola, um braguinha, um tambor ou um pandeiro que acompanha os peregrinos na jornada. Voz clara de rapariga canta: - De Ponta Delgada ao Arco/ Do Arco ao Senhor Jesus/ Tudo são cravos e rosas. Qu ‘eu co ‘a minha mão dispus. (...) Cartão de Boas Festas aguarelado, 1932. Max Römer De romarias e arraiais no mundo insular 27
  • 28. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA Sábado. O Caminho Novo, de lés a lés, é uma vaga humana ressoante de interjeições, frases enfáticas, trovas e notas desafinadas de instrumentos. Dá-se o fluxo e o refluxo, de gente que sobe e de gente que desce. São doze horas. O vapor «Gavião», embandeirado em arco, apitou e ancorou no porto, onde vai golfar centenas de romeiros. As lanchas mal topam no calhau e o primeiro «parai» se ajeita ao escorregar da quilha, vá de a campanha puxar pela corda que está presa à popa, antes que uma onda mais forte revire o barco e encharque a malta dos passageiros que, precipitadamente, saltam em terra aos tropos-galhopos, mergulhando os pés nas poças, molhando os sapatos e atirando cestas para longe do quebra-mar. Na igreja a custo se pode respirar. As plantas e as flores mais formosas, jarros, não-me-deixes, rosas, gereberas, brincos-de-princesa e açucenas enfeitam os altares e as peanhas dos santos, profusamente. Sufoca-se. Há um mar onduloso de cabeças. Círios sem conto e de alturas várias ardem nas mãos dos velhos e moças impúberes. Cumprem-se promessas de joelhos. Distingue-se um murmúrio de rezas, abafado quase pelo clamor do oceano, alma penada em delírio eterno. Fora do adro, romeiros de faces afogueadas e fatos com engelhas, amarrotados do calvário da viagem, poisam no chão de cimento as cestas a estoirarem de lauto farnel a que não faltam as rosquilhas doces cheirando a amassadura fresca. Aos atropelos, movem-se doceiros ambulantes que vendem bonecas de massa cor de gema de ovo, bonecas que têm coladas às pernas, aos braços, e à cabeça, lindas fitas coloridas de papel de seda, nas quais predomina o vermelho. (...) Anoitecera. Magotes de foliões, uma faradonlagem endoidecida, pisando calos com botifarras de cordovão e solas de peso, corre Seca e Meca, explodindo vivório, urraria bárbara, ao passo que outros cantam desafinadamente: - Primavera das flores/ Cuma esta não há mais/ Primavera vai e volta sempre/ A mocidade nã volta mais. Na Terra Chã, (...) tocava-se, bailava-se, e gargan- teavam-se trovas portadoras de ironia: Cantas bem nã cantas mal, Gargantinha de marfim. Eu dava um vintém às almas se o meu cantar fosse assim. (...) Na mercearia do Pestana, jaziam, a dormir, estendidos a esmo, no chão de calçada áspera, os que tinham passado em claro a noite de sexta-feira. Em promiscuidade repelente, para ali esta- vam raparigas de tez queimada ao sol, em contacto com vilões adolescentes; as narinas delas aspiravam o bafio que se exalava das pernas e dos pés delas, com os dedos sujos e gretados da jornada fatigante através dos caminhos de cabras que ligam as povoações da ilha. (...) Numa latada de vinha e pimpinelas, fazendo de dossel, tornava-se mais espesso o escuro da noite. (...) Uns jogadores de roleta, achando o lugar propício para o negócio proibido pela auto- ridade do Concelho, ali abancaram. Um caixote de petróleo era a mesa; os dados começaram a girar à luz bruxuleante de uma vela que, ao derreter-se, alastrava o sebo no tampo do móvel.61 Este arraial cativou diversas gerações de madeirenses e ficou registado na memória das gentes, tendo chegado até nós através de memórias escritas como a de J. Lourenço de Freitas (2000: 87-88), que nos apre- senta outra versão do arraial a partir da origem dos romeiros, no caso especifico de Gaula: A romaria ao «Senhor Jesus da Ponta Delgada» era a maior e a mais participada pelos gauleses desde tempos muito antigos. Partia das Levadas, da Assomada. Os romeiros organizavam-se como se fossem para uma grande caminhada. Havia os guias, aqueles que já tinham participado nas romarias anteriores, depois os chefes de cada família que, por vezes, agrupava duas dezenas de familiares dum mesmo sítio. A romaria quando entrava nos caminhos da serra tinha dezenas de pessoas, entre crianças e velhos. 61 NEPOMUCENO, 2014: 378-381. De romarias e arraiais no mundo insular 28
  • 29. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA Para dormir durante a viagem levavam à cabeça fardos de cobertores, casacos e cobertas. Para a sua passadia levavam sacos de farinha, balsas de carne de porco salgada e sacas com carne de cabra seca, com inhames, feijão e outros legumes. Tanto os rapazes com as raparigas, as mu- lheres e os homens saudáveis carregavam gígas e cestos de produtos para venderem na festa, geralmente frutos secos ou passados, figos, pêras e pimentas em ceiras, ou em rosários, e lapas secas salgadas. Uns levavam ainda para vender, objectos feitos de madeira e outros ainda tape- tes e cobertas, tecidos com restos de lã com estopa. Conheciam as pousadas certas ao longo do caminho onde havia água e abrigos. Ai ceavam e repousavam. Havia determinadas pousadas que eram aproveitadas para amassar e cozer bolo no caco e onde, além de uma ceia feita ao lume, podiam cuidar dos filhos, dos velhos e dos moles- tados pela caminhada. Depois da ceia, antes de se acomodarem, havia «o brinco», «os baílhos», os despiques. Chegavam ao «Senhor Bom Jesus», ao fim de três dias, pela tardinha da antevéspera da festa. Cada família escolhia o melhor lugar para se instalar, geralmente perto do calhau e junto de um latada de vinha, bom lugar para pernoitar e onde ir «arriba dos pés ». Uma vez instalados, já começavam a vender na véspera da festa. No domingo, dia do «Senhor Jesus» toda a gente as- sistia à Missa da Festa. Quem tinha de cumprir promessas comprava os «círos» e ia na procissão. Uma vez vendidos os produtos que tinham levado para vender, tendo assistido à festa e parti- cipado na procissão, passavam o resto de domingo no arraial, beberricando u mas «caquetas» e uns «meígrogues» e, por fim, se «vertendo» entrando nos brincos e nos bailes. Regressavam à freguesia na segunda-feira seguinte, pelo que chegavam às Levadas geralmente oito ou nove dias depois, tantos eram os dias gastos na romaria. DN.05.09.1933, p. 1 DN.02.09.1933, p. 2 DN.29.08.1933, p. 2 De romarias e arraiais no mundo insular 29
  • 30. CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA Camponeses do sul da ilha nas vizinhanças do Funchal vindos da romaria. 1821 NOS CAMINHOS DOS ROMEIROS Passam em ranchos, romeiros de toda a freguesia, com os seus trajos apurados e o farnel que puderam arranjar. Entre eles, os grupos que dançam ao som do rajão, ferrinhos e pandeire- ta - uma dança com ressaibos gentílicos que cada um vai executando, isoladamente, à frente dos tocadores, voltando-se para eles e a entoar uma cantilena, recuando, avançando, um pé no chão, outro no ar, o busto descaído para um lado, uma das mãos na cintura, outra levantada, a dar estalinhos, e a cabeça inclinada, em trejeitos que sublinham o sentido das cantigas. E assim percorrem léguas, apenas com pequenos descansos para comer e beber; constituindo esses mo- vimentos e as peripécias da viagem a única e verdadeira animação da romaria. (LAMAS, 1956, cit. por NEPOMUCENO, 2014, 299-300) A ocupação e valorização da ilha molda-se também de acordo com os circuitos que internamente mar- cam a mobilidade interna terrestre. A ilha da Madeira, pela sua configuração geográfica sempre apresentou dificuldades a esta circulação, tornando-a difícil e perigosa. As encostas, por vezes abruptas, são marcadas pelos sulcos das ribeiras que obrigam a subidas e descidas, por caminhos íngremes para as ultrapassar. A História regista um movimento de peregrinação interna que começa a ganhar importância e que se alastra a toda a ilha, com o desenvolvimento das vias de comunicação terrestre e marítima. Há indicações de algumas romagens internas a partir do século XVII, como o Monte, Ponta Delgada. Mas foi a segunda metade do século XIX, com o desenvolvimento dos meios de comunicação que permitiu essa abertura interna e à De romarias e arraiais no mundo insular 30